31.12.07

On the Hype (13) - Cocorosie, "Werewolf (live)"

Sempre a procrastinar


Oh! Amanhã será um grande dia. Mas o que acontecerá amanhã?”, Victor Hugo.

Às vezes, a necessidade de trazer o tempo vivido para uma balança. Amiúde, a sensação de que passamos mais tempo abraçados a promessas que sempre ecoam um adiamento de nós mesmos. As intenções encerram a ambição desmedida, ou apenas a vontade de fazer as coisas diferentes. Em cada esboço inscrito no amanhã que algum dia há-de chegar, arquitectos sublimes de um futuro ideal. Há nesses projectos uma perfeição que sabemos ser impossível de alcançar. Todavia, insistimos nos belos planos que farão de nós pessoas mais completas, ou apenas pessoas diferentes. Indivíduos que conseguem diluir todos os fragmentos que deixam a consciência em sobressalto. Conseguiremos?

Estes passos trazem o sabor amargo do adiamento que se perpetua à medida que os votos de outrora são renovados, pela impossibilidade, pela incapacidade de serem vertidos em matéria palpável. Ao menos, a grandiloquência dos planos com assinatura dos mestres da procrastinação é uma inspiração do onírico. A fantasiosa agitação produz a seiva demente de aspirarmos ao que não conseguimos ser. A sensação de que passamos pela vida como um esboço, matéria falhada.

Uma dúvida inquietante soma-se: se o eterno adiamento de um eu diferente é confissão de derrota interior, ou a plácida entronização do eu fantasiado. É como se levitássemos numa dimensão intangível, tão intangível que permitiria caminhar sob as nuvens. Nos instantes em que saímos de nós mesmos e nos conseguimos ver de fora, ao ponto de se soltarem as forças que promovem os monumentais planos inscritos para ponteiros do relógio que hão-de chegar no seu momento, esperamos que o futuro tenha a sua palavra. Que esse tempo futuro seja confirmação dos nutridos projectos que idealizamos. E que depois ficamos à espera que aconteçam, parados, sem movermos um passo que fermente o zénite das promessas solenizadas.

Ao ser assim, é um logro que somos. O tempo futuro dirá as mentiras que insistimos em contar a nós mesmos. Nas ilusões que não chegam para apagar a matéria desconfortável que atormenta o sonhos. É que os sonhos a dormir são de uma cor diferente dos sonhos que construímos acordados. É destes sonhos – acordados – que vem o nutriente dos adiamentos perenes. Depois, os dois tipos de sonhos chocam de frente, como se fossem as vagas alterosas de um mar incendiado por tempestades assustadoras. O corpo, entregue às aleatórias ondas que o empurram de um lado para o outro, rendido à sua incapaz vontade.

É nessa altura que os olhos se entristecem. Pela resignação que vem da alta distância entre as gloriosas promessas e a aridez que se colhe. E pelo vento agreste que arremete contra o rosto, enrugando-o na demissão intuída de cada vez que entoam os ventos da procrastinação. É então que os lobisomens escondidos no mais recôndito do ser espreitam, ameaçadores, esbracejam a sua fúria e lavam as cores frondosas dos sonhos para deixar entrar os pesadelos plúmbeos que despertam o sono sobressaltado. E é então que o leito transpirado é testemunha da enorme pequenez do espírito. Da hipocrisia que o domina de cada vez que há adiamento para o que nunca há-de ser atingido.

No fim, o relógio que pauta o tempo depura a mentira que construímos dentro de nós. E como nem o adiamento se prolonga na imensidão do tempo, algures numa dobra dos ponteiros do relógio um algoz para acertar contas com a negação do que somos pela promessa de algum dia sermos algo diferente. O pior é que de cada vez que insistimos em olhar para o firmamento à espera que ele traga as pétalas douradas, não aprendemos com os erros cometidos lá atrás. As lições de outrora parecem esquecidas, elas que seriam a caução maior para não reproduzir a protelação.

Os adiamentos apenas consomem o sempre escasso e tão valioso tempo da vida que nos resta.

28.12.07

Sócrates desmascarado (como os outros o olham)

Confesso: um secreto prazer ao ler as palavras que vou transcrever a seguir. São um resumo da análise à presidência portuguesa do Conselho da União Europeia, feita por um think-tank sobre a União Europeia com o cunho da imparcialidade (euobserver.com). É pena que estas palavras não sejam compulsadas numa notícia num qualquer jornal da paróquia em que vivemos. Por cá, só temos direito a uma visão heróica da presidência, com muito bacoco orgulho patrioteiro à mistura e a grandiloquência do timoneiro que chefia o governo. A versão completa está aqui. Deixo apenas as passagens mais interessantes, porque desmascaram (de fora para dentro) a imagem encomiástica que nos foi vendida à exaustão. (Os destaques são da minha responsabilidade.)

"When small Portugal took over the EU's six-month rotating presidency from the bloc's largest member Germany on 1 July, it found itself faced with the tricky task of clearing the last political hurdles standing in the way of a new EU treaty. Berlin had used all its political weight to forge a deal on a detailed treaty blueprint at a high-drama summit in June, leaving only a limited number of mainly legal issues for the Portuguese to sort out.

(...)
Marco Incerti, analyst at the Brussels-based Centre for European Policy Studies, said "this was a relatively easy task - they practically had the treaty in the bag", but he added that the Portuguese "fared well" in tackling the last treaty obstacles.

But Lisbon then caused a small PR fiasco out of the final signing ceremony of the document in December. "This was a bit of a narrow approach," Mr Incerti told EUobserver "Instead of saying: this is a treaty for Europe and it doesn't matter where it is signed, they said: We are Portugal and this is the treaty of Lisbon."

(...) Meanwhile, the leadership style of the Portuguese presidency was characterised not only by the smooth presentation skills of prime minister Jose Socrates but also by the sometimes ad hoc approach Portuguese officials of meetings in Brussels. (...) Portuguese lunches are said never to have started before two o'clock, while meeting agendas and speaking times for the EU-Africa summit were distributed only at the very last minute. (...) "It was a bit à l'improviste, making it up as we go," according to one diplomat (...)."

O altruísmo do senhor cardeal


O maior problema da humanidade é a negação de Deus”, cardeal patriarca de Lisboa, na homilia da missa de natal.

É tocante saber que o dignitário maior da igreja de Roma se preocupa tanto com os extravios dos ateus. Comovente sabê-lo atormentado com os desvalidos da fé. Este altruísmo quase seria o convite decisivo para que um ateu volte a abraçar a fé. Falta perguntar ao senhor cardeal se o seu altruísmo não é interessado: abraçar de novo uma fé, mas de preferência a religião de que ele é sacerdote maior? É que, nesse caso, cai a máscara do altruísmo.

Ao início fiquei intrigado com as palavras ditas na homilia da missa natalícia. Porque estaria o cardeal, em plena missa, a assegurar que o maior problema da humanidade está na negação de deus se, diante dele, a audiência comunga a crença em deus? Depois aterrei da minha ingenuidade: as sábias palavras proferidas pelo cardeal ecoam na comunicação social. Elas extravasam as paredes do templo onde foram ditas. Não tinham como destinatários os membros do rebanho que se deslocaram ao templo para se alimentarem na sapiência das palavras do cardeal. O senhor cardeal dirigia-se àqueles que estavam fora do templo, àqueles que estão sempre fora de qualquer templo. Uma seta dirigida à consciência deste rebanho de ovelhas tresmalhadas. Convocando-as a deixarem de ser tresmalhadas, pois enquanto o são andam aos trambolhões por entre a negação da evidência metafísica.

Apetece-me dizer que o cardeal devia arregimentar os fiéis para outros combates. É a própria igreja que o reconhece: os tempos modernos são pouco favoráveis ao alistamento das almas no catolicismo. O que deve causar preocupação nas cúpulas da igreja é a debandada de fiéis, que o deixam de ser e engrossam o numeroso rebanho das ovelhas tresmalhadas. Afinal, o discurso do cardeal talvez não se dirigisse aos ateus; os destinatários seriam os que se deixam possuir pelas dúvidas metafísicas, interrogando-se sobre os dogmas que alicerçam a fé, equacionando a possibilidade de abdicar da sua fé. As palavras do cardeal são um apelo desesperado à contenção da cerca onde se acantona o rebanho dos fiéis. Um grito lancinante: lá fora, onde erram os perigosos lobos do ateísmo, ausenta-se a bonomia que só a admissão de deus cauciona, ausenta-se a paz de espírito dos que entregam o destino nas mãos do omnipresente e bondoso deus.

Novo retrocesso na hermenêutica da homilia do senhor cardeal: ao de leve que seja, as sábias palavras batem na face dos ateus. Quando assevera que a negação de deus é o maior problema da humanidade, não hão-de os ateus sentir-se atingidos? Foi nesta interrogação que me encerrei. Havia duas hipóteses de reacção. Podia fazer ouvidos de mercador, deixar ecoar o provérbio popular que relembra que “palavras de louco não chegam ao céu” (descontando a óbvia conotação religiosa, adejando a pouco confortável leveza do adágio). Ou podia condoer-me com o discurso da eminência eclesiástica, protestar a indignação ao sentir-me ofendido com a desqualificação.

A primeira hipótese é a mais lógica. Um ateu não reconhece a autoridade do cardeal. As suas palavras são uma espuma que se dilui na sua opacidade. Mas, logo de seguida, o espírito debate-se na sua contradição: como pode um ateu ignorar aquelas palavras? Ponto de ordem: elas não são ofensivas. Adivinho que muitos ateus hão-de rotular a ousadia do cardeal como delito de opinião. Eu acho que se trata do direito de opinião que não pode ser negado ao senhor cardeal. Despidas do lado ofensivo, aquelas palavras não podem deixar de motivar uma reflexão em alguém que afirma o seu ateísmo. Têm o condão de reforçar o ateísmo, de alongar mais ainda a distância que separa um ateu de qualquer religião. Mostram como a igreja não aprende com os erros do passado e cai na vertigem de os repetir. O que está em causa é o respeito devido às convicções (melhor dizendo: à ausência delas) dos ateus. E a teimosia em invadir a consciência das pessoas – mas deste vício não consegue escapar a igreja, faz parte da sua natureza.

Percebo a confusão mental que o ateísmo provoca nas labirínticas mentes do cardeal e dos seus subordinados. Só que um ateu – e aqui falo por mim; não subscrevo a perseguição anticlerical de muitos profetas do ateísmo – respeita as crenças e todas as religiões. Não acreditando em deus, aceita quem acredite. E mesmo que tente provar a inexistência de deus – metodologicamente, tarefa mais fácil que a prova da existência de deus – não está a escrever o roteiro obrigatório para todas as pessoas se sentirem obrigadas a renegarem deus. Está a opinar. Tal como o senhor cardeal decidir fazer no meio da homilia.

