31.5.21

Reviravolta (compêndio da honestidade intelectual)

Limiñanas/Garnier (feat. Edi Pistolas), “Que Calor!”, in https://www.youtube.com/watch?v=efJQF3MGYFY

A Bielorrússia comete pirataria aérea, ao desviar um avião que transportava um opositor ao regime de Lukashenko. No dia seguinte (24 de maio de 2021), Rui Tavares empossa-se historiador do futuro: 

“Mas Lukashenko pode dormir descansado. Da reunião do Conselho Europeu pode até nem sair um comunicado conjunto (...) porque as reuniões do Conselho têm infiltrado um cavalo de Tróia que é mais aliado de Putin, Lukashenko e qualquer ditador do que da própria UE de que faz parte. (...) [É] Viktor Orbán da Hungria que, se não puder vetar, diluirá em muito a reação da UE ao que se passou ontem com o voo Atenas-Vilnius”. 

O futuro, contudo, desmentiu Rui Tavares. No mesmo dia, o Conselho Europeu aprovou por unanimidade a condenação da Bielorrússia e sanções que são consideradas duras no contexto da diplomacia da União que continua a enfermar de nanismo. Orbán, o tal que é aliado de Lukashenko, não se opôs. Rui Tavares esqueceu-se da profecia. Nas duas crónicas que publicou na mesma semana, nem uma palavra sobre o seu pressentimento que não passou de um logro.

Admita-se que Tavares tinha motivos para desconfiar que Orbán se opusesse à condenação da Bielorrússia. Na semana anterior, tinha sido o primeiro-ministro húngaro a impedir a unanimidade na condenação de Israel em mais um episódio da interminável guerra entre Israel e a Palestina. O problema dos oráculos é que devem ser aferidos pelas circunstâncias e os casos que a eles se submetem. Pois cada caso é um caso. E como convém encostar os que na União Europeia transgridem parte dos seus valores axiais (os que se autointitulam da democracia iliberal, um autêntico oximoro), não só se descai para adivinhações incompatíveis com um historiador, como se incorre numa confusão de personagens e de barricadas. Se a Hungria do Fidesz e a Polónia do PiS são os arautos da “democracia iliberal” e da proclamada, pelo líder da direita radical lusitana, “nova direita” (eufemismo para extrema-direita), como entender que estas personagens sejam aliadas de Lukashenko se a plataforma de onde surgiu o portal de oposição ao regime bielorrusso é alimentada a partir da Polónia? Os pontos desta trama não têm ligação inteligível. O que seria suficiente para prevenir uma profecia precipitada.

Rui Tavares parece lidar mal com a espessura do tempo e com as suas várias dimensões, o que é estranho para um historiador conceituado. Duas crónicas depois (28 de maio), analisou o conclave das direitas promovido pelo MEL. O diagnóstico foi contundente: a variedade de direitas nacionais está limitada ao saudosismo, ao neo-saudosismo e ao ultra-saudosismo (respetivamente: PSD, IL e Chega; o CDS está em vias de extinção, já o sabemos). Quem seja de direita em Portugal é como um toxicodependente agarrado ao passado. Não sei se foi por acaso que a crónica foi escrita a 28 de maio. 

E eu, que sou de direita e que abjuro o conservadorismo (porque estou empenhado no presente e sei que vivo no futuro), fico perplexo com o reducionismo de um intelectual tão brilhante como Rui Tavares. A honestidade intelectual (ou, pelo menos, a humildade intelectual) aconselha a evitar os maniqueísmos das análises binárias. Se queremos uma discussão adulta destas questões, que tal recusar a imagem a preto-e-branco que acantona as direitas no passado e reconhece as esquerdas como as únicas fontes de que medra um (viçoso) amanhã?

(Registo de interesses: deploro os procuradores da “democracia iliberal”, os Venturas que berram em fingimento de democracia e concordo com Rui Tavares que o mecanismo do artigo 7.º do Tratado da União Europeia já devia ter sido ativado no caso da Hungria.)

28.5.21

A culpa que se carrega

Mogwai, “Its What I Want to Do, Mum” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=F7B6-xlSjPA

A culpa só interessa ao seu curador, a quem os ossos pesam pela expiação. Só é da conta de quem do passado resgata um arrependimento que converte a culpa em dor. 

A culpa não interessa aos demais. Não se podem constituir em juízes, como se fosse possível serem eles os delatores da culpa que é de outros. Não interessa que sejam os julgadores parciais que querem à partida uma condenação do presente pela mediação do passado, ou que todo um passado seja amaldiçoado com a fiança do presente. A culpa não é intemporal.

A culpa é individual. Mesmo quando é sopesada em nome de um grupo. Até quando o que pesa no critério aferidor da culpa é o somatório de decisões de indivíduos, a culpa é a soma das culpas individuais de quem concorreu para o atropelo configurado como culpa. Quem ousa ser a balança impecavelmente calibrada onde se pesa a culpa dos outros, é à prova de culpa? Não é admissível que quem tenha de acertar contas com as suas próprias culpas tenha condições para medir a culpa dos outros. A garantia da imperfeição de todos os habitantes do mundo exclui do processo de expiação da culpa todos os que adejam sobre os outros e consideram a culpa que lhes assiste. Não podemos ajuizar a culpa dos outros quando temos o encargo da nossa própria culpa.

É esta culpa que temos a cargo que nos arqueia os ossos. As corcundas são invisíveis, pois o processo de compreensão da culpa é mais ou menos dilacerante, mas só diz respeito a cada um. Mesmo quando a expiação se traduz na comunhão das dores com outrem, esse é apenas um processo. A expiação resulta melhor quando é processada para o exterior. Não se pedem indultos, nem a indulgência das pessoas a quem é comunicada a culpa. Apenas um ouvido atento.

Noutros casos, a culpa medra na solidão da consciência. É um processo interior que percorre um caminho labiríntico, à espera de um sinal para o resgate do sono, entretanto em convulsão pelo sobressalto da culpa. É um peso que transcende a tara dos corpos. Um peso que só a parte exterior ao corpo consegue suportar. Nem que a culpa seja inapagável e o processo peça um meio de a mitigar pela estepe que a vida atravessar doravante. Dir-se-ia, em linguagem moderna, um processo de gestão de danos. Dos danos próprios que se oferecem na palmatória da culpa que sobressai pelos danos causados noutros.  

27.5.21

Por dentro das muralhas não há cimento em espera

Brendan Perry, “The Devil and the Deep Blue Sea”, in https://www.youtube.com/watch?v=1k6VTWcWD2E

Não eram impertinentes as lágrimas que embargavas. Na amálgama de dias fortuitos, as juras eram retalhadas no mar voraz. Sobrava o mar. Das juras e das lágrimas não havia colheita que viesse ao conhecimento.

