31.12.20

O ano da confirmação das distopias

Nirvana & St. Vincent, “Lithium” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=LM9sq5GENbE

Este foi um ano com forte odor a apocalipse. Não da matéria terminal de que cuida a ficção (sobretudo a ficção científica), mas de uma distopia que desafiou os modos de viver. Durante todo este tempo, a dimensão da peste tomou conta de tudo. Até da lucidez dos governantes, que, apanhados numa maré de desorientação geral, provaram não estar à altura. 

Os países ensimesmaram. Os muros voltaram a ser verbo vivo, roçando o revivalismo medieval quando até dentro dos próprios países se ergueram barreiras entre diferentes localidades. Mas os muros desceram ao nível do indivíduo: passámos a desconfiar uns dos outros, como se o outro que se atravessava no caminho fosse o próximo portador do vírus. A desconfiança do outro passou a ser manual de sobrevivência. Salvo-conduto da desumanização. Estávamos a ser derrotados pelo vírus, com o nosso próprio consentimento e contributo ativo, quer através da contaminação dos outros, quer por causa do afastamento dos outros (no duplo significado que a expressão comporta: eu afastado dos outros e os outros afastados de mim).

O estigma da paralisação da economia semeou o caos e a desesperança, sobretudo entre aqueles cujas atividades foram atingidas pela quarentena que, na altura, era o único modo de travar a propagação da peste. As pessoas desabituaram-se dos costumes sociais, forçadas ao “distanciamento social”. Mas reaprenderam novos usos sociais, reinterpretando-os à imagem das novas exigências. Durante o período mais severo, que coincidiu com o confinamento que arrumou as pessoas dentro de casa, a misantropia foi entronizada como o novo código de conduta. Havia o pressentimento de que tínhamos sucumbido como espécie quando ficámos reféns da misantropia.

O odor a distopia também se propagou mercê da polarização que passou a ser palavra-chave. Os negacionistas esbarravam nos catastrofistas. Os que desvalorizaram o vírus, continuando a viver (e alguns, a morrer) como se nada de novo se tratasse, contrariavam os que se refugiaram no excesso de zelo sanitário, não sabendo estes que nem assim estavam protegidos contra a contaminação. Os que desconfiam da vacina (enfim descoberta) estão nos antípodas dos que antecipam que a peste será derrotada pelas vacinas. Há quem jure a pés juntos que a pandemia é o preço pela avareza humana que não olha a meios para delapidar o ambiente; e há os que adivinham conspirações chinesas para emoldurar o domínio mundial que este país desejará exercer. Há os que aceitam, passivamente, as restrições das liberdades; e os que protestam contra quem as determinou, admitindo uma relação causal entre a exibição de autoridade e a aplicação dessas restrições.

Ainda é prematuro fazer balanços. Muito embora as vacinas sejam o étimo da esperança, pesam muitas incertezas sobre o futuro. São mais as incógnitas do que as perguntas com resposta incontestável. Não se sabe se vem aí uma terceira vaga. Não se sabe se as mutações do vírus constituem mais uma armadilha, ditando um passo atrás. Não se sabe se voltaremos ao “normal” (faltando, ainda, uma definição convincente de “normal”), ou se a vitória sobre a pandemia irá corresponder a um “novo normal”. Não se sabe, sequer, se iremos entrar num ciclo reprodutivo de pandemias, com sucessivos vírus com elevado potencial de contágio. Não se sabe se nos vamos livrar das máscaras que nos açaimaram.

Não se sabe: esta parece a única certeza aceitável. Porventura, o significado de “novo normal”. Ou, quem sabe, a permanência de uma distopia que tem a incerteza como fermento perene.

30.12.20

Arbitragem (short stories #290)

NU, “Alastra”, in https://www.youtube.com/watch?v=9j4cFzPtR7I

          Sempre me meteu impressão a velhice. Não fujo da palavra: medo. Um certo medo. Da decadência que sublinha a velhice irremediável. Da vulnerabilidade. Da dependência de um corpo desautónomo, ancorado à existência dos outros. Da consciência da proximidade da finitude. Dizem que as pessoas conseguem encontrar um caminho para a aceitação da morte. Preparadas para o seu adeus, repousam na ideia de que a vida já os teve como lídimos intérpretes. Mesmo que não o entendessem antes da caução interior para a morte apaziguada. Dizem que o espectro da partida tempera o juízo que fazemos de nós mesmos. Que passamos a arbitrar o juízo do pretérito e que nos perdoamos na imensidão dos erros que poderão ter sido hipoteca de um viver pelo menos diferente. Que temos tempo de sobra para tornar maduros os pensamentos que compulsam a introspeção pelo caminho demandado. Sem tempo para arrependimentos, que a redenção não é se não uma jura pretensiosa que se facilita no pressentimento do epílogo. A arbitragem da decadência desautoriza a angústia. Convence da participação num processo irreversível de que não se conhecem exceções. O sonho da imortalidade é pueril, ofensivo. O corpo descapacitado, a memória que se estilhaça em fragmentos dispersos, sem ligação, o caudilho da espera, tudo se congemina para que a aceitação ganhe um novo sentido. Do lugar em que me encontro, não sei do paradeiro desta arbitragem. Daí o medo. Uma certa recusa em me entender como passageiro passivo do tempo. E o infértil descontentamento por todo o tempo que for meu património. Por ora, não consigo encontrar os rudimentos da arbitragem entre mim e a minha ausência. Quero tudo o que a vida me seja em sua pródiga condição. Nunca consegui entender que se possa “queimar tempo”; ou será o tempo queimado o santuário dos angustiados, dos que, sem saberem, já cometeram suicídio antes do tempo?  

29.12.20

Momento gastronómico: lombinho de vitela em cama de legumes gratinados, redução de framboesa e wasabi, açorda de amêijoas

Sufjan Stevens, “Sugar”, in https://www.youtube.com/watch?v=56bU7xAU1tM

O preparador do repasto deve iniciar a função pela tarefa mais demorada: os legumes que vão a gratinar antes de servirem de cama onde o lombinho de vitela terá seu repouso. Com o forno pré-aquecido a duzentos graus, corta-se grosseiramente o mosaico de legumes à escolha. Sugere-se: tomate, beringela, espargo, cebola roxa e castanha, vertidos num tabuleiro untado com azeite. Respingar os legumes com vinagre balsâmico e vinho do Porto branco. Um minuto antes de extrair à quentura do forno, acrescentar cebolinho picado, envolvendo nos legumes já gratinados.

Durante o estágio dos legumes na fornalha, deve o preparador dedicar-se à feitura da açorda de amêijoas. Previnam-se as areias indesejadas nos moluscos, deixando-os antecipadamente em água com sal e farinha. Mudar a água duas vezes. Num tacho, preparar as amêijoas como se tratasse da prescrição de Bulhão Pato: o alho finamente laminado a conviver com azeite e abundantes coentros descuidadamente picados; quando as amêijoas forem participar no convívio, juntar um copo de vinho verde branco e agitar com o tacho fechado. Os temperos não devem ficar em olvido: um pouco de sal e pimenta moída na altura.

Ao retirar do lume, separar a parte carnuda das amêijoas que, tal como o molho sobrante, vão municiar a açorda. Em função prévia, o pão alentejano submeteu-se ao esfarelamento necessário para se prestar a uma açorda. O molho sobrante das amêijoas à Bulhão Pato e a quantidade de água quente ajustada à consistência de uma açorda são vertidos no pão. No tacho onde foram confecionadas as amêijoas, derramar um fio de azeite e uma folha de louro. Quando o azeite crepitar, adicionar as amêijoas, embebendo-as com brevidade. Retirar a folha de louro, somando-se o pão demolhado, mexendo sem parar. Os temperos são a gosto do preparador (flor de sal e um punhado de malaguetas secas finamente picadas, é a sugestão). Tapar e reservar. No momento do empratamento, duas gemas de ovo serão aconselhadas à açorda.