Pela parte que me toca, fiquei sensibilizado com o altruísmo do senhor cardeal. Reconfortado ao saber que o padre-mor faz as suas rezas diárias que me poderão levar à reconversão, finalmente ao lugar onde todas as amarguras são diluídas na fortaleza da fé, da fé que dá resposta a tudo. Porém: a teimosia na intrusão nos meandros da consciência individual continua – para além da negação de deus – a colocar-me nos antípodas de quem é o seu embaixador na terra. Pela parte que me toca, as palavras do senhor cardeal produzem um efeito contrário ao que ele quis.

27.12.07

Circunstâncias atenuantes…


(In Público, 26.12.07)

É reconfortante saber que há gente que puxa os galões à imaginação, ensaboando a retórica retorcida para justificar o que é aparentemente injustificável. Valha-nos a arte da retórica típica de advogado de meia-tigela, capaz de defender hoje uma coisa e amanhã o seu contrário com a maior naturalidade e sem pingo de vergonha; a retórica deste jaez não é exclusiva de advogados ilusionistas da palavra – há cada vez mais gente a tornar-se exímia na arte.

Há dias vinha no Público uma reportagem sobre a claque da agremiação regional que tanto brado tem dado por causa do envolvimento de destacados membros em actos de banditismo organizado na noite portuense. Louve-se o jornal, juntando-se a outros órgãos de comunicação social e aos habituais adeptos guiados pela canina fidelidade clubista: chama-se a isto o espírito do contraditório. Para contrabalançar as opiniões escorreitas que apontaram o dedo à brutal criminalidade que espalha medo na noite portuense, de permeio com a identificação de alguns suspeitos com a diligente filiação na claque daquela agremiação regional.

Na reportagem havia testemunhos que procuravam expurgar a claque daquelas excrescências que deram com os costados nos calabouços da polícia judiciária do Porto. Como é habitual, um antropólogo que fez mestrado e está a ultimar doutoramento dissecando a referida claque veio defender a sua dama (o que permite questionar da imparcialidade de que esta “ciência” se reveste). Depois havia depoimentos de ex-líderes da claque e da consorte do actual líder – um rapaz que ostenta sinais de riqueza que ninguém percebe a origem. A senhora começava por negar o que é por demais conhecido: que a rapaziada dos super dragões espalha a confusão em áreas de serviço nas auto-estradas quando acompanha a equipa em viagens a estádios alheios. Logo de seguida, como que confessando a patranha, a senhora sentenciou o seguinte: “roubo é o preço praticado nas áreas de serviço”.

Chama-se a isto justiça divina, interpretada pelos justiceiros mor, a rapaziada dos super dragões. Dir-se-ia que têm um dom especial para medir o que é justo e injusto. Estão capacitados para tal função, acima do cidadão comum. Fazem as vezes de barómetro da justiça. Andam atentos às manifestações de injustiça que subtraem escandalosamente dinheiro ao povo. O fantástico é chegar à conclusão que são os Robin dos Bosques da era moderna, adaptados à idiossincrasia nacional. Não, não é violência gratuita a que semeiam quando o autocarro que os transporta regressa à cidade invicta a faz uma paragem numa área de serviço. É justiça divina: quem aos ricos rouba não pode ser acusado de roubo. Um advogado torcendo argumentos ousaria avançar esta ideia. Para aquela senhora, as vítimas do roubo é que deviam sentar o rabo no banco dos réus!

Porventura a senhora – e os que assim pensam – terá lido muito Marx, Lenine, Trotsky, Rosa do Luxemburgo. Ou não: o mais certo é não ter passado da quarta classe, não chegando ao conhecimento dos teóricos que dariam beneplácito à teoria ensaiada em defesa dos energúmenos que roubam pelo prazer de roubar e não como arautos da tal justiça divina que é neles ausente. Isto faz-me lembrar outros paladinos da teoria das circunstâncias atenuantes como esteio que inverte o lugar das vítimas e dos criminosos. Há dias o senador maior da república, Mário Soares, passeando-se na companhia de uma jornalista de cabelo oxigenado numa deambulação televisiva que espalha a sua imensa sabedoria, proferiu a seguinte sentença: “o ocidente tem que desarmar os terroristas islâmicos com bondade”.

Um perito em poética, acaso estivesse a decifrar as palavras do senador – e acaso tivessem elas alguma ressonância poética – sentenciaria acerca daquela sentença: “ditirâmbico”. Do idoso senador estamos habituados a consumir os maiores dislates sem que alguém ouse questioná-lo pelos disparates pronunciados. Não é surpresa que as suas palavras ressoem à defesa da quadratura do círculo. Soares parece admitir, a custo, o estatuto de “terroristas”. Só não soube explicar como se desarma um fundamentalista islâmico, não muito distante de um sociopata, usando “bondade”.

No império do relativismo intelectual, tudo é defensável. Não há aqui o menor laivo de cinismo. Eu sou adepto do relativismo. Que mais não seja para me rir com certas teorias insólitas que enxameiam o espaço público e reúnem uma coorte de fiéis que nem sequer têm tempo para se interrogar acerca dos pressupostos da dita teorização. Repito: têm direito à existência, essas teorias. Da minha parte, preenchem a paisagem humorística.

26.12.07

A democratização da alta finança


As conotações, essas são difíceis de despegar. As conotações partidárias pairam sem possibilidade de deitar mão a um tira nódoas que as apague. Depois sobram as filiações partidárias quando saltam nomes como candidatos a tentadoras sinecuras. Por mais que venham diligentes comissários políticos sentenciar a “normalidade” dos factos, só se for para apaziguar os espíritos distraídos e para auto-convencimento das hostes do partido.

Acho deliciosa a inversão de influências que um famoso banco, tão conhecido pela publicidade kitsch, está prestes a caucionar. O banco sempre foi conotado com a Opus Dei. Agora que se esgotou a paciência para as diabruras financeiras dos administradores colocados pela Opus Dei, e que o governador do Banco de Portugal, no enésimo frete ao partido do seu coração, sugeriu a demissão desses administradores, terreno desbravado para o take over do partido do governo ao banco. Toda a estratégia bem arquitectada ao milímetro, com o necessário beneplácito do governador do Banco de Portugal, que parece mais interessado em garantir lugares na alta finança a correligionários de partido do que a respeitar o preceito da independência política do banco central, como é exigido na União Europeia.

Se há crítica comum ao regime em que vivemos é o da presença excessiva dos partidos – dos grandes partidos. A cada dia que passa, os grandes partidos afadigam-se em dar razão a quem critica a partidocracia que asfixia a cidadania. O estado comatoso a que chegámos tem expressão no episódio do banco kitsch, quase a ser a noiva oferecida em altar aos senhores colocados pelo partido do governo. É uma transferência de “quadros” (já explico de seguida as aspas) do banco “de todos nós” para o banco que era da Opus Dei e que vai passar a ser controlado pelo partido do governo. Falta saber se há aqui o dedo de zelosos estrategas que descobriram um meio de financiamento generoso e duradouro ao partido que açambarcou o poder. Que é o mesmo que insinuar uma forma de perpetuação no poder, que o dinheiro conta cada vez mais para tudo o que seja.

Algum cinismo fermenta um sorriso mordaz. O episódio do take over do banco da Opus Dei pelo partido do governo mostra as virtudes da democratização do que quer que seja. Neste caso, a democratização da alta finança. Já não é uma coutada para entendidos, gestores especializados no complexo negócio bancário, com pós-graduações, MBA e até doutoramentos tirados em consagradas universidades estrangeiras, ou apenas para a nata vinda das famílias que sempre estiveram no negócio bancário. Agora temos comissários políticos que se fartaram das sinecuras em órgãos do Estado e se dedicaram a fazer fortuna à conta de sumptuosos cargos no banco do Estado. Mesmo que se lhes não conheçam atributos que justifiquem cargos tão elevados – a não ser que terem trabalhado na caixa da agência da terriola transmontana, antes de terem subido na escada do carreirismo partidário, seja penhor do exercício de tal cargo. Afinal estamos na vanguarda: temos dezenas de milhares de potenciais administradores de alta finança. Tantos quantos os funcionários dos bancos.

Eu acho bem. A democracia põe todos no mesmo nível. Todos temos direito ao nosso pedestal. Pena é que apenas aqueles que souberam filiar-se no partido certo, que têm especiais predicados para conhecer as pessoas certas, fazer os pedidos certos no momento ideal, sem sequer mostrarem aptidões para subirem a tão importantes sinecuras, estes é que acabem por vingar. Depois há quem estranhe que continuemos viciados num atraso que já nos vai deixando atrás de países de leste que só há dois anos entraram na União Europeia. A mediocridade não está apenas no exemplo destas carreiras políticas meteóricas que premeiam medíocres. A mediocridade também está no escol de gestores que não consegue resistir às tentações do vil metal e sucumbe diante de provas de gestão danosa. Merecem-se uns aos outros: os medíocres que ascendem na escala reservada do carreirismo partidário e os senhores da alta finança que se abarbatam com somas astronómicas e caucionam negociatas no limiar da ilegalidade.

O que sobra desta sequência lamentável de acontecimentos são as consequências para o futuro: temo que mais e mais gente se convença que tem que beber da mesma fonte que permite o sucesso aos carreiristas. E que mais e mais gente se ofereça no altar promissor dos grandes partidos, oportunistas à espera da repartição de sinecuras. Continue o partido no poder, ou seja ele substituído pelo partido rival que se limita a dar seguimento a mais do mesmo. No rescaldo, os tentáculos da partidocracia engrossam-se e cercam a cidadania por todo o lado. Até que se confundam com ela, deixando-a exangue de forças. Só não sei se não será essa a forma moderna de ditadura – uma ditadura dos partidos dominantes.

25.12.07

As tradições são perenes?


Não há contradição entre as tradições e a evolução da sociedade? A defesa arreigada das tradições fertiliza um conservadorismo que se demite de fazer interrogações às coisas. Encera os claustros dos costumes herdados da ancestralidade. Dizem que as tradições são o cimento de uma identidade colectiva. Que um povo perde razão de ser se perder a orientação das tradições que relevam da história, tradições substrato de uma cultura. Intangíveis, as tradições sublimam-se na sua existência. Ganham, até, uma espessura sagrada. As tradições não se questionam; cumprem-se obedientemente, rotineiras, rituais obrigatórios que abraçam a idiossincrasia de um povo.

