30.1.09

O labrego choramingas


Queria prometer que deixava de me incomodar com a existência do primeiro-ministro em funções. Queria prometer que deixava de ser motivo para escrever uma linha que fosse, sequer nas entrelinhas. O melhor é adiar a promessa, adiá-la até ao radioso dia em que deixe de o aturar. Que uma carreira internacional é melhor pouso para personagem tão esplendorosa.


Com ele, não consigo muitas coisas. À cabeça, não consigo confiar. Poderá o mal ser meu, mas na oratória digna de delegado de propaganda médica todas as palavras soam a patranha. Não consigo confiar em arrivistas que usam manobras para trepar na escala. Pode ser preconceito, mas à partida desconfio de funcionários que nunca outra coisa fizeram senão abocanhar prebendas justificadas pela militância partidária. Desconfio daquela licenciatura – e não, não é assunto encerrado, por mais que queiram colocar um "selo oficial" a engavetá-lo no arquivo morto. Estes abjectos percursos são um ultraje a quem muito trabalhou para obter licenciatura honrada. Simbólico é tudo isto ser o retrato do amadorismo e do triunfo da mediocridade que por aí campeiam, quando numa terra "normal" a mediocridade nunca conseguiria vingar sobre o mérito.


Também não consigo suportar a pose ofendida, com disfarçada arrogância de permeio, quando é acossado por todos os lados. Faz lembrar as mentes perfidamente inteligentes logo nos bancos da escola, com manipulações a eito e jogos psicológicos que dividem para reinar. (A propósito da inteligência pérfida, uma muito importante diferença: no caso do impecável timoneiro da pátria, só perfídia. Que a inteligência não é um dom que o distinga. Quando muito, esperto. Da esperteza saloia tão típica dos amadores que vingam mercê de tácticas e ardis. Mesmo à imagem do que somos hoje.)


A personagem vitimiza-se quando não domina um cenário que lhe é adverso. Sempre que dava de caras com choramingas que clamam pela complacência alheia, pondo-se no papel de vítimas de quem deles discorda, sentia o impulso irreprimível de dar o braço aos que são acusados de algozes. Pois é odioso o papel treinado desde os bancos da escola, os patinhos feios a chegarem-se junto da maternal professora com um e mais outro queixume debaixo do beicinho. Manipuladores de almas, aproveitadores da ingenuidade comum dos que vão na cantilena e desaguam na solidariedade com as vítimas fraudulentas.


E não consigo suportar a imagem de "homem modernaço", muito arejado, que até veste fatos de estilistas de primeira água, mais a sugestiva encenação do protótipo do homem novo que até faz jogging e é só virtudes. Pode vir todo o pó de arroz que maquilha a epiderme, que escondido detrás das carradas de verniz está o labrego sem remissão. O mesmo que assinou hediondos projectos de moradias na Beira Alta que são atentados à estética, uma confissão indelével da anti-estética que é a sua marca genética. Só um labrego pode ter aquele traço. Podem-nos contar, os fiéis membros de um séquito numeroso, que sua excelência é a sexta pessoa mais elegante do mundo. Como se isso fosse alguma vez possível, como se isso não passasse de mais um inútil fait divers para desviar as atenções do essencial, mais uma peça para o abominável culto de personalidade que noutros tempos daria lugar a ampla chacota e unânime reprovação, por ressoar à "velha senhora" que se especializou no registo hagiográfico dos seus líderes.


Às vezes receio exagerar no diagnóstico. Temo que sejam tantos os anticorpos contra a personagem que comece a perder a lucidez. A cada dia que passa e que a figura se desmultiplica em propaganda que pediu métodos emprestados aos delegados de propaganda médica, ou a um comercial que impinge imóveis a abastados investidores, a cada dia que passa cresce a náusea. Por vezes, a decência mental determina a pessoal censura, o canal de televisão onde a radiosa personagem aparece a dar lugar a outro canal – outro qualquer. Receio exagerar no diagnóstico, mas cresce a impressão de que nunca vi tão mau (nas várias acepções do termo) primeiro-ministro.


Entre os muitos passos desalinhados com a figura, dou conta de uma ideia construtiva a germinar: o incorrigível abstencionista que equaciona a correcção do vício. Só para sentir que esse voto pôde contribuir para que o labrego choramingas não continue a ser déspota com consentimento dos votos. Nem a subtracção ao discriminado exército de abstencionistas lhe perdoo.


29.1.09

“Obama, presidente global”, Cavaco que cuide da sua coutada


Era um restaurante e uma televisão que passava noticiários sem som. No rodapé: "Obama, o primeiro presidente global". O som ausente na televisão impediu o significado de "presidente global". Aposto: mais uma espantosa sondagem em que se pergunta, e por telefone, se as pessoas concordam com isto ou com aquilo. Para depois se deitar mão a extrapolações e concluir generalizações. As palavras assim amontoadas circularam uma e outra vez pelo rodapé da televisão. Talvez para hipnotizar os espectadores – os que já estavam convencidos da aterragem de um messias e os cépticos, enfim de espinha dobrada pela ideia repetida à exaustão.


Todos os presidentes de repúblicas e reis de monarquias invadidos por tremenda angústia. Um dia acordavam e estavam depostos. O mundo só com um governante, no êxtase "global" pela sua perícia. Mas uma angústia doce: todos os governantes depostos cientes da inclinação irrecusável diante da encarnação de deus. Viriam anunciar a resignação aos súbditos. Sem dramas, nem ar grave, um discurso aligeirado pelos rostos sorridentes, o alívio de entregarem as vultuosas tarefas nos braços da messiânica personagem entronizada "presidente global" por uma muito democrática sondagem.


Diriam as palavras mais belas. As que selavam a sua deposição. Nem vagas de fundo a reclamar a suas excelências que repensassem a decisão. Todos, suseranos e súbditos, entenderiam: não havia fuga a nada, demissão alguma; um colectivo arfar de humilde resignação perante os dotes deificados pela "voz global". A primeira vez que Cavaco aparecia na televisão sem a pose grave de estadista, sem aquela rigidez cadavérica.


Ai daqueles dominados por mau feitio que viessem fazer muitas interrogações. O que interessa se a amostra da sondagem era representativa do universo humano? O que interessa que um "presidente global" passe por cima do significado da democracia, das eleições, da representatividade? Perguntas embrulhadas em adversas maquinações, só para impedir a "razão global". Inúteis, incómodas perguntas. Hoje é malquisto quem duvidar da presciência do messias.


Por uma vez, uma vez que seja: advogado de defesa dos governantes da lusitana paróquia. E, por atalho, dos que participaram na eleição que colocou Cavaco no Palácio de Belém (o que não é o meu caso, que nesse dia tive um compromisso que me afastou das mesas de voto). Votámos para ter Cavaco ou para ele ceder o lugar, a meio do mandato, a uma messiânica personagem que arribasse algures? Outra interrogação inconveniente: houve lusitana gente a participar na sondagem que entronizou Obama "presidente global"? Quantos votaram em Cavaco e agora disseram que sim, que Obama é o "presidente global"?


Estou-me nas tintas para a canonização "global" de Obama. Desconfio da abundância de encómios, aves raras as que ousam divergir do consenso do momento. Quando surge o imperativo de saltarmos todos para a mesma barca, de remarmos todos para o mesmo lado: é isso que me mete espécie. Consensos, forjados ou devolvidos à espontaneidade, como parece ser o caso deste presidente dos Estados Unidos, também me incomodam. Os consensos são doentios. Liquidam a inteligência das pessoas. Amordaçam-nas no pensamento que se resume a uma via de sentido único. É como se, lá entrados, fôssemos rebanho apascentado por ditadores opinativos. Sem direito a parar, ou vem a turba restante esmagar as ovelhas tresmalhadas que se quedaram. A ninguém é dada a hipótese de inverter a marcha, ou está destinado à sufocação pela maré que cavalga na direcção oposta.


Por muito que o mundo avance e o que conhecemos seja equacionado nas suas bases, mexendo com os quadros mentais em que fomos instruídos, ainda há países. Oh, eu até gostava que um idealismo, lírico como os idealismos são, vencesse a maré dominante e os países acabassem, todos. Lugar, então, a um "presidente global", com eleições "globais", sem o espartilho das fronteiras que dividem artificialmente as terras. Enquanto formos viciados em países, podem anunciar milhentas sondagens "globais" (mesmo que insistam em não explicar por que são "globais") que os soberanos só são legítimos por força de eleições, sempre eleições nacionais. Até que este estado de coisas mude, o lirismo pertence aos que se comprazem por se sentirem devotos de um "presidente global" que, nesse estatuto, não passa de uma fantasia.


Sei que vivo agasalhado pelo relapso mau feitio. E com uns vestígios de metódico espírito de contradição. Se me for dado o direito de beijar a dissidência, posso daqui gritar as seguintes palavras sem ser lapidado? "Eu não acredito em messias algum."