Antes de cuidar da carne, o preparador deve dar início à redução que a vai pajear. Numa frigideira, deitar duas colheres de sopa de manteiga. Levar a cozedura da manteiga quase ao ponto de caramelização, momento em que as framboesas, esmagadas em puré, são apresentadas. Integrar os ingredientes num todo homogéneo. Quando levantar fervura, compor a redução com o wasabi e um dedo de brandy. O propósito é que ferva em lume brando até o líquido reduzir para um preparado mais consistente. 

Enquanto a redução de framboesas e wasabi ganha forma definitiva, o lombinho de vitela deve submeter-se ao calor da grelha, com uma modesta unção de manteiga. Grelhar a gosto, sujeitando o lombinho a um breve flamejar de brandy mesmo no final.

O empratamento deve obedecer a esta sequência: no lado direito do prato, reservado o lugar para o lombinho, que repousa sobre a cama de legumes gratinados com a mesma espessura do lombinho. Circundando o lombinho e sua cama, a redução de framboesas e wasabi. No lado esquerdo do prato, a açorda de amêijoas em forma de pudim.

28.12.20

De que lado é a margem que conta? (short stories #289)

The Stranglers, “Walk on By” (live on Top of the Tops), in https://www.youtube.com/watch?v=ub4rKDkL53s

    “Desde que me herdei nómada, só sinto a embriaguez contínua do êxtase. Vou com o aroma das marés. Continuo. E, contínuo, embarco numa nau desenhada com os olhos, à espera de saber dos lampejos de luz que os vários lugares vão deixar emoldurados.” Às tantas, encontraram-se numa margem. Conseguiam ver a outra margem, o estuário não era largo. Não souberam dizer que lado da margem era aquele em que estavam. Podia ser o esquerdo, ou o direito. Não sabiam o que ordenavam as convenções: afere-se a margem no sentido descendente do rio, ou ao contrário? (Ou é à vontade do freguês?) Porventura, uma dúvida irrisória. As margens têm o seu paradeiro, estão inventariadas na geografia que ocupam. Não temos de lhes embeber significados. Ao seu lado, ela perguntou: “estamos no lado certo da margem?” Inaugurou uma pausa. Até no pensamento, como se tivesse sido metido numa temporária hibernação. Não emudeceu o silêncio – e ela percebeu que ele não tinha ignorado a demanda. Esteve para responder: “como hei de saber se não sei, em véspera dessa resposta, se estamos na margem direita ou na margem esquerda?” Peou a resposta-pergunta. Éramos todos involuntários moradores de um lugar, ou dos vários lugares que o acaso, ou o que julgamos ser a vontade, nos destinou. Os lugares preferiam a invisibilidade da ausência. Não possuíam o sortilégio que as pessoas lhes emprestam, como se estivessem a fazer um favor ao lugar homenageado, escondendo que apenas prestam tributo a si mesmas. Emparedado o silêncio, respondeu: “Estamos na margem direita. Direita, como sinónimo de certa. É isso que interessa. Como sei? Esta é a margem que foi procurada pelos nossos corpos.” Regressou o silêncio, enquanto contemplavam o rio no seu caudal abundante. Fosse como fosse, o rio era o mesmo. Fosse qual fosse a margem escolhida.

 

25.12.20

Second thoughts (short stories #288)

Dave Gahan, “Kingdom”, in https://www.youtube.com/watch?v=IwcUi-Aok6Q

          Qual é o paradeiro do fio de prumo? Há quem diga que as palavras não podem ser prisioneiras da coerência. Pode ser insuportável, o preço a pagar pela teimosia da coerência. Em vez da lei de bronze enquistada na obstinação, ninguém perde a vida (nem a vergonha, outra coisa menos importante) se tiver de fazer marcha-atrás. Às vezes, faz-se marcha-atrás para poder seguir em frente. A sentinela da lucidez não derrui com o sono. O beato sopesar, armadilhado por uma teia de tabus, desconhece a triagem dos sentidos que obriga à mudança de ideias. Há radicais de outras cepas que se emaranham no mesmo padecimento. Mudar de ideias é maiêutico. Um esplêndido descamisar que fermenta a madurez dos sentidos. Nem que seja para ser diferente, pois viver preso às mesmas ideias deve ser uma fadiga com prazo de validade. Os pesarosos zeladores da coerência entronizam-na como valor acima da média dos valores. Acabam por ser presas da maior incoerência: pois trazer ao peito a coerência e por ela lutar com veemência pode encerrar o maior paradoxo se a coerência defendida esbarrar na inverosimilhança. Mas cada um acredita nas verdades que elege como verdades. Não se trata de sindicar a verdade de cada um, que no tabuleiro onde diferentes verdades se terçam não cabe a objetividade. Tudo o que se impetra é um exame de autoconsciência. O desprendimento de si, para do exterior ser possível sindicar os esteios que conduzem a uma determinada verdade – a uma verdade estabelecida. Com a abertura de espírito para a destronar enquanto tal, se preciso for. Sem danos corporais ou consumições da alma. Um espírito comprometido medra, acanhado, na exiguidade de um palco mental. Do que se precisa é de espíritos descomprometidos. Avales das ideias que mudam quando do magma se soergue essa pulsão.

24.12.20

Conto de natal adaptado às circunstâncias

Tears for Fears, “Pale Shelter”, in https://www.youtube.com/watch?v=BUfcT5OoP-8

Este ano é diferente. A peste adulterou tudo. Até o natal. Podiam as crianças esperar pelo pai natal com a habitual barba branca pendida sobre o peito, que as intenções sairão frustradas. O pai natal distribuirá as prebendas com uma enorme máscara a ocultar toda a barba, uma máscara como se de umas cuecas de gola alta se tratasse, pois (está devidamente estudado) o pai natal é prolixo em perdigotos que podem contaminar a farfalhosa barba. Mas as crianças já se habituaram ao açaime das circunstâncias que oblitera metade dos rostos. Não será traumático.

As renas serão substituídas por uns pássaros de laboratório. Os cientistas aproveitaram os fundos generosos libertados para as vacinas e, em derivações exploratórias, criaram um pássaro imune à peste e que será a nova montada do pai natal. Traz de origem anticorpos que bastem para a variedade climática que é a bolsa da heterogeneidade do mundo. As crianças devem estar avisadas: os passarões que transportam o pai natal são feias criaturas. Os cientistas nunca foram propensos ao belo (que disso tratam os filósofos).

As prendas serão submetidas a imersão numa intensa calda antissética antes de embarcarem até ao destino. Não estranhem as crianças que os embrulhos tragam consigo o cheiro a hospital.

Os entrepostos locais onde são descentralizadas as prendas estão quase a abarrotar. É que a peste mostrou que é amiga do ambiente, tal a redução dos danos ambientais que foi consanguínea à quarentena. Desta vez é de vez: os homens e as mulheres estão convencidos que não podem continuar a fazer mal ao ecossistema. Os pais natais locais farão apenas as viagens necessárias entre os entrepostos locais e os lares nas imediações. Já não haverá uma corrida desenfreada desde a Lapónia em direção às quatro partidas do mundo. 

Em harmonia com o princípio geral de modéstia que é o sinal dos tempos tumultuosos, os petizes terão de se contentar com presentes comedidos. A moderação é uma virtude que a peste ensinou, mesmo contra a vontade daquela, muita, gente habituada ao consumo desaforido. Há pestes que veem por bem – este é o lema, nos diversos idiomas, que os pais natais farão inscrever nos trenós (em vez dos logotipos de marcas que são o selo do hediondo capitalismo).

Os panetones e os bolos reis (e doces semelhantes) terão o açúcar cortado pela metade. As ceias de natal serão inspecionadas com recurso a algoritmos e escrutinadas centralmente, para evitar iguarias que possam prejudicar a saúde dos convivas. Ninguém quer trabalhos forçados com a saúde por causa da gula natalícia. 

Afinal, a peste foi benemérita. O natal é a época certa para avivar as memórias. Se não é com a peste que reaprendemos a ser, nem o natal reinventado tem significado. Ao menos uma vez. Para que o próximo natal possa ser natal. Assim desenhado pelo esquadrão de Zizek.