Só que as tradições trazem muita espuma do imobilismo que é adversário da mudança. Quando tantos concordam no caminho degradado percorrido, o discernimento exigiria a reparação do caminho, ou dele se afastar de vez caso fosse irreparável. Só os loucos, ou os que envergam a mortalha da irracionalidade, teimam em seguir por onde o caminho é espinhoso. A menos que de tanto estarem habituados, já nem consigam reparar nos espinhos que ferem à medida que o percurso se consome. Quem se contenta com o mal que lhe bate, doloroso, no peito? E, contudo, a resignação vem falar mais alto. Como se estivéssemos anestesiados pelo poder transcendental das tradições. Nos interstícios das tradições, sazonais ou circunstanciais, soa o coro das lamentações pelo atraso que somos.

Não digo que as tradições, todas as tradições, sejam por definição sinónimo de bafiento atraso, a purulenta aguadilha de uma idiossincrasia. O problema está na subjectivação das coisas. Há tradições que fazem sentido para alguém e que são insensatas para outros. E, logo a seguir, haverá outras tradições que são objecto de culto para estes últimos e destituídas de sentido para os primeiros. Para além do obstáculo da subjectivação, ergue-se nas tradições a sua prístina substância. Alguns dizem que há nas tradições uma homenagem aos antepassados que dobraram à força do pulso e a custo do tanto suor o que somos hoje. Duvido que seja a melhor justificação das tradições. Pois se tantos desdenham do que somos o que somos hoje, decerto haverá muitas culpas a distribuir pelo legado das gerações ancestrais.

Não vou dizer que não seja cultor de nenhuma tradição. Algumas têm mais significado, outras dizem-me nada. Eis o que me inquieta: quando interrogo o sentido das tradições que cultivo, não encontro respostas que me satisfaçam. Em muitos casos, apenas um arremedo de justificações que esbarram sempre no derradeiro argumento: “porque é tradição”. Como quem diz, “porque sim”. Há, neste travo de irracionalidade, o lado perturbante das tradições: não discernir explicação lógica para que elas continuem a espalhar-se por todo o lado, a aspergir as pessoas, que as tradições sejam perfunctórias. Perante a sibilina natureza das tradições, as pessoas demitem-se do papel inquiridor. Acatam as tradições, acríticas, sendo a charneira que perpetua as tradições no tempo.

Algumas tradições têm o travo religioso. Outras adornam evocações religiosas com a interpretação popular, na condensação do paganismo. De uma forma ou de outra, as tradições encerram-se no sagrado que é tangente à religiosidade. O que explica a pose acrítica perante as tradições. Há sempre coisas na vida que não convém interrogar, nem sequer indagar da razão da sua existência. A ontologia das coisas pode reproduzir respostas ingratas, semear o vazio que se insinua depois de queimar um terreno outrora preenchido pela densidade das silvas estéreis. A queimada revela um terraplanado que modifica a paisagem, exigindo habituação. As coordenadas que orientavam o pensamento, modificadas. E o próprio pensamento é repensado. As tradições questionadas são um esteio da desconstrução do espírito, com as tremendas dores da redefinição das pessoas perante as coisas que lhes dizem respeito.

Entre o imperativo de questionar as tradições e o imperativo categórico das tradições em si, vinga a confortável posição da letargia perante as tradições. Que vão passando de geração em geração como rituais de pertença, mesmo que a evolução dos tempos e das gentes sopre ventos de inconstância diante dos sedimentos de algumas tradições. Nessa altura, mais vale sufocar os ventos de mudança para não questionar as sagradas tradições. Estruturalmente, as tradições são de uma perenidade quase absoluta. A bissectriz do conservadorismo. E o lastro do definhamento da autonomia intelectual das pessoas.

24.12.07

Natal do homem só


Errava pelas ruas. Sem saber que ruas palmilhava, sem saber se repetia as pedras das calçadas. Era como se não houvesse um mapa da cidade e ele percorresse, sem se cansar, as mesmas ruas. Sem perceber que regressava aos mesmos lugares. Era uma noite estranha, deserta. As pessoas evitavam a rua. Noite de uma placidez lúgubre. Enfeitada pelas luzes alusivas à quadra e tingida pelo frio que se insinuava nos ossos. Ensurdecedora no silêncio das ruas desertas. Notava-se movimento dentro das casas. Luzes no compartimento maior, a sala onde se juntavam as pessoas na consoada natalícia.

Para ele nada disso fazia sentido. Era uma ilha distante, cercada pelas pessoas que ocasionalmente se cruzavam nas ruas, nos edifícios que tinha que frequentar. Um rochedo frágil sozinho na paisagem. Desligado dos outros elementos da paisagem. Um monumento da solidão. As memórias eram apenas um lugar difuso onde recolhia fragmentos dispersos, o sarcófago do passado. Por mais que se esforçasse, nem se recordava se havia família. Os atropelos da vida deixaram feridas que continuavam abertas, cicatrizes que teimavam. Elas eram o seu mapa que não deixava fechar as páginas do doloroso, pesado livro de uma vida carregada de sacrifícios, pejada de dores insuportáveis, as derrotas perfilando-se umas atrás das outras. A sua única companhia era a dolorosa solidão a que se havia entregado.

Nem o calendário importava. Eram os dias que iam passando, repetidos, monótonos, uns atrás dos outros. Encurtando o tempo que faltava para que a contagem dos dias enfim cessasse. Desistira das coisas belas, que em tempos as houve. Agora era tudo uma monótona repetição dos dias, a rotina cansativa, as horas de sono que eram o seu refúgio da claridade incomodativa. As folhas do calendário estavam inertes há muito tempo. A poeira em cima do calendário, sintoma da renúncia. Aquela folha do calendário sinalizava o dia em que desistira. Já não importava que dia era, nem as efemérides que reclamam atenção do espírito e consagração de algo.

Era assim com o natal: nem sabia que havia chegado o dia da consoada. Os dias já não eram a contagem numérica do calendário. Apenas a sucessão rotineira de segunda a domingo e outra vez de segunda a domingo. Só na véspera de natal, ao notar a deserção das ruas, percebia que a folha do calendário (se houvesse sido virada) anunciava o vigésimo quarto dia de Dezembro. E vagueava sozinho pelas ruas entregues a si mesmas. Apascentava a sua solidão, escondendo-se do natal celebrado nas salas recheadas de iguarias e de crianças excitadas no prenúncio da visita do fictício pai natal.

Estranhamente, era porventura o dia em que solidão menos lhe doía. Entre as memórias difusas, cada vez mais obscurecidas, o natal era palavra vã. Nunca tivera sentido religioso. Deixara de ser a celebrada festa da família a partir do momento em que das memórias se diluiu a recordação de uma família. Portanto, não havia nostalgia: só poderia haver nostalgia se houvesse lugar ocupado pelas memórias, regressando aos tempos de outrora em que comungava a felicidade com alguém que se dissesse seu ente querido. O exílio interior era o obstáculo maior, a reserva mental que limpava das memórias esses tempos – que não conseguia certificar que sequer tivessem acontecido. Pelo menos, era mais fácil acomodar aquilo que a outros seria uma insuportável dor: um natal mergulhado na mais profunda solidão, porque as convenções ditaram que no natal há o imperativo de comungar a felicidade forçada com outros.

Na noite da véspera de natal percorria à exaustão as ruas da cidade. Sem se cansar. Sentia-se enfeitiçado pelas ruas na sua própria solidão. Elas, desertas de gente, faziam-lhe a companhia de que afinal carecia. As suas árvores, as estátuas, as paredes frias das casas, as montras refulgentes de adereços alusivos, as fontes vertendo a água de sempre, o pavimento das ruas que não ecoava os rodados dos automóveis que não passavam. A antítese do postal ilustrado do natal das pessoas que se fazia dentro das casas. O dele, que só a ausência das ruas soava, era a solidão comungada com as ruas também elas domadas pela solidão das pessoas ausentes. E não havia lamentações. Nem nostalgia, que às vezes o mergulhava em interrogações que queriam saber se outrora tinha sido diferente com ele: como tantas pessoas, um natal normal.

21.12.07

Uma espécie de abaixo-assinado contra a liquidação dos pequenos partidos


O Tribunal Constitucional, com o beneplácito dos partidos-tubarão, pôs os pequenos partidos em saldo. Ou mostram que têm pelo menos cinco mil filiados, ou estão condenados a encerrar as portas. E assim o regime político se encerra numa concha, onde se banqueteiam apenas aqueles que reúnem a mais grossa fatia dos votos. Um regime político que se aproxima perigosamente do monolitismo: os partidos que se sentam no parlamento escondem as divergências que cimentam as clivagens de discurso e bebem todos do mesmo receituário, feito de privilégios que guardam apenas para si. Pelo caminho, perde-se o pluralismo de um regime político aberto a uma imensidão de partidos. E reduz-se a escolha dos eleitores. Talvez mais um convite à avalanche abstencionista.

Contra mim falo: militantemente contra a partidocracia impante, doença que corrói a democracia até ao tutano. Como pode um feroz crítico da partidocracia defender a pluralidade de partidos que o Tribunal Constitucional se dispõe a liquidar? A resposta é simples: não olho aos interesses pessoais, incapaz de me rever em qualquer partido do panorama partidário. Mas recuso a fazer dos meus pontos de vista os interesses dos outros – como parece que o Tribunal Constitucional faz, numa abordagem que tem tanto de parcial como de pragmática.

Dirão os pragmáticos que os pequenos partidos são epifenómenos que emergem sazonalmente quando há eleições agendadas. Não se lhes conhece actividade regular entre as eleições, pois eclipsam-se. E dirão mais: são partidos residuais, incapazes de se aproximarem sequer do número de votos mínimo para colocar um singelo deputado no parlamento. Insignificantes na sua expressão eleitoral, não faz sentido que proliferem como cogumelos e rivalizem com os partidos “sérios”, aqueles que reúnem as preferências do eleitorado, aqueles que conseguem chegar ao parlamento e a pelouros nas autarquias.

Discordo da argumentação. Nisto da escolha eleitoral, o pragmatismo não se deve sobrepor à liberdade de escolha. Se os pequenos partidos forem incapazes de provar que têm mais de cinco mil filiados serão banidos dos boletins de voto em eleições vindouras. O eleitorado ficará limitado na escolha entre os cinco partidos (ou coligações eleitorais) que costumam ter lugar parlamentar. E isto é perigoso: não só uma restrição à liberdade de associação (porque não hei-de ser autorizado a concorrer a eleições com um partido que tenha meia dúzia de filiados?), também uma restrição à liberdade de escolha dos eleitores. As minorias habituadas a votar religiosamente em partidos residuais perderão essa liberdade. Terão que optar entre a abstenção, o voto em branco ou nulo, ou a escolha do “mal menor”, com tudo o que esta opção significa de redução do livre arbítrio de quem vota.

