28.2.19

Viewer discretion (short stories #97)


Rhye, “Feel Your Weight” (Poolside Remix), in https://www.youtube.com/watch?v=tdsH-yuCbCw
          Nos países nórdicos, não há cortinas a separar a intimidade dos lares da curiosidade dos forasteiros. Quem está habituado a querer da sua casa uma fortaleza, à prova de olhares indiscretos que naveguem nas ruas com o fito de espiolhar o que se passa dentro das casas iluminadas e não protegidas desse olhar intrusivo, o hábito nórdico estranha-se. Parece incompreensível que as pessoas não se importem com os intrusos que, a partir do exterior, selecionam o olhar para captar um naco da vida das pessoas que se passa dentro das suas casas. O erro é de perspetiva: ou porque os transeuntes respeitam a intimidade do interior das casas e não calibram o olhar para as casas que se oferecem ao exterior; ou porque, em havendo o hábito voyeur, dentro das casas ninguém se importa que as suas vidas não sejam tão privadas como daqui pensamos que são quando correm dentro de casa. Como as culturas variam e a distância entre um país latino e um país nórdico é muita, os costumes são diferentes. Das vezes que fui a países nórdicos, não tive a oportunidade de pedir a um habitante local a explicação para a ausência de cortinas. Pode dar-se o caso de as considerarem um ornamento dispendioso, não se justificando tamanho gasto para se protegerem da invasiva curiosidade de quem, de fora, não reprime um olhar sobre as casas abertas ao exterior por ausência de cortinas. Ou até pode acontecer que, em harmonia com a diversidade cultural, os nórdicos considerem as cortinas um utensílio fora de moda. Os nórdicos teriam a apetência para atribuir mais valor ao fator económico (a carestia das cortinas) ou ao fator estético (as cortinas démodés), não se importando de sacrificar o valor da privacidade quando estão no interior das casas. Pressinto uma terceira hipótese, não banal: das vezes que fui a países nórdicos, percebi que as pessoas são desinibidas e não se incomodam com a nudez (própria e dos outros). Hipótese em que a ausência de cortinas se estriba no à-vontade com que passeiam os seus corpos desnudados, sem ser motivo de perturbação para quem se desnuda e para quem é testemunha da nudez.

27.2.19

Quantos são os fracos?


Glockenwise, “Moderno”, in https://www.youtube.com/watch?v=sKb2RXrdo-s
Quantos são os fracos? Quantos são os que não se amedrontam no miradouro do medo, quantos são os que não têm medo de dizer que têm medo? Quantos são os que recusam a ardilosa coragem dos que dela se ufanam e atiram-se de cabeça aos tormentos povoados nas várias dimensões do tempo? E quantos são os fanfarrões que entoam a valentia ímpar e depois, quando dela precisam de convocatória, a encontram deserta, eles próprios entregues à solidão do medo? 
Não é só semântica. A valsa entre os temerosos e os destemidos é um palco artificial. Pois nem os primeiros são temerosos por capitulação, nem os segundos se encerram no alvéolo da bravura e enxertam uma dose alucinante de loucura. Não há lugares assim extremados. E mesmo que os houvesse, ver-se-ia, após cuidada decantação, que os temerosos são os mais corajosos e os destemidos se refugiam numa retórica distorcida que, após diligente depuração, se revela um logro.
Os pusilânimes não são uma máscara de si mesmos, hibernando na inação por receio dos efeitos adversos da ação. É errado tomá-los por vendilhões cercados pela sua venalidade, como se não fosse o tributo da coragem pertença do seu código genético. Serão precauciosos nos passos que dão, medindo criteriosamente as possibilidades e tentando apurar os resultados estimados de cada possibilidade. Serão lúcidos, não arriscam passos no escuro, ou um salto no vazio, pois não lhes é dado a perceber o que contém a escuridão ou se o tamanho do precipício não aconselha o salto no vazio. Compreendem o significado de irreversibilidade. E como não quadram com a estultícia do arrependimento, não são atores descomprometidos de loucas correrias pelo absurdo da incerteza. 
Os destemidos corporizam a vozearia inconsequente, o discurso gongórico, cheio de ornamentos que distraem da essência, vazio de conteúdo. Prometem façanhas mil. A facúndia das palavras, em que servem a verbalizada coragem, é a promessa de audácia. Fazem-se passar por levemente dementes, a demência como instrumento da bravura que só está ao alcance de quem não tem medo de nada. Como não é possível haver quem não tenha medo de nada, antecipa-se o logro. Talvez sejam os que mais vivem assoberbados pelos medos. E como, no íntimo, são assaltados pelos medos e se envergonhariam de os reconhecer em público (como se admitir um medo fosse prova de fragilidade), refugiam-se no fingimento que é o oposto do que são.
O vocabulário está trocado. Os corajosos são os temerosos e os que se fingem de corajosos são autênticos cobardes, todavia disfarçados do que não são. Os primeiros, que aparecem em palco personificando a fraqueza, são os que exibem robustez. Os segundos são uma impostura, a bandeira hasteada da fragilidade, todavia disfarçada de uma afoiteza que se estilhaça ao primeiro contratempo.

26.2.19

O homem das cavernas


Sharon Van Etten, “No One’s Easy to Love” (live on KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=DDbwS4h7m9c
Vá vossa excelência ao dicionário, caso se dê o caso de o étimo não figurar entre o vocabulário privado, e procure a entrada “atavismo”. Aparecerá “condição que exprime o reaparecimento, num indivíduo, de caracteres que pertenciam a gerações antepassadas e que tinham já deixado de se manifestar.” Ou poderá aparecer, em imagem a tiracolo, a fisionomia de vossa excelência, ostentada sobre a toga que o industria como dileto membro da magistratura, parafraseando a consuetudinária exigência de o considerar, a par de seus pares, “órgão de soberania”. 
Desça vossa excelência à rua. Coloquie com os transeuntes. Não recuse o trabalho de campo. Para perceber os ventos que sopram, que decerto não terá oportunidade de os experimentar se teimar em resistir do alto da sua torre de marfim, onde as imagens que ondeiam no seu imaginário são descoloridas e tresandam a mofo. Saia. Desprenda-se dos seus pré-conceitos: admita que o exíguo mundo que construiu na cabeça ainda mais exígua de vossa excelência é um anacronismo que o expõe ao risível, de cada vez que excreta sentenças que nem no século XVIII seriam aceitáveis. 
Não seja vossa excelência um homem das cavernas. Para seu próprio bem. A menos que a patologia esteja tão entranhada que nem dos ossos se consegue deslaçar e vossa excelência acredite que só consegue fazer as pazes com o travesseiro que acolhe o sono se continuar a exalar a misoginia criminosa. É criminosa, porque vossa excelência dá guarida aos criminosos que se servem da força bruta para maltratarem as consortes, na absoluta negação do laço que outrora fora cimento dos cônjuges, figurando ao lado dos violentos e contra as vítimas, alinhando com a bestialidade própria dos que usam a razão da força. Vossa excelência não vive no tempo dos homens das cavernas. Não são as donas meros ornamentos para alindar a existência de varões bem (ou mal) assinalados. Não creia vossa excelência no acosso dos deuses de antanho e liberte as amarras para a contemporaneidade que devia ser o seu chão. Desprenda-se dos mal resolvidos enigmas com o sexo feminino. 
Se vossa excelência persistir num comportamento a preceito de um homem das cavernas, não se abespinhe (nem lhe seja cometido o impulso de desatar a processar a eito) se alguém lhe disser que é um homem das cavernas. Pois o muito pequenino mundo que habita na cabeça de vossa excelência é o mundo que outrora foi albergue dos homens das cavernas. Quem pensa e atua como homem das cavernas não pode destinar à infâmia o epíteto de homem das cavernas. Sacuda a toga, puxe lustro às medalhas da soberania que não se cansa de exibir, ponha o conjunto a arejar. Por uma temporada demorada. E já que é dado às sacristias, peça auxílio a um cura que o cure da maligna intumescência que retarda o pensamento. Aproveite o sabático interstício e leia os fundamentos da filosofia do direito.
Vossa excelência tem todo o direito a ser um homem das cavernas (bem entendido). Todos precisamos de homens das cavernas. Como curiosidade arqueológica. E porque a coutada onde persistem os homens das cavernas é um bem inestimável: na dúvida, é só observarmos o habitat para sabermos os antípodas em que devemos estar. Vossa excelência excluída.  