28.1.09

Do nepotismo


Para os que andam esquecidos do significado, uma ajuda do dicionário: "preferência dada por alguém que tem poder a familiares ou amigos, independentemente do seu mérito pessoal; favoritismo".


Os poderosos de todos os lugares com poder semeiam sinecuras por familiares, amigos, conhecidos e demais gente a quem são devidos favores. Há quem se não ofenda com o favoritismo reinante. Os laços sanguíneos falam mais alto. A afectividade que só dispensamos aos amigos. O utilitarismo dos favores (e a memória que não se apaga; e a recusa da ingratidão). Tudo isto alimenta a corte de quem se assenhoreia do poder, a corte onde só tem lugar gente próxima do poderoso. A confiança é uma trave-mestra da boa governação (onde quer que seja, sem distinguir os níveis onde o poder é exercido). Só os que reúnem a confiança do mandante têm lugar reservado à sua mesa de poder. Às urtigas a competência, as capacidades, as habilitações para o cortejo de sinecuras.


Há quem considere a coisa mais natural do mundo que isto seja assim. Cultivam uma normalidade que tresanda a anormalidade. De tantas vezes se repetir a prática, ela cristaliza-se em uso social. O que era anomalia, de repente pertence à normalidade enraizada. Daí em diante, é a procissão de favores que sobe na sua espiral. E o contágio pelas piores razões: "se os outros fazem, por que não hei-de fazer igual?" Uma imensa clientela tece-se numa rede infindável, do topo da hierarquia até às bases mais anónimas. Todos devem favores a todos. E todos querem ter ainda mais gente na mão através da distribuição de benesses e lugares que cultivam a dependência e obrigam à eterna gratidão.


O sobrinho da cozinheira casada com o motorista do vereador. Acabou o curso e não lhe pode caber em desdita o patíbulo do desemprego, nem sequer o degredo do subemprego dos call centre. Se não há lugar disponível na câmara municipal, inventa-se um. O empecilho da lei, inventada por administrativistas que se entretêm a semear burocracias inúteis na administração pública, exige concurso público. Faz-se um à medida do sobrinho da cozinheira casada com o motorista do vereador. De preferência, o mais discreto possível, para só ter um concorrente – aquele que está fadado para triunfar no concurso. Quem orquestra estes concursos públicos é o cioso alfaiate da encomendada sinecura ao sobrinho da cozinheira casada com o motorista do vereador.


O rapaz, enfim, funcionário camarário. Não resiste aos encantos de uma rapariga da terra e, ao fim de breve namoro, estão de casório agendado. Para a boda, convites aos figurões do município que podem abrir outras portas. Até o presidente da autarquia, com quem o nubente nunca falou, irá apadrinhar a boda. Em plena festança, já desposada a moça, o sobrinho da cozinheira casada com o motorista do vereador apresenta a consorte ao edil, já prostrado na cadeira onde enfiou o seu ébrio estado. A consorte do rapaz, descontente com o emprego – muitas horas de trabalho, tarefas duras, patrões boçais no tratamento, salário exíguo, o cadafalso do desemprego a rondar todos os meses. E por que não aproveitar a coincidência do edil apadrinhar a boda para apadrinhar um emprego camarário à rapariga?


É uma teia que cresce, em crescimento exponencial. As cumplicidades fervem por todos os lados, com todos – os que dão ámen à distribuição de empregos e os que estendem a mão neste peditório – a tirarem partido. Dos últimos não carece justificação. Os primeiros reforçam o seu poder ao espalharem a rede de influências. A certa altura, não haverá família do lugarejo que não tenha sido agraciada com prebenda municipal. Passadeira desdobrada para perenes vitórias eleitorais. Que só não entram na perenidade porque alguém se lembrou de limitar a três os mandatos dos autarcas. Nem isto enfraquece o nepotismo. Os dinossauros tratam de deixar delfins. Como delfins que são, ai deles que ponham em causa os privilégios das clientelas habitadas a amesendar com o edil destronado pela regra que impede perpetuações no poder. As castas superiores são intocáveis.


Apanhamos com levas de governantes em assolapada paixão com a educação. Gestas de vanguardistas pedagogos a dar o seu melhor para que a instrução geral das novas gerações faça a diferença em relação à mediocridade congénita das anteriores. Esforços inúteis. As boas intenções da educação esbarram no enraizado nepotismo. Se o nepotismo está tão incrustado nos hábitos, é porque todos que dele beneficiam sabem que não vingavam caso o mérito fosse critério de selecção.


27.1.09

A crise esquizofrénica


Esta crise que cavalga nas suas tempestuosas ondas, trazendo um mar de fundo cada vez mais encapelado, é pedagógica – insistem os optimistas de serviço. Sugerem que vamos aprender com a crise. Reconhecemos os erros de outrora, os erros que desaguaram nesta crise sem precedentes, para mudarmos comportamentos. Há outra tábua de salvação: a crise fermenta oportunidades ímpares, o que todavia deixa no ar uma suspeição de oportunismo que não andará muito longe da crucificada ganância.


Eu digo que esta crise serve para ficarmos catedráticos do comportamento de uma casta muito peculiar: políticos. Reduzindo ainda mais o espectro: governantes. Já a crise (hoje esta palavra vai ser exaurida …) tinha aterrado em todos os lugares e por aqui nidificava um agradável oásis. A crise era para os outros, tão incompetentes que não se tinham sabido proteger do estertor da crise. Era como se de uma versão renovada de Viriato se tratasse, uns séculos mais tarde teimando na resistência contra a ocupação do invasor – os romanos de outrora cedendo o lugar à crise que ameaçava, já dantesca.


O tempo – e não passou muito – virou a realidade do avesso, contra os desejos dos mestres da propaganda. Um azar tremendo: em vésperas de eleições as crises não deviam ungir governos de tanta competência. Dir-se-ia: a crise é uma batota, um sucedâneo de concorrência desleal que vitima governantes tão luminosos. É criminoso que governantes desta igualha sucumbam nas urnas porque a crise enganou os eleitores e estes castigam os governantes, como se eles fossem culpados pela crise que estendeu os seus tentáculos a todo o mundo.


Exigia-se mudança de retórica. Enfim, a crise não tinha sido injusta connosco. Imperativos de igualdade: se tinha aterrado em todos os lugares, por que haveríamos dela ser marginalizados? Afinal, a crise tinha entrado cá, mesmo sem ter sido convidada. Eis a esquizofrénica crise. Que confusão que deve ter percorrido as cabeças do cidadão comum, o cidadão que nada percebe de economia e que vai no engodo da distorcida mensagem política. De repente, deixámos de ser o oásis por decreto e engrossámos o lodaçal da estagnação, com as estatísticas desactualizadas a uma velocidade vertiginosa: menor crescimento, ao início ainda escassamente positivo, depois negativo e depressa ainda mais negativo; a produção a cair a pique, porque as pessoas foram forçadas a contrair o consumo; as exportações em forte queda; e a conjugação destes efeitos a confluir no fantasma do desemprego que assola a vida de mais e mais gente, com todos a olharmos para o lado para ver quem é o próximo a ir para as filas do instituto de emprego (que, sinais do tempo, devia ser rebaptizado: instituto de desemprego).


Se não é através do optimismo desarmante dos que confiam que a crise há-de ter um rescaldo bom, onde está o efeito pedagógico? De uma certa maneira, no lado psicológico da crise. Há quem reitere que as crises só o são porque se agrava a espiral de efeitos psicológicos adversos. Não concordo com a ideia. As crises têm causas reais, como é o caso da actual. Essas causas têm consequências, uma das quais é o clima negativo, a confiança a bater no fundo e a levantar a visibilidade da psicologia de braço dado com a economia. Os diligentes governantes, por fim convencidos que a crise nos acolheu no seu regaço, andam por aí a fazer o papel de choramingas, a confissão mais admirável de impotência de gente que governa que me é dado lembrar.


O ministro das finanças (que azar para a carreira ter-lhe calhado em sorte ter sido ministro logo em conjuntura tão desfavorável…) ensinava, numa reunião de militantes do partido da rosa lá para os Algarves: não há GPS que consiga dizer por onde deve ir a economia diante dos efeitos avassaladores e incertos da crise. Acabou a choramingar-se desta maneira: só nos resta a orientação pelas estrelas, mas as nuvens são tão densas que nem as estrelas conseguimos ver. Foi pena que não tivesse concluído o raciocínio como a coerência exigia: encerrávamos o ministério das finanças enquanto durasse a crise, por manifesta impotência dos seus ocupantes.


Há quem seja mais optimista e tente iludir pessoas e empresas. O governador do Banco de Portugal, em mais um frete político aos camaradas de partido, encarregou-se de manipular a psicologia. O raciocínio é brilhante: como as taxas de juro estão mais baixas, os empréstimos à habitação são menos onerosos; a gasolina está mais barata; há muitos produtos que estão mais baratos; a inflação é quase zero, o que significa que os preços não vão subir; em contrapartida, os salários vão aumentar. Tudo isto conjugado dá, nas contas de constância personagem, um excedente de 1,1% no rendimento das famílias. Toca a gastar, ó gentes, que cresceu o dinheiro na vossa algibeira.