Os economistas têm boas explicações para este tipo de comportamento. Acontece amiúde com aqueles que se incomodam com a concorrência. E que a tentam limitar a todo o custo, banindo o incómodo que os anões provocam. Depois os grandes banqueteiam-se sozinhos, partilhando entre si as sobras dos que foram extintos. E são os economistas que ensinam que, em tese, a concorrência é profiláctica. Quanto mais limitada, menor a eficácia dos glutões que ficam com a fatia de leão, maiores os danos aos consumidores. Os consumidores do sistema eleitoral são os eleitores, bem entendido. É de desconfiar sempre que os grandes se esforçam por banir os pequenotes de um mercado – e o sistema partidário é um mercado, como há nas eleições um mercado, o mercado eleitoral. São glutões que, paradoxalmente, têm inveja dos pequenotes. E asfixiam-nos até deixarem de respirar. Depois, necrófagos, saciam a sua gula nas migalhas deixadas pelos pequenotes já extintos.

Esta liquidação forçada dos pequenos partidos tem outro importante inconveniente. Desaparece o aspecto lúdico oferecido pelos pequenos partidos. O povo tem direito a folclore. Estes pequenos partidos oferecem a nota humorística que desanuvia a seriedade bafienta, a pose de Estado que exige muito respeitinho, o cinzentismo dos grandes partidos. O que seria de uma campanha eleitoral sem o cortejo de pequenos partidos tão heterogéneos como o POUS dos camaradas Carmelinda Pereira e Aires Rodrigues, ou o PND do inefável cadáver político vivo Manuel Monteiro, ou o PCTP-MRPP do enérgico Garcia Pereira – só para usar uma amostra da pluralidade de minúsculas formações políticas. É todo um capital de diversidade e de humor atrelado à política que se perde. O empobrecimento da paisagem partidária, fazendo o regime funambular perigosamente.

Perante isto, nas próximas eleições só me apetece escrever o nome dos pequenos partidos entretanto enterrados e colocar uma cruz em todos eles, sem excepção.

20.12.07

Desembarcaram no sítio errado…


Que não se desdenhe da inditosa sorte dos desprotegidos. Fala mais alto o lamento maior pelo azar que visitou um grupo de vinte e três emigrantes marroquinos que tentavam entrar ilegalmente em Espanha. Os ventos foram caprichosos e empurraram a embarcação frágil até às praias de Olhão. No azar de ser pobre há o azar maior da fuga rumo ao prometido eldorado terminar no lugar errado.

Dirão que a diferença entre desembarcar em Olhão e em Cádiz não é significativa. Que, para emigrantes marroquinos que fogem da miséria em busca de um bem-estar tão ansiado, qualquer lugar na península ibérica é um refúgio que marca encontro com um nível de vida melhor do que levam na terra onde nasceram. Se assim é, como explicar a decepção dos emigrantes ilegais? Não será somente por terem sido capturados pelas autoridades lusitanas. Nem sequer por saberem que têm viagem de regresso agendada para dentro de umas semanas, quando as autoridades “competentes” puserem termo ao processo com um carimbo de repatriamento. Aposto que a decepção maior aconteceu quando deram conta que naquele areal ninguém falava castelhano. Sabedores de geografia, perceberam que tinham falhado no alvo. Malditos ventos que empurraram a barcaça para o país do lado.

E não: por mais que tentem compor a imagem externa do país, com campanhas decerto caras que espalham além fronteiras outdoors com as caras dos ícones do sucesso doméstico, não me excita o orgulho pátrio. Na semana passada houve vários opinadores que quiseram vergar o derrotismo que domina tantos espíritos. Puxaram lustro ao optimismo militante, que mais não fosse para mudar comportamentos apoderados pelo negativismo. E aplaudiram a campanha que, ela também, puxa o lustro – desta vez à imagem de um país que se retrata nos rostos de alguns que dão a cara como exemplos de sucesso reconhecidos no estrangeiro.

(Um parêntesis necessário: um dos “rostos de sucesso” é um decorador cujo nome nunca ouvi falar. O que leva à interrogação: por que artes de magia terá este decorador sido cooptado para a campanha de embelezamento da imagem pátria no exterior? Se a intenção é chamar a atenção para as maravilhas lusas através dos casos de sucesso com visibilidade internacional, aposto que lá por fora o conhecimento do decorador será pouco acima da nulidade. O que faz redobrar de importância a interrogação: que critérios insondáveis terão funcionado para ser um dos eleitos na campanha engendrada pelo ministro da economia – que, na palavra que titula o cargo, se fosse trocado o “m” por um “s” ficaria mais à imagem da personagem.)

Acho que já estou a perceber por que desembarcaram os candidatos a emigrantes marroquinos nas praias de Olhão. Foram atraídos pelos outdoors espalhados mundo fora, com a bênção do erário público que haure os impostos que não conseguimos deixar de pagar. Nunca os efeitos de uma campanha de imagem terão sido tão rápidos. Desenganem-se os senhores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras que tranquilizaram as hostes, dizendo que foi um desembarque episódico. Atraídos pela campanha, as praias algarvias serão pousio para sucessivas levas de emigrantes do Magrebe. Só que o guardião da verdade e de todas as certezas – o primeiro-ministro – já deu por encerrado o assunto ao assegurar que foi coisa fortuita. Eu fico tranquilo com a certeza de que o primeiro-ministro e os funcionários públicos mandados por ele têm este dom de adivinhar o futuro.

Fica por confirmar que os emigrantes marroquinos teriam sido os primeiros a provar a cicuta dos outdoors que espalham mundo fora as virtudes do “Portugal West Coast of Europe”. Estávamos enganados: não se pagou um cêntimo que fosse para espalhar estes cartazes em Marrocos. Foram os emigrantes que confessaram o erro de cálculo na rota que os levou a um destino diferente do planeado. Se soubessem ao que vinham – errar no alvo e desembarcar numa terra que não pode prometer aquilo que os leva a arriscar a vida na travessia entre os dois continentes – nem teriam saído de Marrocos. Mal por mal, antes numa terra que lhes seja familiar.

Quanto à estrambótica campanha de embelezamento de imagem pátria lá fora, só esta observação: alguém escolhe o destino do seu investimento, alguém desvia o destino turístico, apenas por ver caras com visibilidade internacional espalhadas em vistosos outdoors? Devemos ser um país a nadar na abundância de recursos, para nos darmos ao luxo de desbaratar dinheiro desta forma. Quem nos governa, tal como os fracassados emigrantes marroquinos, tem um notável dom para erros de cálculo.

19.12.07

O povo que espreita detrás das câmaras, empunhando telemóveis – e os assessores em bicos de pés detrás do senhor ministro


A democracia no seu esplendor: também a televisão se democratizou. Hoje contam-se pelos dedos das mãos as pessoas que nunca apareceram no ecrã da televisão. Todos têm direito a uns segundos de fama, ali expostos aos olhares de quem, por acaso, estiver naquele momento a olhar para a televisão.

O desporto favorito da populaça é quando os repórteres de exterior saem à rua, perfilando-se como guarda de honra durante o directo. Acotovelam-se na ânsia do melhor quinhão da imagem – ainda que não estejam detrás dos olhos do operador de câmara que, ele sim, selecciona o plano e escolhe os figurantes que se prestam ao “embelezamento” da reportagem. Mas a populaça atropela-se, empurra-se, desunha-se por figurar em primeiro plano. Que é como quem diz, em primeiro plano atrás do repórter aflito por terminar o directo, de tão acossado pela populaça.

O povo, habitualmente ignaro, confia que o seu rosto irradiando felicidade apareça na televisão. Faz lembrar aqueles fotógrafos que esticam a máquina e disparam uma revoada de fotos, pois uma fotografia decente há-de sair no meio da amálgama de sombras e escuridão. É assim a populaça ruidosa que, em magote, faz a guarda de honra ao repórter de exteriores. Atiram-se, por estimativa, para trás do repórter. Com sorte, hão-de ter dias a fio de conversa de cada vez que se cruzarem com a família, os amigos na tasca e os companheiros de trabalho. Exigindo que os holofotes imaginários continuem virados sobre eles, na glória fácil de serem mimoseados pelos entes queridos, amigos e colegas. Por esses dias, tornam-se efémeros heróis.

Do quadro faz parte um ingrediente obrigatório: a ajuda da tecnologia emoldura a prova de que fulano apareceu mesmo na televisão. Não vão os seus duvidar que perfilou na retaguarda do repórter, aproveitam os instantes de glória pública para telefonar a um familiar, a um amigo na tasca a ver a televisão, a um colega do trabalho. Em gritos ofegantes avisam o interlocutor para mudar para o canal onde naquele instante são heróis acidentais. A turba que estaciona lá atrás empunha os telemóveis, discando o número da mãezinha, do amigalhaço dos copos, ou daquele colega que está sempre com inveja. É um duplo desfile: de anónimos que por fim aparecem na televisão e dos respectivos telemóveis, debitando as palavras triunfantes enquanto dura o directo, enquanto os seus olhos decantam um sorriso de tórrida felicidade.

Há uma versão alternativa a esta actividade circense. Mete ministros em visitas oficiais, com o habitual cortejo de pajens: secretários de Estado, directores-gerais, assessores, o autarca da terriola, até a governadora civil. (Havia tanto a dizer da glorificação de funções dos governadores civis, essas peças abstrusas que ornamentam a organização administrativa do país!) Entre a propaganda que escorre a rodos, sobretudo quando os microfones se estendem na direcção das sábias palavras do ministro (por norma, sem direito a contraditório dos plumitivos), salienta-se a pose estudada do director-geral e do assessor, ladeados pelo autarca donairoso em fatiota das idas a casamentos. Todos em bicos de pés, rivalizando pela melhor fatia da imagem atrás do senhor ministro. Aparecem para os seus momentos de glória e reconhecimento público. Mesmo que pouca gente saiba associar o nome do figurão à cara de estadista em tirocínio que estacionou detrás do ministro. Na próxima remodelação do governo, pode-lhes sair a sorte grande.

Vejo estes directores-gerais, assessores e autarcas em fecunda conquista de protagonismo e lembro-me da populaça que corre desaustinada para trás do repórter prestes a entrar em directo. Uns e outros fazem-me lembrar a infância, quando pregávamos partidas uns aos outros e depois dizíamos, em pose triunfante, aos incautos apanhados na ratoeira: “ó patego, olha o balão!

