Um mandamento estatelado ao comprido. Talvez por decadência. Ou por irrelevância: as pessoas passavam ao lado do mandamento puído e não davam conta do corpo inerte estendido no asfalto corroído. O corpo inerte era causa suficiente para a indiferença dos passeantes.
O mandamento deixou de mandar. O que dantes convocava um rosário de oxalás (oxalá deixe de ser mandamento; oxalá as pessoas deixem de lhe dar importância; oxalá caia em desuso; oxalá seja revogado) era agora féretro deixado nas margens da irrelevância. O mandamento já não se podia chamar mandamento. Era outra coisa qualquer, nestes preparos apenas uma peça museológica. Ajudaria a compor as memórias da memória. Daria para uma lição. Que não se voltasse a erguer das cinzas, deixando de ser simulacro de Fénix para embainhar a forma dentro da sepultura.
A notícia correu, rasa ao chão para não levantar a poeira da memória ainda desorganizada. As pessoas tinham medo que a notícia da extinção do mandamento fosse prematura. Receavam que o mandamento tivesse capacidades sobrenaturais e fosse resgatado dos braços da morte, marcando orgulhosamente presença no panteão dos vivos. Ou as pessoas estavam cansadas de mandamentos e o rumor, ciciado de ouvido em ouvido, de que um mandamento perdera autoridade era como um estandarte de ânimo cravado no chão do futuro. Em vez de terem um número indeterminado de mandamentos sobreponíveis à sua autonomia, tinham esse número menos um. Este era daquele domínios em que todos ficam a ganhar ao ativarem a subtração.
O sussurro imperativo era o recibo da discrição anotada à margem do verbete daquele mandamento. Rasgaram-lhe o traje. O mandamento não conseguia ser alguém vestido com a nudez absoluta. Ninguém quis ser testemunha dessa nudez. Não foi por elegia ao mandamento extinto. Um corpo despojado de vida merece o pudor da indiferença.
O sussurro montou-se numa onda irreparável. Deixou de ser sussurro, continuando a propagar-se, nos idiomas todos, por todos os lados onde havia idiomas por falar. O mandamento foi celebrado porque estava extinto. E o sussurro, já sem medo da inviabilidade do rumor, deu a vez à voz com bainha inteira. Que, ébria no êxtase de quem se desembaraçou de um mandamento, cantava o que mais podia cantar.
(Pensamentos avulsos após a peça de teatro “As Grandes Comemorações Quase Oficiais do Período Histórico Habitualmente Conhecido como PREC (Processo Revolucionário em Curso)”, encenação de Gonçalo Amorim, Teatro Carlos Alberto, 6 de outubro de 2024)
Depois de quase três horas e meia de fragmentos que mergulhavam no PREC (“precformances”), dois dias depois ainda estou para perceber se assisti a uma peça de teatro ou a um comício. A peça é sobre a nostalgia do PREC, misturando ingenuidade com um embrião de violência, com uma entrega plena à intervenção política. Não vale a pena voltar à vexato quaestio da fusão entre arte e política, ou de que como a arte pode ser invadida pela ideologia política, tornando-se instrumento da política. Já escrevi no passado e reforço a minha posição a cada peça em que a cumplicidade é visível: a arte expõe-se à (auto) decadência quando é instrumentalizada pela política.
Aprendi com a peça que os que pactuam com o regime em vigor são burgueses, vendidos ao capitalismo (ou por ele hipnotizados) e metidos num largo baú onde medram como “fascistas”. Depois de ter sido informado que fascistas e liberais são da mesma cepa, concluí que se não nos mobilizarmos contra o grande capital que nos oprime somos coniventes com um fascismo disfarçado de democracia. E eles, os saudosistas do PREC, que deixaram passar em branco os mandatos em branco assinados pelo líder do COPCON, eles que usaram a palavra “democracia” à exaustão para, quase no fim, defenderem a “ditadura do proletariado”, num ativismo arrancado ao fundo da alma, ensinaram como a democracia burguesa continua a condenar os explorados a serem explorados. Estes saudosistas do PREC, se pudessem mudar o curso da História, não teriam permitido eleições e teriam demitido (ou condenado a degredo, ou a cárcere) uma parcela considerável do povo. Justamente todo aquele povo que foi condenando os partidos da extrema-esquerda à insignificância em sucessivas eleições.