Eis o efeito pedagógico: inusitada, diria em rigor, esquizofrénica crise: está tudo mal, mal como nunca se terá visto dantes, mas estaremos todos melhor. Se calhar, a crise bateu à porta errada.


26.1.09

As façanhas masoquistas que distinguem o admirável rapazote novo


Parece que está na moda, entre a geração que pertence à adolescência actual: põem um amigo a filmar pessoais façanhas que terminam com quedas estrepitosas, o jovem kamikaze a contorcer-se com dores e a pandilha em redor a aplaudir através de sonoras gargalhadas. São estes os novos heróis, o esboço de um novo homem que deixa perplexos os engenheiros sociais que se esforçam por legar os vestígios do que deve ser o admirável homem novo.


Quem assiste à performance dos estouvados que se estatelam contra uma parede depois de uma tresloucada correria ficará boquiaberto diante da demência que os próprios fazem questão de revelar no You Tube. Ou ajuízam, sem hesitações: são patetas, ali à frente de toda a gente a exibir as mãos em ferida depois de um trambolhão, um riso triunfante em vez de um esgar de dor. Uns indignam-se e outros não conseguem reprimir uma palavra insultuosa ao verem a reportagem sobre a moda masoquista. Mas os jovens doidivanas devem ser deixados na sua dolorosa paz. Não se divertem nos esboços de ensandecimento que os trazem para filmagens de que depois fazem alarde público? Fazem o papel de patetas? Onde está o mal quando alguém se presta a um circense papel?


Há "alarme social". As consciências serenas, que pastoreiam lá para os lados do conservadorismo dos hábitos, reprovam a moda. Preocupam-se com o estado físico dos jovens atraídos pela vertigem das exibições que terminam em dor e marcas no corpo. Duvidam da sanidade mental deles. Suponho que se deva proibir tal coisa, mais uma proibição no longo e audacioso trajecto que nos há-de conduzir até ao estatuto de homem novo e sem defeitos. Eu não partilho da inquietação dos penhores das boas almas, nem reprovo os jovens pelos actos circenses. Afinal, sempre gostámos de circo, não é?


Heróis os que no circo arriscam a pele, os que fazem acrobacias em cima de uma motorizada no poço da morte. Habituaram-se a ser admirados pelos fracassados corajosos que se entusiasmam com a adrenalina dos outros. E, quantas vezes, não há entre os espectadores um desejo inconfessável, um desejo mórbido, de vê-los acidentados, ou pelo menos de vê-los a milímetros de um acidente pavoroso? É quando contrapõem os que reprovam a mania dos contemporâneos adolescentes de se entregarem a patéticos exercícios que culminam em dor: os que desafiam a gravidade no poço da morte são profissionais. Limitam-se a assustar os espectadores que julgam que se vão despenhar derrotados pela gravidade. A antítese com os doidivanas que se estatelam com fragor, o sangue a escorrer das feridas abertas, imersos no amadorismo, reféns de imberbe voluntarismo. Ainda por cima, riem-se da sua pessoal dor. Talvez porque à sua volta a pandilha que os acompanha ri-se ainda mais alto.


A reportagem sobre o modismo, a reportagem que testemunhava o "alarme social" que ao menos dá ocupação a alguns psicólogos, divertiu-me. É o circo, renovado. Com a vantagem de ser gratuito. E espontâneo, que os circos tradicionais são muito parecidos com os mágicos que não são mágicos mas apenas ilusionistas – mestres na arte de iludir a audiência. Quem gosta de ser enganado ao ver um espectáculo? É esta a vantagem do exibicionismo masoquista dos jovens em longo desfile no You Tube. É tudo genuíno. Não há truques debaixo da manga. Até a dor, depois de um adolescente martelar os seus próprios dedos, até a dor é genuína. Haverá algum voyeurismo ao ser espectador destas façanhas que roçam a insanidade, concedo. Prefiro a faceta lúdica do exercício: se os jovenzinhos se divertem a dar espectáculo para a trupe, se parecem gostar da sensação da dor física depois de embarcarem num carrinho de supermercado que se despenha ladeira abaixo, ai de nós, a "sociedade" vigilante, se reprovar as façanhas. Neste mundo tão cinzento, quem pode ter a ousadia de liquidar a criatividade?


Aos que mostram tanto desassossego pela moda masoquista da gente de tenra idade, uma lembrança necessária: mergulhem na vossa adolescência e recordem alguns tresloucados actos que nem a difusa memória esconde. Tresloucados de outra maneira, mas tresloucados à mesma. Talvez esse desassossego seja inveja da juventude esfumada nas páginas do calendário que já ficaram gastas.


23.1.09

Um pedaço de Açores aterrou na Praça de Espanha


Vacas, de carne e osso, a vaguear por verdes pastos que, por estranheza, estão semeados no meio da cidade. Pastos que nunca o foram, contudo pastos agora que por lá apareceram as reses. Pois aquilo era um anódino relvado a servir de separador do enxame de estradas asfaltadas que desaguam na Praça de Espanha e que dela seguem para todos os lugares. Mas vacas, na sua infinita paciência ao pastarem entre o bulício dos muitos e apressados automóveis que sulcam a praça.


Invenção de publicitários: tiraram da cartola o colorido cenário composto por vacas em pachorrenta ruminação das poluídas ervas mesmo no coração da grande cidade. Para promoverem a imagem dos Açores. Há agências que fazem as contas ao dinheiro enterrado numa publicidade e depois conseguem apurar o "retorno" desse investimento. Quantos turistas ganharão os Açores depois de desembarcados os fleumáticos bovinos? Os bovinos que nem atordoados ficam com a algazarra de carros a arrancar quando o semáforo passa a verde. Nem com os magotes de gente que se cruzam, portadores de recíproca indiferença, à saída da escadaria que leva ao metro. Quantos turistas enfim enfeitiçados pela criativa campanha? E quantos dos transeuntes, se derem conta que há vacas à solta no meio da Praça de Espanha, pelos Açores enamorados de tal arte que lá farão férias?


Os bravos defensores dos direitos dos animais, com cívica e activa militância em muitas causas, apanhados na cilada da desatenção. Não se ofendem com o atentando ao bem-estar de vaquinhas habituadas ao silêncio sepulcral dos pastos açorianos. Não se insurgem contra os danos psicológicos nas vacas exportadas desde as belas ilhas, se elas por lá estão habituadas ao bucolismo da paisagem, os campos onde o verde só se não perde no infinito porque na linha do horizonte se demoram as azuis águas do mar como pano de fundo. Nem protestam contra os abusos alimentares, os animais obrigados a farejar a relva onde repousaram os vestígios da atmosfera tão poluída, os tubos de escape dos loucos automóveis mesmo a bordejar os improvisados pastos. Nem os protectores da higiene e da saúde pública gritam a sua indignação pelo anacrónico cenário, as vacas a deporem fedorentos dejectos que tornam o odor dos tubos de escape mais respirável.


Deviam ouvir-se protestos inflamados das suas purificadas bocas. É que o cortejo de vacas a pastar a meio de uma agitada praça lisboeta encerra alguma obscenidade. Como se um pedaço do jardim zoológico – e não dos Açores – se tivesse mudado das redondezas para a Praça de Espanha. As reses ali expostas à curiosidade de quem discernisse a sua presença. Aquilo não é uma campanha publicitária, é um convite ao voyeurismo com vacas como vítimas. E não sei, também, se uma falsidade tremenda. Quem embarca num avião para açorianas férias não se desloca para apreciar os bovinos nas suas demoradas degustações de relva nos prados locais.


Se a moda pega, podemos ter perigosas campanhas publicitárias de promoção de certas zonas com potencial turístico. Lembro-me de Amesterdão, famosa pela libertinagem que ofende os bons costumes estabelecidos. Como se daria a mostrar a libertina Amesterdão na Praça de Espanha? Deito-me a adivinhar: as atracções acantonadas no meio da praça fariam parar o trânsito e a certa altura o trânsito ainda mais caótico e com os polícias distraídos a olharem de soslaio para as carnes semi-despidas que eram um convite à luxúria. As pessoas à saída do metro subitamente esqueceriam que tinha pressa em chegar a um qualquer destino, primeiro o passo retardado, depois detendo-se diante da exposição em carne viva.


Concedo que há vacas a pastar nos Açores, e que há quem faça postal típico disso. O que nisto acho insólito não são as vacas que de repente aterraram no meio da agitada praça de Espanha: insólito é que haja publicitários que acreditam que vai aumentar o número de turistas nos Açores depois desta campanha.


Inédito, e criativo, seria pôr as vacas a pastar ananases dos Açores.


22.1.09

Antes que seja noite


Não são reparações, óbvios simulacros das obras em projecto a que a ausente coragem, ou apenas a preguiça, prende um garrote invencível. São actos, visíveis. Traços que saiam do papel e encontrem um leito em factos. A consumição maior de uma vida: um coro de lamentos pelo tanto que aprouvera fazer sem, contudo, se soltar o freio da incapacidade. O mal é nem se chegar a descobrir se é incapacidade ou ausente aptidão.