23.12.20

Equação

The Blinders, “40 Days & 40 Nights” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=2DRrzsbx1T4

1

Eram os gatos que ronronavam mais alto. No esconderijo da noite, precatados contra a insolvência das almas, ronronavam no conforto das suas improvisadas camas. Não se sabia como faziam – diziam, atónitos, os cientistas sem resposta para a origem do ronronar. Na minúcia dos segredos, não constava que houvesse espiões escondidos nas entrelinhas da ciência. 

2

Se o vento falasse mais alto, talvez houvesse manhãs munidas contra os estilhaços. As pessoas sairiam de seus fardamentos, preparadas para as vozes desarmadilhadas. A mudez seria encomendada aos atributos do esquecimento. As vozes melífluas aromatizariam todos os olhares, sem exceção. Aprender-se-ia o deslimite dos lugares, como eles são meros pretextos para a existência. Pois a existência não se deixa sitiar pela exiguidade de um lugar. 

3

Havia aquelas bonecas encastradas umas nas outras. Rimavam com a invernia que se adiantava à primavera. Delas se dizia que eram um paroxismo: viúvas umas das outras, desprendendo-se de uma camada de viuvez para esperarem pelo próximo mantimento de viuvez. Neste palimpsesto de viuvezes, as bonecas orquestravam um sibilino disfarce nos vestidos de cores bruxuleantes. Nem que fosse para desenjoar da alvura que caiava a paisagem. 

4

O ator fugia do labirinto. Tinham-lhe dito que dentro do labirinto habitavam vultos que não se intimidavam. Vultos que comiam a memória por dentro, deixando desabitados de sangue os audazes que, ao arrepio dos avisos, se perdiam no labirinto. O ator tinha medo das memórias. Mas tinha mais medo de perder a memória. Em vez do labirinto, foi ao encontro do mar. À espera da maresia propedêutica. À espera de um sinal. Só não sabia para que servia o sinal.

5

Era um entardecer como outro qualquer. Quando o corpo acusa o cansaço por ter visto o sono colonizado por uma floresta de pesadelos. Ao encontro da janela sobranceira à alameda, tomava nota da estranha calma que se apoderou da alameda. Não era habitual, a meio da semana e ao entardecer, que a alameda estivesse povoada por um punhado de gente. Talvez as pessoas andassem nas compras de natal e na alameda não havia comércio. Devia ser essa a explicação. Que mal havia se se enganasse a si mesmo?

6

Nos telhados, os gatos passeavam ora a preguiça, estendendo os corpos sob o sol moderado do primeiro dia de inverno, ora a disputa do território. Não ronronavam quando terçavam os corpos uns contra os outros. O som da guerra sempre foi sanguíneo.  

22.12.20

As petingas do Sr. Luís

Madness, “Our House”, in https://www.youtube.com/watch?v=rXuvdeEC5y8

O Sr. Luís era o cowboy da Famel Zundapp. Quando dizíamos que era cowboy não exagerávamos. O homem parava junto de nós, ainda adolescentes que matavam o tempo pós-jantar em conversetas próprias de adolescentes, e fazia pose em cima da motoreta. Frequentemente ostentava as suas botas de vaqueiro, sempre impecavelmente engraxadas. A embocadura das calças ficava enfiada dentro das botas, para lhes acentuar a nobreza.

Na altura, não percebíamos por que o Sr. Luís gostava de conviver connosco. (Agora, que já não andamos longe da idade que o Sr. Luís tinha na altura, a lucidez abotoou-se ao entendimento.) Uma coisa era certa: o Sr. Luís nunca desmontava da sua garbosa Famel Zundapp. Nunca. Sacava do descanso da motoreta, mas guardava para si um zeloso lugar em cima dela, como se temesse que algum de nós tivesse o topete de montar na sua donzela. (Sem segundos sentidos.) Passava grande parte do tempo a ouvir. Nós é que éramos os faladores, naquele grasnar prolixo que é a autenticidade da adolescência coada pela estultícia. Limitava-se a dizer umas coisas de circunstância. Nada de contundente. Não tinha a pose do “mais velho” que se aproximava de um grupo de galfarros apenas para exibir a sua madurez e, colado a ela, multiplicar conselhos que a idade cauciona como sábios. 

(Como acontece àqueles que, possivelmente condenados à irrelevância entre pares, transbordam a sua irrelevante personalidade em cima de uns jovens que podem aprender alguma coisas com eles, como se os jovens em apreço não tivessem as suas próprias fontes de conhecimento.)

Havia um assunto que era mais interessante para o Sr. Luís: era quando falávamos das miúdas. Ele conhecia-as pelo nome, mesmo que não soubesse fazer a correspondência entre nomes e rostos (e o resto, que vinha com alguma abundância descritiva). Na nossa inocência ainda não despojada, não percebíamos que o Sr. Luís gostava da nossa companhia por evocar a idade que ele tivera quando nós a tínhamos então. Talvez fosse um avivar de memórias, o resgatar de alguma vida hipotecada na monotonia. Das poucas vezes que o Sr. Luís interrompeu o silêncio foi para dedicar palavras nada elogiosas à “sua” mulher – “uma cavalgadura”, confessou, melancólico, de uma vez em que o assunto era o sexo oposto. 

O Sr. Luís entrou para o nosso património de memórias quando, um certo dia, fazia um silêncio inesperado, quis que perguntássemos qual era a sua iguaria predileta. Como fez questão que o interrogássemos sobre o assunto, um de nós engatilhou a pergunta: “Diga lá, Sr. Luís, qual é o seu prato favorito?” E o Sr. Luís, com um brilho inesperado nos olhos, quebrando a habitual impassibilidade, revelou com um prazer incomensurável: “pastelinhos de petinga. Oh! rapazes, vocês não imaginam como é bom! Não sei de nada tão bom como uns pastelinhos de petinga.”

Já não recordo se fomos nós que desertámos do lugar, ou se foi o Sr. Luís que se cansou da nossa companhia. (Embora me incline para a primeira hipótese.) Mas o Sr. Luís deixou de ser conhecido como o cowboy da Famel Zundapp e passou a ser carinhosamente alcunhado com o Sr. Luís das petingas.

21.12.20

No lugar do pendura (short stories #287)

Ólafur Arnalds, “Only the Winds”, in https://www.youtube.com/watch?v=9eWewdTkghM

          Não era dos nervos desnatados, ou sequer simulação de desmedo: dizia: ao teu lado vou de olhos fechados no lugar do pendura. Não me lembrava de o ter dito antes. Mas o antes, que importava? Dou por certo que me podias vendar e sentar-me no lugar do pendura. Juro que não perguntava que destino tomaríamos. Não seria o coração um lugar apressado pelo temor de não ter o rumo como achado nem o leme entre as mãos. Diria: estou em mãos seguras, as tuas mãos. Juro que não faria perguntas. Nem se tratava de obediência; era confiança. O caminho, serias tu a escolher. Antes disso, o destino, também incumbência tua. E eu, passageiro tomado pelo simpósio da surpresa, os olhos vendados como se fosse preciso uma prova de confiança. Mas não era. Sentar-me ia no lugar do pendura com ou sem venda, com a mesma confiança. Talvez não se pudesse dizer isto – por exemplo – dos regentes que foram habilitados para arrastar, erraticamente, esta nau condenada ao sacrifício dos sebastianismos. Mas nós não precisamos de sebastianismos. Não procuramos a redenção fora de nós. Somos os titulares de uma moderada dose de autoconfiança. Por isso é que não hesitaria em sentar-me no lugar do pendura contigo tomando os comandos do veículo. Neste caso, nunca se poderia falar no lugar do pendura como o “lugar do morto”. Entregue às tuas mãos, saber-me-ia vindicado no mais puro santuário que consagra a vida. Dir-te-ia: quando chegarmos, que mo anuncies com um doce murmúrio ao ouvido; e quero que sejas tu a libertar o olhar da venda que o reservava para o segredo. Dir-te-ia ao inaugurarmos a demanda, que depois permaneceria em silêncio à espera que a espera se consumasse em revelação. Sem sobressalto, com todo o meu eu depositado nas tuas mãos.