A peça incluiu tragédias narradas que tiveram o efeito Photoshop previsível para quem se amordaça num autismo intelectual. Os tribunais populares, porque a justiça que se aprende nas Faculdades de Direito é uma justiça enviesada, malsãmente burguesa, que se inclina sempre a favor dos poderosos. Ou a cena, contada com uma elevada intensidade dramática, do homem que, enquanto rapaz, celebrava o primeiro de maio de 1980 às cavalitas do seu pai, evocando as cabeças de carneiro empaladas como metáfora do que os revolucionários gostariam de fazer ao então primeiro-ministro, Sá Carneiro. E como a personagem ajuizou o desfile de cabeças de carneiro decepadas como uma “encenação carnavalesca”. Poderia discordar e considerar a encenação macabra, ou seria condenado ao açaime se me tivesse levantado em pleno ato para propor a correção do qualificativo? No momento de elevada intensidade dramática, o ator que sai da personagem de toupeira e encarna na pele de ator com um nome próprio desfila os nomes que serviram de inspiração para a “democracia” que o coletivo celebrou na peça. Não faltaram Baader e Meinhof! A páginas tantas, num momento de maior exaltação, não aceitou que lhe digam que é de extrema-esquerda.
No fim da récita, olhei em redor, com a ajuda das luzes acesas. Os aplausos foram demorados, num abraço excitado do público ao coletivo de atores (com a exceção de meia-dúzia de espectadores que saíram apressados e sem o obrigatório aplauso). Uma das atrizes gritou o pregão sacramental “fascismo nunca mais”, esquecendo-se que a peça passou grande parte do tempo a denunciar o fascismo em que vivemos. O exercício de nostalgia tinha tocado o público profundamente. Este público pratica uma espécie de onanismo intelectual: só adere às artes desde que as artes estejam politicamente comprometidas com aquilo que esse público gosta. Este viés é significativo da sua linhagem democrática.
E se fosse possível um exercício contra-factual, só para perguntar o seguinte: se a extrema-esquerda tivesse vingado no PREC, em que regime político viveríamos? Como não faço parte do proletariado, a liberdade de escrever este texto seria garantida pelos tutores da “ditadura do proletariado”, como foi defendido, sem pejo, num momento da peça?
No intervalo da récita, em conversa com uma conhecida que estranhou a minha presença naquele momento celebratório de “esquerda”, disse-lhe, em tom provocatório: “ainda bem que ainda temos a liberdade de expressão”. Disse-o sem que ela pudesse deduzir que estava a insinuar o contrário. Repito: ainda bem que a liberdade de expressão está enraizada e, apesar de algum salazarismo entranhado até aos ossos, visível em vários quadrantes da sociedade (da direita à esquerda, por mais que a uns e a outros custe admitir), é uma pedra de toque do regime. Disse-o, admito, em tom de provocação e não fiquei propositadamente agarrado a um sussurro, para perceber se nas imediações estava um entusiasmado com o tempo-volta-para-trás do PREC que acusasse o toque. Ela confessou que gosta muito de “teatro comprometido”. Fiquei sem resposta quando lhe perguntei se teria elasticidade mental para assistir a uma peça que encenasse (por exemplo) um texto de Ezra Pound.
Depois de ter assistido a esta peça, puxei a fita atrás. Tivemos muita sorte durante o PREC. Podíamos ter escorregado para um banho de sangue se as coisas não tivessem corrido bem. Ou então foi apenas um episódio de uma ópera bufa que, à distância, provoca uma gargalhada sonora. O coletivo de atores, afinal, fez-me um favor.
As luzes tremeluziam, como se conspirassem com a tempestade. Os foliões não se importavam (nem com a hesitação das luzes, nem com o troar da tempestade). Não seriam coisas menores a incomodar a intendência da folia. A sua arma era a indiferença.
Em seu desabono, era feriado religioso. As festividades que se aceitam são as da alma, de acordo com os sacerdotes que se enxameiam nas coisas mundanas da política. Era dia de consagração a deus e à família. Os foliões, indiferentes às ordenanças eclesiásticas, refugiavam-se em celebrações que os apóstolos da situação apressar-se-iam a reprovar por serem do domínio da frivolidade.