Anoitece e o crepúsculo agasalha o frio que se intromete nas veias. É a fonte de todos os entorpecimentos, o ar gélido que tolhe os movimentos, os subtis movimentos da vontade. É como se tudo se congelasse numa alvura envenenada, a inércia a elevar-se no zénite do altar da existência. Por um momento o corpo fica extasiado, pregado ao chão diante do convés da letargia. Enquanto o espírito alteia as asas e sobrevoa o corpo que se fina perante o crepúsculo implacável. Acomete uma raiva indomável: só então é dada a perceber a porosidade do tempo tragado de um gole só.


Às vezes, ao luar, nos distantes pensamentos em espiral por caminhos aleatórios, sobrava alguma lucidez. Era quando apetecia agarrar o sol ao poente, não o deixar esconder-se no horizonte. Congelar a noite, a escura noite em sagração dos mistérios que não pediam água para sorver. Era quando o corpo se embriagava sem recitar o álcool. Embriagava com o aluvião de pensamentos, uns atropelando-se aos outros, em perfeita desordem. Contudo, uma desordem que tinha o travo da harmonia. As perguntas que esbarravam na escuridão de respostas desdobravam-se em mais interrogações, as incessantes interrogações. Nem que fosse para obliterar todos os becos sem saída onde os pés tinham desaguado outrora. Havia muitos labirintos de escolhas imprudentes, um ror de encruzilhadas que tinham conduzido a lugar algum.


E se a lua acendia uma faísca que deixava uma nesga de céu escuro a refulgir, aproveitava para ler o que a opacidade nocturna desalinhava. Entrava fundo dentro da noite, naquelas noites em que a insónia derrotava o sono – mesmo nos dias em que o corpo se arrastava preso ao seu cansaço. Teimava em ler os ténues sinais que irradiavam da penumbra lunar. Talvez aí residisse o segredo, talvez aí se amanhassem as águas límpidas a brotar do manancial serrano, as cobiçadas águas resplandecentes na sua gélida temperatura. A fonte contendo o nutriente para um devir diferente.


Era o almanaque. Com mapas e tudo, uma bússola infalível, respostas magicamente dispostas que as tantas interrogações sucumbiam no seu cansaço. Nem os aterradores labirintos resistiam àquela distinção. Tudo embelezado com a nitidez dos dias ventosos que limpam do horizonte todos os vestígios de neblina. Era nesses dias que a noite demorava, exactamente como se o pôr-do-sol fosse adiado. Até que as resoluções estivessem cumpridas. Até que já não houvesse sequer significado para a palavra arrependimento.


Só que esse lugar não pertencia a este lugar. Era um idílico lugar onde a perfeição das coisas se consome na sua impossibilidade. Falsamente idílico, um odor que só tinha a aparência de perfume, só a anestesiar os sentidos. Era uma dimensão onde a inércia do corpo se transformava em arremedo de absolutas, fantásticas realizações. Que a experiência dos sentidos desmentia com o fragor dos desapiedados mentores da franqueza. Percebia que pertencia a um lugar que não existia. O pior era entender que o exílio de que andava em demanda era um lugar exemplar, onde o corpo, quando despertava dos sonhos acordados, esbarrava com um estampido doloroso.


O mal era a noite aterrar sempre que era indesejada. Logo quando quase tudo o que era ambicionado estava à mão de semear. Só que vinha a noite, como a maré que esbraceja ao beijar a areia e arruína, sem compaixão, o castelo que tinha levado tanto tempo a erguer. Sobravam os muitos planos, armazenados na biblioteca das memórias. Uma quimera apenas, pois as paredes da biblioteca ocultavam todas as nódoas coleccionadas através dos tempos. Mas da boca persistia o dizer, repetido à exaustão, como se fosse o dogma em que se encerrava: há-de a noite chegar. Mas antes faria cumprir a centelha que se desprende dos dias claros.


21.1.09

E se fôssemos carrascos do que comemos?


Mote: "Penso que as pessoas que comem carne deviam passar pela experiência de matar o animal de que se alimentam, ainda que fosse apenas uma vez na vida", Chakall, Cozinha Divina – As receitas de um viajante apaixonado pela cultura, Alfragide, Oficina do Livro, 2007, p. 121.


Uma reacção espontânea perante esta frase: eis por que razão deixei de comer carne. É nisto que penso quando invoco uma forma diferente de objecção de consciência que me fez parar de ingerir carnes. Contudo, não demoro em incoerência: o cozinheiro incluiu animais, todos os animais, mesmo os peixes que não deixaram de pertencer à minha dieta.


Logo a seguir, o chefe de cozinha parte para a elaboração da sua ideia: é o que se impõe para ganharmos respeito pelos animais que permitem a nossa subsistência. Confesso que a mensagem se perdeu, nebulosa, na auto-negação do seu enunciado. Se tivéssemos que matar tudo aquilo que comemos, que respeito exibíamos pelas vítimas que viriam parar ao nosso prato? Tirar a vida a um ser vivo é, em alguma hipótese, um acto de respeito pela vítima de que somos algozes? Porventura Chakall aduz o respeito pela importância que esses animais têm por serem mantimento dos seres humanos. Nesse caso, a ideia fica a debater-se nas amarras de um profundo antropocentrismo.


Já lá vou à pessoal incoerência – a objecção de consciência apenas dirigida à carne, deixando os peixes à mercê dos arrastões que sulcam os mares com as suas redes de malha apertada. Antes disso: incomodam-me mais os vegetarianos militantes que pretendem impor a sua forma de ver o mundo aos demais. Tentando convencê-los que a opção de usar animais como matéria-prima alimentar é um atentado ao meio ambiente. Teimam em ser intrusos nas vidas alheias, espiolham hábitos, agitam consciências. Sempre com a pose de quem está três degraus acima dos demais, na posse de uma moralidade que tem tanto de cintilante como de deplorável. Não como carne, mas não me importa os que os demais comem. Seria incapaz, como alguns exagerados fundamentalistas fazem, de não amesendar com algum comensal que esteja a tragar um petisco feito com carne. Prefiro amesendar com carnívoros que com sacerdotes do irrecusável vegetarianismo.


Não estou a endossar a apreciação da pessoal incoerência para as calendas, mas agora quero olhar de perto para a ideia de Chakall. Quantas pessoas teriam coragem de tirar a vida a um animal que, depois de confeccionado, aterrava no prato? Uma das "tradições" (a palavra aparece grafada com intenção) populares é a matança do porco. Há quem faça disso arraial popular. Quem consiga tirar prazer ao ver o porco a relinchar de dor quando o facalhão o espeta até às profundezas das vísceras. Quem assista, deleitado, à torrente de sangue quente a escorrer das entranhas do bicho. Sem se incomodar por essa carne se acomodar no seu estômago depois de amanhado e esquartejado o cadáver do animal, antes de passar pelo espeto onde é assada no calor da fogueira alimentada pelas cinzas do carvão. Tirando os "matadores" profissionais, os que o fazem de forma maquinal, quantos os que se arrebatam com a matança do porco disponíveis para espetar a faca e tirar a vida ao animal?


Todas estas dúvidas não obedecem ao pragmatismo da vida contemporânea, é sabido. Não precisam de me lembrar que existe uma indústria que ultrapassa os constrangimentos da consciência caso tivéssemos, uma vez na vida que fosse, de acorrer à sugestão de Chakall. Há matadouros – e quantos se prestariam a trabalhar num matadouro? Há talhantes, mestres no tratamento das carnes, que recebem as carcaças e as desossam e separam em suculentos nacos mesmo a convidar os olhos e o apetite que passam pelo talho – e quantos se prestariam a trabalhar num talho?


Nisto, deixei de conseguir tratar-me como hipócrita. Não é moralidade alguma. É uma mensagem só para o interior de mim. Admito, é um entendimento bizarro da "ordem natural" das coisas. Podem invocar a natureza humana, que sempre fomos predadores de animais que, com variações de costumes consoante as culturas, vivem para morrer na nossa gastronomia. Bom proveito, e nada mais. A ideia de Chakall faz sentido – mas já não a explicação da ideia. Seremos carnívoros envergonhados, porque há outros que fazem o trabalho sujo para nos deliciarmos com os prazeres da carne.


Agora à incoerência que me assalta: e os peixes, não são (por assim dizer) animais de deus? Eu seria incapaz de os pescar, à linha ou por arrasto. Seria incapaz de ir para a faina para ser o algoz dos peixes entrados no porão, degolando-os no derradeiro acto que cerceia a vida. E, no entanto, os peixes continuam a pousar no meu prato. Esta é a minha bizarra teoria: os peixes não convivem com os humanos como os animais que nos dão carne a comer. Não é argumento, apenas pretexto. Até conseguir de vez combater esta incoerência pessoal que me mói.