Um desejo inscrito na rota do futuro: que a televisão não seja ainda mais um negócio, que não aumentem os canais codificados que exigem pagamento de tarifa proibitiva. Se isso acontecer, é o funeral da democratização da televisão. Os directos em canais codificados não servem de testemunha dos actos heróicos dos anónimos que finalmente conseguiram entrar na pantalha, pois a reportagem terá pouca audiência. Nem os exércitos de funcionários públicos em desalmada construção de carreirismo poderão, no dia seguinte, ostentar o ar tão importante que a aparição fugaz, no papel de sequazes do ministro, lhes confere. Eu diria que isto é motivo para produzir legislação com efeitos perenes: por lei, haveria de ficar garantida a existência de canais sempre abertos ao público, para o povo se fitar neles enquanto deambulam as reportagens em directo.

18.12.07

A maior maleita: os “consensos” à força


Dizem: que só deixaremos o atraso para trás das costas quando os consensos aterrarem na sua solidez. Quando os “desígnios nacionais” forem merecedores de ampla concordância. A metáfora da barca que exige os remos todos no mesmo sentido. A lógica dos consensos está institucionalizada. O mais entusiasta patrocinador é o presidente da república, clone do seu antecessor, que com pose de estadista responsável nos educa na necessidade de falarmos todos a uma só voz, de todos remarmos para o mesmo lado. A ver se derrotamos a maré que nos tem deixado tão para trás.

O pior é que os consensos a bem da nação silenciam as vozes dissonantes, como se estas estivessem acantonadas num radicalismo que leva a lado algum. Os pregadores peroram sobre a inevitabilidade dos consensos. Quase sempre se escusam a articular argumentos que tornam os consensos tão inevitáveis. Em vez do lastro da racionalidade, sobram como expressão de um capricho das elites dominantes que atrelam um séquito numeroso. Os que ousarem remar para um lado diferente são denunciados: vozes sem razão, radicais sem expressão, o rótulo de velhos do Restelo como insígnia que desmerece, réus na obstrução ao progresso da nação.

E dizem: que sem consensos estamos divididos. E divididos não avançamos. A ausência de consensos mergulha-nos no profundo atraso. Todas estas ideias são aflitivas. Vêm impregnadas de um totalitarismo intelectual inadmissível numa sociedade aberta. E se em vez de alarmarem os incautos, fazendo-lhes ver que só há um destino possível – apregoado pelo consenso divulgado – não provam a razoabilidade dos consensos que nos querem impor? Se mais não bastasse, a lógica do consenso que é inevitável "apenas porque sim" é incomodativa.

O mais perigoso é a veia totalitária dos consensos. A urgência em calar as vozes desordeiras, aqueles que não se calam contra a dormência de espíritos que os fautores dos consensos querem semear. A pesporrência dos senhores do consenso, quando olham com desdém para os que se recusam a provar o remédio tão milagroso que propõem, é o melhor argumento para estar do lado contrário da barricada. Chega alto a desonestidade intelectual. Do alto da sua pretensa superioridade intelectual, olham de soslaio para os dissidentes e remetem-nos à baixeza intelectual. Só porque não saltaram para a barca do consenso e não pegaram num remo ajudando a barca a navegar na direcção correcta.

O que esta terra precisa é de confronto de ideias. Do desassombro dos que soltam a imaginação e inventam novas ideias, aquelas que empurram a nau para a frente. E de tolerância, abertura de espírito e humildade intelectual para admitir que às vezes os que pensam diferente se recolheram em ideias que são melhores. É que os admiradores dos consensos teimam na sua vocação messiânica. São milagreiros infalíveis, como se estivessem dotados de uma varinha mágica que transforma as coisas más assim que são por eles tocadas. De tanto interiorizarem a infalibilidade, cresce-lhes a arrogância e a intolerância. Misturam a inevitabilidade das suas ideias, protegida pelo manto do consenso necessário, com um totalitarismo que denigre quem aparecer pela frente.

Apetece contrariar estes consensos forçados. Que mais não seja, por espírito de contradição, um higiénico compromisso com a abertura de espírito que escapa aos tortuosos caminhos que somos convidados a palmilhar. Sabendo à partida que os que forem pelo outro lado da encosta o fazem por sua conta e risco, abandonados à sua sorte, e logo denunciados pelos cultores da consensualidade por teimarem em remar para o lado errado. É higiénico remar para o lado errado. Nem que seja para afirmar um espírito de contradição que incomode os sacerdotes dos consensos, para que percebam que não amedrontam toda a gente ao jorrarem as certezas absolutas sobre a inevitabilidade dos consensos.

O sucessor de Sampaio, cada vez mais um seu émulo, é o papa da consensualidade. Pergunto-me se a muita gente de direita que alimentou, extasiada, a candidatura de Cavaco ainda não se arrependeu. De ver um presidente cada vez mais amorfo, cada vez mais penhor da pior doença da democracia caseira: o complexo de Dupont e Dupont que é a existência do amorfo bloco central, o centrão que é o sintoma das doenças que nos impedem de avançar.

Nem de propósito, ainda ontem a União Europeia divulgava estatísticas desconfortáveis: o poder de compra vai ficando para trás da média europeia e até países que estavam atrás nos vão ultrapassando (Hungria, República Checa, Malta e Chipre). Devem ser os efeitos dos milagrosos consensos que nos vendem.

17.12.07

Niemeyer: o louvor do comunista


Um dos maiores arquitectos do mundo fez cem anos. Ou terá sido um dos rostos mediáticos que ainda acredita no comunismo que fez cem anos? A comunicação social não deixou passar o centenário sem celebração. A TSF lembrava-me que Óscar Niemeyer fazia cem anos. Na peça laudatória, o jornalista só de relance destacou a arte de Niemeyer. Só ao início fez menção ao arquitecto, à sua extensa e arrojada obra, ao desassombro que foi projectar Brasília, até a um hotel no Funchal que tem a sua assinatura. O resto do tempo foi gasto com a orgulhosa condição de comunista do arquitecto.

Primeiro acto: os encómios do homem que se destacou como arquitecto passam ao lado desta faceta, toda a atenção no empenhamento ideológico. Desprestigiante para quem dedicou uma vida inteira à arquitectura? Não que a intervenção cívica seja parte menor na vida de alguém. Não quero desconsiderar o empenhamento ideológico de Niemeyer. Pode-me ser desconfortável, mas o comunista não sou eu. Fico perplexo quando um homem com tão importante obra arquitectónica aparece aos olhos da opinião pública como um dos últimos dinossauros do comunismo, como se esse fosse o maior motivo para o tornar conhecido. É como se toda a sua obra fosse relegada para plano secundário, desvalorizada perante essa coisa maior que é a crença no comunismo como a ideologia perfeita.

Segundo acto: o romantismo de muita comunicação social, enamorada pelo comunismo. A mesma imprensa que aparece na linha da frente a denunciar os atropelos da extrema-direita – o “fascismo”, que tudo o que ressoe a diabólico cai no saco do “fascismo”. E, no entanto, há relatos entusiasmados de ícones do comunismo, como se no comunismo não houvesse também experiências hediondas de negação da liberdade de expressão, tantas mortes praticadas sob pretexto da “revolução proletária”. Dois pesos, duas medidas.

Este comportamento contraria a imparcialidade que se espera dos jornalistas. Nada contra as convicções dos jornalistas – as pessoais, as religiosas, até as ideológicas. O que me custa é dar de caras com jornalistas que escorregam com facilidade para a doutrinação da audiência. Só não percebo se o fazem por ingenuidade, tomados pela emoção das causas, inebriados pela militância ideológica; ou se há ali intenção, encantados pelo missionarismo que faz da profissão de jornalista o caminho para educar as massas. Jornalismo assim é de provocar o vómito. A menos que o jornalismo moderno tenha mudado os cânones e já não esteja comprometido com a imparcialidade.

Ao escutar o relato deliciado do jornalista da TSF, destacando Niemeyer como comunista mais do que arquitecto, adivinhei a pele arrepiada do jornalista à medida que ia desfilando a peça laudatória. Quase ficava comovido. Um acto emotivo de lírico compromisso com o comunismo, a ideologia certa que, para desdita do jornalista, fracassou. Também fico comovido quando tenho pela frente estes desiludidos do mundo, desafinados com a História, convictos que a queda do império comunista foi um tremendo erro da História. Comovo-me só de pensar na sua orfandade. Percebo-os bem, porque também padeço de orfandade, que todavia se distancia desta orfandade por não ser nostálgica de nenhum regime ou de ideologia que vingou no passado ainda recente. A minha nostalgia está mais na antinomia com o que existe.

O centenário de Niemeyer foi a ocasião ideal para tirar esqueletos do armário. E recordar, pelas palavras do arquitecto que nunca se recusou a fazer intervenção cívica, que o comunismo é a utopia que ficou por cumprir. Se há um passado vergonhoso a manchar o comunismo em acção, não passa de um detalhe insignificante, um ligeiro erro de percurso que não prejudica a superioridade do comunismo. Só falta perguntar que outro julgamento da História será necessário para colocar o comunismo no cadafalso. Ou se o comunismo teve apenas maus intérpretes, próceres de tanta gente que ousou dissidir e que pagou o tão elevado preço da vida. São os mesmos que apregoam à exaustão as palavras “liberdade” e “democracia”, corroidos pela memória distorcida dos países onde o comunismo viveu longas décadas na prova de que nem democracia nem liberdade chegaram a ser praticadas.

Niemeyer foi usado como o comunista ideal, no desapego dos valores materiais, na proclamação de um mundo sem pobres e também sem ricos. O jornalista contou, ainda toldado pela emoção, como o arquitecto deu uma casa ao motorista, outra ao jardineiro e como a generosidade se consumou com a oferta de inúmeros edifícios para espalhar sedes do partido comunista do Brasil. Só se esqueceu de pontuar o discurso com duas observações: a generosidade é um acto individual, que apenas depende da consciência de cada um, não devendo ser imposta de fora para dentro; e que há, entre a “corja” dos “porcos capitalistas” (para usar o linguajar tão típico) quem faça semelhantes benfeitorias.

É que isto do mundo ser um binómio entre os bons e os maus (neste caso: os bons são os comunistas; os maus todos aqueles que se entregam aos fúteis devaneios das mordomias do dinheiro) é uma alegoria mais ao jeito do Hollywood que os comunistas rejeitam. A menos que já tenham sido contagiados pelo espírito hollywoodesco...

14.12.07

O natal só das crianças


A incumbência de escrever uma frase alusiva ao natal para a minha filha levar para o colégio. Andei três dias a adiar a tarefa, ou porque não havia maneira de encontrar a inspiração, ou pela dificuldade em descobrir uma frase que fizesse a síntese do que é o natal. Tive que mudar o método. No deserto de ideias acerca do significado pessoal do natal, esforcei-me por recuar no tempo e indagar ao passado o que sentia em criança quando o natal se fazia anunciar. Por hoje, tenho outras referências que ajudam à tarefa: ver como as crianças lidam com o natal.