18.12.20

Arraia graúda (short stories #286)

Viagra Boys, “In Spite of Ourselves”, in https://www.youtube.com/watch?v=WLl1qpDL7YA

          No asnal procedente, os da arraia graúda afocinham os punhos de renda em cima da mesa. Contrariam os manuais da etiqueta – mas quem se importa com a etiqueta, se ela só se aplica aos da miúda arraia que não têm pergaminhos? Seja como for, são punhos com renda, os da arraia graúda. Tamanhos punhos podem, muito naturalmente, assentar sobre a mesa e diante dos amesendantes. São punhos eivados de linhagem. Gente desta nobreza não precisa de certificar a origem. Transporta consigo um inato certificado de denominação de origem classificada. E granjeiam invejas. À sua ilharga gravita um séquito de aspirantes a serem algo de parecido com eles. Faltar-lhes-á sempre a linhagem, e nem toda a fortuna do mundo conseguirá suprir as berças de onde proveem. Os invejados estão num patamar superior, inacessível. Mesmo que muitos deles não sejam se não a pompa e a circunstância nobilitante, pois nem rapando o fundo do tacho há provimentos que concebam as mordomias em que insistem parasitar. Gente tão nobilitada não cometerá os pecadilhos da gentalha. Quem, contudo, quer apostar que, como o comum dos mortais, são acometidos pela flatulência, procuram a carnalidade selvagem dos corpos (ou o sexo, essa palavra proscrita do vocabulário com teias de tabu), embebedam-se desvirtuosamente e escondem no armário um par de esqueletos que, na arraia miúda, seriam motivo de imediata troça e reprovação social? Quem quer continuar a apostar nos privados vícios que não os distinguem da maralha? Quem acredita que são a personificação da lisura que deixam transparecer na pose mui fleumática, num cavalheirismo de pacotilha que se estilhaça ao menor acosso da paciência? Condenados à decadência e à irrelevância, satisfazem-se com o traço distintivo da ralé: são graúdos, mesmo que já não tenham estatura para o serem. Mas são uma graúda arraia. Por mais que os traga compungidos, nisso não se distinguem da arraia a que, depreciativamente, apostrofam como sendo “miúda”.  

17.12.20

Quando dizias “não dezembrarás”, acendia a candeia contra a tirania do tempo

LCD Soundsystem, “All My Friends”, in https://www.youtube.com/watch?v=aygY5OqMuKE

Dizias: “não dezembrarás”. E eu sabia o que querias dizer. Era uma petição de princípio contra a decadência. A recusa de um último suspiro em forma de calendário, como se fosse terminal e o tempo ficasse por ali. Mas não era uma advertência a favor da finitude irrenunciável. Era uma mnemónica na clave da renovação. A avocação da estação seguinte, sobreposta à inquietação da decadência. O hálito povoado pelas vitaminas exigíveis.

E eu dizia, em concordância com essa mnemónica, que era preciso manter acesas as brasas que acendiam o sangue em demanda de ebulição. Que ninguém capitulasse – ou, se os ouvidos outros fossem surdos à convocatória, que não fôssemos nós as presas preferidas da capitulação. Havia sempre ângulos diferentes. Olhares a reinventarem a coisa mesma. Maneiras diferentes de dizer as palavras que importavam. A fuga das coisas que importunavam. Um cais escondido algures no labirinto dos seres. Dezembraria, consciente de que dezembro é a porta entreaberta para um janeiro qualquer (ou para o mês que nos apetecesse ser). 

Dizíamos, em uníssono, que não há contratempos a tempo de desmatarem o tempo que a nós chamámos. Que nos tornáramos síndicos de tudo o que nos dizia respeito, exigentes tradutores da lava que em nós era erupção inacabada. Seríamos dezembro à espera de janeiro, janeiro à espera de fevereiro, e assim sucessivamente, numa imparável cronologia escrita nas veias que eram o manancial comum. Não queríamos adormecer ao som do vento iracundo e da chuva esmagadora que, estrepitosa, empobrecia na janela. Queríamos ser um sono tomado pela ousadia das artes, pelo novelo da geografia ainda por conhecer, pelas estrofes todas que viessem à nossa lavra. Dezembraríamos a tempo de sermos janeiro, não tardava nada.

Recusávamos os costumes. Recusávamos as tiranias diletantes que bolçam imperativos categóricos e modas estonteantes, o vibrante santuário onde a perfeição se congemina na exigível convivência social. Até nisso impedíamos que dezembrar fosse sinónimo de decadência. Pois somos dissidentes a destempo. Contra a matilha do tempo, somos orgulhosos perfecionistas. Não damos de barato a fragilidade às urnas sequiosas. Não damos a impureza da alma ao escrutínio dos cobrancistas do sistema. 

Tecemos o calendário que nos convém com os dedos ávidos. Redesenhando o tempo, se preciso for. Contra a decadência. A favor de nós.

16.12.20

A janela permanente

Ólafur Arnalds, “re:member” (live in Harpa), in https://www.youtube.com/watch?v=Q4MBK2rs9lQ
 

Não contem com aguarelas. Não contem com a pele dourada pelo abismo de um dia. Não contem com palavras atraiçoadas por um vulto. Não contem com os braços abertos até ao infinito, como se todas as caravelas se abrigassem no peito intermédio. Não contem com proezas. Não contem com a afoiteza, que não quadra com a imponência de um fracassado. Não contem com balas ricocheteadas no desfiladeiro prometido.

Contem com um dédalo inebriante recolhendo as lágrimas nas pálpebras dos malmequeres. Contem com um espírito insubmisso. Contem com as ondas intempestivas que desembrulham as estrofes ajuramentadas. Contem com um sol contra o inverno telúrico. Contem com a chuva que dissuade o estio terrífico. Contem com as mães nunca gastas que guardam uma palavra ornamentada. Contem com os soalhos gastos e, todavia, molduras de um firme assentar. Contem com a escotilha a vigiar os mares apetecíveis. Contem com um promontório ventoso que desembacia os rudes espasmos da angústia. 

E contem, dê o mundo as voltas que der, com um osso fundente de incerteza. Contem com as árvores frondosas que são o tear que urde a planície aparatosa. Contem com a voz compassada, estonada, ângulo matricial de outros pesares. Contem com marés sempre vivas, onde se entroniza o sopor. Contem com silêncios que contrariam a indigência das palavras. Contem com a frugalidade ascensional, uma imensa jarra a coalescer nas cabeças que se interrompem de espanto. Contem com um murmúrio estrelar contra a algidez dos que capitulam.

Não contem com gongórica farsa, os militares pavoneados na sofreguidão de comendas estultas. Não contem com as mãos sedentas de vingança, com as cicatrizes que são a sua cartografia. Não contem com a boca inaugurada para o lodo irrepresentável. Não contem com a fala comprometida com a sobranceria. Não contem com o diadema vernicoso ostentado no avesso da alma. Não contem com a rígida desafeição de tudo, o palco onde, contrafeitas, dançam as palavras puídas. 

E contem com uma janela permanente. Suma representação da alma trespassada pela perenidade. Da irrequieta alma emoldurada na janela.   

15.12.20

DNF (short stories #285)

Shame, “Water in the Well”, in https://www.youtube.com/watch?v=O9yivp5zyjo

          Parece que o tempo conspira e é exíguo para as empreitadas que esperam por vez. Uma atrás da outra, uma constelação de adiamentos – ou um carismático eufemismo para disfarçar o logro. Desfilam os pretextos. A intensidade do mundo exterior, com o interminável rosário de distrações. A desorganização mental que nunca é desorganização mental, mas apenas uma vaga reminiscência das muitas invitações que obrigam o eu a dividir-se por múltiplas e incapazes parcelas. A capitulação que beija as margens da decisão quando é confirmada a hercúlea tarefa. Um certo amesquinhar próprio, a meias com a propensão para a indulgência que cobre a paisagem quando a comiseração é convincente. Ou apenas a aprovação da imperícia que subjuga o pensamento, atirando-o ao caudal veloz onde se perdem os azimutes. Muitas vezes, DNF suga a consciência, não fosse a consciência ter-se acostumado à ignávia. Aparentado a um sequaz da poltronice, mantém-se à tona, interpretando as modas entre os pingos da chuva. As coisas sempre pela metade, ou nem tanto. À vista da retrospetiva, um imenso logradouro de matéria inacabada. Como se se tratasse de prédios que ficaram pela ossatura, exibidos ao exterior, dolorosamente expostos na fragilidade de quem deixa as entranhas à mostra. Alguém assim suplica pelo anonimato. Não quer a visibilidade dos fracassados. Malditas sejam as convenções que estabelecem o imperativo da obra feita. Malditas sejam, que não lhes ocorre que muito mais do que é feito é o que fica por ser feito. O peso paquidérmico arqueia-se sobre o dorso dos fracos, atirados contra a sua vontade para o tribunal dos elegíacos onde se sentam em trono solene os penhores da obra feita sem inventário. Até que caiam as máscaras e ninguém seja artífice do perjúrio de um DNF. Oxalá DNF fosse, também, a prescrição para uma vida. 