25.2.19

Amor sem nós atados (ou amor desmascarado?)


Xinobi & Gisela João, “Fado Para Esta Noite”, in https://www.youtube.com/watch?v=71wUAZgC4CM
Em plena súplica: “anda deitar-te ao meu lado, fiz a cama de lavado.” Ela está à sua espera. Aconteça o que acontecer. Mesmo que ele mergulhe na indiferença e não corresponda à súplica. Ou que decida o que decidir e se deitar na “cama de lavado”, sem que ela dê conta que esse deitar conspurca a cama: não será menos do que um oportunismo, o simples reificar da vontade do homem que ela espera.
Uma súplica: será rima acertada com amor? Um jogo de piedades quadra com o arrebatamento do amor, com a entrega uníssona? A mulher rebaixa-se. Capacita-se, mero instrumento dos desejos do homem, que só vem quando lhe apetece e ela sempre disposta a acolhê-lo. Uma súplica – ela devia sabê-lo, se não estivesse hipotecada pela obscuridade da dependência – não é semântica tolerável no amor. Ou então, redefina-se o amor: faça-se dele um jogo descomprometido, um jogo sem regras, a entrega sem absolvição, a subalterna condição a que fica remetida a mulher incondicionalmente amante. 
Se ele vier, ela exulta. O seu amor será cumprido. Não arrisca interrogar se o mesmo acontece nele. É melhor não arriscar a pergunta: prefere não saber, para não ficar refém da angústia de uma resposta indesejada. Não admite a possibilidade. Não saberia lidar com a deceção. Sabe que não pode exigir nada. A posição dela é tão singela, é a de quem tudo tem para dar. É a sua prova do amor. Incondicional, como ela sabe que há muitos homens que só sabem lidar com esse desigual estatuto do amor. 
Se ele não vier, ela espera. É a identidade do seu amor por ele. Não dá conta da patologia em que se encerra, nesta dependência viciante – vilipendiosa, se ela quisesse dar conta. Ou, apenas, o espelho fiel da sua imensa fragilidade, e ela ali, exposta, entregando-se na plenitude, nem que seja (como será) instrumento dos caprichos dele. Não faz perguntas. Limita-se a saciar o desejo do homem. Pela sua maneira de pensar, é assim que se costura o amor por um homem. Um não sinalagma. Uma reciprocidade não respeitada, em que a ela correspondem os deveres e nele apenas repousam os direitos. Ela contempla o amor marialva e condescende. Ou nem percebe que um amor destes, desigual – tão desigual – não é amor. A fragilidade que a deixa tão exposta e sem forças impede a lucidez que chegava para detetar a marialva condição de um amor assim falsário. Nem chega a ser frugal, exceto da parte dela (se não fosse contada a parte dele doentia).
Ou ela pode desprezar todas as anteriores considerações porque apenas intui o prazer quando ele se deita na sua cama. Na dialética da carnalidade, ela não é atriz passiva. Tira o seu próprio proveito. Não o admite (ele há ainda muito homenzarrão que se incomoda se souber que o prazer é de proveito bilateral...). E só não o admite porque tem no homem que se deita na sua cama apenas quando lhe apetece um homem-objeto. 
A vulnerabilidade não é dela. É dele, que sempre que se ausenta da cama e ostenta pose triunfante (no soez atrevimento dos marialvas), nem sonha que é tão objeto como ele dela faz.

22.2.19

Um mal menor não deixa de ser um mal (aguarela)


Badbadnotgood, “I Don’t Know” (ft. Samuel T. Herring), in https://www.youtube.com/watch?v=iv82_ZSwa4Y
Uma escolha por catálogo: percorrem-se as páginas, demoradamente, cotejando as alternativas. Dir-se-ia: a demora não é bom sinal, significará que é difícil acertar o equinócio da escolha; ou pode ser apenas a exigência da responsabilidade que determina a conspícua análise de quem se oferece no leque de alternativas. 
Há os que não tergiversam. Estão habituados a escolher sem pensar; escolher é só um hábito, e não há o hábito de interrogar criticamente as escolhas de mandatos selados às cegas. Outros não se contentam com a falta de critério. Examinam as várias propostas. Comparam-nas. Ajuízam-nas, procurando saber qual delas é a que recolhe as preferências, tudo o resto sopesado. Muitas vezes, as alternativas estão longe de ser convincentes. A educação convencionada exige uma escolha, ainda assim. Nem que seja uma escolha que se distingue pelo critério do “mal menor”. Não escolher é apostasia, uma inaceitável demissão que não quadra com a responsabilidade de cada um. 
No fundo, trata-se de um concurso em que só entram medíocres. O critério está em apurar o menos medíocre. Não deixa de ser um medíocre. Num rasgo cínico (e doloroso aos olhos dos tutores da impetuosidade politicamente correta), poder-se-ia rematar o raciocínio com o pressentimento de que a mediocridade é o espelho de quem escolhe; uma fusão indeclinável, pois os medíocres sentem a tentação de se alistarem onde já campeiam os medíocres que têm tido o pote na mão. 
(E só não se avança com esta tentativa de explicação para não ser apodado de elitista, acusado de descair para o insuportável autoconvencimento de pertencer a um escol iluminado. Fica registado, para os devidos efeitos.)
E quantas não são as vezes em que a escolha se afunila para os que se sabe, à partida, serem os poucos com hipótese de saldar o pleito com um triunfo? Esta estreiteza exclui outras hipóteses, algumas delas possivelmente mais meritórias, mas que se convenciona, desde o início, que não são sedutoras para um numeroso grupo dos que escolhem. Quantas vezes, neste afunilamento, a trama compõe-se de modo a punir os que corporizam o mal maior e, nessa medida, se escolhe o mal menor. Que não deixa de ser um mal. A escolha é entre medíocres, uns piores e outros nem tanto. Esta é a têmpera de gente pouco exigente na escolha – talvez por ser pouco exigente consigo mesma. 
A psicologia da aceitação da mediocridade é angustiante (menos para os que não dão conta dela). O mal menor confunde-se com solução prodigiosa, num jogo de sombras que serve para caucionar o fingimento de que o mal menor não é um mal. O olhar embacia-se com outros considerandos, tecendo-se na prioridade de combater o que é considerado o mal maior. No âmago deste raciocínio binário (em que a escolha pende entre o mal maior e o mal menor), a anestesia das mentes oculta a perceção de que o mal menor é, em todo o caso, um mal. Quem, no seu juízo inteiro, aceita escolher um mal, ainda que seja o menor? Quem assim se comporta tem a noção do mal que está a autoinfligir? Não tem. A anestesia é de tal forma potente, que a bissetriz apontada para a recusa do mal maior leva a aceitar o mal menor como sucedâneo de um bem a cumprir. Mas não passa de sucedâneo. O zénite do fingimento.
Esta podia ser uma aguarela desta terra contumaz.