(Estes homens e mulheres que brandem a batuta dos costumes, exigindo a prescrição da frivolidade, nunca fizeram um exame interior para descobrirem aquela parte da sua existência que é dedicada a uma qualquer futilidade. Não creiam que há vidas inteiramente afastadas do endemoninhado véu da frivolidade. As vidas deles e delas terão algum recanto, ao menos um recanto, colonizado pela frivolidade. Ou não dão conta, ou fazem de conta. No primeiro caso, são apanhados na armadilha da ignorância; no segundo caso, refugiam-se na escotilha que esconde a mentira e o fingimento. Esta peregrinação interior, que recusam ser sua demanda, seria suficiente para olharem para os outros com olhos diferentes.)
Os boémios brindam efusivamente com o champanhe a borbulhar por ação do movimento dos copos que levam à sua socialmente aceitável colisão. Não se escondem do hedonismo. Estão preparados para aguentar, com indiferença olímpica, as acusações dos embaixadores das sacristias. Sabem que pagãs são as suas festividades; não contam levar ao juízo interior a acusação de heresia dos que reprovam o seu comportamento fútil numa data tão importante (de acordo com as escrituras).
A noite recebe o chão onde passeiam os foliões. Desfilam, uns atrás dos outros, os copos de champanhe, à medida que ecoam as imagens desfocadas, próprias de uma embriaguez que se instala com o consentimento da boémia pagã. Sabem que precisam de uma anestesia do mundo. Sabem que se encontram atrás do palco, como quem segreda o avesso das ondas, titulares de uma lucidez assoberbada. Não querem saber do mundo que vem nos jornais e nas televisões. Menos ainda da trela estendida a partir das sacristias. No rótulo do champanhe, propositadamente, em letras garrafais impressas a carmim, a palavra “pagão”. Antes fingirem, com a ajuda do champanhe.
Os boémios têm a esperança que o pagão pague o apagão de que precisam.
Um concerto armado sem pressa, as luzes coalhavam o suor que ia assentando nos corpos. A sala estava cheia e abafada. À medida que entrava gente tornava-se ainda mais quente. De repente, apenas a escuridão. Uma música a romper a escuridão, hipnótica, introdutória. A audiência fala este código de conduta: os músicos estavam quase a entrar em palco.
A música não era de modo a pensar-se numa entrada triunfal dos músicos. Não era o seu perfil. O carisma pode ser passageiro da discrição. Os segundos arrastavam-se, a escuridão continuava a rimar com a música hipnótica, mas dos músicos não havia pressentimento. A agitação anterior foi temperada e o gelo começou a abater sobre a sala. Vinha a calhar, que o suor prematuro já tinha assentado nos corpos. Prematuro, o suor: ainda estava por vir a adrenalina do concerto, os corpos desamordaçados para o frenesim da sua movimentação, como se fossem ateados pela música que subia a palco.
Os músicos entram em palco. Com vagar. A idade deixa marcas do passado e os corpos ficam cansados, gastos, com a desambição do tempo. Os músicos acenam discretamente para o público enquanto vão caminhando para as suas posições. A escuridão foi substituída por uma luz timorata, dando lugar a uma penumbra metodicamente instalada.
O vocalista firma as mãos no microfone, olha em redor, detém-se com mais atenção num dos sectores da sala e acena em tom concordante. Balbucia, com a sua voz cavernosa em provocante, “boa noite”. É o mote para a descarga de sons que desmobiliza a penumbra. As luzes entram pela retina a convulsionam a carne que se incendeia num tonitruante movimentar, os corpos vizinhos encaixando-se uns nos outros, tocando-se à medida que se entregam a uma coreografia coletiva e desorganizada. O suor tomou conta da pele, extasiada pelo frémito sonoro.
O olhar intimidante do vocalista entre duas músicas é aplaudido, como um sinal de devoção. As pessoas precisam de refúgios. A música é um refúgio. Quando é tocada ao vivo torna-se um sortilégio. As pessoas que coincidem na sala de espetáculos podem não se conhecer. Naqueles noventa minutos é como se fossem conhecidas de longa data, uma família que partilha as estrofes entoadas ora em registo confessional, a voz cavernosa a entrar na medula de quem a ouve, ora num registo histriónico que acompanha o esvoaçar da energia descarregada pelos instrumentos, com uma percussão dupla a sublinhar o entorno sonoro.