(DNF: acrónimo de did not finish

14.12.20

O maior da rua dele

Radiohead, “Idioteque”, in https://www.youtube.com/watch?v=Y7WCdYFqz5g

Era impante, a pose com que saía à rua. Não podia ser diferente. Aquela era a sua rua. “A sua rua” era polissémico. A “sua rua” por ser a sua morada. E a “sua rua” por ser denotativo do império que considerava exercer, como se fosse a coutada privativa e os demais, residentes e forasteiros que ali arrimassem, se submetessem à sua soberania.

Não se lembrava de como houvera angariado tais pergaminhos. Ninguém conseguia ser testemunha desses pergaminhos. A memória parecia perdida na languidez da luz que se deitava sobre a rua. Como uma conspiração (sem se saber quem a industriava) para que exercesse domínio sobre a coutada. Num assimétrico manusear dos que ali contracenavam: o domínio que lhe competia, como o maior da rua dele, não tinha expressividade, era um reconhecimento de sentido único: os outros da rua dele não sabiam da sua existência. O estatuto era-lhe consanguíneo. Um frugal estatuto. Não mais do que isso.

Era um ensimesmar sem consequências. Quando se passeava com a altivez digna de um suserano, não ofendia, não provocava. Era mais um maneirismo de quem se julgava ser a mais para o corpo e o pensamento havidos. A rua era exígua para tamanha imponência. Estava, contudo, aprisionado a uma contradição: não queria exportar a grandiloquência para outros domínios, nem queria que o chão sob seu domínio correspondesse a ruas maiores, ou a um conglomerado de ruas que, entretanto, fosse colonizando. Era uma grandeza que cabia dentro daquela rua. À medida da rua.

A pose altiva não era visível desde o exterior. Tudo se passava dentro de um labirinto onde a sua coutada se condensava. Um labirinto de que era o único utente. Na exiguidade desse enorme universo imaginado, não havia ninguém mais importante. Um dia, em conversa com um amigo fictício (às vezes dizia ser o desdobramento da sua personalidade, dependia dos dias e do estado de espírito), veio em sua própria defesa. Disparou a pergunta retórica: “não somos todos assim, a pessoa mais importante para o eu que se avalia desde o exterior?”

A reivindicação de estatuto era irrelevante. A rua dele era uma viela. 

11.12.20

Sanatório (short stories #284)

Yeah Yeah Yeahs, “Date With the Night”, in https://www.youtube.com/watch?v=NGNHQKeoSGY

          Chego a mim os desvalidos. Eu sou um sanatório, o labirinto sem arestas, sonoro resplandecer contra os anátemas que espiam desde insalubres lugares. Não prometo milagres. Dou de mim a pele avulsa, o improvável potentado que não protesta os contratempos. Território neutro, desmilitarizado de ultrajes, insciente das conspirações. Sanatório, mesmo arriscando a vaidade que profana os aveludados caminhos por onde se terça a humildade. Mas não guru, ou conselheiro embebido em sólida reputação. Apenas modesto interlocutor contra os miasmas do tempo, contra os mastins que servem enraivecidas locuções transgredindo a bonomia de todos – arma, de extração excecional, oposta à desonestidade das ideias e ao assalto dos puros. Sanatório que veda a entrada de ortodoxias e recusa as heterodoxias que se querem elevar ao lugar de ortodoxias de substituição. Um sanatório onde as dores de alma se possam sanar. Quase como se houvesse uma reinvenção da gramática e sanatório fosse o lugar onde males dispersos se podem sanar. Inventário não obrigatório em que a liberdade é o único mandato. Acredito-me, nem que seja no contrabando das almas. Aos provérbios assimilados, proclamo a minha recusa. Prefiro destronar os avatares reconhecidos, seus rostos urdidos na placidez da rotina, e receber a maré-viva de impropérios, destinado ao lugar exilado que só eu impetro. É deste sanatório que falo: um palacete perdido no meio da floresta, átomo das cicatrizes encerradas no mutismo do passado. Sanatório de que serei único inquilino, apesar de as janelas se escancararem desavergonhadamente. Julgo não saber o mínimo das ciências para ser entronizado confrade. Não sei o mínimo para dar a saber. As ruelas continuam a moldura da ausência. Ao silêncio, juro outro silêncio tanto. Não quero saber de mapas, intuições, oráculos, ou simples pressentimentos. O sanatório, o meu sanatório, tem admissão reservada.

10.12.20

A cúspide de Neptuno

Foo Fighters, “My Hero”, in https://www.youtube.com/watch?v=EqWRaAF6_WY

A alma aplacada levanta-se do mar. Concebe os montes ao longe, antes que sejam tomados por vulcões indómitos. Traz na mão uma chave. A chave, não gasta com a corrosão do mar, carrega as feições de uma quimera, como se apenas fosse preciso encontrar a fechadura certa. Não capitula. A fechadura há de ser descoberta a meio do caminho. Não será preciso esperar tanto.

Os demais temem-no irascível. Episódica, a ira já causou catástrofes medonhas. Não querem que regresse ao mar, pois é de lá que, querendo, conspira contra os humanos e povoa-os com destruição. Houve um dia que confessou, cinicamente: 

Provocam-me porque sabem que é pouca a água em que fervo. Provocam-me porque se fatigam com a bonança e andam ansiosos pelo aneurisma que semeio nas vossas terras, só para depois terem o júbilo de trazer ao alto um algo que estava embebido nas ruínas que causei. É com deleite que vos pago o favor.

Imperador sem trono, era respeitado como tal, apesar de ninguém reconhecer a investidura. Carregava numa das mãos (frequentemente, a esquerda) uma simbólica cúspide ornamentada com flores campestres. Não quisessem ver a cúspide vertida sobre o chão, que um feixe de forças devastadoras logo desatava. Não era função formosa de se ver. O seu rosto iracundo selava o sobressalto de quem não aceitava importunações. Não é por um acaso que era deificado.

Dono das marés, nos dias de bom humor era o padroeiro das naus que atravessavam o mar. A barba cerdosa e grisalha, pacientemente desentrelaçada com os dedos, servia de caução à fortuna das embarcações. Os comandantes sabiam-no vigilante, homem sem sono que até na noite mais funda acolhia as naus nas águas lânguidas que pressagiavam bom porto. Não precisava de mnemónica para alisar as águas que visitavam a enseada. Penhor de desamores vários, processava a solidão na varanda de onde congeminava a maresia. 

No que diz respeito a amores, já fora tempo de os balizar. Arruinara-os, um atrás do outro, com uma metódica indigência que o tomava de assalto. Não recusou a volúpia, mas não quis de ela transbordar. 

Talvez a chave empunhada na mão contrária que carregava a cúspide, a discreta chave, afinal estivesse puída, sem se ver. 

9.12.20

A metafísica da cozinha

Black Rebel Motorcycle Club, “Love Burns”, in https://www.youtube.com/watch?v=wV5b2RWK0e0

Sou do tempo em que fazia maionese segundo o método artesanal. Em cima de uma gema de ovo quebrada suavemente com um garfo, um fio de azeite – não podia ser mais do que um fio de azeite – somando-se à gema em crescendo, depois de temperada com umas gotas de limão (ou vinagre, de acordo com as preferências) e uma pitada de mostarda e outra de sal. O garfo em movimento contínuo, mexendo a gema para esta não talhar com a incorporação do azeite parcimonioso. Meia tijela de maionese demorava quarenta e cinco minutos de paciente labor. Nunca me soube tão bem a maionese – e menos agora que, com a cortesia de eletrodomésticos que facilitam a vida dos gastrónomos, se consegue o preparado em pouco mais de um minuto.