21.2.19

A implausível história de uma galocha perdida na autoestrada (short stories #96)


Spiritualized, “I’m You Man”, in https://www.youtube.com/watch?v=4vNrHoLS1zc
          O que é feito da galocha?” Ninguém sabe dela. Está para ali, na arrecadação da carrinha, onde vão as sobras sem utilidade, a outra galocha. Solteira. É melhor procurar entre o entulho, só para confirmar se a galocha não se encontra submersa nos detritos que vieram para as escombreiras. Não está. As mãos encardidas são o aval. O entulho foi mexido e remexido pelas mãos contrariadas. A galocha está viúva. Que será do paradeiro da galocha ausente? No dia seguinte, depois do sono e a caminho de uma rotineira jornada, um dos passageiros despertou do torpor e exclamou: “está ali a galocha! Ali! No separador central da autoestrada!” O motorista não podia parar de repente para não causar um acidente, que àquela hora ainda muito matinal já o trânsito morde a paciência dos mais ensonados (ou talvez não, por estarem ensonados e, assim sendo, absortos). “O que fazemos? Saímos na próxima saída da autoestrada e damos a volta?”, perguntou o motorista, à espera da deliberação democrática dos demais. Os outros ficaram em silêncio. “Ninguém diz nada? Estamos quase a chegar à próxima saída.” Desconversaram com o silêncio. Não estavam interessados em andar às voltas, como se tivessem sido empenhados num labirinto e, ainda por cima, por causa de uma galocha, um objeto inanimado e com valor residual. Todos devem ter pensado, na imersão do seu silêncio, “assim como assim, um par de galochas não custa muito dinheiro”. Não conseguiram ter sossego durante a jornada de trabalho. Não paravam de pensar no absurdo da galocha que perdeu o par; estavam mais preocupados com a galocha que jazia, inerte e imunda, encostada ao separador de cimento da autoestrada. Nem sequer veio à ideia que a galocha sobrante já tinha sido despachada para o lixo. Se os seus estados de espírito fossem medidos por economistas, diriam que aquela foi uma jornada improdutiva. Quando regressaram, o motorista perguntou ao passageiro que tinha avistado a galocha pelo lugar em que a vira. “Foi mais ou menos por aqui...um pouco mais à frente.” No dia seguinte, ao passarem pelo mesmo lugar, o motorista abrandou e encostou-se à direita, preparado para estacionar na berma, se preciso fosse. A galocha tinha sido recolhida – ou teria sido projetada para o outro lado da autoestrada, conjeturaram alguns, na esperança de não ter sido destinada à fatalidade, a galocha. Aquele dia também foi muito improdutivo. Era o que se arranjava, com operários imbuídos de tão apurada sensibilidade.

20.2.19

Teoria das probabilidades (ou probabilidade das teorias)


Sharon Van Etten, “Comeback Kid”, in https://www.youtube.com/watch?v=h4mewwymxbI
Qual é a probabilidade de um acontecimento? Pergunta consuetudinária que incendeia o horizonte onde se projeta o pensamento. Se calhar, vezes de mais. E vezes de mais porque se colhe na haste da especulação: trata-se de antecipar o futuro. 
Quando dizemos “é provável que aconteça (isto ou aquilo)”, estamos a pressupor que o futuro vai ter um certo desenho e que, ao tropeçarmos nesse desenho, será uma certa a reação. Este critério tem duas falhas. Primeiro, admitimos que as cores do futuro sejam determinadas, o que não podemos garantir, nem que julguemos que, de acordo com uma teoria das probabilidades de que sejamos lídimos fautores, seja elevada a hipótese de tal acontecimento. Segundo, a contingência recrudesce quando ligamos a consequência à causa: perante o acontecimento (já de si ungido com a incerteza do porvir), a reação provável será uma certa. Não podemos garantir que assim seja. É nestas alturas que parece que somos maus aprendizes da experiência. Era só olhar para trás e colhíamos, aos pares, exemplos de como o comportamento havido foi diferente do que pressupúnhamos quando se teorizavam hipóteses de acontecimentos antes de eles terem acontecido.
Em vez da teoria das probabilidades, com o flanco tão aberto ao malogro, melhor critério será esboçar a probabilidade das teorias. Em vez de teimarmos na improvável presciência (porventura, das poucas probabilidades assertivas), em vez de continuarmos agarrados a um oráculo que tantas vezes se desmente a si próprio quando o futuro se cumpre, profícuo seria teorizar – teorizar sobre o que viesse parar ao cais onde se acolhe o pensamento. Por mais estéril que seja o exercício de teorização, bem entendido: é que, enquanto se teoriza, o pensamento exercita-se. E enquanto se exercita o pensamento, estamos agarrados à dimensão do tempo que importa – o tempo presente. 
A probabilidade das teorias é a recusa dos tempos sem resgate. Não podemos encontrar alimento no pretérito (a não ser um módico de experiência, quando a memória embaciada não o prejudicar). Nem podemos ter a pretensão de agarrar o futuro pelo rosto, pois nem sequer sabemos qual é o rosto do futuro. A teoria das probabilidades é a matemática demonstração da impossibilidade de garantir o futuro. A probabilidade das teorias é o aval de que não se desperdiça o tempo que interessa, aquele de que temos imagem tangível, o tempo de que nos alimentamos – o tempo presente.

19.2.19

Nunca vivemos aqui


Andrew Bird, “Sisyphus”, in https://www.youtube.com/watch?v=zug1B8DSkWw
Temos um horizonte embaciado, ou uma tela que se desmembra em quatro telas onde os filmes são diferentes, as palavras dos intérpretes atamancando-se num todo ininteligível. Temos o nevoeiro da manhã que esconde a cidade. Temos as noites imersas no sortilégio e os nossos olhos insaciáveis sondando nos interstícios da cortina inamovível. Temos as escadarias alcantiladas que parece não terem fim, como se fosse possível os nossos pés demandarem o infinito. Paramos: é possível os nossos pés demandarem o infinito. Temo-nos. 
Juntamos as mãos na água remanescente. Mexemos os dedos e a água deixa de ser um espelho. Somos nós, caudilhos de uma natureza desenhada nos contornos do olhar. Dizemos: nunca vivemos aqui; parece que nunca vivemos aqui. Pode ser possível. Às vezes, quando nos desembaraçamos de um sonho, e ele deixa outro e mais outro soerguido, uma sequência que faz lembrar uma caixa de Pandora, uma sensação estranha percorre as veias. Diríamos que os lugares são sempre novatos e nós cuidamos de seu batismo. Nunca vivemos aqui: porque o tempo é a efémera condição que desfaz o passado a um espelho estilhaçado contra as montras de onde tiramos os fósforos para acender a noite.
Temos as palavras que quisermos. Enfeitamos os chapéus com as grinaldas ao acaso. Sabemos: estes cromossomas uníssonos são irrepetíveis. Talvez dizer “nunca vivemos aqui” tenha o sentido nobre dos lugares que não voltam a ser visitados. Não é que não sejam caução de beleza, que não se ofereçam dísticos de paraísos modestos e que, nessa medida, exijam revisita. Mas sabemos de tantos outros lugares que por nós esperam. Sabemos da exígua medida do tempo, uma matemática ingrata que coloca o tempo em desvantagem perante a miríade de lugares que queremos tingidos pelo nosso olhar. Oxalá inventassem a profecia do tempo arrastado, para não ser o embaraço à ousadia dos lugares que estão à nossa espera. É lá que, em miradouros sobranceiros, com a cidade espraiada sob os nossos pés, dizemos, e com propriedade, “nunca vivemos aqui”. 
O que temos nas mãos? Os fragmentos que guardamos dentro de nós em memórias insuspeitas. Um grafito algures, uma praça bucólica, a neve sobre o rosto frio, as cidades sumptuosas (prova da genialidade do Homem), os versos abastados no dorso da cidade que se oferece como túmulo inspirador, os hotéis que viveram por nós, os idiomas numa constelação harmoniosa de falas, as fotos das botas sobre o chão forasteiro, a monumental tela que é por nós oxigénio. E a nostalgia do tempo presente.
Nunca vivemos aqui. Nunca vivemos em lugar algum, à exceção de todos os que já nos tiveram por habitantes. Nunca vivemos aqui; porque aspiramos a nómadas e o tempo desprende-se das nossas almas.