20.1.09

Piquetes de greve – ou a prova da “liberdade comunista” (uma contradição de termos)


(Declaração de interesses: este texto não é para ser contextualizado na enésima greve dos professores que ontem aconteceu. Nem é a uma colagem à ministra da educação – muito longe disso.)


Em dias que calhe em sorte uma greve – uma greve geral, ou uma greve que, por afectar um serviço público sensível, tem efeitos retumbantes – há três aspectos que me chamam a atenção: os números da adesão, tão diferentes para sindicatos e governo, ou de como a matemática se presta a manipulações; a insensibilidade social da greve, que faz falar mais alto os interesses particulares de um grupo em sacrifício da imensa maioria por ela afectada; e os piquetes de greve.


Em sectores onde a sindicalização é mais elevada, há casos impensáveis protagonizados pelos piquetes de greve. Casos em que os zelosos cães de guarda destacados para o piquete de greve não passam de arruaceiros. Intimidam as "ovelhas ranhosas" que tentam furar a greve e exercer o pessoal direito ao trabalho. Começam por tentar persuadir pela força da palavra. Por lá andará um delegado sindical amestrado, com a doutrina toda empinada e treinado para o convencimento dos trabalhadores. Caso haja teimosos que nem com a catedrática capacidade de argumentação do delegado sindical se deixam seduzir, sobra o derradeiro instrumento: a intimidação física, a coerção servida através da violência, sem esquecer os insultos fáceis a quem não é permitido o direito de dissidir.


Os sindicalistas e seus capatazes que assim se comportam sucumbem numa contradição de termos. Fora das greves, deificam o direito ao trabalho. Protestam de cada vez que uma empresa faz despedimentos colectivos, de cada vez que uma multinacional encerra instalações por ter decidido emigrar. Fazem o seu papel: defendem os interesses dos trabalhadores à beira do precipício do despedimento. Argumentam a razão firme do direito ao trabalho dos que estão quase a ficar sem ele. Não é para aqui chamado, nesta altura, saber se faz sentido olhar para as empresas como cabides de empregos – é tema que ficará para outra ocasião. Trago aqui este assunto apenas para denunciar a contradição de termos de sindicalistas e dos arruaceiros a que entregam os piquetes de greve: afinal os trabalhadores têm ou não direito a trabalhar? Ou só o perdem naqueles dias em que são decretadas greves?


Isto leva à peculiar concepção de liberdade que faz parte da cartilha dos sindicalistas treinados pelo PC. Deixa de existir liberdade pessoal quando um colectivo – o colectivo que toma decisões que são sempre em favor dos interesses dos trabalhadores, note-se – decide que a greve vai para a frente. O catecismo comunista tem este predicado: a vontade individual é uma insignificância diante dos desígnios determinados pelo colectivo, os desígnios que fazem avançar a causa. Aos trabalhadores só resta a opção de não irem trabalhar em dia de greve. Devem anular a sua vontade individual perante o imperativo da greve. Até para não serem eles próprios, trabalhadores, a contribuírem para o fracasso da greve. Dirão os sindicalistas bem treinados que um trabalhador que declina a greve está a dar um tiro no pé.


Por mais que queira perceber a lógica de acção dos sindicalistas, há isto que escapa à minha compreensão: quando o imperativo colectivo se sobrepõe à vontade de alguém ir trabalhar em dia de greve, a liberdade desta pessoa desaparece. Esse imperativo colectivo é uma ofensa a um direito divinizado pelos sindicatos. É intolerável por causa da coação exercida pelos piquetes de greve. Bastaria mencionar a coação psicológica, quando os diligentes sindicalistas se esforçam por levar de vencida a pedagogia do argumento. O rosário de argumentos é, em si, um atentado à liberdade dos que querem ir trabalhar. Quando chega ao ponto de fazerem soar as ameaças físicas, sobra a supressão da liberdade. Assim fica desmascarado o entendimento de liberdade – uma liberdade muito entre aspas – dos comunistas que fazem política através dos sindicatos.


Já vi imagens vivas do labor dos piquetes de greve, perante a complacência da polícia que anda por perto. Aprendi que os polícias estão instruídos para defenderem o direito à privação da liberdade exercido pelos piquetes de greve. Por uma vez, a parte mais fraca – os que querem ir trabalhar e não o podem fazer – é a parte sacrificada no altar do sindicalismo que não olha a meios.


19.1.09

Pesadelos


E se David Cerny continuasse "Entropia", a tornasse ainda mais labiríntica na quintessência da maior riqueza da União Europeia – a diversidade cultural? Daqui vai uma visão muito pessoal da idiossincrasia lusitana. À beira do fim.


Mulheres aldeãs de farfalhudo bigode – ou apenas um acidente das hormonas, traição que nelas levita alguma masculinidade indesejada. Militantemente viúvas, mesmo que a viuvez o seja apenas dos estreitos quadros mentais por onde caminham. Às que cultivam a genuína viuvez, aquelas que viram o consorte cedo partir para seu definitivo túmulo, uma inquietante fidelidade jurada na lápide do consorte. A cor dessa fidelidade ausente é o negro dos trajes que jamais irão despir. Mercê do espartilho das convenções sociais. Pois a tacanhez das alcoviteiras arremessaria a artilharia pesada da "censura social" se uma pobre alma enviuvada ousasse recuperar garridas cores para o vestuário.


Homens rudes, atarracados mas de corpo maciço, as mãos sempre tisnadas pela sujidade que nunca conseguem esbater. Ostentam, com orgulho, a proeminente unha do dedo mindinho. A unha assimétrica, que cresce para além do estalão médio das unhas que encabeçam os demais dedos. É vê-los, sem ser em pose distraída, escavacar o pavilhão auditivo com a ajuda da tenaz que lhes cresce no quinto dedo da mão que estiver a jeito. Culminam o desempenho com um cuidado exame da cera extraída, como se fossem cientistas em diligente observação da matéria da sua ciência.


Pais de família – que orgulhosamente ainda se auto-intitulam "chefes de família" – arrebanham a prole, a mulher e a sogra para o dominical piquenique na mata, logo que a primavera dá uns ares da sua graça. A custo, deixam o futebol da aldeia entregue aos seus amadores artistas, cumprindo com denodo a obrigação familiar. Não é em vão que seguem, só falsamente contristados, marcando a estrada com uma lenta marcha. Pelo dia fora, a promessa de um fartote de comezainas e a zurrapa do vinho tinto vertido em copos de plástico directamente do garrafão de palha. A meio da tarde, quando os vapores etílicos fizerem o sono aterrar, deitam-se ao colo da primeira sombra que quiser ser testemunha dos urros que sopram na cantilena que ressona. Não há-de haver algazarra que perturbe o sono pesado como um elefante. Ao crepúsculo, trazem a família a reboque da condução passada pelo filtro dos vapores etílicos. Nada a temer; gabam-se de maior destreza ao volante quando já empinaram uns "copos valentes".


Tendo hábito, que já se demora, de me exilar em casa ao domingo, não sei se uma insólita derivação de domingueiros piqueniques persiste. Gente que não tem o rasgo de descobrir melhor local para os prazenteiros piqueniques que não seja o relvado que bordeja auto-estradas sem portagem. Conceda-se: a paisagem é bucólica, com o cortejo de automóveis em alta velocidade, um cortejo que sempre é policromático, o som constante e estridente dos rodados a massacrar o asfalto da via, a pureza do ar que inspiram com deleite, as carradas de monóxido de carbono servidas de acompanhamento dos pitéus tradicionais.


Gente mesquinha que se lamenta das desgraças nacionais, para as quais são os últimos a contribuir pois o mal é sempre alheio. A mesma gente que traga uma infusão de orgulho pessoal, sob a capa do pátrio orgulho, quando concidadãos triunfam em conceituadas provas desportivas. Fazem seus os sucessos que só pertencem aos esforços dos atletas. Fazem sua a bravura que sabem ser ausente. A indigência tinge o discernimento; e tão depressa vangloriam feitos como oferecem o cadafalso aos atletas em pátria representação que fracassaram as nutridas expectativas.


Um povo lamechas, derrotado, macambúzio (e o fado é sua expressão notória), preguiçoso, mestre-de-obras em expedientes vários, invejoso. Pequenino. Saudosista, que a inépcia do presente é compensada pelos feitos de outrora legados aos livros da História. Martirizado pelo eterno adiamento de si mesmo, a ceifa do sebastianismo é o seu algoz fatal. A viril gente de camisolas de alças, chinelo de dedo, sanduíche de courato e cerveja quente na mão, enquanto canta, do alto da voz estridulosa e desafinada, o refrão boçal de um cantor pimba no meio da praia que é um enxame de gente.


Pode estar outra portugalidade encerrada em centros comerciais pós-modernos. Podem os demógrafos insistir no êxodo dos campos para as grandes cidades, a sangria que semeia desertificação no interior e sobrepovoa o litoral. Nem assim esta portugalidade se desata do ruralismo salazarento. Pois até modernaços exilados na grande urbe, demiurgos da ruralidade incessante.