(Sou desse tempo, mas não o reivindico como caudilho da saudade. Não se trata de um exercício de nostalgia.)

Sou do tempo em que os homens não entravam na cozinha (salvo raras exceções). E também sou do tempo em que o paradigma se estilhaçou. Em primeiro lugar, como tributo a uma distribuição mais justa das tarefas domésticas. Em segundo lugar, pela utilidade heurística da culinária, autêntica pedagogia interior em constante movimento. Um utilitarismo, todavia, não reprovável. 

(Não estou seguro de que aquela seja a ordem, cronológica ou de prioridades.)  

A cozinha como lugar mitológico: a confeção culinária arrepia o trato da paz interior. Aplaca angústias, quando elas se soerguem no demais. É o aval de uma forma de criação para-artística, mesmo quando a elaboração de iguarias segue de perto um compêndio pantagruélico. A melhor indumentária está no avivar da criatividade, quando a confeção culinária não segue mandamentos outros se não os que se colhem na safra da própria criatividade. A gastronomia como manifestação poética. O experimentalismo tem um lugar reservado (da cozinha para a mesa). Os subprodutos admitidos em nome do experimentalismo não são rejeições da culinária. Fazem parte da função, como erros necessários que abonam a contínua aprendizagem.

“A cozinha é como um santuário”, alguém argumentou em tempos, aproximando-a de um lugar metafísico. Permito-me a correção: a cozinha é um santuário. Não como aproximação a uma metafísica, mas como metafísica em sentido próprio.

8.12.20

Fora da lei

New Order, “Be a Rebel”, in https://www.youtube.com/watch?v=JOoyPT6RoF4

Estrénuo, não sabia das costuras dos outros, apenas apascentava as suas. Era como se fosse mandatário de um corpo seu por interposta pessoa, como se fosse possível sair ao seu exterior e daí observar-se, meticulosamente. Dentro da sua lucidez, extraía-se aos limites das leis. Elas tinham sido feitas para os outros, os que as tresleem no arnês do ilícito. Da sua parte, tinha a consciência em dia. Não que se importasse muito, mas se fosse inquirido diria ser um “cidadão exemplar” (por mais que o conceito lhe causasse náuseas). 

Sempre que era caucionado pelas leis, apresentava diplomaticamente as credenciais da dissidência. Sabia cuidar das suas obrigações. Sabia dos imperativos que se delegavam no dorso dos códigos de conduta. Que mais eram as leis do que códigos de conduta passados a letra de forma e com o bastão inquisitivo da autoridade legífera? Contrapunham os diligentes cumpridores da legalidade instituída: como não sabemos do paradeiro e da substância de todas as leis, elas têm de existir e devemos obediência. Discordava. As leis que pudessem colidir com o seu comportamento não precisavam de ser sabidas; ele cuidava de cinzelar o comportamento ao espírito das leis em aplicação, sem delas ter conhecimento. Não reconhecia a mudança de comportamento para o tornar coerente com as leis: estas vinham ao encontro do seu modo de viver. 

 Enquanto fora da lei, não era perseguido pelas autoridades. A sua existência era exterior à lei. A conduta nunca fora permeável a normas com o crivo de lei. Para os que caíssem no logro da confusão de conceitos, recusava ser apostrofado como “fora de lei”. Um fora de lei exerce uma recusa premeditada da lei. Fica à mercê das punições exaradas pela lei. Ele considerava-se um fora da lei. Não estava à mercê da lei porque esta é que vinha ao encontro da sua conduta. Sentia-se prévio à existência da lei, mesmo quando, cronologicamente, a lei lhe era precedente. Ninguém aprende nos bancos da escola e na tribuna da educação familiar todo um corpo de leis. O crescimento de uma pessoa é marginal ao corpo das leis (se não, acabávamos todos a ser bacharéis em leis).

Como tinha a consciência em dia, não precisava de estar na órbitra das leis. A legalidade era para os outros, pois a ele a sedução da ilegalidade era indiferente. 

7.12.20

Martelo e meio

Einstürzende Neubauten, “La Guillotine de Magritte”, in https://www.youtube.com/watch?v=Qu27ILI4B0c

As nozes são teimosamente rijas, era preciso um martelo e meio para recusar a sua resistência. E, todavia, não perdem qualidades só por se congeminarem forças insuspeitas que as protegem das arremetidas. Também não se recusam as uvas só por terem grainhas.

Antes que seja convocado o borda d’água, clareiem-se as ideias que estavam fundidas numa amálgama de desculpas. Por vezes, há uma resistência interior, uma inércia inexplicável, que se joga contra a fortuna de uma empreitada. A empreitada demora-se, faz-se arrastar ao longo do tempo que também se arrasta. Não é possível fugir da encomenda. Mas as distrações povoam o horizonte limítrofe. O olhar, reativo como é, persegue cada impulso sussurrado pelas distrações sem saneamento. Se fosse ao fundo do baú onde escondidas estão as costuras de um estar rejeitado, dir-se-ia que se trata de demónios a adejarem em pose conspirativa.

Não sendo o caso, mergulhe-se dentro do próprio labirinto. Fundeiem-se as origens dos impedimentos que adiam a entrega da encomenda. Não é da função em si, que não foi aceite com precipitação nem é assunto que cause desprazer. Que seja vasculhado nas funduras o especioso embuste que acorrenta a uma certa inércia. Procura-se saber por que fica intermitente o pensamento, agora pusilânime. Ensaiam-se múltiplas hipóteses. Não se obtém confirmação, todas as hipóteses despidas de serventia. Acaba-se a função a acreditar que se tratou de outra distração. Só no fim das contas é que foi descoberto. Um alibi para postergar o adiamento (se é permitido o atropelo semântico).

As margens estão ocupadas por uma água parada, uma água que parece enfeitiçar o lado obscuro a que não se está habituado. O caudal, estagnado. Não se sabe se as águas fluem sob a fina camada da superfície, escondidas. É o que se espera. Que um mero jogo de aparências combinado com o decano aliciamento para a desídia seja a mordaça que importuna. Aposte-se um martelo e meio que a rija casca das nozes será derrotada.

4.12.20

Um dia sem geografia

Idles, “Kill Them With Kindness”, in https://www.youtube.com/watch?v=SELdxmlg2Cw

Na casa do meio. Onde a bússola se perdeu na arritmia das paredes. As inquietações aninhadas no luar intermitente são desmatadas. Como as vozes que povoam a noite. Não se sabe de onde proveem. Desde a candeia militantemente acesa, esboço o olhar confrangedor: “o mundo está às avessas”, protestam os conservadores sem remédio. Eu não o hei de consentir.

As ruas não parecem boa companhia. Estão desertas. E nem as iluminações natalícias conseguem romper o ar pesado que se arqueia sobre as casas, amordaçando-as. Não se sabe nada dos seus habitantes. Não se sabe se atravessam o tempo da ausência com ardis, como se fosse possível apressá-lo. Não se sabe se a angústia os consome até à medula e o suor é a lava insondável que se anuncia como seu templo. Não se pode perquirir o húmus subcutâneo. Palavras tontas ficam por conta da especulação. Não recuso a ruína dos oráculos.

A fala sentida é a medalha dos lamentos que se orquestram desde a manhã baça. Os olhos marcados, como se se deitassem sobre as pálpebras, alinhavam o compêndio dos infaustos. Segue-se um cortejo de apiedados, que caminham em forma de via sacra como se fosse imperativo expiarem a angústia diante de olhares que destilam mesquinhez. Estes dias não têm lugar. Eles acontecem, mas não têm um lugar geográfico. São órfãos. 

Os arbustos exibem os despojos da humidade noturna e os olhares que os inventariam encontram redenção. As pequenas gotículas presas nas hastes dos arbustos são recolhidas, como é o ofício das abelhas em polinização. É disso que precisamos: de um tempo arrastado, dias metamorfoseados em semanas, semanas em meses, as palavras reduzidas à sua simplicidade, como se o idioma fosse reinventado a partir do nada. 