Mesmo assim, teimavas em ser a pele onde medrava a muralha.

Se antes do tempo não se desalinham as intenções, depois do tempo elas podem ser tardias. Não se sabe do paradeiro do momento certo. Desenganem-se os que renitem na latitude álgida que congemina o rumor da perfeição. Essa latitude não vem na bússola. Só na imaginação improfícua dos mendazes. Os socalcos preenchem-se com espetadores ávidos deste espetáculo venal. Querem aprender o que não devem ser, os espetadores. Mas tu insistes em ser a muralha que não se descompõe. Não és se não o tanto tu que nela coabita, e és essa fragilidade inteira.

Se ao menos te contassem poemas modestos. Se trouxessem o mar nas suas mãos e to dessem para guardares as lágrimas embargadas. Se houvesse quem desmentisse todas as juras por incapacidade de se cumprirem. Se a tua pele não estivesse tatuada por frases insuspeitas e, todavia, algozes. Se tu fosses o particípio passado de um oráculo sem paisagem para o futuro. Se o navio cumprisse os mares sem tripulação. Se ao menos não te desses aos proverbiais mastins que não se distraem. Mas é tudo ao contrário: continuas a ser a muralha escorreita, o exemplar, categórico representante da inaparente concórdia interior. Um fazedor de heurísticos lugares sem cor nos mapas. Um projeto adiado até deixar de haver tempo.

Sabe-se, com a voz perplexa do tempo sedimentado, que as muralhas são o pior fingimento de si próprias. O estado de negação, antes que repouse nas asas de uma borboleta toda uma gramática de desmentidos. Não és uma muralha por onde ninguém entra. Ou, se o és, será notado, por quem esteja observador, que o cimento que a mantém vagou antes do tempo. Deixando-te órfão no frete da tua dissimulação. 

26.5.21

O homem que desenha capas para discos que não existem

Interpol, “No I in Threesome”, in https://www.youtube.com/watch?v=eAaXS_wioYg

Andar de trás para a frente: era assim que as pessoas desandavam. Não percebiam. Antes que fossem fantasmas obeliscos a ungir as anestesias das pessoas autómatas com chuva tépida, era bom que elas se emancipassem do torpor com que tinham firmado contrato. Nunca se viu esmero quando se anda para trás. O sono coletivo pode ser suicidário.

Ele insistia num gin tónico como aperitivo dos jantares. Não porque fosse moda. Fosse como fosse, ele era a antítese dos modismos – e ai de quem o desmentisse. Os pequenos goles amaciavam a boca. Convencido que o paladar se congeminava no apuramento que era preciso para o jantar, ainda que o jantar fosse um monástico prato de sopa e uma peça de fruta, fruía o gin tónico. Era a primeira vez que se entregava a um ritual. Um dia, uma amiga advertiu-o que só o gin tónico tinha mais calorias do que a mera sopa superveniente. Ele não se incomodou, nem desertou do habitual gin tónico. Não era a obesidade que o demovia.  

De cada vez que saía de casa – circunstância que vinha a diminuir de frequência: a misantropia tomava conta do sangue a cada dia que passava – não olhava para as pessoas. Desviava o olhar. Não ia, de propósito, aos lugares mais frequentados. A urbe começava a ser cansativa. Diziam que era culpa do turismo e a cidade era cada vez mais turística. De um miradouro caucionado pela noite tardia, ele concluíra que não sabia quem era. Já não se sentia cosmopolita como outrora.

Abstraído de grande parte do que o rodeava, começou a ensimesmar. Escrevia páginas e páginas sem conseguir apurar o sentido das palavras. Pensava, muito. E depois de horas a fio imerso em pensamentos herméticos, era como se tivesse saído de si sem que tivesse saído do mesmo lugar. Regressava a si, furtivamente, não fosse haver uma beligerância entre aquela parte de si que procurava exílio de si mesmo e o seu eu ainda centrípeto. Combinado com a decadência, tomava posse de um certo sentido de desidentificação.  

Não era de passatempos. Em pequeno, umas cadernetas de cromos (quem nunca foi colecionador de cromos?), antes de as levitações morais o conduzirem por labirintos raramente frequentados. Agora, era a música e pouco mais. Tempos houvera em que os fins de tarde vinham acompanhados de poesia escolhida ao acaso. 

Admirava os poetas. Todos e de todos os géneros. Era mais do que admiração: invejava-os. Sempre quis escrever como os poetas, mas sabia, no seu mais profundo haver, da sua incapacidade. Era um pouco como os ilusionistas que ficam com um imenso nada depois de consumarem o truque. Ou como aquele amigo que passava os dias a eito a desenhar capas para discos que não existiam.

25.5.21

Domingo despido (short stories #323)

 

Sean Riley and the Slowriders, “This Woman” (live Paredes de Coura), in https://www.youtube.com/watch?v=CzcPo38R-dw

          Uma correria que ficou por caiar. Juram-se os modos cerzidos nos manuais da etiqueta. Os promitentes não se abespinham no palco onde o tempo não vaga. O domingo arrasta-se. Não escorraça os demónios do tempo, que se insinuam na sua paradoxal impostura. Em vez de se eclipsar antes que se dê tempo ao tempo vago, eterniza-se numa medida singular. É o domingo despido. Uma manhã tardia. A tarde entaramelada, como se as pestanas fossem de plasticina e ficassem coladas sob o sol meritório. As palavras ficam órfãs, bebendo no silêncio estrutural. São os próprios gestos que se embaciam no adiamento, como se uma vacina contra a ação tivesse sido descoberta, para gáudio dos ociosos. As roupas também se arrastam nos corpos ociosos. Dizem: as pessoas precisam da sua desídia semanal. O domingo foi feito para preguiçar. O domingo é um dia despido de substância. Ou: a substância do domingo é a sua nudez explícita. Só divergem os que se hipotecaram à tirania do trabalho. Desconfiam do domingo como desconfiam dos dias que são ermos lugares onde se desmente a natureza humana (que, argumentam, é de atividade sempiterna). Os tiranetes usam máscaras arcanas sobre os rostos seráficos. Protestam contra o esbanjamento do tempo através da inação consagrada. O domingo despido não é o seu dia. São eles os peixes fora de água quando o domingo coabita o calendário. Pudessem virar os costumes do avesso e o domingo seria banido do calendário. Pois um domingo despido tem ressonâncias pornográficas e eles são tutores dos bons costumes. Para salvação da espécie, não passam de um punhado de tresmalhados que ainda vivem agarrados às saias de um passado que não está esquecido porque os livros de História o previnem. Os demais prestam tributo à vez semanal do torpor. São eles que despem o domingo, devolvendo-o nu aos demais.