E assim se fez luz: uma frase que à partida não podia incorporar os lugares-comuns que desfilam, com profusão, a propósito do natal. Uma frase que contivesse o espírito das crianças diante do natal. Daí que tenha descoberto, pelos olhos alheios, que “o natal perfuma as estrelas com as cores da felicidade”. Pelos olhos das crianças que festejam o natal com o êxtase de quem fica à espera da descida das prendas pela estreiteza da chaminé. Na sua inocência, nunca se questionam que os embrulhos chegam imaculados, refulgentes, sem o menor vestígio da fuligem acumulada nas paredes da chaminé.

O envelhecimento instala a monotonia dos preceitos que se repetem na volta habitual do calendário. É assim com o natal. Uma certa melancolia. Inexplicável melancolia. Só rompida com a revisitação de infantis natais de outrora, através da excitação das crianças que entraram na minha vida. Um sentimento ambíguo: entre a nostalgia inexplicável que esconde uma certa tristeza, o cansaço de natais que se repetem com os rituais de sempre; e a felicidade que jorra das crianças nos dias que antecedem o natal e naqueles momentos tão esperados por elas, quando por fim chega a vez de desembrulharem os presentes.

Já sei que há muita gente, empenhada em combater os malefícios do consumismo, que verbera este tipo de natal a que as crianças se entregam. Sei que há maneiras alternativas de educar o natal às crianças. Páginas inteiras escritas a censurar a enxurrada de prendas que ao fim de meia dúzia de dias são remetidas ao esquecimento pelas crianças mimadas, enquanto pelo mundo fora tantas crianças têm uma vida preenchida por carências que nem sequer fazem sentido por cá. Que me seja perdoado o devaneio individualista: é que sou penhor da felicidade das crianças que me são queridas. É a sua felicidade que me compraz. E sim, é verdade que há despropósito na educação – diria, colectiva (já me explico) – que ensina os predicados materialistas do natal. O que fazer para contrariar esses excessos? Roubar a felicidade às crianças?

(Digo “educação colectiva” porque há um efeito de contágio que os pais podem pouco fazer para combater. Os filhos não vivem isolados no mundo. Convivem com outras crianças. Entre a vigorosa maré materialista que varre as crianças cada vez mais mimadas, é uma insensatez meter o remo em sentido contrário ao da vigorosa corrente. Só conseguirá ostracizar a criança, noutro descaminho da sua felicidade. É resignação, decerto. Pelo bem-estar da criança.)

Se há virtude no natal habitado por crianças é a nostalgia que elas semeiam em mim. E os rostos delas, espelhos de felicidade incontida – que interessa se nutrida pelo “hediondo consumismo”, pois a felicidade é para ser sagrada, sem curar de saber onde ela radica. As virgens pudicas que espalham verdades insofismáveis, soltando discursos inflamados contra o consumismo e o materialismo que se apodera do natal, não passam de personagens que querem roubar a felicidade que as estrelas espalham nos rostos das crianças. Haviam de ser presos por esse crime insuportável. E deixar as crianças sentir toda a felicidade – por materialista que seja – do natal. Os que surgem como obstáculos à felicidade delas, deviam ser deportados para lodosos terrenos onde a sua desdita pessoal pudesse ser apascentada.

Por hoje, retomo algum gosto no natal. Simplesmente pela ansiedade que vai consumindo as crianças nos dias que contam até chegar a véspera de natal, pela expressão de felicidade que delas brota, um manancial que me inunda com um preenchimento interior indizível. Os olhos das crianças são os meus olhos quando o natal aparece no calendário. É pelos olhos delas que sinto a felicidade que irradia. E se elas encontram as estrelas coloridas com os tons radiosos da felicidade, eu vejo nos rostos e nos olhos das crianças a minha felicidade natalícia.

O natal, que aparenta pertencer só das crianças, também é oferenda aos adultos pela expressão deslumbrada vertida nos rostos das crianças.

13.12.07

On the Hype (12) - Dave Gahan, "Kingdom"

Se ao menos tivesse um reino


As sombras, pesadas, abatem-se sobre o firmamento. Escurecem-no, como se não houvesse porta de saída num túnel estreito onde mal cabe o corpo. Ao longe, o som de gritos aflitivos. Misturam-se com o grasnar dos patos que esvoaçam sobre a água do lago, parecendo fugir em pânico de um fantasma que os afugenta para um refúgio ideal. Até o sol que, tímido, espreitava por entre a cama espessa de nuvens, partiu para algures. Sobra a luz vertida nos cantos, mal alumiando os passos que vão errando, incertos. As flores encerram-se sobre si.

Este vento agreste cansa. Tal como os dias consecutivos de sombras que escondem a luz clara. As forças consomem-se no sobressalto contínuo. Tão contínuo que a normalidade é feita de sobressaltos que se entranham nas veias, são o seu próprio sangue. Até pela noite, quando a cabeça repousa na almofada, a inquietação é perene. No dia como na noite, até pelo sono fora, tomando conta dos sonhos que não deixam o sono ser o sossegado repasto dos dias sobressaltados. A desordem dos sentidos apodera-se da carne. Desdobra-se em páginas mil apoquentando a existência, remetendo o espírito para longínquas deambulações que temperam o horizonte com as cores entristecidas.

E, todavia, há fatiga a cada dia que se desdobra nesta imensidão que esbarra com estrondo no peito da existência. Sempre nas alvoradas uma vontade indómita de mudar de vida, ou de mudar a vida. Liquidar as tempestuosas avenidas que os pés revisitam todos os dias. A forte tentação de descobrir outras ruas que levem ao mesmo lugar, ou talvez até a lugares diferentes, onde planem pássaros coloridos a debitar um chilrear melodioso, onde o sol deixe cair as pétalas que consagram a refulgência dos dias que nascem para o arrebatamento das coisas.

Os instantes que povoam a alvorada, ainda no estremunhar matinal, transtornam os sentidos. Por instantes, ainda adornado pelo discernimento embaciado da alvorada, o pensamento emigra para campos cheios de flores, vastas planícies que só ao longe terminam nas montanhas abruptas que convidam à aventura da vida. É nesses instantes que o pensamento trepa as amuralhadas peias do reinado onde tudo é diferente. Onde os pequenos nadas são sagrados como se fossem os logradouros de toda a sabedoria, a glória maior de pertencer ao reinado onde só cabem as pessoas adoráveis, as coisas belas que merecem poemas diários, as palavras entontecidas que anestesiam os maléficos querubins.

Um reinado exclusivo. À medida. Sem estorvos, nem espinhos semeados no caminho, com as pedras pontiagudas deixadas na berma, bem assinaladas para não serem pisadas. Um reinado onde não haveria reis ou suseranos, vassalos nem súbditos. Nem igualdade. Onde as nuvens acobreadas do fim do dia desvendariam segredos que a noite resguarda. O palco para coreografias arrojadas onde os corpos se desenvencilham das algemas que os aprisionam numa autómata condição, fazendo das gentes sucedâneos de uma essência imposta. Coreografias mágicas, ao som de melodias que aglutinam as notas musicais em composições fantásticas, com o dedo de músicos que o não eram e, num passe de magia, passaram a ser.

Um reinado sem ordem imposta, nem polícia, nem mandantes, ou sequer adoradores da desordem instituída pelo desdém dos outros. Uma adocicada e ingénua utopia – ou apenas um exílio interior, profundo, um lugar qualquer onde tudo seria tão diferente do acidentado quadro onde onde se pintam, com pinceladas grotescas, as cores esbatidas do que a vista alcança. O exílio interior onde estariam à espera as ideias que interessam, as palavras impregnadas de sentido poético, o nutriente maior para uns olhos irradiando um sorriso perfumado. Onde nem o frio gelasse as veias, ou o calor diluísse o juízo, a chuva tombada sobre os cabelos molhados seria o tempero do espírito e o sol o pasto para a deposição dos amantes. Um reinado onde não houvesse o imperativo dos sacrifícios, como se fossem o caminho necessário para a redenção. Nem a superação do que somos pelo fingimento obrigatório que a convivência social impõe.

Tudo seria resplandecente, até o céu plúmbeo na sua beleza inaudita. Na incandescência dos sentimentos, o lastro de um reino encantado sem lugar aos precipícios que, quando chegam, já fazem troar a sua implacável dor.

12.12.07

Chicago? Não: Porto!


Está perigoso, o Porto. Os gangs andam à solta, desenfreados, a fazer a limpeza através das armas. É a justiça das balas – a boçal justiça que se faz pela força, implacável, sanguinária, irracional. Mete medo saber que qualquer um se pode cruzar com um desapiedado membro dos gangs rivais, a fatiota aprumada escondendo um arsenal de armas de fogo, armas brancas, soqueiras, o que quer que seja que destila a mais elevada animalidade de um homem.

Pelo meio, há alarme social. Com a ajuda de uma polícia inepta, que mais parece estar sossegadamente à espera que se matem uns outros até sobrarem os restos dos gangs. A lógica da covardia: para depois atacarem quando os gangs já tiverem derramado sangue e mais sangue e sobressaltado as pessoas que querem levar a sua vida normal. Nessa altura, esperará a polícia, os gangs estarão à mercê, já extenuados. O golpe de misericórdia será fatal, nos poucos que tiverem escapado ao troar as metralhadoras. Uma polícia assim é uma vergonha de polícia. Choro pelos impostos que fogem da minha algibeira.

Para aquecer o alarmismo social, vêm Pitonisas da desgraça sentenciar Chicago em pleno Porto. Estaríamos a cavalgar numa onda de criminalidade violenta só comparável às máfias de Chicago dos anos trinta do século anterior. Sempre fomos atreitos a exageros. É da têmpera do povo: tão depressa habita no oito como cai para o oitenta. Para perceber o exagero da analogia, estão aí os filmes que retratam Chicago dessa altura – ou ser mais exigente e perguntar às estatísticas. A imprensa punha ontem em parangonas: seis mortos em cinco meses nos ajustes de contas entre “seguranças” que gravitam no negócio da noite. Bastava puxar pela cinematografia: nessa Chicago tomada pelos gangs mafiosos, seis mortos era conta pouca para as rixas de um dia só.