Não quero outras bandeiras. Não me imponham hinos nem medalhas de bom comportamento. Dispenso as tiranias disfarçadas de magnanimidade, como se houvesse entes predestinados para emoldurar o sentir do todo. Prefiro hibernar nas ameias de um lugar irrepetível e dele fazer um tempo irrepetível. Como se desse tempo extraísse a parte sumarenta e o exibisse como tradução da minha meã condição. Um dia sem geografia, subtraído às garras ancilares dos patriarcas da beatitude. Até que seja só eu, sem o tempo por desamparo, e as palavras sem fronteiras a adornar o horizonte que testemunha o meu olhar.

3.12.20

Don’t play with me a game that you will win (2.0)

Beirut, “When I Die”, in https://www.youtube.com/watch?v=tAbGfxGBmlQ

Na base do pedestal: lançam-se os dados e tu sabes que sairás vencedora. Pela minha parte, sei que estou fadado à derrota. Jogamos os dados. Confirma-se o oráculo que se deitou sobre o pretérito. A maré volta ao seu destino.

Podia comiserar-me, talvez puxar lustro ao meu melhor fraseado e suplicar que não jogasses comigo um jogo que sabíamos só poder ter-te como ganhadora. Mas se o fizesse, não extraímos deleite do jogo, e ambos sabemos que vamos a jogo pela vã sinecura dos prazeres que se fundem num nada. Isto na tua maneira de ver, pois eu, incorrigível perdedor, nunca soube do sabor de uma vitória ao jogo.

Em vez da pose compungida de que se quer sujeito de um apiedar alheio, deitei os dados sobre o chão avulso. Lancei os dedos, enquanto deixava o pensamento marear nos corredores interiores, enunciando sucessivamente, como se fosse uma prece, “don´t play with me a game that you will win.” Em silêncio me mantinha, reprimindo a voz que queria ser o dínamo da vontade interior, condenada a manter-se interior. Os teus olhos irradiavam uma alegria contagiante. Como podia sequer murmurar que não jogasses comigo a este jogo que ambos sabíamos ser teu triunfo ainda antes de o termos começado?

E jogávamos, uma e outra vez, sempre como o mesmo resultado. Nenhum de nós extinguia as forças na perpetuação do resultado. Um dia perguntaste se eu não queria ganhar o jogo. Fiquei impassível. O interrogado abria as feridas da ilogicidade. O jogo fora inventado para só tu o ganhares. Só tu o podias ganhar. A insinuação de que me deixavas ganhar era como se perdesse o jogo, e logo à partida. Farias de propósito, como se te anulasses temporariamente, só para eu levar à boca uma colherada de glória. Recusei. Preferi continuar a jogar o jogo sabendo à partida que não o ia ganhar.

Pelo tempo fora, aquela interrogação, que soara a proposta, assaltava-me. Havia um jogo de espelhos. Tu insinuavas o que eu mantinha no pensamento restrito que emudecia a voz. Ao menos, conseguiste quebrar o gelo do silêncio. Arrebataste as palavras metidas em camisas-de-forças, e não era pela loucura ter tido o seu bel-prazer. 

O jogo era a metáfora que tingia a pele com as sucessivas camadas de atonia. Um remédio para uma maleita sem paradeiro. Ou nós os dois a fazermos de conta que éramos nós os dois.

2.12.20

Bolshoi (short stories #283)

Queens of the Stone Age, “Vampyre of Time and Memory” (live on Conan O’Brien), in https://www.youtube.com/watch?v=k1itIVOvj7o

          Não precisamos de uma cortina de nevoeiro a cegar o olhar. Não marcamos fingimentos que açambarcam os palcos visitáveis. Dizem que entre a posse das faculdades e o telhado sem imunidade vai uma estepe árida, não recomendável aos sentidos. Mas quem disse que demandamos a purificação? Sabemos dos palcos onde contracenam os atores, os que interessam e os demais. Sabemos que os palcos são chãos inverosímeis, precipícios disfarçados pelo remoço do disfarce. Não transigimos: quem anda por dentro do sangue que circula por dentro de nós se não nós mesmos? Podemos titubear nos corrimões enferrujados que ferem as mãos. Mas não podemos recusar cicatrizes. São o biombo que nos refugia do passado. Se uma noite medonha coloniza o tempo e é sentida como se fosse imorredoira, não a acatamos como solilóquio que não admite contestação. Invertemos as fragilidades. Vamos ao magma onde adormece a improvável reminiscência que desembaraça as forças de que carecemos. Subimos a palco. Não estamos sozinhos. Não dão pela nossa presença. Ainda bem. Também não queremos saber de quem contracena. São presenças episódicas, avulsas, sem ordem combinada no inventário das coisas. As palavras puídas emudecem; delas não queremos paradeiro. Somos a água salgada que os mares reivindicam. Somos seus tutores. Não deixamos à porta os lugares esquecidos. Não deixamos a coreografia dos mercadores que, infatigáveis, perseguem a monotonia como se andassem à caça de fantasmas. De cima do palco, vemos melhor o entardecer. Vemos melhor, de cima do palco. Tudo. Fugimos dos néones que embaciam a lucidez. Não queremos ser rostos visíveis que hipotecam o anonimato. E podemos continuar em palco, tecendo com os dedos o nosso próprio teatro, desmentindo deus. Sem prazo de validade. Sem o embaraço do futuro. Sem tradução das palavras para todos os idiomas. Pois o único que interessa é o que entretecemos no Bolshoi da nossa invenção. 

1.12.20

Até para ser patife é preciso ser competente

Gorillaz ft. Peter Hook and Georgia, “Aries”, in https://www.youtube.com/watch?v=PKXloFW_ZCA

(Da série: podia ter acontecido e aconteceu mesmo.)

Um homem vai a uma loja de móveis e afins. Escolhe dois sofás. Quatrocentos e cinquenta e oito euros. Terá concluído que o preço era exorbitante. Adulterando os mecanismos do mercado (e as leis, por sinal), encontrou duas almofadas que custavam, o par, dez euros. Mecânico de profissão, o homem extraiu os códigos de barras das almofadas e substituiu os que estavam nos sofás pelos que emigraram das almofadas. Pagou dez euros por dois sofás que custavam quatrocentos e cinquenta e oito euros. Nem no melhor Black Friday podia encontrar tamanha pechincha.

Correu quase tudo bem (na perspetiva do patife). Já depois de passar a caixa registadora automática, foi intercetado pelos seguranças do estabelecimento comercial. Ficou sem os sofás, sem os dez euros e, levado a tribunal, foi condenado a pagar dois mil duzentos e quarenta euros de multa. A notícia não revela como o homem foi apanhado a delinquir. Podemos começar a jogar às suposições: agora que as câmaras de segurança estão por todo o lado, o funcionário que passa sabe-se lá quantas horas a fiscalizar os ecrãs das câmaras de segurança descobriu a patifaria. O estabelecimento comercial não teve contemplações. Ninguém merece pagar dez euros pelo que custa quatrocentos e cinquenta e oito euros.

As suposições prosseguem: terá o homem protestado a inocência, sendo a sua literal inocência (no sentido de ingenuidade) tão exacerbada ao ponto de desconhecer a existência de câmaras de segurança num estabelecimento daqueles? Terá o homem implorado por comiseração, desfiando um rosário de misérias como pretexto para o ato tresloucado de fazer passar dois sofás pelo preço de duas almofadas?

Por cima da especulação, uma imagem pungente: o fracassado meliante desloca-se à agência bancária no tribunal para pagar a multa. O olhar de censura social do funcionário do banco, ao verificar a guia de pagamento e o que lhe deu origem. O olhar envergonhado do patife frustrado, imerso no arrependimento de quem, de parcos recursos, decidiu pagar dez euros por dois sofás de quatrocentos e cinquenta e oito euros e acabou tosquiado, sem os sofás nem os dez euros e uma multa de dois mil duzentos e quarenta euros para liquidar.

Até para ser patife é preciso ter competência.