24.5.21

Falsa partida

Sharon Van Etten & Angel Olsen, “Like I Used To”, in https://www.youtube.com/watch?v=5ibj87fwRaM

Os concorrentes atiram-se apressadamente à água. Ainda não era para contar. O juiz responsável pela casa da partida sibilava o apito, ainda mais furiosamente, para os concorrentes saberem que tinha sido falsa partida. Mas os concorrentes, cegos pela sua demanda, não ouviam. As braçadas ritmadas levavam-nos para longe. 

As braçadas dos concorrentes levantavam a água do rio que se aformoseara para os receber. Não é todos os dias que atletas de primeira água emprestavam os seus corpos ao rio. Bem podia o rio ecoar os sonoros protestos do árbitro da partida, que todos ouviam menos os concorrentes que continuavam a sua safra. Mas o rio – dizia-se naquela cidade – só falava com os poetas; ou melhor: só os poetas é que conseguiam ouvir o rio. Os concorrentes, alheios à poesia e sabendo que o rio era apenas um instrumento da sua demanda, estavam quase a chegar à boia onde faziam a viragem de regresso a terra. 

Visto em jeito de panorama, o efeito dos concorrentes a sulcarem o rio com as suas braçadas competitivas parecia um cardume que aflora à superfície e peleja pelo melhor lugar. A sorte dos concorrentes é que, ao contrário dos peixes em extático arremedo beligerante, não correm o risco de serem abocanhados por gaivotas esfaimadas. E lá prosseguiam, as braçadas trazendo-os para a meta, mal sabendo que o esforço seria decretado inglório pelos juízes da competição.

Quando puseram pé em terra, foi-lhes dito que tinha havido falsa partida. O concorrente que chegou em primeiro lugar não estava em si. Todo aquele esforço em vão, enquanto recuperava as forças extemporaneamente gastas, o dorso dobrado sobre as pernas. O favorito riu-se à socapa: a prova correra mal, mas não tinha contado por causa da falsa partida. Podia ser que na repetição conseguisse confirmar o favoritismo. Depois de recuperadas as forças, o concorrente que cortou a falsa meta no falso primeiro lugar quis saber por que fora decretada falsa partida. Responderam-lhe, em lacónicas palavras, que o sistema descobrira que alguns concorrentes se anteciparam uns milésimos de segundo à ordem de partida.

Foram esses milésimos de segundo da falsa partida que lhe faltaram para averbar a vitória a sério, quando a competição foi repetida. O favorito conseguiu confirmar o estatuto. Ficou provado que fora mesmo falsa partida. E os arautos das iniquidades descobriram mais um filão para provarem que a vida, e o mundo em que ela medra, são o húmus de uma tremenda injustiça.

21.5.21

Dos nomes sem sentinela (short stories #322)

Badbadnotgood, “Lavender” (live at KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=pwrhDEEynfY

          Os nomes são torpedeados na enseada onde se ajeita a noite. Correm num ecrã, a uma velocidade vertiginosa. Dizem: se ao menos fossem rostos em vez de nomes. Como se os rostos fossem substitutos dos nomes. Que se desenganem os que tamanha coisa propõem. Os rostos não correspondem a nomes. À falta de correspondência, uns e outros são sabres anónimos que pesam sobre os pesadelos, como se todos esses nomes rivalizassem com todos esses rostos que vão passando (agora vagarosamente) pelo palco onde se situam os pesadelos. Todos estes nomes são inúteis. Todos estes rostos aspiram a sê-lo, enquanto teimarem numa ópera bufa de que são vítimas inocentes. Gostava de saber do paradeiro de todos estes nomes sem sentinela – escuto em surdina, uma voz povoando o espaço que, todavia, é minha pertença única. Não sei porque sussurra essa voz. Talvez não seja descabido acenar com a hipótese da servidão (que não é, convém acentuar, sinónimo de serventia). Os nomes percorrem o espaço sideral sem serem estrelas. Ao menos ficam a saber que também não são prestáveis para estrelas cadentes. Essa foi uma função que nunca intuí: quem quer ser estrela cadente? Alguns dirão: antes ser estrela por uma brevidade, ainda que em estado de pura decadência, do que nunca ter sido estrela. Contesto a linha descontínua de raciocínio. A decadência é o portal da finitude. Quando ele é usurpado, ninguém fica para testemunhar o que é sê-lo. Uma estrela cadente deixou de ser (estrela e, depressa se confirmará, cadente). Provada a fragilidade estrénua das pessoas, sobretudo das que aspiram a transcendência, sobra um quase nada desprovido de nomes. Ao menos, esses não podem arrebatar a aridez de um lugar que fica à míngua de sentinelas. Antes que o tempo nos derrote, esqueçam-se os nomes (e os rostos) sem sentinela.

20.5.21

Uma farsa não se conta em dois dias

Preoccupations, “Memory” (live at KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=RhTQHdW0JsM

Tinha treinado para ser déspota. Tal era a imagem que tinha de si. Era, aliás, motivo de vaidade. Era, ao mesmo tempo, uma patologia não autorreconhecida: era como se ser déspota fosse condição recomendável.

Os assuntos não eram participados. Eram decididos por ele. Unilateralmente. O déspota exultava por comunicar os assuntos que já tinha decidido. Considerava uma sublime manifestação das suas credenciais democráticas e de respeito pelos subordinados. Pois todos eram subordinados e assim eram tratados pelo déspota.

No entanto, ninguém se lembrava como foi possível o déspota açambarcar todo aquele poder. Ninguém se lembrava se foi eleito ou se foi fautor de um golpe palaciano. Ninguém sabia dos estudos do déspota. Ninguém lhe reconhecia carisma. Mas todos o respeitavam como se fosse um letrado com dotes acima da média, um supino condutor de homens. Talvez não percebessem que este raciocínio contaminado explicava o que eles não conseguiam explicar. Aquele era um lugar composto por gente pusilânime. Os súbditos confundiam temor com respeito. Só num lugar destes é que seria possível um farsante ocupar o poder durante a longa temporada sem prazo de validade. 

Neste lugar, havia palavras que tinham sido banidas dos dicionários, por ordenança do déspota. Quem as dissesse em público era notificado para um julgamento sumário sem direito a contraditório. Uma dessas palavras era “farsa” (e as suas derivativas, como “farsante”). O déspota temia que “farsante” fosse a linguagem codificada para o retratar. E temia que “farsa” fosse a súmula do lugar que ele conduzia com mão de ferro.