Por mais apelativa que seja a comparação, ela tem o rigor de comparar as elevações da Holanda com os Himalaias. Não são apenas os números que o desmentem. Os rapazes que se entretêm a fazer matanças na área metropolitana do Porto andam de cueiros ao pé dos mafiosos que dominavam as ruas de Chicago. A sua coragem fala através do poder das armas de fogo – e nisso não se distinguiam dos mafiosos de Chicago. Não os estou a imaginar com a coragem física dos gangs de Chicago, que quando era necessário resolviam pela refrega, à força de punhos, disputas com rivais. Os corajosos militantes dos gangs da noite portuense refugiam-se em actos covardes, nas emboscadas que atraiçoam rivais que deviam ser mais cautelosos para não caírem na cilada. Desprevenidos e desprotegidos, carne fácil que sucumbe à rajada de balas vomitada pelas metralhadoras.

Apesar da falácia do Porto-versão-século-XXI-da-cinzenta-Chicago, o fenómeno não deixa de ser preocupante. Há muita insegurança nas ruas da cidade. A noite está particularmente perigosa. Quem semeia a insegurança são pessoas que pertencem à “classe” dos “seguranças”. Nunca as aspas se aplicaram tão bem como agora. Este é o melhor incentivo para o sono chegar cedo, substituindo o êxtase da noite pela cama acolhedora e, decerto, mais segura. Ao menos se tropeça em tiroteios que despejam uma enxurrada de projécteis sobre a vítima desprevenida. Uma enxurrada, só para confirmar que quem foi atacado está morto e bem morto. O último que caiu numa emboscada recebeu tantos tiros que a polícia recolheu quase cinquenta invólucros de bala. Nem que tivesse as sete vidas de um gato o desgraçado conseguia escapar.

E é preocupante porque já há quem faça a sagração desta violência através de videoclips hip-hop. Está lá tudo: por entre um insólito hip-hop entoado com o sotaque mais profundo da Cantareira, bólides de grande cilindrada, gangs feitos de gente que não aprendeu a sorrir, a violência apregoada em verso simplista. E as infindáveis dúvidas: onde foi gente de origens humildes buscar, de repente, dinheiro para os sinais de riqueza que se pavoneiam no videoclip? Os anéis, pulseiras e correntes de ouro maciço a enfeitar as roupas desleixadas, os carrões que transpiram potência e custam muito caro, e mais o resto que, num acesso de pudor, o videoclip não mostra – de onde vem o dinheiro?

O deslumbramento do poder grita mais alto. Porventura saberão que o poder que ostentam é efémero. No fundo, sabem que, mais tarde ou mais cedo, perdem o rasto ao poder. Ou porque morrem, apanhados por uma rajada de balas que os deixa, inertes e ensanguentados, numa fria parede que é seu túmulo. Ou porque lhes calha em sorte (em sentido literal) uma estadia prolongada no estabelecimento prisional.

Eu só gostava de perceber a vertigem desta gente pela vida que pisa todos os dias o risco. Perceber o que os motiva, se não têm a certeza se verão a alvorada seguinte. Dir-me-ão que o dinheiro corrompe. Parece-me que é só a apologia da violência como modo de vida. A afluência material é um dano colateral. E o credo na boca das pessoas inocentes, que podem ser apanhadas no meio do fogo cruzado entre dois gangs rivais.

11.12.07

Ainda a cimeira UE-África: a propósito de uma máxima de Confúcio


Foi lamentável a valsa dançada entre europeus e vários ditadores da pior espécie vindos de África. Prova de que a teoria política dos catrapázios bem pensantes da moral europeia não passa de retórica. A juntar a outro equívoco: a metodologia, a política escolhida para negociar com os países africanos. Mais do mesmo: ajuda ao desenvolvimento. Decifrando a linguagem, dinheiro empacotado pela União Europeia para os países africanos.

Aos mais desatentos – e àqueles que acreditam na ladainha de Bono – será chocante dizer que o envio de dinheiro para estes países faz-lhes mal. Poderão pensar: se as assimetrias de desenvolvimento são tão acentuadas, e se alguns países europeus têm responsabilidades pelo muito tempo de colonização errada, é exigível que os ajudem a sair do subdesenvolvimento. A ajuda financeira é o melhor remédio – continuarão a pensar. Até estarão tentados a concordar com o facínora Khadafi quando veio exigir, com o despautério do costume, indemnizações aos países que outrora foram colonizadores. Se não resvalarem para esta imbecilidade, ao menos estarão convencidos que a ajuda aos países africanos exige generosos cheques enviados pelos europeus.

Uma digressão pelo passado fará luz sobre o equívoco da ajuda ao desenvolvimento que passa pelas doações de dinheiro. Primeira observação: estes países pouco progrediram na escala do desenvolvimento. É verdade que alguns conseguem taxas de crescimento económico que são atraentes para quem vê neles excelentes oportunidades de negócio. Só que os teóricos do desenvolvimento não se cansam de explicar que crescimento é uma coisa e desenvolvimento é outra. Por outras palavras, pode haver elevado crescimento sem se repercutir em desenvolvimento – e isto abunda em África. Segunda constatação: a miséria continua a sobressair, a fome, a insalubridade, as doenças que não regridem, a esperança de vida que continua, em muitos casos, a ser inferior a quarenta anos. Mas há elites que enriqueceram de forma obscena. Não é por acaso que alguns politólogos recorrem ao termo “cleptocracia” para caracterizar o regime político de muitos países africanos.

Estas observações são a prova de que o dinheiro enviado tem feito muito bem às elites que enriquecem enquanto as populações definham na pobreza tão obscena quanto a obscenidade das suas fortunas que acamam em off-shores e contas bancárias na Suíça. Podem alguns contrapor que o dinheiro que a União Europeia envia para os países africanos está associado a projectos de desenvolvimento específicos, com acompanhamento e tudo. Só que esse dinheiro permite aos países africanos uma almofada para usarem os respectivos orçamentos para outras finalidades – palácios sumptuosos, exércitos armados até aos dentes, luxos ao serviço dos governantes. Não fosse a generosidade financeira dos europeus e não haveria o cortejo de riqueza obscena dos líderes africanos. Curiosamente, algumas esquerdas que se acham penhoras da “boa consciência” mundial, tão preocupadas com a injustiça na repartição do rendimento dos países capitalistas, silenciam-se diante da iniquidade mais acentuada que se reproduz em países africanos. Com a bênção dos europeus e dos cheques que enviam para terras africanas.

Há outro inconveniente na ajuda ao desenvolvimento que depende destes cheques. Os facínoras que dançaram a valsa com os europeus perpetuam-se no poder. Que venha a União Europeia proclamar a universalidade dos direitos humanos, que venha até condicionar a atribuição de dinheiro ao respeito por estes direitos; os déspotas da pior espécie governam com mão de ferro países que se banqueteiam na generosidade financeira dos europeus. E assim dotam-se de um balão de oxigénio que os eterniza no poder, com mais opressão, mais banhos de sangue – tudo com a chancela dos europeus, que proclamam o contrário do que acabam por financiar, para expiação dos pecados da colonização.

Em tudo isto, hipocrisia dos europeus. Preferem enviar os cheques para África, quando a melhor ajuda que poderiam dar aos povos africanos (sublinho: aos povos; não às elites que os governam) seria a abertura do mercado europeu às exportações agrícolas dos africanos. O obstáculo é poderoso: os lobbies dos agricultores europeus (com os franceses à cabeça). A União Europeia prefere subsidiar as vacas com verbas superiores ao PIB per capita da maioria dos países africanos. Pelo caminho, não abre uma caixa de Pandora (a resistência dos agricultores habituados à generosidade da política agrícola da União Europeia). E, também pelo caminho, espaço para a ajuda ao desenvolvimento tecer as teias do comprazimento dos políticos que têm na intervenção o seu oxigénio: por um lado, o agradecimento dos países que recebem o cheque - fica sempre bem e afaga o ego dos falsos generosos; por outro lado, a imagem filantrópica que apazigua a consciência colectiva dos países que andaram pelo descaminho da colonização que se limitou a exaurir recursos nas colónias – coisa que tem a vantagem de dar votos.

Tenho a impressão que esta metodologia, esta política de parceria com África, é um tremendo equívoco. Confúcio explica-o melhor que ninguém quando ensina que não se deve dar o peixe ao pobre; antes, ensiná-lo a pescar.

10.12.07

A valsa dos facínoras


Os homens não têm consciência? Os paladinos do pensamento certo, que não se cansam de apregoar o caminho que os bons cidadãos hão-de percorrer, conseguem recostar a cabeça na almofada ao fim do dia, depois de terem amesendado com déspotas da pior espécie, depois de terem cumprimentado facínoras africanos que se passearam na sua vetusta altivez? Quantas vezes terá o primeiro-ministro lavado as mãos depois de cumprimentar Mugabe, Khadafi e outros espécimes grotescos? Quantos litros de água para lavar as mãos tocadas pelas mãos ensanguentadas dos facínoras que ele apadrinhou em Lisboa?

É vergonha, uma profunda vergonha, que sinto ao saber que fomos mestres-de-cerimónias numa cimeira lamentável. Que demos guarida a ditadores da pior espécie e, ainda por cima, proclamámos (melhor dizendo, alguém proclamou por nós) o princípio da negociação em paridade. Como se fosse necessário proclamar o que só as palavras escondem no seu contrário. Eu tenho vergonha de pertencer a um país que tem um primeiro-ministro que se auto-congratula com o festim com próceres arrepiantes manchados por banhos de sangue. Por omissão, esse primeiro-ministro, e toda a corte que o apascenta, acabam cúmplices de todo o sangue derramado pelos facínoras que desfilaram rodeados pelo requinte que neles exala o odor fétido da obscenidade.

A cimeira UE-África teve um lado higiénico: num esforço quase sempre vão de me exilar das notícias e dos noticiários, consegui este fim-de-semana fechar a janela a noticiários. Bastou ver algures uma fotografia de Sócrates a estender a mão a Mugabe. E ver como o alucinado Khadafi cirandava por aí, numa pose abstrusa, destilando disparates com a impunidade que a personagem com tiques de realeza permite. Quis fugir deste pesadelo. Afogar a vergonha escondendo-me da cimeira onde a Europa negoceia em pé de igualdade com déspotas, tiranos, facínoras, cleptocratas e com outros dirigentes que conseguem passar no crivo dos próprios princípios de “boa governação” que a Europa laboriosamente tece para encher uma retórica vácua.

Envergonho-me de ter sido o país onde nasci que apadrinhou o regresso das cimeiras UE-África. E mais me envergonho da autocontemplação pátria, como se aplaude demoradamente o feito de termos sido mestres-de-cerimónia de uma encenação grotesca, de como acolhemos de braços abertos um cortejo de personagens que mereciam apodrecer em cadeias imundas, pelas atrocidades que cometeram a continuam a cometer. Maldita diplomacia. Maldita política que varre para debaixo do tapete crimes hediondos e amesenda com os facínoras que deviam estar sentados no banco dos réus de um tribunal internacional de direitos humanos. E maldita doutrina do “realismo”, que ensina que os negócios dos Estados falam mais alto que atrocidades dos verdugos. Por estas alturas, apetece mudar de planeta.