16.1.09

Satirizar idiossincrasias nacionais é uma heresia?


Um único ponto de contacto com o texto de ontem, para aproveitar o conceito de heresia – tão caro às religiões. Faço a exportação do conceito para matérias mais seculares. Pois há certas ofensas que parecem cominar, nos ofendidos, danos semelhantes aos pastores de igrejas quando invocam a intolerável heresia de quem afronta imbeliscáveis dogmas.


A presidência checa da União Europeia encomendou uma escultura a David Cerny, artista plástico também checo. É um costume já enraizado: cada país, ao passar pela faustosa presidência da União Europeia, quer deixar a sua marca. Até na arte. A escultura encomendada a Cerny, entretanto já plantada em Bruxelas à porta do edifício do Conselho de Ministros, está a deixar muita gente em polvorosa. A começar pelo próprio governo checo, que se queixa da impostura do artista plástico.


Cerny apresentou uma amálgama de imagens que retratam sinais distintivos dos vinte e sete países da União. Alguns ficam mal no retrato: "Portugal coberto de suculentos nacos de carne com a forma das ex-colónias, a Bulgária transformada numa retrete turca, daquelas com um buraco no chão que obrigam a uma incómoda postura de cócoras, a Alemanha reduzida a um emaranhado de auto-estradas a lembrar uma cruz suástica, (...) a Suécia numa caixa de móveis Ikea, (…) a Dinamarca [construída] em Lego, (…) a Holanda [inundada] deixando de fora apenas minaretes de mesquitas, (…) a Grécia em fogo, (…) a Espanha [coberta] de betão (…), ou Polónia com um grupo de padres na postura dos soldados americanos de Iwo-Jima a plantar a bandeira da homossexualidade (…) [e] um buraco no lugar do eurocéptico Reino Unido". Entre a perplexidade de uns e as gargalhadas de outros, sobra o protesto diplomático da Bulgária, o país que se considera mais ultrajado pelo artista plástico.


Eis a ponte entre a heresia religiosa e a heresia transportada para fora das fraldas da teologia: tal como nas religiões, há vacas sagradas que não podem, não devem ser afrontadas. É o respeitinho que obriga a ajoelhar diante das divindades, como nos inclinamos respeitosamente diante da bandeira da pátria quase tão deificada como o deus que nos protege. Num caso como no outro, a muito cinzenta adulação termina com uma lição que devemos interiorizar: não se brinca com coisas sérias. Se reclamações forem feitas mercê do atropelo à liberdade de expressão, ensinam-nos de seguida que não, não há atropelo nenhum: é só uma excepção à liberdade de expressão. A lição maior é irmos ao dicionário aprender o significado de "eufemismo".


A escultura chama-se "Entropa". Porventura o artista quis aglutinar "entropia" e "Europa" numa palavra só. A Europa como sistema em desordem, a desordem afinal ilustrada pela amálgama de idiossincrasias nacionais que se agrupam na União. Não é desordem, contudo, é a maior riqueza da União: a sua tremenda diversidade cultural. Não interessam para aqui os pormenores que explicam a posição de "marido enganado" do governo checo. Cerny terá feito coisa diferente do que lhe foi encomendado, deixando em maus lençóis as autoridades da República Checa. E terá enganado toda a gente ao prometer consultar artistas amigos do outros vinte e seis países para saber como retratá-los, coisa que afinal não fez. São detalhes, uma insignificância ao pé do que está em causa: a imprudência de satirizar as idiossincrasias nacionais, fermentando ofensas em grau variável consoante a imagem do país tenha sido mais ou menos devastadora.


Quem é incapaz de fazer auto-sátira oferece de si uma imagem circunspecta, a falta de rins para rir com aquilo que é. Quando tantas vezes se proclama a imperfeição humana, chegam depois os protestos dos protectores das idiossincrasias nacionais expostas à ridicularia. Protestam contra a abertura de espírito de quem consegue parodiar as suas próprias imperfeições. A que nos leva a pose de virgens pudicas ofendidas com a imagem desconfortável com que somos retratados na escultura de Cerny? Ainda levamos muito a sério a nacionalidade, como se o tempo não evoluísse para uma modernidade que nos entra pelos olhos e grita, bem alto, a superação das nacionalidades. Em vez de andar meia Europa profundamente magoada com o escárnio vertido em "Entropa", devíamos todos rir, de orelha a orelha, com as misérias de uns e de outros. A começar pelas nossas próprias.


A escultura até trata com generosidade a portugalidade. Três nacos de carne, como se fossem o espólio que sobra da aventura da colonização. Podia ser pior o retrato – ou melhor, na minha maneira de ver. Podiam satirizar a boçalidade lusitana, a aérea distinção de uma terra onde só se faz turismo, o folclore minhoto com vozes esganiçadas das cantadeiras em negação do que é cantar, a congénita adoração pelo vinho (e logo desde a tenra idade), o tristonho fado cantado por estreitas vielas lisboetas, o mais que se possa imaginar. Nem que fosse para contrariar a aldrabona imagem oficial de um eldorado que só existe para alimentar o ego de governantes que medram na esquizofrenia do que são.


Essa é a grandeza suprema de um povo: saber rir daquilo que é.


15.1.09

E se o cardeal pensasse sem ser com os pés?


Se não fosse alérgico a pertenças a grupos, não conseguia reprimir a vontade em alinhar num movimento que nasceu no Reino Unido que passa esta mensagem afixada em autocarros: não nos preocupemos por deus não existir, a vida é para ser vivida de maneira despreocupada. Já li algures que isto é um convite à desresponsabilização pessoal. Como pode alguém argumentar que aquela mensagem contém um convite à leviandade pessoal, é algo que ultrapassa a minha capacidade de entendimento. No fundo, quantas vezes as angústias são bem nutridas pelos imperativos que deus semeia na existência de quem nele crê?


Este é o intróito para repetir o repúdio pelas religiões, já que elas levam os crentes a empenharem a sua livre vontade. Porque os dogmas, ou os intérpretes autênticos dos dogmas em sua substituição, cerceiam o livre arbítrio, a espontaneidade do ser, por divina inspiração e imposição. Não, não me convencem que a religião, as religiões, são um agradável lugar onde a liberdade é cultivada.


O mais recente episódio que remeto ao pessoal recanto da infâmia para as religiões, devo-o ao cardeal de Lisboa. Em tertúlia nocturna, aconselhou as jovens lusas a fugirem a sete pés do matrimónio com muçulmanos. Desconheço o que antecedeu a tertúlia, se escorreu néctar vínico embalando sua senhoria para um ébrio estado, mas a certa altura terá justificado o insólito aconselhamento desta maneira: "pensem duas vezes em casar com um muçulmano, pensem muito seriamente, é meter-se num monte de sarilhos que nem Alá sabe onde é que acabam", concluindo que "uma jovem europeia de formação cristã, a primeira vez que vai para o país deles é sujeita ao regime das mulheres muçulmanas".


Estas pérolas opinativas fermentam um aluvião de comentários. A começar pelo inflamado combate a que vamos assistir entre os prolongadores do bafio sacristão e as virgens ofendidas pelo recalcamento do islão. Os primeiros vão defender a liberdade de opinião do cardeal, tal como se apressariam a dizer que não se zomba do catolicismo se alguém aparecesse a fazer humor com a igreja católica. Não ponho em causa a liberdade de opinião do cardeal. Nem tão pouco concordo com os que propõem a restrição da liberdade de opinião de certas pessoas devido às especiais responsabilidades que elas têm. O cardeal tem direito a dizer o que quiser; só me custa a entender que se intrometa na intimidade das jovens mulheres que estejam a pensar em cair nos braços de um feroz muçulmano. É a igreja católica na vontade indomável de domar os amores alheios.


Do outro lado, virá o habitual psitacismo dos que se atiram aos iconoclastas do etnocentrismo. Esses críticos reprovarão a falta de tacto do cardeal, acusando-o de desprezar uma cultura tão diferente da nossa. Serão os advogados de defesa de uma civilização que não pensaria duas vezes em remetê-los ao presídio se para lá fossem cultivar as suas alternativas opções de vida. É por isso que admiro a sua generosidade, o desinteresse com que defendem o "outro" que acham vilipendiado por "nós" – por aqueles de "nós" incapazes de compreender o "outro" na sua idiossincrasia cultural. Pena é que o "outro", tantas vezes, seja tão etnocêntrico como "nós". Uma vez mais, as terríveis sequelas das religiões: um combate retórico entre surdos, uma discussão com o magnífico resultado de levar a um beco sem saída.


Acho intrigante que a pessoa mais importante na hierarquia da igreja lusitana queira lançar gasolina para uma fogueira que já arde, alta e descontrolada. Pensava que as igrejas estavam mancomunadas umas com as outras, prometendo entendimentos que, quem sabe, levariam a aproximações tangenciais no futuro longínquo – e, afinal, não é isso o ecumenismo? O cardeal de Lisboa sabotou o ecumenismo. E, suspeito, comprou uma guerra com a comunidade muçulmana. Valha-nos que nessa comunidade não se conhece gente que esteja a treinar para bombista suicida.