Certo dia, chegou aos ouvidos do déspota que um mecenas da cultura, distinto homem de negócios que ficou conhecido pela generosidade e pela filantropia, dele disse palavras que superaram as cobras e os lagartos. O mecenas teria dito, em território forasteiro, no exílio que escolheu para fugir das perseguições soezes, que uma farsa não se conta em dois dias. À distância, com os dentes iracundos a mostrarem o desejo de apanhar o dissidente pela canela, o déspota protestou. O mecenas corrigiu. Mandou dizer que o que queria ter dito é que uma farsa não se monta em dois dias. 

O déspota foi acometido por uma arritmia e esteve perto de deixar de o ser.

19.5.21

Segunda parte

Rádio Macau, “Uma Questão de Tempo”, in https://www.youtube.com/watch?v=tzpOKsC8lZs

1. O ilusionista esqueceu-se das peças do puzzle. Até a própria serpente anda à solta, admirada com tanta liberdade. As pessoas da entourage do ilusionista acreditavam que o homem tinha um elixir da juventude escondido. Nunca lhes ocorreu que a genética também é propensa a contratempos.

2. O tradutor de mandarim foi apanhado no pátio a chorar convulsivamente. Teimava em falar em mandarim, só em mandarim, fazendo de conta que estava esquecido do idioma mátrio. Um amigo desconfiou que era o tradutor de mandarim a tentar esquecer as convulsões que se atravessavam na sua vida. As convulsões vinham alinhavadas no idioma mátrio.

3. O arrumador de carros andava sempre com um livro debaixo do braço diretor. Os senhores engenheiros que ali estacionavam limitavam-se a acenar com a “moedinha” antes de irem à sua atarefada e muito importante vida. Um dia, um conhecido ator estacionou o automóvel. Quando viu o arrumador na posse de um livro (Heidegger, ainda por cima), o ator ofereceu-lhe uma nota de cinquenta euros e confessou, admirado: “este é o tamanho da gorjeta que merece por ter tornado o meu dia num bem tão precioso.”

4. Antes que a noite fosse omissa, as raparigas foram beber mais um shot. Era noite das raparigas. (Ou deraparigas, acabaram a noite sem se decidirem.) Não queriam a companhia do sexo masculino. Os rapazes, sabedores da discriminação, feridos no seu imenso garbo masculino, foram em demanda de outras mulheres. É nestes pequenos retrocessos que se sutura a inferioridade masculina.

5. Sem saber da matéria confessada, o sacerdote livrou-se da sotaina e dirigiu-se ao lugar da cidade onde havia os melhores concertos de música progressista. O sacerdote só mudava de roupa. Levava consigo todo o lastro metafísico. Segundo ele, não havia incompatibilidade entre a música moderna e o catecismo (por mais que parecesse óbvia a contradição): “se fosse vivo, Jesus Cristo andava a abanar a cabeleira em concertos de post punk”, recordou.

6. Uma sereia submergiu na doca e assentou os cotovelos na madeira untuosa do cais. Olhava em redor, deslumbrada com o silêncio e com o deserto em que a noite se transformou. Ao longe, um vigilante notou a silhueta que se desenformava das águas lodosas. Não fosse pelos muitos Martini que tinha bebido, ia jurar que era a silhueta de uma sereia (muito embora só medisse a parte do corpo que tem afinidades humanas). Não contou a ninguém, antes que o tomassem por ébrio e perdesse o emprego.

7. Era com apego que os amantes entrelaçavam os dedos. Faziam-no às escondidas, que temiam ser descobertos por pessoas dos seus conhecimentos – a probabilidade era elevada, pois ambos eram “figuras públicas”. Juraram que deixariam de se encontrar. O desejo seria reprimido pelo estatuto e pela urgência em manter as veias da estabilidade e as aparências de que é feito grande parte do mundo que coabitam. Eros não perdoou e sobre os amantes lançou uma maldição: nunca mais haveriam de amar (no sentido físico do termo). O líder do partido da extrema-direita já não precisava de castrações químicas. Tinha Eros como aliado.

8. A serpente andou perdida pelos baldios. Com sorte, descobriu o paradeiro do ilusionista. Mas o ilusionista nem sequer sabia o que era uma serpente. 

18.5.21

Para que lado fica o poente?

Cage the Elephant, “What I’m Becoming”, in https://www.youtube.com/watch?v=oerwijS1JOc

As montanhas crescem a despeito da tempestade. Os pés avançam no meio do nevoeiro intangível. Avançam, sem saber o destino. Só sabe que não pode interromper a demanda; não sabe porquê. Avança contra a intempérie. O corpo irrompe contra o vento. Mas já mudou de rumo e o corpo tem sempre o embaraço do vento que murmura uma ladainha ininterrupta: “não sairás daqui sem dano. Não sairás daqui sem dano.” (A segunda advertência espaçando cada sílaba, para nenhuma ficar ininteligível.)

A água da chuva torrencial escorre pelas ladeiras, formando riachos onde não existiam. É outra contrariedade. Já não tem os pés como partes sensíveis, tanta a água fria que se embebeu na ossatura. Mas ele não pode parar. Não agora, sobretudo agora, que a tempestade tomou conta de um par de graus na medição da sua intensidade. Sente que o corpo é um inerte atirado contra as paredes de uma centrifugadora. É como se a sua vontade tivesse sido dissolvida na água colossal que caía de todos os lugares. Até das entranhas da serra a água subia à superfície, como se a água subterrânea considerasse iníqua a repressão enquanto a água demais se afidalgava numa coreografia estonteante, conferindo o reinado aos elementos irascíveis.

Ele só perguntava: “para que lado fica o poente? Para que lado fica o poente?” (A segunda interrogação espaçando cada sílaba, para nenhuma ficar ininteligível.) Uma voz, em surdina, desenhava meticulosamente a palavra “poente”, letra a letra, para que nenhuma parcela da palavra ficasse sem paradeiro. Devia ser um sinal. Seguiria esse sinal. Podia ser que o labirinto que o sitiava tivesse uma porta de saída na direção do poente. O ar plúmbeo impedia a localização empírica. O poente seria para um lugar qualquer. Ele não sabia qual.

Se ao menos soubesse quanto tempo fora reservado pela tempestade, podia esperar pelo tempo dela para se refugiar numa gruta e ficar a salvo dos mananciais de água que o cercavam. Não sabia. Já tinha idade para ter aprendido que as imprevidências são próprias dos que se julgam audazes, mas não passam de inexperientemente loucos.

Dava azo à voz tonitruante (para ver se se fazia ouvir mais do que a tempestade) e perguntava uma vez por minuto: “para que lado fica o poente? Digam-me, para que lado fica o poente?” E prosseguiu, errante, antes que a noite tomasse conta do poente. Haveria de chegar ao poente antes que o poente provasse a sua condição. Não seria uma tempestade medonha que cuidaria da capitulação. Já passara por provações maiores.  