18.2.19

Deixa lá as consumições, pega num livro e refaz o mundo em que teus pés assentam


Low, “Fly”, in https://www.youtube.com/watch?v=Q5Enxzh-O9Y
Deixa lá as consumições, pega num livro e refaz o mundo em que teus pés assentam. Desenha no ar os contornos de uma onomatopeia, o vernacular proveito que abjura os contratempos. Há sempre remédio. Podes não querer um livro, por défice de leitura ou porque não te apetece. Não suprimas a possibilidade. Limita-te a adiá-la. 
Em vez da onomatopeia, talvez tenha idêntica serventia amarrotar um maço de folhas, despedaçá-las contra a parede gasta enquanto o termómetro interior se alivia das febres más. Convoca os bons espíritos (se fores de acreditar em coisas tais): distribui-lhes, generosamente (ou talvez não), bom vinho, petiscaria selecionada, queijos que compõem a estética da mesa, doçaria conventual. Espera que te aconselhem. Se permanecerem mudos, substitui-te aos espíritos que se revelaram madraços (ou não se revelaram, de todo).
Não ponhas alvíssaras nas consumições. Delas te queres livrar, não têm cabimento chamamentos às alvíssaras. Não capitules perante a atração do que causa mossa. Sabes que existe um íman malquisto, insinuado nos estratos subterrâneos da alma, que te aproxima do que sabes exigir prevenção para como refém não te saldares. E sabes que desse desiderato não podes esperar nada de proveitoso. Se a precaução tivesse um trono, irias para os antípodas desse desiderato, a bem do teu bem.
Para o caso de falharem as onomatopeias, o estilhaçar do maço de folhas, a convocação dos bons espíritos, ou a prevenção contra os ardilosos remédios, dirige-te à biblioteca mais próxima. Deverá ser a que em tua casa se encavalita nos armários que servem para esse efeito. Não dirás que já leste todos os livros; não há nenhuma biblioteca no mundo de que se possa dizer que todos os livros já foram lidos – e muito menos pela mesma pessoa. À biblioteca pede de empréstimo um livro que está há longo tempo em lista de espera, ou que, com a espessura do tempo, tenha caído em olvido. Um, à sorte. E, à sorte também, abre-o numa aleatória página. Transcreve um parágrafo inteiro. Repousa vagarosamente sobre essas palavras. Reescreve-as (que o autor não saberá da tua diligência e não ficará ofendido, nem reclamará intervenção da justiça). Reescreve-as nas suas múltiplas possibilidades. Lança os dados no jogo das palavras que saem do labirinto do parágrafo; ou: arreda a cortina que se interpõe entre ti e as palavras e, com o seu redesenho, liberta-te desse labirinto. Verás que o que acabaste de congeminar não é pior estado de alma do que o que julgas em ti colonizado mercê das consumições que te assaltam.
Para o caso de falhar o precedido, que te sobre lucidez para recusares os delfos avulsos que acenam com milagrosos gurus de autoajuda. Responde que não acreditas em almas empenhadas, em milagres e no esoterismo da autoajuda. E volta ao livro, a um qualquer. 

15.2.19

Mediador


Pixies, “Gouge Away” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=FiUNDeuBbi8
Deve ser uma tremenda pressão psicológica, ser chamado tantas vezes a mediador”, tentou adivinhar, em jeito de lamento pela má sorte que lhe calhava amiúde. Em tempos, alguém notara que era sensato. Talvez fosse a sensatez, pressentida pelos outros, que granjeava os atributos conciliadores e, por isso, fosse convocado tantas vezes para atuar como mediador. 
Nem por isso. Limito-me a tentar construir pontes. É isso que esperam de mim quando pedem para ser mediador.” Não o dizia com falsa modéstia. Não sentia pressão, e muito menos psicológica, quando era chamado para mediador. A exigência não estava sobre os seus ombros. A sua posição acabava por ser a mais confortável – talvez, a única confortável – quando se sopesam os papeis desempenhados na tríade envolvida na mediação: duas das partes em conflito e ele recrutado para apaziguar as dissidências. A alegada sensatez (não autorreconhecida) podia ajudar no exercício da conciliação. A agudeza de análise (esse sim, atributo que autorreconhecia) era critério suficiente. Media a extensão das divergências, aquilatava a profundeza das feridas abertas e avaliava em que medida uma ponte entre os enrixados podia ter solidez para reprimir o conflito.
E não sentes que podem acusar de não teres sido diligente ao ponto de promoveres uma ponte aceitável para os conflituantes?”, perguntou, com a curiosidade de um gato. Não era tão difícil como a pergunta intuía. A última acusação legítima que podia recair sobre o mediador era a de não ter sido diligente. Assim como assim, é uma atividade gratuita. E nem sequer colhe o argumento sociológico que “temos de ser uns para os outros” como esteio da imperativa aceitação do pedido de mediação e da inerente competência que se espera do mediador. Não é egoísmo considerar que os que arranjam problemas devem resolvê-los.
Era o que mais faltava. O máximo que consigo é perceber onde está o menor denominador comum que seja a caução da ponte que se espera do mediador. Se os conflituantes querem persistir na divergência para além do tempo razoável e depois das minhas diligências, é com eles. Saio de cena com a mesma serenidade com que havia entrado – em rigor, até mais sereno. A última coisa que se pode esperar de um mediador é que seja uma das fatias do carpaccio. Os conflituantes é que são a matéria-prima do carpaccio. Eu sou, na melhor das hipóteses, a generosa gema de ovo que faz a fusão das carnes amalgamadas num bife tártaro.
E ela, que não percebia de gastronomia (e não o queria admitir), saiu de cena mais confusa do que antes de nela ter entrado.