Ficarei surpreendido se as palavras do cardeal passarem em branco no crivo das feministas. É verdade que sua senhoria dirigiu o alerta para as moçoilas, para que elas não sejam apanhadas no alçapão dos tenebrosos costumes islâmicos que não se cansam de atropelar os direitos das mulheres. As feministas deviam estar gratas ao cardeal. Mas suspeito que por aí virá uma revoada de indignações, com as feministas a reclamarem igualdade de tratamento entre os sexos – e então será ensejo para se falar dos jovens lusos enamorados por odaliscas muçulmanas. Seria a altura de todas as surpresas se consumarem: as pitonisas do feminismo a defenderem os direitos dos marialvas.


Digo isto porque no mesmo dia em que são trazidas as declarações do senhor cardeal, leio num jornal espanhol que foi retomada a lapidação de adúlteros no Irão. Os machos lusitanos, treinados para a habitual facadinha no matrimónio, que se cuidem se caírem no feitiço dos dotes das odaliscas iranianas. Quem se embeiçar de amores por uma iraniana e se mudar para aquele distante país, que se mentalize que depois não pode pecar com outras odaliscas ainda mais apetitosas. É que ser lapidado em praça pública, além de humilhante, deve ser muito doloroso.


Eis, em suma, como o cardeal errou no alvo da sua prédica. Não era às jovens que devia aconselhar, não era o incontrolável desejo de amores por muçulmanos que devia conter, como se fosse a folha de hortelã em receita afrodisíaca. Era aos varões endoidados por odaliscas. E assim se comprova como há, de facto, desigualdade de sexos. A penalizar o sexo masculino.


14.1.09

Por onde andou o dinheiro?


Não é como os economistas. Não interessa a "falta de liquidez", que tantas vezes sai das suas bocas para explicar o detonador desta crise. Muito menos importa mergulhar nas suas complexamente técnicas explicações da origem do dinheiro, de como é cunhado e de como se submete ao fenómeno da "velocidade monetária" – ou de quantas vezes a mesma nota passa de mão em mão, desmultiplicando-se em milhentas e milhentas de operações.


Em rigor: "por onde andou o dinheiro" é uma interrogação que pega no diapasão da "velocidade monetária". Mas só no diapasão, escapando às muito sinuosas curvas que o fenómeno tece nas mentes bestuntas dos economistas. Eis as interrogações que importam: por onde andou o dinheiro que chega às minhas mãos? Que compras foram feitas por essas notas que forram o interior da minha carteira? E se fosse possível seguir a pegada mercantil das notas, só para saciar uma inútil curiosidade, saber se essas são notas limpas.


Mais interrogações: o que faríamos, caso aquela cartografia fosse discernível, se uma particular nota tresandasse à imundície assim classificada pelos parâmetros da individual moralidade do seu detentor? Repudiaríamos essa nota, mesmo que ela fosse uma nota gorda? E se fosse uma nota que chegou às nossas mãos tendo antes liquidado, eu lá sei, uma operação plástica supérflua, um bilhete de tourada, um árbitro comprado por dirigentes desportivos, um concerto de Luís Represas, uma consulta de magia negra – rejeitaríamos essa nota se a sua procedência incendiasse a pessoal indignação? Como se, de repente, ao saber por que caminhos transviados ela andara, a nota ganhasse um odor pestilento, contaminada pela peçonha só destilada por uma osga nojenta.


Possivelmente, o oásis dos que não se cansam de denunciar a afeição do ser humano pelas trivialidades materiais que o dinheiro pode comprar. A repulsa imediata por aquelas notas manchadas pela sua origem. Desatávamos a deitar dinheiro ao lixo. Ah, os optimistas antropológicos por fim encantados com a espécie humana, por fim desligada das peias do materialismo, do sórdido materialismo que a corrompe, à humanidade. Ou não tanto optimismo, se passássemos a enxamear páginas de anúncios nos jornais oferecendo à troca as notas colerizadas por outras, imaculadas. Seria negócio ruinoso, decerto: pois neste desacerto da oferta e da procura, quem entendesse desfazer-se das notas embebidas em apostemas teria um preço a pagar, o preço ditado por aqueles que aparecessem com notas não lavadas na infâmia, enfim, as notas com um preço acima do valor facial.


Se aos historiadores da economia fosse dada a palavra, diriam que a origem da moeda está na confiança – a fidúcia, para remeter os "aprendentes" (incursão no "pedagoguês" corrente) para a expressão "moeda fiduciária". Então como agora, a confiança entronizada esteio nesta imaginada troca de notas caucionada pelas diferentes moralidades dos indivíduos. Pois este mercado não se compadecia com as manobras mentirosas de quem se aprestasse a trocar notas emporcalhadas para uns por notas de registo imaculado. Nem atestados com o selo de uma entidade despojada de desconfiança chegariam para limpar os falazes compromissos de alvura monetária quando, no fim de contas, só os seus detentores saberiam se o trajecto de outrora assegurava um registo limpo àquelas notas. Muitos podiam trocar algo por mais do mesmo, cair no engodo de um mercado ocupado por oportunista gente, da gente treinada para contornar a lhaneza de hábitos. Seriam, todas as notas, perfunctórios altares da apetecida alvura, apenas uma coreografia de engodos. De uma forma ou de outra, todos somos, aos olhos dos demais, gente domada pelo apetite de censuráveis hábitos. Dos hábitos que se pagam em dinheiro, logo aí, dinheiro contaminado.


Ainda haveria quem se dedicasse a tarefa mais singular: seguir o trajecto das notas que a si desaguassem. Por onde passaram essas notas, por que locais, distantes e desconhecidos, recantos escondidos nas profundezas de um mapa, ou grandes urbes invejadas por quem as nunca visitou. Haveriam de reproduzir mentalmente viagens aos sítios por onde as notas tivessem passado de mão para mão. Essas notas seriam postais porém não ilustrados – mas postais que entreteciam a imaginação febril dos argonautas a tactear as rugosidades de cada nota. Como se nesse táctil percurso deambulassem pelas ruas e avenidas e paisagens, ora bucólicas ora vulgares, viajadas pela nota.


Não interessa o cadastro das notas – atalham caminho os enamorados pelo pragmatismo. A realidade só assim é viável.


13.1.09

Liturgias, há muitas e de muitas formas


A fé move montanhas. Os crentes arregimentam-se numa entrega fiel às causas que professam. É uma militância dedicada. A certa altura, o individualista metódico estaca, admirado, diante da devoção dessas pessoas ao colectivo a que pertencem. Ao colectivo que alimenta a hidra ansiada, a hidra que já tiveram mas que parece ter-se perdido, a crer nos pregões de que não se desfazem, nos vestígios do tempo ido. Onde se personifica a possibilidade de apregoar os dogmas de sempre, os dogmas inalterados, apropriam-se do palco e desfiam uma liturgia muito própria.


Uma liturgia, uma liturgia vermelha. E tal como aprecio a descomprometida entrega às causas que professam, admiro-me como tudo é transformado em meio para alcançar os fins desejados. Tudo é instrumental da ideologia que os agrilhoa na "desivindualização" de si. Até a cultura – alguns dos ícones que consagraram ícones apenas porque eles também se entregaram à militância certa. A poesia como arma de arremesso, peças de catequização das massas mercê das estrofes arrebatadas do poeta, as estrofes que mobilizam os afectos. Por detrás da poesia, um programa político completo. Com a mesma retórica dos funcionários dedicados a espalhar a boa nova da ideologia. Só que embelezada através do encantamento que o poeta soube emprestar às palavras compostas em poema.


Fui moderador num colóquio sobre José Carlos Ary dos Santos. A sala cheia. Com protuberância de camaradas. Encerradas as intervenções dos oradores convidados, o palco para um grupo que veio declamar e cantar a poesia de Ary dos Santos. Como moderador tive que moderar os ímpetos perante a algazarra em que aquilo se transformou, um comício com todas as palavras. Mas um comício para convencer quem? A multidão de apaniguados que lá se deslocou para ouvir decerto o que já tantas vezes teria escutado? Ou seria um incansável proselitismo, na doutrinação dos demais, ausentes da militância a que as palavras da poesia a partir de certa altura engajada convocavam?


Nisto, escutando a alma toda aberta de um declamador enquanto se empenhava com emoção nos excertos do que considero um poema que é, todo ele, um programa de acção política ("Portas que Abril Abriu"), percebi: a performance era como se de uma liturgia se tratasse. Uma prédica que repristinava poemas de intervenção que aglutinavam os crentes, com direito a um dos chavões entoados à exaustão no seu particular combate político – "a luta continua". Não terão percebido, ou não terão querido perceber, que não assistiam a uma sessão de divulgação partidária. Depois caí em mim: tudo é instrumentalizável, até eventos académicos se prestam à usurpação da ideologia que querem imarcescível.