17.5.21

Efémero e meio

Wolf Alice, “Smile”, in https://www.youtube.com/watch?v=NV39h7GHDYs

As espingardas estavam gastas. Pareciam fartas das pessoas. Não eram elas que compulsavam o medo de quem podia ser alvejado. Também não acautelavam a loucura dos estouvados que louvavam as armas de fogo. Se ao menos soubessem que tudo tem o traço do efémero, talvez se distanciassem das espingardas. 

As espingardas eram, sem o saberem, os seus principais adversários. Se as suas intenções eram nobres para um curador da antropologia, elas eram suicidárias se as armas tivessem a objetividade de cuidar dos seus interesses. Não era o caso. Porventura tinham alma. Uma alma que era desconhecida pelos seus portadores, os desalmados que desatavam a disparar contra corpos inimigos, povoando guerras com o sangue tornado impossível.

Os beligerantes sabiam que as armas não falavam. Ou, por outra: falavam através das balas de que eles eram ordenantes. Não desconfiavam que as armas tinham alma. E que elas se contorciam com dores de cada vez que eram disparadas para selar a morte de alguém. Mesmo não sabendo das vítimas o nome, eram as espingardas que garantiam as lágrimas obituárias. Eram as armas, e não os seus portadores, que se transcendiam num módico de humanidade.

Todos sabiam que o prazo de validade de uma espingarda excede a esperança de vida do seu portador. O material metálico garante a longevidade das espingardas (desde que sejam bem tratadas, e os inscientes que delas cuidam não poupavam no esmero – no esmero que não dispensavam a nenhum humano). Se não fosse pela longevidade das ligas metálicas usadas na sua fabricação, a longa vida das espingardas era caucionada pela efemeridade dos beligerantes. Uma espingarda nunca sabia se ficava órfã no dia seguinte. A verdade é que nunca ficava. Por um soldado morto no palco dos combates havia sempre um substituto, e sem demora. As espingardas não tinham dia de descanso semanal.

Desta métrica surrealista não se safava o mundo hipotecado pela insanidade banal. Só se salvavam as espingardas, vítimas inocentes da demência dos Homens, elas que eram o vazadouro das lágrimas em vez do festim dos loucos. Estes, fingindo não saber o que é efémero e como dele são reféns diletos, prosseguiam a cavalgada sem travões com o abismo a dois passos de distância.

14.5.21

As mãos artesãs (short stories #321)

Hotchip, “Huarache Lights” (live at BBC 6 Music Festival), in https://www.youtube.com/watch?v=pnGlTYchF-c

          Este é o combustível que ampara o tempo doloroso. As mãos; as mãos que se fazem artesãs e lenificam o corpo outro. As mãos que se tornam um sortilégio, sem paga à espera, apenas um despojamento que alimenta quem delas tira partido. Não se diga que não há remédio que nos livre da decadência. A meio da erradicação da claridade, um vulto proclama a libertação. Não há velharias que tinjam o dia com o amplexo do medo. A decadência virá no muito depois. Não se pressagiam os dias gastos em modos compostos pela ternura desenhada pelos dedos meticulosamente distraídos das mãos artesãs. Adivinha-se: este é um artesanato que ninguém desdenha. E até os desertores que, refratariamente, abjuram outras mãos, não recusam a quimera que é povoada pelas mãos artesãs. São elas que dispensam as palavras. São elas que se substituem às falas que, no palco onde se arbitram as comparações, são inexpressivas. As mãos cingem o corpo aos seus deslimites. São elas que trazem o corpo para o exterior de si, numa partitura onde as regras não têm aceitação. Por isso não há paga que chegue para compensar as mãos artesãs. A não ser que se devolva o jogo e o fautor do artesanato seja ungido pelas outras mãos, agora artesãs. Pois as mãos que se entretecem neste artesanato colhem em si os rudimentos do seu próprio deleite. A cartografia do corpo outro é uma dádiva; a paga não esperada que nem assim motiva as mãos artesãs. Na sua voz que é o aveludado da pele, irradiam as bandeiras irredutíveis de uma certa humanidade que se julgava perdida no labirinto da modernidade. Não é ascetismo; há um hedonismo que não se disfarça no menear coreografado das mãos artesãs. Todos se saldam vencedores quando as mãos artesãs se emancipam das algemas.

13.5.21

As cartas que nunca escrevemos (terapia)

Moderat, “Therapy” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=qdtuF5y76Is

Coisa certa: hoje mal se escrevem cartas. Cartas como dantes, quando os dedos não tinham medo do papel e os que muito escreviam eram descobertos pelos calos que a escrita abundante pontuava nos dedos. 

Mas as cartas não ficam presas ao emudecimento. Elas perseveram no dever geral de comunicar, nas pessoas gregárias que querem saber de outras pessoas para não se sentirem vírgulas únicas no mar largo em que as palavras são navegantes. É preciso um remédio estilístico para resgatar as cartas da memória já pouco mais do que arqueológica. Devolver a lucidez ao idioma, o lugar da gramática e o hábito da comunicação sem as costuras da modernidade. 

Talvez, um chamamento para escrever as cartas que nunca foram escritas. E como sabemos inventariar uma carta que nunca foi escrita? Começamos por exclusão de partes: as que já foram escritas não se compreendem no exercício heurístico. E as demais? Não participamos na matéria dos oráculos para deles retirar a resposta. Pode ser que não passe de especulação: procuramos escrever uma carta que nunca escrevemos sem saber do destinatário, sem sequer saber sobre as palavras que serão vertidas, as ideias que lhes dão corpo. O exercício não deve começar pelo lugar-comum de identificar a quem se destina a carta nunca dantes escrita. Que seja vagaroso o débito das palavras que tiram a virgindade ao papel. No fim – a carta já escrita –, não se imponha o dever de fixar um destinatário. A carta que estava por escrever pode dirigir-se a ninguém, ou a uma personagem sem reconhecimento, ou apenas ao autor.

Nas cartas que haviam de ser escritas não podem as palavras ficar pendentes. Não podem ficar pendentes de preconceitos tolos (ou preconceitos, apenas), de medos, de sensibilidades, da dialética entre verdade e mentira. Escrevem-se, apenas. Exorcizando mitos. Refazendo o porvir. Desaconselhando partidas categóricas. Juntando com as mãos as palavras que andaram proibidas enquanto o tempo foi o embaraço dos apressados. Nas cartas que nunca escrevemos, deixamos à solta um eu que possivelmente não conhecíamos (ou que fingíamos desconhecer). 