14.2.19

No início, (não) era o adjetivo (short stories #95)


Imploding Stars, “A Mountain and a Tree”, in https://www.youtube.com/watch?v=DsL0G0iZuoM
          Tinha de me encher de coragem. Coar a impudicícia, para não corar com ela. Era imperativo renunciar aos adjetivos. Os adjetivos agridem as frases, ornamentos que as adulteram. Era como se fosse preciso engalanar as frases com palavras encharcadas de sentido fundo, pois só assim as orações ganham vida própria; ou encharcá-las com adjetivação abundante, todos convencidos que esse era o predicado da escrita fecunda. Havia os que tinham os adjetivos como cais, socorrendo-se deles como defesa para a fragilidade da escrita; como quem diz: se não fosse a profusão de adjetivos, a mancha de texto ficava emagrecida, e eles continuavam a acreditar que os pergaminhos do texto se vendem pela quantidade de páginas. Porém, os adjetivos pouco acrescentam ao texto. Regressava ao começo para denunciar a petição de princípio que entroniza os adjetivos. Fossem de uso intencional, fossem de uso espontâneo (em linha com o modismo do texto palavroso, quase gongórico, que se esgota no paradoxal vazio dos prolixos adjetivos). Era preciso depurar o texto. Fazê-lo regressar a uma pureza que prescindia dos adjetivos, meros corpos inertes que engordavam o texto sem lhe conferir substância. Não é por acaso que a substância faz par com o substantivo. As duas palavras têm a mesma etimologia. E agora, em transição, os adjetivos tinham de ser fundidos na sua inutilidade. Ou ficar presentes como peças arqueológicas, para memória futura. Na transição, decretava a jactância dos adjetivos, representação dos para-raios da vaidade, manual da escrita que era o fosso da sua clareza – como se os adjetivos fossem o colesterol da escrita. A parcimónia era o achado superveniente nas arcadas do programa cerzido a tinta-da-china. Doravante, os adjetivos não estariam em degredo, que a radicalidade não tem vencimento no opúsculo das decisões lúcidas; mas estariam em perda na bolsa de valores do vocabulário, atirados para o fim das palavras em lista de espera. Com um critério seletivo de utilização, apenas admissível quando peças cirúrgicas da escrita.  

13.2.19

Fogo cruzado (short stories #94)


The Chemical Brothers” Got to Keep On”, in https://www.youtube.com/watch?v=rSYwtllbweY
          A tontura dilacerante embacia a lucidez: por instantes, é como se tivesse mergulhado numa anestesia e de pouco se lembrasse. Um ruído ensurdecedor continua a ser pano de fundo. As armas disparam incessantemente, numa demência sem freio a que os homens se entregam. A certa altura, já ninguém sabe onde está o fogo amigo e o fogo inimigo: as balas não têm cor e, no meio do fogo cruzado, elevada a probabilidade de homens morrerem derrubados por fogo amigo. As reminiscências vagas beijam a superfície da memória. Não era preciso resgatar as páginas da História que são o manancial da vergonha da espécie. O fogo cruzado existe, mesmo que não venha selado em balas vomitadas por revólveres obnóxios. Existe nas palavras tingidas a veneno, nos atos fingidos, nas mentiras compulsivas, nos ardis engenhosamente montados como cenário dos fingimentos desmultiplicados em fingimentos vários. Dizia: ninguém pode dizer que tem salvo-conduto do fogo cruzado. Algum desse fogo é letal; o seu maior quinhão deixa as vítimas em sobrevivência, a cuidar das feridas abertas. Às vezes, não se sabe o que é pior. Não sabia, contudo, apartar os efeitos malévolos das consequências irremediáveis do fogo cruzado. Por outras palavras: há fogo cruzado que se soergue no pescoço da honestidade – e as palavras ditas, do alto da sua frontalidade, são armas ásperas, cruentas, que dilaceram o corpo de quem elas se destinam. Dirá alguém, mais compassivo: agredir alguém com palavras ríspidas, apesar do seu contorno ser um retrato fidedigno, é de uma gratuitidade repulsiva; não tem serventia pelas excruciantes dores que provocam em quem elas atingem. Elas podem ser guardadas para memória futura, ou nem tanto: armazenadas na altivez generosa do íntimo de quem as concebe, no generoso ato de prevenir a angústia de outrem. É outra forma de fogo cruzado. As palavras que são restringidas no acosso do altruísmo podem torturar o interior de quem as castrou. É como se o revólver tivesse sido disparado contra quem premiu o gatilho. 

12.2.19

O rufar dos tambores


Rosalía, “Di mi Nombre” (ao vivo em “Late Motiv”), in https://www.youtube.com/watch?v=GLWfMPPh1F8
A pulsação crescente. A impressão de que o ar estava rarefeito, como se fosse um punhal a travar a respiração. Uma certa sensação de angústia colando-se às veias frias. Do medo em contrafação, um vestígio a adejar sobre as pontas dos dedos na forma de um formigueiro inexplicável. E o rufar dos tambores. 
Primeiro, ao longe, um som quase indistinguível, um breve rumor que parecia dissipado. Depois, os tambores percutidos, selando um som que não podia ser uma miragem. À medida que o corpo se sentia trespassado, o rufar dos tambores anunciava-os mais próximos, presentes. Parecia vir em rima com a angústia que tomava proporções. Um meteórico colapso de tudo, talvez; ou apenas uma provação, para testar o sangue-frio exigível nos contratempos que ficam como cicatriz sob os vulgares relógios que se aprontam, suas testemunhas. 
Os tambores não se escondiam: não era só o rufar que entrava pelos ouvidos, matraqueando a paciência, crescendo no dorso da dor que não se exauria; os intérpretes surgiam no campo de visão, com seus fardamentos exemplares, pose seráfica, os batimentos mecânicos dos tambores impressionamente coligidos uns nos outros, as passadas marciais denotando tirocínio do exército. A jugular parecia quer saltar do seu lugar, empurrando a pele com uma percussão que parecia fotocópia do rufar dos tambores. Seria um pelotão de fuzilamento? Não podia ser. Nesta terra foi banida a pena de morte e, por conseguinte, os pelotões de fuzilamento caíram no desemprego. Que se fizesse constar, ademais, que não haveria legitimidade se um grupo de músicos (ainda que tutores de má música) se transfigurassem em bandidos a fazer de pelotão de fuzilamento. 
Os militares, indiferentes ao demais, prosseguiam no impassível troar dos tambores. Parecia que estavam mais próximos, já entraram no campo de visão há longos minutos. E, ao mesmo tempo, é como se simulassem o passo e, em vez disso, os pés estivessem atolados, apenas fingindo os passos que deixaram de dar. Seria um aviso? O rufar dos tambores acompanha o epílogo de uma história, quando alguém diz adeus à vida, ou quando a vida de alguém esteve por um fio e, de repente, recebe um balão de oxigénio. 
Depois de uma distração (a olhar para o relógio, ou porque ouviu um estampido estridente no lado contrário ao do rufar dos tambores – não tinha em memória), os instrumentistas já não estavam na rua. O rufar dos tambores cessara de ser a música de fundo. Seguiu o seu caminho. A pulsação domada. O ar reconquistando sua perícia, habilitando a respiração. A angústia esquecida. As pontas dos dedos recuperadas da letargia. E o medo que se extinguiu.