No fim do concerto, a roda mantém-se viva. É difícil adormecer sob o efeito telúrico. À roda, a vida não se entontece com o ludismo da música. As pessoas muito sérias, que não têm vida fora do ambiente taciturno em que vivem, darão nota da sua censura (que dirão ser social): os melómanos são peritos numa auto-anestesia que é um disfarce do mundo real (é assim que lhe chamam, possivelmente em contraste com o mundo fingido).
Os melómanos não acusam o libelo: a sua roda está viva quando entram na roda viva das artes. Para eles, fora das artes (o que poderiam chamar “desartes”) é monótono, castrador da criatividade, uma deriva para se apoderar da autonomia de cada um. Deixam a pose de estadista para os devedores das solenidades e não lhes conferem importância. Em nome da liberdade.
É esta forma incerta que nos dá corpo, a matéria vaga que sussurra nas imediações da noite. O cais pede pessoas e elas fogem. Antes que seja noite, fogem das silhuetas que se consomem em labaredas. Fogem, apenas. E, fugindo, aspiram a ser a máxima liberdade que alcançam. Não lhes peçam futuros ávidos, poemas sem fôlego, uma maratona de dissidências só para provarem que estão vivas. Somos mais modestos. Somos vagos. Pedimos ao mar que seja musa. Deixamos nas mãos da maresia uma usura que não tem sindicância. Mas sabemos que essa usura não colhe significado na restrição de um dicionário. Não queremos ser como as redes de arrasto que dizimam tudo à sua passagem. Queremos ser olhados como aqueles que contribuíram para repensar o estabelecido e rever os padrões. Porque o tempo muda as coisas que devolvem com vigor redobrado as fronteiras em que se congemina o tempo futuro. Se nos perguntassem, queríamos responder com perguntas: não somos os pacatos peões que se movem na inocência de um tabuleiro arquitetado pelas mãos poderosas que se mobilizam, espectrais. Não somos a gente imersa nos rostos indiferentes, tutores de nomes que só cada um de nós sabe; não somos a carne fácil que se atira aos mastins que têm de ser domados. Vamos ao fundo das gavetas e esgravatamos os sinónimos que são da nossa tutela. No chão onde se encontra a forma incerta que nos confere frágeis, na fragilidade em que emergimos como fundamento da modéstia de ser. Em vez de andarmos enredados em possíveis heroísmos, recolhemos ao recato da humildade. Mergulhamos no glossário de que somos autores, à espera que frua num idioma em que poucos são os que falam. Da forma incerta, um rosto insinuado, pesando a voragem das palavras que ficam para nossa intendência. Até a manhã se transformar em estrofe.
Tinha tanta a curiosidade para saber como pensa a artificial inteligência que se deitou à exploração, como se fosse um descobridor quinhentista a avançar por territórios ermos. Ao contrário dos seus antecessores, não partiu no vazio. Leu o que pôde antes de se deitar à empreitada.
Com um módico de conhecimentos sobre o assunto, e sentindo-se preparado para colher os frutos do investimento que, a propósito, forçara a desviar-se de algumas pendências em carteira, começou a falar com a inteligência artificial. Percebeu que a inteligência artificial (IA, para os amigos) pode não ter um rosto, mas está longe de ser anónima, tanta a bagagem de conhecimento. Segundo as regras não escritas, é preciso dar de comer (conhecimento) para a IA se alimentar da sua inteligência e devolver a confiança na forma de conhecimento com estrutura. Nós damos o lamiré e a IA faz o resto.
Foi adicionando peças no puzzle de coalescência com a IA. Como se fossem sendo limadas arestas, à medida que a máquina devolvia mais nacos de conhecimento e respondia às solicitações que acrescentavam novas camadas à demanda. Até que ficou satisfeito com o resultado que a IA apresentou. Começou a ler atentamente o arrazoado. Era um produto legítimo, se à coerência fosse perguntar se se sentia ultrajada. Começou a acreditar nos predicados da IA. Até que descobriu, mesmo no final do texto, que a IA descobriu um livro escrito por ele que se juntava à bibliografia a propósito do assunto. Só que ele não tinha escrito aquele livro.
Ele é que estava errado. Se a IA participou que tinha a honra de pertencer ao escol que iluminava de conhecimento o texto acabado de produzir, é porque foi assim. E não era esquecimento: a sua memória estava impecavelmente lubrificada e os mais próximos sempre comentavam como ela era prodigiosa.