As cartas que nunca escrevemos esperam por um gesto de audácia. O olhar desembaraçado dá o mote. O pensamento sem estrangulamentos confere outra dimensão. Ao bel-prazer dos autores, as cartas que ficaram em fila de espera vão saber como é existir fora das fronteiras dos seus procuradores. 

12.5.21

Secador de lágrimas (contextualização)

Death Cab for Cutie, “Transatlanticism” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=Nr6R98tTW0U

Circunstancialmente: desajeita-se a pele, que as lágrimas são vertidas sobre ela como um glaciar que se imorredoira. E, contudo, existe um destino para as lágrimas? Se ao menos delas se ajuramentasse o sal com mercado, haveria a suposição de uma serventia para as lágrimas. As pessoas que não são tutoras momentâneas das lágrimas depreciam-nas, avisando que delas não se espera uma foz decifrada. São as mesmas pessoas que, fora dessa circunstância, não podem dizer que não são reféns de lágrimas ocasionais.

Dir-se-á: enxuguem-se as lágrimas, que o sal que nelas se embebe é como cal vertido sobre a carne viva. Uma fonte essencial de sofrimento: da dor estimada no porão das lágrimas, à dor que se junta por as lágrimas derramadas sobre a pele a torturarem sem contrapartida. Ordenam-se os parágrafos pelo critério avulso. Se uma lágrima furtiva se despenhar pela curvatura do rosto, que não seja reprimida. Por ela também fala a liberdade que se expressa num contexto desenhado no estirador.

Propõe-se um secador de lágrimas. Um dispositivo entranhado que desalma as pessoas, congeminado a sequidão dos canais lacrimais. Como se fosse possível a castração das lágrimas, à qual correspondesse o esvaziamento da alma. As ideias opõem-se. Umas recolhem o secador de lágrimas como imoderada inovação em prol da espécie. Outras insurgem-se: não é a extinção das lágrimas que garante que elas sejam banidas no mais profundo das almas. O secador das lágrimas é um ardil. Secá-las-á no verniz exterior, deixando o caudal interior das pessoas inundado pelas lágrimas obturadas que foram vertidas para dentro. 

A tirania do grupo não acode à lucidez. Há pessoas que continuam a insultar a autonomia de cada um, sujeitando-os ao devir coletivo que se inscreve no mito categórico que, sendo mito, continua por provar. Oxalá deixassem as lágrimas escolher o seu caudal. Oxalá fossem dinamite os modos impostos que cerceiam o vale lavado das lágrimas. Esses ascetas que se fingem prediletos curadores do devir comum deviam ser aprisionados. Aprisionados no interior das suas masmorras mentais, lá, onde as lágrimas foram extintas do vocabulário e as almas se resumiram à minimalista expressão do irrisório. 

Os secadores de lágrimas deviam ser facultativos.   

11.5.21

As partidas do arco-íris

 

Nils Frahm, “Toilet Brushes – More” (live in London), in https://www.youtube.com/watch?v=Aln6DztAsMQ

Não era o infinito que alojava a felicidade. Era o que asseguravam os poetas (pelo menos). De onde viessem as falas que eram a pontuação da incógnita, era só esperar que um arco-íris derrotasse a solidão do céu. De acordo com a doutrina dos poetas, seguir a peugada do arco-íris era o segredo. Na sua extremidade, encontrava-se a morada da felicidade.

Mas havia quem contrapusesse: o arco-íris tem duas extremidades; se a felicidade se encontra na extremidade do arco-íris, de que extremidade se trata? É ao acaso? Ou as pessoas correm o risco de irem ao engano, apostadas em mapear a localização de uma das extremidades do arco-íris para darem conta que aquele é um lugar ermo para a existência de felicidade?

Os poetas não respondiam ao desafio. Não estavam para perder tempo com os astronautas da realidade concreta. Não queriam ser peticionários da meação dos termos em que se compõem as vidas reais. Chamassem-lhes alienados, que os poetas agradeciam o elogio. E não havia memória de um poeta a palmilhar baldios em demanda da felicidade. Os poetas ainda não cuidaram do inventário da felicidade. Deixam-no para as outras pessoas.

Mas havia quem insistisse no contraditório: se os geógrafos da felicidade se escondem na metáfora do arco-íris como sua morada, estão em condições de costurar as baias da felicidade? Não se aceitassem as petições de princípio que não pudessem ser sujeitas a prova. E por prova, queriam dizer a prova tangível, a elaboração cuidada que oferecesse uma noção incontestável do que se pretendia provar. Os poetas são, possivelmente, um logro. Falam do que desconhecem e oferecem-se como catedráticos de uma doutrina que nunca souberam provar. São especuladores natos.

Os poetas não precisavam de contestar a acusação. Não precisavam de provar a felicidade. Pois a felicidade não se conjetura. Ela está no arco-íris que se congemina em cada pessoa. Quando o arco-íris se anuncia aos olhos de todos, é a soma exuberante da felicidade dos que a ela não se opõem. É então que irradia como manifestação que se opõe às pessoas. O arco-íris não passa do procurador dessa felícia.

10.5.21

Em vez da vertigem

The Limiñanas, “Russian Roulette”, in https://www.youtube.com/watch?v=Qxe3CvjZ8q4

Há um cabo que desafia o fim do mundo. Antecipa-se ao fim do mundo, segundo os marinheiros que já experimentaram esse lugar mítico. Os ecos dos contos dos marinheiros perduram na memória coletiva. As pessoas, fazendo fé na memória dos marinheiros, e tendo-os como pessoas confiáveis por causa das hostilidades que enfrentam, nunca os puseram em causa.

Também se conta que o cabo é pouco frequentado pelos locais e não é por ser um lugar inóspito. Em tempos de que já não se conserva memória, um padre suicidou-se quando se atirou do promontório para o vazio. O corpo nunca apareceu, devorado pelo mar iracundo que se desfaz contra os rochedos persistentes. Conta-se que o padre se enamorou por uma viúva ainda jovem. Temendo o escrutínio dos aldeões, não quis nada com a vida. Mal sabia que os aldeões não lhe perdoariam, nas exéquias contumazes, por ter feito aquela mulher viúva pela segunda vez.

As pessoas acreditavam nas histórias que eram herdadas da História. Não lhes passava pela cabeça desmentirem as narrativas dos antepassados. Que interesse teriam os antepassados em doar uma liturgia mendaz aos que viessem depois? Só havia um punhado de aldeões que desafiavam a mitologia que cimentava a pertença. Eram os párias, gente malquista pela maioria sossegada dos habitantes do lugar.