11.2.19

Noção de confiança (qualquer semelhança com a ficção é pura realidade)


Talking Heads, “Psycho Killer” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=qCfC5yVlvj4
Da terra que tinha um governo que a tirou do apocalipse. Da terra onde o governo continuava imerso num banho de confiança (à exceção dos incorrigíveis opositores, que continuavam insensíveis à evidência, e daqueles penhores de meu feitio que nunca gostam de nenhuma fórmula governativa). Da terra onde o governo era o paradigma de originalidade: um parceiro no governo e mais dois parceiros como rede de segurança. Houve quem não gostasse do arranjo, acusando-o de ser um casamento de conveniência.
(Esqueceram-se, esses críticos, que os casamentos são sempre de conveniência – mesmo quando o fio condutor da conveniência é o sentimento que costuma fruir no matrimónio.) 
Entre alguns arrufos de namorados e o periclitante equilíbrio de uma relação triangular que escapava aos cânones do matrimónio como ele é concebido de harmonia com o princípio geral da monogamia, os parceiros entendiam-se. Entendiam-se para as coisas fundamentais da governação e às vezes desentendiam-se, mas só ligeiramente, sobre outros assuntos não tão cruciais. Assim como assim, cada parceiro queria manter a sua identidade. Os parceiros que foram seduzidos pelo parceiro maior queriam ir a eleições com capital de protesto, para não ser adulterada a sua linhagem. 
Contrariando as más línguas (e os abespinhados tutores de oráculos que pressagiavam a rápida desgraça do arranjinho), o governo foi levando a água ao moinho. Faltavam apenas uns meses para o fim da legislatura. Inesperadamente, um acontecimento internacional teve contundentes efeitos na parceria triangular. O acontecimento internacional tinha gravidade para o mundo inteiro se pronunciar. A maior parte dos países alinhou com o insurgente; só um punhado de países, que se distinguem pela rebeldia na ordem internacional, foi leal ao poder que ainda reclama legitimidade. Nesta terra que se faz constar, o parceiro maior, o dono do governo, pôs-se de um lado, perfilhando a tese dos países que são, por tradição e por contexto, parceiros por excelência. Um dos parceiros do governo, contrariado, protestou enfaticamente. Assim estalou o verniz na relação a três. O parceiro contrariado não sabia o que fazer: manter-se leal à sua linhagem, que é de contrariar as posições dos tradicionais aliados desta terra, ou comer em seco (não seria inédito) para não hipotecar o governo desta terra e não romper a sua rede de segurança. 
O líder do governo, astuto como dizem ser, jogou as fichas todas: desafiou o parceiro insatisfeito a esclarecer de que lado estava no problema internacional e a tirar conclusões, ora se mantinha a posição inicial, ora se confirmava as críticas ao governo. O líder do governo jogou uma cartada forte. Passou-lhe pela cabeça desafiar o parceiro insurgente que, ao longo do tempo, ajudou a cerzir pacientemente a rede de segurança do governo. Podia ser que tirasse proveito da clarificação de posições. Na pior das hipóteses, se este parceiro fosse preciso outra vez depois das eleições, far-se-iam as pazes e promessas seriam seladas com o propósito de o agradar futuramente. Até lá, a corda tinha de ser esticada. Ao limite. 
O chefe do governo pensou apresentar no parlamento uma moção de confiança. O líder do parceiro contrariado respondeu com outro repto: “o senhor primeiro-ministro tem noção de confiança?

8.2.19

Sem título


Electric Wizard, “See You in Hell”, in https://www.youtube.com/watch?v=XX1530GNc6U
A orfandade temática tem, ao menos, uma virtude: não se poderá acusar o texto de ser monotemático (como se a monotemática fosse de vituperar). 
O título ausenta-se porque de início não se sabe ao certo ao que vem o texto. Com frontalidade: é por falta de assunto. Acontece. Logo depois, a primeira coisa que vem ao pensamento é “boca do inferno”. Podia ser a Boca do Inferno perto de Cascais, uma garganta funda escavada no mar (ou pelo mar escavada – talvez seja mais acertado), onde o mar é medonho e nem precisa de estar tempestuoso. Ou, apenas, uma boca do inferno.
E ocorre lembrar da Boca do Inferno porquê? Correm histórias (míticas, porventura) de gente desesperada que exigiu da Boca do Inferno que fosse sua sepultura, o lugar metodicamente escolhido para o suicídio. E de turistas pouco previdentes que, de tanto se dependurarem, desafiando a gravidade e a lucidez, foram tragados pela Boca do Inferno. Chamar àquele lugar “Boca do Inferno” pressupõe que se sabe o que é o inferno. Admita-se que a descrição foi emoldurada por pessoas que tiveram passagem pelo inferno e o assemelham à Boca do Inferno, aquele lugar rochoso onde o mar tem caprichos violentos e escavou na rocha uma caverna mesmo idílica para efeitos demoníacos. Hipótese em que se questiona como é possível alguém ter ido ao inferno e regressado, se o inferno é um lugar onde se depositam almas mortas; ou, hipótese mais congruente, só podem os viventes adivinhar como o inferno – a haver – será.
Quem tiver medo do inferno e for à Boca do Inferno, de lá sairá mais tranquilo. Afinal, o inferno não é um lugar incandescente, com o fogo a vomitar de vulcões imprestáveis, e as pessoas que no inferno tiveram degredo eternamente desconfortáveis com a canícula que consome, milímetro a milímetro, o que sobra da sua carcaça. Não: o inferno será cavernoso, conceda-se; mas o seu elemento é a água. E tendo em conta que nestas latitudes a água do mar é fresca, o inferno (a crer no pedaço dele ali para os arrabaldes de Cascais) é a antítese do fogo do inferno.
Também ocorre lembrar da Boca do Inferno porque foi o sítio onde comi o melhor polvo em vinagreta que a, até agora, minha vida conheceu. E se os polvos são criaturas marinhas medonhas, com os octogonais tentáculos desdobrando-se em meticulosas braçadas, não estarão longe de serem considerados criaturas de demo. Recuo nas memórias, mais atrás desse memorável polvo em vinagreta: eram pesadelos de infância depois de, inadvertidamente, ter sido espetador de um filme onde um polvo gigante comia um pescador, numa carnificina inenarrável. O medo compagina-se com o inferno – assim ensina o catecismo católico, que encomenda as almas boas para um lugar tão reconfortante com o céu. O polvo que acabou a nidificar na vinagreta – adivinhei, num movimento especulativo que vinha mesmo a propósito – teria sido pescado nas grutas da Boca do Inferno. Era um habitante do inferno. Que, contudo, perdeu os pergaminhos demoníacos ao ser sabiamente marinado na vinagreta inigualável. E assim se prestaria a especulação a uma hipótese tranquilizadora para os tementes do inferno: a vinagreta como antídoto do demónio.
Afinal, o título do texto podia ser “Boca do Inferno” (ou “boca do inferno”). 