Lutou com denodo contra a IA para a convencer que ele não era autor daquela obra. (Quantos não desdenhariam a oportunidade de passar por autores de uma coisa que não tinham feito?) Se a IA dizia que sim, que ele era o autor, é porque ele estava enganado. Não era obra proscrita, porque ainda não chegara a esse estado de recusa terminante do que escrevera no passado, nem tem o feitio judicioso de escritores que ficaram famosos por terem tanto de genialidade como de irascível. Sabia que não tinha sido o autor do livro, mas a IA insistia em dizer o contrário.
Foi-se convencendo que a IA não conta mentiras. Dizem por aí que é infalível. Percebeu, então, que a IA sabe mais das nossas vidas do que nós mesmos; era um modo alternativo de atirar o ónus da desinformação para cima de nós. Se calhar – alvitrou, sem desdém e apenas com uma modesta dose de cinismo – deus reincarnou na forma de IA.
Sem capacete: roubou uma bicicleta, desleixadamente deixada ao deus-dará pelo dono, e pedalou com toda a velocidade até à descida alcantilada a caminho do rio, não fosse o dono no seu encalço e ele precisava da bicicleta para o ato que espontaneamente encenou.
Só podia ser sem capacete: não tem por hábito andar de bicicleta e o ato de tomar ilegítima posse de uma bicicleta alheia foi espontâneo. Não se intimidou. Com ou sem capacete, andava para experimentar a descida íngreme que ia ter ao rio. Não lhe chamassem louco – apenas queria experimentar a sensação de não ter de pedalar para chegar a uma velocidade estonteante e saber que o seu corpo era o para-choques doloroso se a aventura tivesse um mau fim.
Até estava convencido que o mau fim era o mais provável. Todos os dias havia acidentes naquela pendente; ainda por cima, o piso era escorregadio, inexplicavelmente escorregadio (as pessoas habituaram-se a acusar o piso de ser de manteiga), e as autoridades não queriam saber, jogavam um jogo do empurra, cada uma (governo, região e município) com destreza a mostrar como se endossa a culpa para o outro. Nem a noção que a aventura podia ter um mau fim o desmotivou. Isso poderia parecer, aos olhos dos outros, um lancinante ato de desinteresse pela vida: quem escapa com ela ao chocar de frente contra um veículo a mais de sessenta quilómetros por hora e sem capacete?
Continuou resoluto. Nunca fora a sua marca de água, a falta de hesitações. Mas agora ia ser, nem que fosse a última coisa que a sua vida testemunhava. Dobrou a esquina e parou de pedalar com toda a força que tinha; não parou totalmente, manteve alguma cadência nos pedais ao começar a descida para que a força de gravidade o levasse a caminho do precipício a uma velocidade invejável para o melhor dos suicidas.
A hora era de ponta. Um longo cortejo de carros e motoretas descia vagarosamente a avenida. Ia ultrapassá-los a todos. Ia passar por eles com rasantes que amedrontassem os condutores distraídos. As pessoas iriam perguntar o que faria tamanho louco a descer vertiginosamente a avenida a caminho do rio. O lugar-comum que povoa as pessoas comuns ajudaria a concluírem que ele era suicida. Não se sabe se seria o primeiro. Pouco interessava: por mais que um mau fim fosse a hipótese mais provável, não descia alucinantemente a avenida com o propósito de ser ele próprio a extinguir a vida. Tinha a certeza, pondo lado as congénitas tergiversações, que ia conseguir sair com vida e sem muitos arranhões.
O resto não importava, só o ar frio que se esmagava contra o rosto, os cabelos já de si desarranjados a penderem para o lado que o vento quisesse, um rumor de estupefação ao vê-lo, temerário, a caminhar na direção da morte quase certa, os carros mais lentos a serem ultrapassados com rasantes circenses, numa mostra de equilíbrio que nunca fora seu apanágio, o corpo aerodinamicamente colocado para ganhar ainda mais velocidade (como se aquela já não chegasse), a vertigem de ver o rio aproximar-se na exata medida do ganho de velocidade com a bênção da descida inclinada; e as imagens correspondendo à sua vida passada que iam desfilando em excertos velozes, embaciando o olhar.
O resto não importava. A vida continuava a ser bela.