Os párias não se queriam comprometer com o legado dos antepassados. Preferiam ser eles a construir a argamassa que os fazia aderir a algo. Não eram os costumes enquistados, que consideravam banais. Era um olhar que prescindia das reservas mentais e da anemia de quem se limitava a reproduzir as medidas arcaicas. Não tinham muitos amigos, estes párias. Mas nem assim se sentiam acossados. Uma pertença é ao lugar e não às pessoas que o habitam. Se as pessoas exibem uma dança diferente, não é motivo para um exilio forçado. Os lugares contam mais do que as pessoas que os habitam.

Era a custo que os párias faziam vida normal. Os outros, poucos lhes falavam. Não tinham direito a desconto no comércio local. Na distribuição de favores com o alto patrocínio do edil, para os párias sobrava a discriminação. Não capitulavam. Era preferível ter a cerviz intacta a transigir com a meação do fingimento. Em vez da vertigem, eles preferiam a clareza dos dias que se pressentia no oráculo sem nome.

7.5.21

O jornalista que (veio-se a descobrir depois) estava a soldo da Volvo

Efterklang, “Modern Drift”, in https://www.youtube.com/watch?v=vVj3rTWfVVw

Mote: “Suspeito de assassínio foge à polícia, mas acaba espetado na frente de um camião Volvo.”

O sonho do jornalista era ser proprietário de um Volvo. Remediado, contudo, os proventos da profissão mais a carteira de despesas (que era considerável) não deixavam que o sonho passasse de sonho. Tinha conseguido angariar umas parcas poupanças mal se libertou de alguns compromissos financeiros, à medida que uns biscates inconfessáveis trouxeram algum desafogo às finanças pessoais. Mas as poupanças ainda não chegavam e o sonho do Volvo continuava adiado.

Todavia, era um sonho que apertava o sino da angústia. Ele, o sonho, mesmo à mão de semear e a prudência aconselhava a adiá-lo por algum tempo. Não seria muito tempo – mas a medida do tempo é sempre subjetiva. Só a ideia do adiamento era insuportável. O jornalista desconfiava que o tempo conspirava contra ele: este peso sobre a jugular, como se o sonho estivesse a uns centímetros e a suposição de que o tempo seria um vitral estilhaçado se não se cumprisse antes do tempo.

O jornalista teve uma ideia. De visita a um stand da Volvo, proporia uma contrapartida: um desconto na compra do Volvo dos seus sonhos contra a disponibilidade para fazer publicidade indecentemente mal disfarçada no meio das notícias da sua lavra. A proposta foi submetida à consideração superior. Para sorte do jornalista (que continuava a apostar na conspiração do tempo contra a sua saúde mental), a resposta não demorou. A Volvo aceitava vender uma viatura de serviço por metade do preço, com a promessa (vertida em letra de contrato) que o jornalista cumpriria um mínimo de seis notícias anuais com a mal disfarçada publicidade à marca.

Já ufano ao volante do seu seminovo Volvo, o jornalista passou à etapa seguinte: encontrar notícias onde a Volvo viesse a talhe de foice. No próprio dia, a pesquisa ofereceu-lhe a rocambolesca perseguição a um (alegado) assassínio que terminou quando este chocou contra um involuntariamente justiceiro camião que se intrometeu no seu caminho. O jornalista sondou a filmagem que acompanhava a notícia com a minúcia possível e descobriu que o camião era Volvo. Redigiu a notícia. E, em vez de escolher como título “suspeito de assassínio foge à polícia, mas acaba espetado na frente de um camião” – o que seria compatível com o manual de estilo que evita publicidade gratuita no meio de uma notícia –, ele acrescentou “Volvo” como palavra final ao título da notícia.

E ninguém estranhou o título da notícia, como ninguém desconfiou que o jornalista estivesse a soldo da Volvo.

(Declaração de interesses: o narrador não é proprietário de um Volvo, nem o sonha ser.)

6.5.21

O jogador (short stories #320)

Mew”, Conforting Sounds” (live in Beijing), in https://www.youtube.com/watch?v=pJZAj9pZic0

          Arrasta-se pelos interstícios do medo, o jogador. Não tem vontade de se curvar perante os mastins da revolta, que ameaçam com os caninos arregalados como lanças afiadas à jugular. O jogador joga. Em doses variáveis: umas vezes, é modesto ao lançar os dados à incerteza; outras, tomado por um frémito cuja origem desconhece, joga tudo, numa cartada demencial que pode deitar a perder tudo. E até pode perder a vida. O jogador não se intimida. Sussurra, só para ele ouvir: “assim como assim, a vida será perdida um dia destes.” E, altivo, atira: “eu arrisco. Eu arrisco.” – a segunda frase como se fosse o sublinhado da primeira. Arrisca. Contra os obuses da incerteza, dando de si um pedaço de corpo como caução da desfeita. O jogador não se arrepende. Conserva algumas cicatrizes que o fazem recordar pleitos mal rematados. Uma vez disse a alguém que se inquietava com a sua audácia: “se me entrego à monotonia, não sei se resisto.” O lugar-comum não era moradia onde o encontrassem. O seu passatempo preferido era desarrumar a ordem instituída. Ver a montagem do caos. Apostava contra a serenidade. Que importavam as águas mansas se através delas não saísse do mesmo tempo? Nos tempos livres, conspirava. A conspiração era a irmã gémea do jogo em que participava. À partida, não contemplava a hipótese de cartas sem provimento. Os trunfos podiam ser desmatados com o verbete da vontade. Pois se nem sabia das costuras do tempo. Nem das bocas seladas que se ajuramentavam à sopa repetida dos estimados zeladores dos hábitos. O jogador apostava contra os hábitos. Sabia que as probabilidades jogavam contra ele. Mas continuava a subir aos palcos, pese embora a sua quase septuagenária condição. Não se podia estimar que tivesse havido um destino espinhoso a atapetar o caminho do jogador.

5.5.21

Rebelião

The The, “The Beat(en) Generation”, in https://www.youtube.com/watch?v=ustXRPke9lM

A tortura incendeia os dias contínuos. Não se adestram os sentidos para a ira sem freios que adoenta tudo em redor. A cada passo, um abismo escondido. Se as armas terçadas fossem iguais, as cicatrizes não eram um medo sem rosto. Os povoados parecem habitados por seres robotizados que não falam.

As pessoas dizem que dizem. Quase ninguém fala na primeira pessoa. O paradeiro das palavras é uma incógnita. É como se tudo o que é dito fosse de autor anónimo e sucessivas camadas de éditos se acrescentassem na constelação caótica das palavras. O idioma esvazia-se. Deixa à mostra os pescoços enrugados que carregam o peso do tempo. Por isso, a tortura em silêncio que assenta na pele das pessoas. Não dão conta. Só quando acordam e pressentem mais uma cicatriz a entrar na pele.