7.2.19

Rosto de pedra (impassibilidade)


Sigur Rós, “Untitled #4 (Njósnavélin)” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=bClxir4ElIg
Não havia o menor esgar. O rosto era sempre o mesmo. Imune ao sorriso. Dele não se podia espera um pranto, nem uma lágrima a adulterar a impassibilidade do rosto. Não se enfurecia. Não exibia uma vistosa irradiação quando as veias eram contaminadas pelo fervor da alegria. Era sempre o mesmo rosto. Igual. Imperturbável. 
Deste rosto se poderia afiançar pertencer a uma pessoa sem emoções. Mas não podia ser o caso. As pessoas têm emoções. Todas têm emoções. Admita-se a hipótese de pessoas que escondem emoções. Umas podem ser exímias na ocultação. Talvez esse fosse o segredo. Aquele rosto de pedra que não abdicava da pétrea pose era um mistério para os especialistas da matéria – os encartados nas emoções medidas pelo termómetro da expressão facial. Mas os peritos não conseguiam decifrar o enigma. Provocaram emoções no rosto de pedra. Não sentia dor. Não sentia prazer. Não exibia sinais de angústia, quando colocado em situações-limite. Não recaía no pânico quando era desafiado pelo medo. Se os peritos criavam cenários propícios à afirmação da alegria, nem assim o rosto se demovia da sua impassibilidade.
Constituiu caso de estudo. Convenceram o homem titular do rosto de pedra a passar horas a fio em laboratórios e em experiências no terreno onde se congeminam as relações entre as pessoas. Passou a trazer a tiracolo um séquito de observadores, animados pelo afã de registarem as suas reações, ansiosos por fotografarem (para memória futura e crédito da “ciência”) o mais tímido esgar. E o homem sempre com o mesmo rosto, petrificado, insensível. Alguns peritos começaram a duvidar do rosto de pedra. Teria de ser alguém à prova de emoções, o que não era consistente com a natureza humana. As teorias absurdas começaram a prosperar. Uns defendiam que o homem titular do rosto de pedra estava a fazer de propósito, escondendo as emoções e os esgares só para estragar o trabalho tão fecundo de tão fecunda “ciência”. Outros, não encontrando melhor explicação, avançaram a hipótese de o homem titular do rosto de pedra ser um extraterrestre. 
Quando, ao fim de inúmeras tentativas de explicar o fenómeno, depois de colóquios e colóquios em que o rosto de pedra era a pedra de toque que ameaçava minar a “ciência” da decifração das emoções através das expressões faciais, os peritos entraram em pânico. Não arranjavam explicação convincente – eles que estavam treinados para conclusões categóricas mesmo que fossem escoradas em provas frágeis. As explicações que ensaiavam medravam na impostura de quem se deitava a inventar teorias tontas só para justificar o lugar que a sua “ciência” havia conquistado (autoconquistado, como acontece com inúmeras “ciências” modernas) no panteão das ciências. Desesperados, os peritos perderam o norte. Abjuraram o homem do rosto de pedra. Acusaram-no de ser um vendilhão a soldo dos que acusavam de fazerem uma “caça às bruxas” (expressão que, no meio da desorientação, os peritos não avaliaram devidamente como denotativa do que se consideravam de si mesmos). 
Outros peritos, recusando o imersivo estado de autonegação, perceberam que só havia um modo de corrigir o seu desespero: juntaram-se no bar mais próximo e encomendaram umas cervejas “Desperados”. Foi remédio santo.

6.2.19

Acaso


U.S. Girls, “Mad as Hell”, in https://www.youtube.com/watch?v=XtGb5NiGBjc
- Que palavra guardas para um acaso?
- Fortuito.
- Só essa?
- ...
- Não te ocorre nenhuma outra palavra se não essa, que pareces ter importado do dicionário?
- Vento.
- Porque o vento sopra aleatório? 
- Ele não sopra aleatório: se consultares a rede que retém o vento – em pontes expostas ao vento agreste, ou em aeroportos, ou em estações meteorológicas – saberás a orientação dominante.
- Então: vento, porquê?
- Não dominamos o vento. Ficamos à sua mercê. Já viste a ciência a avançar por muitas áreas. Já a viste a, de alguma maneira, domesticar alguns efeitos da natureza considerados indomáveis. Não há ciência que consiga domar o vento, ou dobrar-lhe as asas de modo a que sopre numa direção predeterminada.
- Mas se souberes de onde vem o vento – porque consultaste o boletim meteorológico, por exemplo – furtas-te ao acaso. O vento não é aleatório na sua chegada. Saberás de onde sopra.
- Eu posso saber, neste preciso instante, a orientação dominante do vento. Se estiver na posse dessa informação, e se me quiser precaver do vento por alguma razão, não fico à sua mercê. O sentido do vento que colho como sinónimo de acaso é outro: penso nas forças atmosféricas que o geram. Admito que há modelos científicos que explicam a ocorrência dos ventos. Não é esse o sentido que me interessa. O que conta é o sentido do vento para um leigo. Como explicas a um leigo que hoje esteja um vento tempestuoso e de sudeste e que amanhã quase não se faça sentir o vento?
- Não sei se o leigo dirá que se trata de um acaso.
- Concordo. Porque é leigo e não esquadrinha as possibilidades que explicam um fenómeno, sem ser da lavra dos cientistas. Um leigo que se interrogue sobre os diferentes humores do vento – creio – responderá que se trata de um acaso.
- Já foste vítima de acasos?
- Não sei. À primeira vista, não lembro nenhuma circunstância que possa dizer ter sido produto de um acaso.
- Todos os dias somos reféns de contingências. Pensa na vítima de um acidente de automóvel que não teve culpa e foi apanhado pela distração de outro condutor, o que foi parar à faixa de rodagem errada: se a vítima tivesse saído de casa cinco minutos antes ou cinco minutos depois, a vítima do acidente teria sido outra pessoa. Ou apenas a que causou o acidente, se àquela hora a estrada estivesse deserta.
- Caímos num palimpsesto de acasos: para admitires uma dessas hipóteses, tinhas de multiplicar a possibilidade de acasos. 
- Concordas que das piores injustiças que existem é quando se é vítima de um acaso?
- Não. Não concordo. As injustiças (intencionais, só conto com as intenções) não quadram com acasos. Como vítima de um acaso podes considerá-lo uma injustiça, por te ser assacado o papel de vítima. Mas nem todas as vítimas se emaranham numa injustiça. E depois, o que julgo mais relevante, ao acaso falta intencionalidade. Uma injustiça depende de um ato da vontade de alguém em concurso com o destinatário desse ato e do mal que sobre ele se abate. 
-  Não posso protestar que a vítima inocente daquele acidente de automóvel foi fustigada por uma injustiça?
- A menos que o outro condutor tenha sido imprevidente; mas partiste do pressuposto que ele estava distraído. Se ele tivesse atirado propositadamente o automóvel contra o da tua vítima, aí podias considerar uma injustiça. Um acaso para a vítima, de que um injusto resultado seria a consequência.
- Continuo a olhar para tudo o que se passa como o cúmulo de uma sucessão quase infinita de acasos. E de acasos que se projetam noutras pessoas, provocando uma cadeia interminável de acasos.
- Se usasses um lugar-comum, dirias, em abono da tua tese, que uma borboleta bate as asas no Pacífico e algures no Índico terás uma tempestade, dias depois.
- É um bom exemplo.
- Mas – sabes? – os acasos não são apenas um prolegómeno de acidentes e de incidentes que apanham em seu caudal vítimas que consideras flageladas pela injustiça. Há acasos que transportam no regaço felizes circunstâncias. Pessoas agraciadas por acasos.
- Termos em que se concluiria dizendo que há ventos tempestuosos que, no mesmo lugar e em hora diferente, se podem transfigurar em alíseos ventos, estes últimos grávidos de sementes de uma opulência qualquer.