30.11.20

Exílio apocalíptico

Ólafur Arnalds, “Ekki Mugsa”, in https://www.youtube.com/watch?v=eZ4B13ngUrY

Deixava os sonhos no formol que reiterava no constante lugar. O constante lugar: seu era o lugar, seu como pórtico de identidade. E, todavia, queria despojá-lo de conteúdo, torná-lo um não-lugar, erradicado dos mapas relevantes. Lembrava-se: é preciso coragem para alguém deixar a terra e lançar âncora num lugar desconhecido, com um idioma ininteligível, sem garantias a não ser um temível abismo de incerteza. Será como perder o chão sob os pés. O que dizer, então, dos exilados?

Em sonhos por si comandados, prometera um exílio com toda a pompa. Como se fosse acossado e a vida estivesse no frágil fio da prescrição, dissidente dos comandos imperativos do sistema. Talvez fosse o pretexto para emalar a vida para um lugar estranho e, uma vez forasteiro, arrimasse ao exílio disputado. Ou apenas pretexto para varrer as aragens rotineiras que o importunavam. Era um estranho sentimento que se apoderava: sabia onde hastear as raízes, mas nada o identificava com aquele lugar. 

E o que seria este exílio? Os sonhos, por mais que os industriasse, não deslaçavam a incógnita. Era o lado da equação que não conseguia resolver. Podia ser um exílio condoído, amesquinhando a resolução que tomara de deixar a terra mátria. Antes de haver um precipitado juízo, não seria má ideia demorar no diagnóstico. E se o lugar escolhido fosse um equívoco, não haveria lugar a um remédio, à demanda de outro lugar como mapa do exílio?

Nunca o saberia. Nem na ficção elaborada por intermédio dos sonhos que albardava no ócio especulativo. Deu conta de um luxo subavaliado. A oposição ao lugar enraizado é uma dor de crescimento, um punhal subcutâneo. Uma excrescência dos luxos de quem desconhece provações que marginalizam de um módico de direitos e comodidades. São as dores próprias de uma extenuação imprópria, ou apenas a condição insubmissa de quem desarmadilha o povoado da criatividade e não se contenta com a afluência e a paz limítrofe. 

Um exílio destes, não fosse motivado por um súbito acesso de nomadismo, seria um exílio apocalíptico. Um espancamento autoinfligido, selando uma autofagia só reconhecida a destempo. Como são todos os suicídios involuntários.

27.11.20

Um estorcegão, se faz favor

The Limiñaras feat. Nuria, “Calentita”, in https://www.youtube.com/watch?v=pPdOo2E5zOc

O corsário impertinente sentou-se no banco dos réus. A audiência estava vazia, mas ele sentou-se no banco dos réus, voluntariamente. Descalçou uma botifarra, tão gasta como (veio-se a saber logo a seguir) a peúga rota que deixava o dedo grande do pé à mostra. Se a audiência não estivesse deserta, duvida-se que o corsário se entregasse voluntariamente a juízo. Assim sendo, foi ao julgamento que não tinha juízes. Assim é fácil e o destemor não chega a franquear o limiar da intrepidez.

O corsário montou a encenação. Por sua conta e risco. Fazia de réu, de testemunha – ora abonatória, ora acusatória –, de advogado seu e do que se lhe opunha e até fez lúcidas perguntas no papel dos juízes. Mudava a voz consoante as personagens. Inventava o enredo. Ia seguindo um fio condutor improvável, a consumação de um improviso de que o corsário não sabia ser credor.

Fez questão de assumir a posição de réu. Esta era a maior coragem de todas: não é qualquer um que se entrega ao juízo alheio, sobretudo se estiver convencido da culpa num desarranjo de leis que lhe é atribuído. De outro modo, se houvesse audiência e um pleito reunido num daqueles calhamaços que os tribunais continuam arcaicamente a exibir, talvez o corsário fizesse as vezes de figura contumaz.

Disso seria ele capaz. Saber-se-ia dos dotes que à mitomania se entregava como capataz. Mas a ardósia estava vazia. As figuras tutelares da justiça, noutros preparos, àquela hora decerto saindo da higiene matinal que é preparação para o resto do dia. Não seria o caso do corsário, que não estava em lua-de-mel com a higiene. Os andrajos ajudavam a descompor a figura bestunta. Não se importava de ter sido senhor de um certo donaire num passado que a memória hesitava em codificar. O vinho descompunha o resto.

O corsário foi expulso do tribunal pelos seguranças que faziam a ronda noturna. Foi sendo arrastado em braços, que os derradeiros goles do vinho barato o deixaram quase sem sentidos. Era o que fazia mais sentido, a abolição dos sentidos. Um dos seguranças reconheceu-o de outras andanças. “Olha, é o Amílcar!”, disse, perante a indiferença do outro segurança que limpava os restos de sujidade da sua egrégia farda. “Quem é o Amílcar?”, enquanto continuava na higiene do fardamento. “É um indivíduo que conheci na tropa. Era de boas famílias. Os maus hábitos foram a sua perdição. Agora, não passa de um belisário.”

Amílcar ouvia o diálogo em pano de fundo, como se estivesse num corredor que dava acesso a um comprido labirinto e as vozes figurassem no lado contrário. Balbuciou qualquer coisa e os seguranças chegaram-se a ele. A voz entaramelada debitava umas sílabas desorganizadas. A esforço, conseguiu emitir o pedido: “por favor, quero um estorcegão. Um estorcegão, para saber se consigo sentir.” 

Os dois homens não entendiam a súplica. Logo agora, que o melhor estado acessível era a hibernação, o Amílcar queria um estorcegão.

26.11.20

“Salvo o devido respeito”

Ty Segall & the Muggers, “Breakfast Eggs” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=-9XDzL9ml5M

Muitas vezes, manda o código de conduta (já que devemos ser todos cavalheiros...) que a discordância seja precedida pela expressão cautelar “salvo o devido respeito”. Dizem ser uma fórmula de cortesia, o prelúdio ao catártico direito de discordar da ideia de quem se constituiu oponente. Como quem diz: “descontada a elevada consideração que vossa excelência infunde, venho por este meio informar o humilde direito à discordância, que, em todo o caso, não causa dano à elevada estatura intelectual nem ao respeito de que continuará a ser imensamente credor.”

É uma perda de tempo. Não temos de parecer cavalheiros para o sermos. Não temos de pedir desculpa (a fórmula de cortesia tem essa ressonância) por não convergirmos. Mal andaríamos se a divergência fosse entendida como sinal de desrespeito. Isso sim, seria o mais ultrajante desrespeito: que em nome do respeito capitalizado por um estatuto dionisíaco, o interlocutor considerasse um topete o parto de ideias diferentes das suas. 

Dizer “salvo o devido respeito” é um avatar de mesquinhez. Primeiro: a proclamação começa com o advérbio “salvo”, como se o respeito imperativo ao interlocutor tivesse de estar a coberto de qualquer golpe espúrio desferido pela ambição, aparentemente descabida, de postular uma ideia contrária. Segundo: diz-se “o devido respeito”, o selo da sanha hierárquica a que é imputada a letargia que trava o rastilho de qualquer tempestade intelectual, mantendo férreas amarras que castram a criatividade (ou o simples direito de ter as ideias próprias, por absurdas que sejam). O “devido respeito” é o compêndio de uma sociedade estratificada em que as castas superiores não podem ser incomodadas apenas porque são castas superiores. Ou: apenas porque sim, todo um programa de persuasão inane. É o império do respeitinho que é muito bonito que serve para hastear um servilismo que mantém elites que, de outro modo, há muito teriam deixado de o ser.

A reinvenção semântica pode conferir um novo sentido à expressão idiomática. Já que somos todos atores e andamos todos a fingir de conta que fingimos, que o método seja levado aos limites. Diga-se, em pleno pleito, “salvo o devido respeito” sem corar nem adulterar o tom, evitando que este escorregue para timbres irónicos (sob pena de a intenção ser desvendada). Diga-se: “salvo o devido respeito” como a negação do proclamado, como quem firma os pés no chão e, categórico, ostenta-se ao interlocutor, orgulhosamente disparando nas entrelinhas: “estou-me nas tintas para o que pensas, porque sei que, antes de mim, já tinhas devolvido a cortesia.”