No penhor do passado, ninguém invalida contratempos. Todos fingem. Todos habitam a ideia ilógica de si mesmos, como se o disfarce das suas personagens fosse suficiente para aplacar as dores. Como se fosse suficiente para remediar a tortura que é o nome vão dos pesadelos que não têm exceção. Tudo de esconde. E, todavia, não há segredos em contumácia. Os olhos emudecem. Preferem o silêncio para não se queixarem da tortura.

A rebelião insinua-se num patamar que parecia inacessível. Em vez de juras, o futuro enche-se do espaço vago em que são sabres embainhados que falam em vez de palavras. O medo deixa de ser a geografia. Aprende-se a encontrar a ignição de abalos sísmicos que ajudam à refundação da medula mais funda. As vigas que acolhem a ossatura tornam-se densas, ganham calo. Pois a rebelião ajuda a derrotar a tortura inominável. Se houvesse um pintor nas imediações, teria o mote para uma aguarela flamífera.  

Toda a cólera se extingue no tribunal dos silêncios. É assim que funcionam as rebeliões. Mostram-se como um avesso que não tinha sido pensado. São como a lava bolçada que não estava inscrita no manifesto do dia. E, porém, sedimentam uma fala que se ajuramenta a tinta-da-china.

4.5.21

O chapéu sem chuva do revisor dos comboios (antinomia de uma lição de moral)

Gorillaz, “Momentary Bliss” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=y_MBU6bGsJ0

Dizem: “cara de poucos amigos” para retratar o cenho do revisor dos comboios. E porque dizem “cara de poucos amigos”, a não ser se for para insistir na tecla das quantidades como sinónimo de fortuna? Não seria de melhor tom aquiescer que é preferível ter poucos, mas bons, amigos do que muitos amigos que, provavelmente, fazem o papel de rato ao primeiro contratempo?

O revisor poderá ter cara-de-outra-coisa-qualquer. Que fique devidamente registado. Dele não se sabe o que é um sorriso. Mas quem espera que um revisor que passa o dia de trabalho a verificar a validade dos títulos de transporte exiba um sorriso fácil? Aos críticos, talvez não tenha ocorrido o exercício pedagógico da troca de lugares. Talvez deixassem de ser messiânicos com o rosto do melancólico revisor dos comboios e se lembrassem de indagar os contornos dos seus rostos próprios. 

Alguém reparou, a meio de uma manhã que não se resgatava da tristeza da invernia, que o revisor dos comboios se fazia acompanhar de um guarda-chuva. Não seria de esperar o contrário, pois aquela era uma manhã destemperada por chuva copiosa. Um estroina, contrariado pelo repetido tema de conversa ser o revisor (mas só quando se certificavam que o homem tinha abandonado a carruagem), deixou cair o seguinte: “se tivessem reparado que o revisor também traz guarda-chuva nos dias de sol...”

Eram muitas as observações sobre o revisor dos comboios, mas ninguém tomava a iniciativa de dirigir as perguntas que enchiam o imaginário dos utentes dos comboios de dúvidas. Até que um dia, uma sexagenária meteu parêntesis no cansaço matinal de quem conta os dias até à meta da reforma e abordou o revisor quando este pediu o título de transporte:

O senhor revisor anda sempre com um guarda-chuva e hoje os meteorologistas não preveem chuva.

Tenho as minhas razões, minha senhora – retorquiu o revisor, num tom tão polido que deixou os circunstantes ainda mais atónitos.

Uns dias depois, comprovaram a utilidade do guarda-chuvas. Um mariola tentou fugir ao ser descoberta a invalidade do título de transporte. O revisor deu um passo em frente e, com destreza circense, lançou o cabo do guarda-chuva para a frente e alcançou o mariola pela gola. 

Doravante, o mariola nunca mais arriscou ser apanhado à má-fé num comboio. Só a vergonha de ouvir a gargalhada tonitruante de um halterofilista, enquanto dizia, em voz efeminada, “olha o mariola, apanhado pela gola!”, foi terapia suficiente para não voltar a delinquir. Já o revisor só queria que os dias passassem sem ter de usar o guarda-chuva – e não era por ódio à chuva.

3.5.21

Este que não sou eu

Max Richter, “On the Nature of Daylight”, in https://www.youtube.com/watch?v=rVN1B-tUpgs

O eco que vinha do espelho não era a representação da sua imagem. Não se reconhecia. Dizia: “este que não sou eu, aqui diante do espelho. Forasteiro de mim mesmo.” 

Os dias lacunares transfiguravam-se em palcos distantes. E ele, estranho por dentro de um corpo reconhecido, como se houvesse uma espada a separar os dois hemisférios e se sentisse uma amputação do que era. Ou, pelo menos, do que julgava ser. Não podia recusar a possibilidade de tudo ser um erro de perspetiva. Ou seja: que o lugar de onde mergulhava no magma fosse um mau ponto de partida. E tudo o resto viesse contaminado por um ângulo distorcido, as imagens que passavam no olhar apenas como uma farsa, não reconhecida. 

Ao acordar, não se lembrava de nada. Dos sonhos e, o que era mais angustiante, dos dias pretéritos. Era como se o coma tivesse sido o estado anterior e do coma sobrasse um vazio sem espaço por preencher. E, todavia, todo aquele vazio era um espaço. Não tolerava os lugares vazios. Sempre dissera que os lugares existem para serem espaços ocupados. E ele sentia-se um lugar desocupado, uma matriz que negava ser o que não sabia ser.

Ou então, fora apenas um pesadelo. Uma viagem pelas águas tumultuosas que se despenhavam num abismo medonho. E, no remoinho restante, o corpo atirado, convulsionando-se contra as marés fáceis que não têm vencimento. Ao fundo, no pantanoso lugar onde tudo se aquietava, um espelho disfarçado de vulto. E o eco do espelho, ao início uma silhueta disforme, irrepresentável, para aos poucos se avivar nos contornos de uma pessoa que não era ele. Mas era ele, parado diante do espelho, amedrontado pelo irreconhecimento.

Preferia que tivesse sido um pesadelo. Não o podia atestar. Dos pesadelos só sabia existirem e por eles era sobressaltado. Raramente se lembrava das costuras de um pesadelo. O vazio do passado parecia caucionar a deslembrança. E era através da deslembrança que prefaciava aquele pouco mais do que vulto parado à frente do espelho, aquele tão assustado com a imagem reverberada pelo espelho. Aquele que não era ele. Procurou no avesso do espelho, como se precisasse de uma veia de segurança, uma prova de identidade.

O avesso do espelho era baço. Não deixava ver nada. E ele sossegou-se: era ele, no avesso do espelho.