Pelo que tenho lido, as televisões nacionais aprimoraram a congratulação do governo, com especial destaque para o seu timoneiro, cada vez mais elevado ao altar do messianismo internacional. O homem aparece, em pose masturbatória, em intermináveis auto-elogios que servem para os ingénuos se convencerem que é o nosso salvador. Tanto que nos quer convencer que é, aos olhos do mundo, um importante personagem que desata os nós de negociações que tinham adormecido ou caído em impasse. Foi assim com a Constituição da União Europeia, que “ele” soube salvar e, para gáudio dos que se ufanam com o orgulho pátrio, transformou no Tratado de Lisboa. Teremos mais do mesmo, com a figura a surgir envaidecida como mestre-de-cerimónias num espaço de poucos dias, quando for assinado o Tratado de Lisboa no dia 13 de Dezembro. Mas é isso que ele é: mestre-de-cerimónias, não o herói internacional cuja imagem é zelosamente fabricada para consumo doméstico.

Eu gostava de saber se estes homens não ficam arrepiados quando as suas mãos tocam as mãos dos facínoras que vieram até Lisboa. Gostava de saber se sustêm a respiração, se é muito o esforço para esboçarem um sorriso quando lhes aparece pela frente mais um ditador sórdido, se a maquilhagem compõe o sorriso amarelecido que fazem, contristados. Ou se o sorriso é aberto e espontâneo e, com isso, dão o beneplácito aos déspotas com que conviveram durante três dias.

Quem se dá com gente pouco recomendável e, no final, surge com discurso congratulatório e pose masturbatória, só pode ser, também ele, gente pouco recomendável.

7.12.07

Envelhecemos; e depois?


Assusta-nos a velhice que se anuncia? Os lugares comuns multiplicam-se, sinais da velhice que vem tomando conta da baía da existência. Ou os cabelos brancos que assentam nas laterais, como se fossem os flocos de neve deitados depois de um passeio retemperador. Ou as rugas que transformam a face, as indeléveis marcas do tempo que veio curtir a pele enrugada, prova de mil vicissitudes ou apenas do tempo mais plácido que se cruza com a vida. Ou o corpo que já não responde como nos tempos áureos da juventude, amordaçado pelo cansaço, emperrado, domado pela sua preguiça sintomática do envelhecimento. Ou as mazelas do organismo, um cocktail de doenças e medicamentos que as combatem mas deixam o travo amargo da dependência de químicos, outro sinal da juventude arrematada.

Envelhecemos e parece que se apodera de nós um instinto suicidário, diria paradoxal, de combater o envelhecimento. Como se envelhecer não fosse da ordem natural das coisas. Uns caem no encanto da indústria cosmética. Cremes de rejuvenescimento da pele, na crença de que as rugas vertidas são, por milagre, diluídas com camadas metodicamente acumuladas das gordurosas quimeras. Outros buscam o elixir da juventude já dobrada noutros sinais – num automóvel que sinaliza juventude, em roupas pateticamente juvenis, no que seja. Há quem envelheça e se recuse a admiti-lo, debatendo-se em si mesmo numa luta destinada à derrota. Houvesse no envelhecimento a vergonha dos anos contados. Houvesse no envelhecimento a recusa de si mesmo.

E, todavia, há no envelhecimento o seu próprio elixir. Uma nostalgia do futuro. De cada vez que os olhos espreitam por detrás do ombro revisitando a juventude encerrada, só tempo precioso desperdiçado. De cada vez que resgatamos o passado como pretexto para negar o envelhecimento, paradoxalmente apressamos a velhice. O desgaste da nostalgia reflexiva é uma tontice a que nos entregamos. Dir-se-ia que há arrependimento, e não grande saudade, da juventude já emoldurada. Através da nostalgia que resgata a juventude mergulhamos na negação do envelhecimento, na vergonha do que nos tornamos. Sem dignidade.

Só que o envelhecimento traz o seu próprio elixir. Pela sagração dos dias que hão-de ser testemunhas de cada passo do nosso envelhecimento. Do tanto que cumpre fazer, projectos idealizados ou apenas as conquistas que o fluir espontâneo dos dias vai trazendo. Os muitos livros, filmes, música, quadros; ou as muitas conversas com pessoas queridas, ou as pessoas desconhecidas que o hão-de deixar de ser; ou os locais nunca dantes visitados; ou a luz diferente dos dias que, por serem novos, são diferentes também; ou, o que seja do agraciamento da vida. É esta a nostalgia do futuro que só o envelhecimento consegue encerrar. O que interessa voltar ao passado se nessa deriva existem os fragmentos de rejeição do tempo que ainda haveremos de viver?

Quando envelhecemos semeia-se o Outono da nossa vida. E há toda a beleza misteriosa da outonal estação. A começar na ordem natural das coisas, que nem a ciência mais sofisticada consegue iludir. A cada passo que a tentação da nostalgia do passado fala mais alto, através da resistência árdua perante o envelhecimento, perseguimos a refulgência das ilusões que são isso apenas, ilusões. A maior homenagem a nós mesmos é a celebração do envelhecimento que se anuncia a cada aniversário dobrado. Alguns dirão que há resignação neste diagnóstico – com a ressonância a derrota que a resignação transporta consigo. Que há alguma terapêutica na nostalgia pela juventude que desenfreadamente se tenta resgatar. Eu direi que não é resignação. É da ordem da natureza. E que o dever que temos com a nostalgia do futuro não admite que sejamos errantes peregrinos pelos caminhos registados no livro das memórias. E só no livro das memórias. Tão intangíveis como as memórias.

Às vezes marcamos encontro com o alfabeto da tontice quando nos deixamos aprisionar pela juventude já arrematada, como se esse fosse o milagroso elixir do rejuvenescimento que a recusa do envelhecimento cauciona. Ao contrário do que parece, a prisão está no passado emoldurado, não na nostalgia do futuro. Essa é libertadora. Tão libertadora quanto a degustação da vida o permite. Ao envelhecermos, todas as agruras que esbarram contra o peito, todos os sinais da velhice, são compensados pelo dom maior de sermos vivos.

Envelhecemos; e depois? Que venha muito envelhecimento para celebrar.

6.12.07

Oxalá castelos no ar


Por fora das janelas flutuam nas nuvens castelos de formas diferentes. Uns de granito, outros de faustoso mármore, outros ainda exibindo o tom avermelhado dos tijolos. As ameias escondem os jardins de luxuriante flora, bordejados por lagos onde nadam nenúfares na sua placidez. Os olhos fitam o céu onde passeia a tenacidade dos castelos montados em nuvens vindas de todos os lugares. Nesses castelos levitam os sonhos que iludem a vida verdadeira. Uma distracção do tempo cinzento que tomou conta dos dias constantes, sempre tingidos pela luz baça que não deixa ver ao longe.

Passas horas e horas com o olhar petrificado nos castelos amontoados no ar. São eles mesmos os alicerces onde se acastelam as nuvens farfalhudas que se tornam densas, tapando o sol. Chegam castelos fantásticos, como se fossem torres babilónicas que emolduram toda a complexidade da vida. A teimosa complexidade da vida, quando ela carecia de terapêutica simplicidade. Nos castelos, num qualquer castelo, nidifica o segredo da simplificação dos passos que teimam em seguir pelos caminhos espinhosos. Só que te faltam as asas para poderes montar num desses castelos e por fim saberes o que escondem. Terias ainda que escalar as paredes altas e espreitar, a receio, entre as ameias que dão para o interior do castelo escolhido. A medo, não fosses descobrir que lá dentro povoa o mais decepcionante vazio.

Todas as horas gastas em oníricos devaneios são a demanda pelo castelo prometido. Vais, desenfreado, cansando as pedras já gastas dos dias anunciados. Sem te cansares de abrir janelas de par em par. As janelas que dão para o exterior. Mas também as janelas que se encerram dentro de ti, a urgência de perfumar com as pétalas dos dias diferentes a essência que voga pelo interior. Às vezes desconfias que os castelos não chegam montados nas nuvens sopradas pelo vento fresco. Desconfias que os castelos moram em ti. E se acaso os descobres no mapa indecifrável, são labirínticas construções que se espraiam diante dos teus olhos. Não a prometida simplicidade, apenas mais nutrientes da cansativa complexidade onde mergulhaste. Sem retorno possível.

O cepticismo perante os castelos interiores fossiliza-te. És o primeiro descrente de ti mesmo. Resta-te o refúgio algures fora de ti, nos castelos ansiados que chegam de paragens distantes, exóticos ou medievais, sem importar se são habitados por sereias ou por cavaleiros impantes no código de honra militar e decadente. Nada disso te interessa; só a luz que encontras nos castelos que passam montados em nuvens esbranquiçadas. São lugares diferentes dos que tu habitas, e por isso inacessíveis. E por serem inacessíveis, esses castelos são os sonhos onde vagueia a vida diferente que buscas, as pessoas diferentes que querias conhecer, as ideias tão diferentes das que empestam o horizonte que preenche a tua vista.

Só que esses castelos são ilusões que se desfazem na sua vacuidade. Sabes que se fosses magicamente guarnecido de asas, não haveria mister de montar as nuvens onde se amontoam os castelos. Os próprios castelos esfumar-se-iam ao toque das tuas mãos. Seriam castelos de areia, frágeis na sua ilusão onírica. O regresso ao ponto de partida. O dilema dos sonhos que não descerram janelas que trazem do outro lado paisagens frondosas. Os sonhos que são um nada apenas, sem cor nem som nem odor nem personagens tangíveis – só uma impressão vaga que o acordar atira, implacável, contra o peito ainda palpitante do sonho diluído. Sobra o sabor amargo na boca, afinal a náusea da vida sem ilusões que se deita nas folhas do calendário que dobras, metodicamente, a cada vez que a alvorada toma conta da noite.

Apesar das promessas que se demitem em si mesmas, como se fossem o vento que foge entre os dedos que o tentam capturar, insistes na demanda dos castelos que chegam pelo ar. Insistes, porque sabes que nos sonhos que eles prometem se escondem as ilusões apetecíveis, o refúgio das pedras pontiagudas que sangram os teus pés, todos os dias. As horas a fio em que levitas de ti mesmo e buscas refúgio nos castelos que pairam sobre a cabeça são a consolação que levas dos dias perenes. O único oxalá que ousas tecer. Para afastar as ruínas que se entretecem com o avançar dos dias.