5.2.19

Bilhete de identidade (short stories #93)


Andrew Bird, “Bloodless”, in https://www.youtube.com/watch?v=YEFLR2JnMd0
          Não procurava cerejas maduras entre a folhagem ressequida. Não sabia dos vulcões adormecidos, pois estando adormecidos não enviam notícias ao mundo. Não queria saber das identidades reinventadas ao sabor dos acasos ou dos modismos. Não queria saber dos apocalipses prometidos pelos arautos cansados com o mundo que existe. Não queria o brio dos predestinados disfarçado de vaidade, nem o salitre dos marinheiros que só conhecem mar. Não queria beber o vinho enfeitado com carestia burguesa. Não queria a erudição dos aspirantes a eruditos, nem o seu discurso gongórico, a sua fina análise, todavia embotada pela miopia dos pretensiosos. Não queria um só lugar como azimute. Não queria a prosápia dos elegantes advogados das causas imperativamente corretas. Não queria seguidismos, modas irrecusáveis, imperativos categóricos, literatura obrigatória, música ditada pelos gostos aparentemente superiores dos divulgadores, gastronomia risível, a mostarda a chegar ao nariz, o encantamento pelos cantores que só sabem gritar, o aval dos amigos que protegem os amigos e que se recomendam reciprocamente num microcosmo de endogamia. Não queria saber de nada que fosse importante. Não queria uma batuta ilustre a ditar caminhos a prosseguir. Não queria que o mar escondesse os silêncios sufragados. Não queria que a noite fosse um sortilégio à prova de naufrágio. Não queria admitir a palavra “arrependimento” no vocabulário. Não queria imaginar ficção científica, por desacordo com a medida temporal exigível. Não queria saber das mentiras. Não queria saber das frivolidades. Não queria objetar aos teimosos que estão seguros das suas certezas. Não queria contemplar a medida inacabada das coisas começadas. Não queria assentimentos espúrios, bocas gastas com palavras vãs, o fingimento que se emacia na impostora cortesia social, nem a boçalidade hasteada em nome da desconfiança. Não queria moedas de troca. Não queria o olhar despedaçado pela violência sem preço. Não queria coabitar com credos que desprezam a autonomia da pessoa. Não queria o alvoroço das palavras desassisadas, da impaciência como método lapidar, das pessoas que coíbem a justiça. Não queria trazer do fundo do poço as águas sujas que com sujidade impurificam o mundo. Não queria que as suas mãos fossem sardónicos expoentes da dilação. Não queria saber do que de si sabiam os outros. Não queria transbordar do eu que lhe era dado a conhecer. Não queria inventariar mais antónimos como sinal de identidade. Temia que não fosse a tempo de compor uma identidade construtiva.  

4.2.19

Argamassa


Grandfather’s House, “Drunken Tears”, in https://www.youtube.com/watch?v=zFq6aRK8xjw
Ficamos assim: o púlpito inacessível, os olhos gastos de tanto olharem para as tardes baças, e as pessoas em redor que não dizem nada – um lugar exaurido; ou, talvez, o lugar que nunca chegou a ser lugar, a não ser pela identidade de uma certidão de nascimento. A desidentificação medra e não parece ter retrocesso. Pudesse fingir, admitir o contrário do que as coisas trazem em si, pudesse até deixar os passeios rombos para os passos das pessoas que não dizem nada; e, no fundo, não é de rigor que este fingimento cuida: pois essas pessoas são a encenação dos antípodas de mim, não posso dizer que não me dizem nada se há aversão pelo seu modo de estar, pela prosápia de quem se considera predestinado por determinação do lugar, habitante num lugar que não tem meças na medida do bucólico, mágico lugar em que se entroniza.
Não sei se posso dizer que fiz o melhor de mim, que fui ao fundo das forças para inverter este estado de coisas. Não sei. Neste lugar, sinto que a argamassa foi mal congeminada e não consigo aderir aos rudimentos que ensinam uma identidade. Ou a argamassa está adulterada. Não quero assegurar que o mal é do lugar. Pode ser meu, uma aversão genética à argamassa que existe. 
Mas nem sequer posso garantir que a argamassa está adulterada. Olho em redor: a maioria revê-se nessa argamassa, cultiva-a como fenómeno que enraíza uma identidade. No filtro sem remédio, serei eu a peça fora do lugar? É muito provável. Que não represente esta confissão a oportunidade para os exacerbados da excelência do lugar decretarem a imperatividade de meu exílio. Posso não estar à imagem da cidade, mas ainda a sinto minha em determinados aspetos – aqueles que são ignorados pela matilha dos aduladores da excelência da cidade, aspetos imateriais e que se opõem a uma certa mitologia que serve para arregimentar os caudilhos desta soberba. 
Não sei se demandasse outro lugar, que me acolhesse como filho adotivo, seria suficiente para cultivar o cimento em falta. Um sedentário estatutário pode viver fora do seu espaço natural, que pode ser o nomadismo. Esta incapacidade para aderir à argamassa que cultiva a identidade pode ser o sintoma de um cosmopolitismo embebido nas funduras da alma. Para glosar o lugar-comum, serei “cidadão do mundo” (dando crédito ao encanto que trago de cada lugar extraído ao desconhecimento).

1.2.19

Remédio santo (ou: teoria geral da impaciência)


James Blake ft. Rosalía, “Barefoot in the Park”, in https://www.youtube.com/watch?v=dxef-unujGg
Improcedente, o pedido que se soergue das veias, excruciante, à medida dos escombros onde a alma se esconde. O coração vertiginoso convoca a impaciência (ou é a impaciência que fermenta o coração vertiginoso, já não sabe). Talvez os pequenos passos, um de cada vez, já não sejam critério ajuizado. Fora-o, outrora. Outrora: quando o tempo era vagaroso e todo o tempo em espera parecia uma estrada infindável, por mais que a soubesse finita.
Nas bermas da existência (onde tudo era o caos feito de arbustos desorganizados, uma poça de água encardida, provas de passos dos outros, a escombreira de uma vida deitada fora), esperava que o sol despontasse entre o céu ocupado pelas densas nuvens. O tempo estava a contar. Irremediável na sua marcha, fazendo jus aos alarmes da impaciência. Outra vez o coração vertiginoso, um lampejo de angústia a subir pelo corpo, apertando o peito ao ponto de fazer cortar a respiração. Parecia que tudo se havia suspendido. O trânsito estava emoldurado numa fotografia. As nuvens deixaram de pentear o céu com a ajuda do vento veloz. Do outro lado da estrada, o cão vadio e macilento desinteressava-se de tudo. Ele não imitava o estado imóvel em que tudo o resto se encontrava. Ele, e o relógio que era maior do que todo o seu corpo, com os segundos compassados a percutirem o pulso, dando notícias do tempo furtivo que mantinha a impaciência num frémito.
Podia ter aprendido. Já não era novo e podia atestar que o espólio de experiências dava para abastecer, e com farta matéria-prima, as páginas de um livro. Nem que ele fosse o único leitor do livro. A maldita impaciência era o rumor mais alto, a voz que ensurdecia o pensamento. Por esta hora – pensava – já devia ser noite. E, contudo, a mesma luz timorata mantinha-se como pano de fundo do cenário que teimava em sua inércia: depois de todo aquele tempo, eram os mesmos arbustos desorganizados, a mesma poça de água encardida, as mesmas provas dos passos dos outros, a mesma escombreira de uma vida deitada fora – o mesmo trânsito emoldurado numa fotografia, as mesmas nuvens que  penteavam o céu com a ajuda do vento veloz, o mesmo cão vadio e macilento desinteressado de tudo. E ele, contrariando o palco montado, não entregue à inércia, mas parado no mesmo lugar. 
Afinal, a impaciência era um rudimentar estado de alma. O remédio (santo, para convocar a ajuda divina de que, todavia, não era crente) era aproximar-se do limiar da berma, onde o asfalto se fundia com a terra baldia, metendo pé ante pé caminho ao caminho. Só para ver onde ia dar a estrada, contra os conselhos do relógio que tanto pesava no seu âmago.