O problema será meu, admito. Não digo que ando nos antípodas daquela ideologia, para não arrostar o desconfortável rótulo de extrema-direita – rótulo que repudio. O problema será meu por conviver mal com a ideia da cultura ao serviço de propósitos políticos, quaisquer que sejam. Quando a cultura, qualquer manifestação cultural, se deixa contaminar por uma ideologia política, é a cultura que se abastarda. Uma ofensa aos poetas, aos pintores, aos cineastas, aos escritores, aos encenadores que se entregam no altar da deificação ideológica que os comanda.


O moderador do colóquio, por dever de ofício, constrangido a silenciar as muitas interrogações que gostaria de ali fazer. Não tenho pessoais preconceitos em ser admirador de poetas cultores dessa ideologia (Eugénio de Andrade, Jorge de Sena). Admirador daquela poesia que soube marcar a fronteira com a política, deixando-a do outro lado da trincheira. Pois trazer ideologias políticas para dentro da poesia é uma infecção da arte, uma subalternização dos poetas.


Sobra o conforto desta ideia: aos que tanto usam palavras que são inanes palavras no seu ideário (liberdade, democracia), ali uma bofetada sem luva, uma lição que deviam aprender não teimassem em permanecer cegados pelo espartilho dos dogmas: as portas de uma casa franqueadas pelos anfitriões para que estes convidados tivessem a liberdade de expressão que usaram como bem entenderam. Teriam encaixe para a reciprocidade caso lhes fosse proposto que na sua casa entrassem poetas proscritos apenas por andarem por ideologias renegadas? De repente, lembrei-me de evocar Ezra Pound, ou António Manuel Couto Viana. Nessa altura, o que seria feito da liberdade (de expressão) de que se convenceram ser penhores máximos?


12.1.09

Os jornalistas no tratamento informal dos sem-abrigo: não é “fascismo social”?


Acusa-se: há "fascismo social" quando gente bem instalada nas elites urbanas fustiga os pacóvios vindos da província que, a pulso ou mercê de encavalitamentos proporcionados por conhecimentos bem colocados, desembarcaram na grande urbe e singraram. Quem acusa essas elites citadinas de "fascismo social" repudia a sobranceria com que são tratados os saloios convertidos às mordomias (e ao poder) da grande cidade. Pelo caminho, denunciam a inveja recalcada das elites – pois vituperar os aldeãos que açambarcaram o seu lugar no estrelato da cidade expõe a inveja de quem vê a sua coutada tomada de assalto por arrivistas boçais.


Não é por ter nascido numa grande cidade que passo ao lado dos protestos contra a inventada categoria do "fascismo social". Nunca fiz parte, nem anseio integrar, as pretensas elites acusadas do "fascismo social". Pouco me preocupa que quem nasceu na província mostre tanta urgência em aterrar, e com sucesso, nas grandes cidades. O que me inquieta é outra manifestação de apatetado moralismo pela voz dos que inventaram e se insurgem contra o "fascismo social". Sobretudo porque alguns deles, manipulando os cordelinhos da opinião publicada, parecem adormecidos diante de episódios que se encaixam no protótipo do "fascismo social".


O frio polar dos últimos dias terá enregelado a atenção destes feitores da moralidade que o rebanho deve prosseguir. Como o frio polar agrava os riscos dos desprotegidos, nos últimos dias a comunicação social prestou atenção ao que estava a ser feito nas grandes cidades para proteger os sem-abrigo. Nas televisões, repetiram-se directos das tendas da Cruz Vermelha que asseguravam uma bebida quente e refúgio temporário aos que dormem ao relento. Directos acompanhando organizações não governamentais que percorreram os recantos das grandes cidades a tentar convencer os sem-abrigo a irem para refúgios. Por mais que uma vez, os repórteres de rua entrevistaram sem-abrigo. Invariavelmente, eram tratados pelo nome próprio antecedido do artigo definido "o" ou "a" – "o José", "a Maria".


Por um momento, tento perceber a lógica do "fascismo social" só para indagar se este tratamento deveras familiar e informal não se acomoda nos critérios que os oráculos da moralidade acertada estabeleceram. Eu acho que aquele artigo definido a preceder o nome dos sem-abrigo encerra ainda mais "fascismo social" do que a altivez com que são mimoseados os poderosos de hoje vindos da aldeia.


A diferença está nisto: os mesmos jornalistas tratam com menos informalidade qualquer anónimo que se cruze à frente dos seus microfones. Já se viu um repórter de rua usar "o" ou "a" antes do nome da pessoa entrevistada? Já para não mencionar o respeitinho obrigatório perante os doutores e engenheiros – e se for gente instalada na política, mais alto grita o respeitinho. Ainda hoje, instantes antes de uma jornalista entrevistar dois sem-abrigo e dispensar o tratamento muito familiar, tinha passado os olhos por um canal onde uma secretária de Estado era respeitosamente tratada como "senhora secretária de Estado".


Estou-me nas tintas para os salamaleques que nos distinguem no tratamento pessoal, sobretudo quando se convenciona que esse tratamento exige respeitabilidade. Somos prisioneiros de um formalismo excessivo quando falamos uns com os outros. Leva tempo até que o degelo do formalismo tenha lugar. O peso exagerado das instituições é a outra faceta do formalismo exigível no tratamento pessoal – principalmente quando as pessoas se relacionam investidas numa determinada qualidade institucional. Por isso é que fomos surpreendidos com aquele famoso "porreiro, pá" entre um primeiro-ministro e o presidente da Comissão Europeia.


É irónico que ande por aí tanta pedagogia da igualdade e logo a seguir os mais desprotegidos recebam um tratamento tão familiar. Só faltava tratar os sem-abrigo por tu. O que diriam, caso não estivessem distraídos, os que por aí andam a vigiar casos de "fascismo social" diante da liberdade de tratamento dedicada aos sem-abrigo? É por serem desfavorecidos que se prestam a um tratamento que é quase "tu-cá-tu-lá"? Os penhores da igualdade forjada, os mesmos que não resistem a ensaiar um e mais outro acto de engenharia social para todos sermos melhores de acordo com os seus critérios, podiam inventar nova regra: os jornalistas teriam que utilizar "senhor" e "senhora" antes do nome dos sem-abrigo. Ou todos teríamos direito a tratar o primeiro-ministro por "pá".


9.1.09

E a crise, não está em crise?


Bartoon, de Luís Afonso, in Público de 09.01.09

Há males que vêm por bem. Primeiro acto: a crise tão funda tem uma função pedagógica. Põe mais economia nas notícias – e com um esforço para decifrar a língua de trapos a que os economistas estão habituados. Fala-se em recessão, distingue-se a recessão da depressão, explica-se o (para muitas gerações vivas) insólito fenómeno da deflação. Segundo acto: os optimistas de serviço, diligentes a encontrar uma réstia de esperança mesmo nos horizontes mais enegrecidos, aprestam-se a ensinar que da crise vem a renovação dos hábitos. Insistem: vamos aprender a mudar de vida por imperativo da funda crise. Dos escombros virá uma vida melhor – assim culminam a récita optimista.


Terceiro acto: na crise sem precedentes (ao recuar nos oitenta anos anteriores), há o governo de um pequeno país periférico que tranquiliza as gentes. Pois vão aumentar os rendimentos dos que continuam a trabalhar. Portanto, uma crise muito paradoxal. Diria: se crises tão profundas e demoradas são isto, que venham crises ainda mais graves e vagarosas, muitas crises como caução do milagre do aumento do rendimento disponível das pessoas. Às malvas a outra faceta da retórica demagógica desse governo: que o cutelo do desemprego é o mal maior da crise. Em que ficamos: a crise é medonha por trazer o detonador da bomba relógio do desemprego? Ou é calmante por esticar os dinheiros das famílias ao fim do mês?


Para quem ande atento às análises mais rigorosas feitas pelo mundo fora, esse pequeno país periférico espraiado diante do Atlântico teima em ser um oásis no meio do deserto de terras atingidas pela crise. Nem que seja por decreto, pois a vontade dos governantes substitui-se à pungente, incómoda realidade. É de uma injustiça atroz que a recessão tenha aterrado logo na véspera das eleições, transtornando os planos de reeleição de governo tão excelso. Muda-se a realidade, então: demorou a reconhecer que a recessão já tocava esse país com as suas arrepiantes unhas, mas por fim a chancela oficial das contristadas palavras do infalível timoneiro confirmou-o. Esse país afinal não é oásis nenhum. Ou sim: pois se as pessoas vão melhorar o bem-estar como sinal da crise…


Uma interessante coincidência: no dia seguinte, o aval da recessão foi confirmado pelo governador do banco central. Ou seja, o timoneiro terá pegado nas informações segredadas pelo companheiro do banco central e antecipou o que este ia comunicar à ansiosa nação no dia seguinte. Creio que a isto se pode chamar "inside trading" – coisa punível por lei, não tivessem os intérpretes do episódio as costas protegidas pela impunidade.


Os economistas que insistem em fazer fretes aos políticos do seu agrado teimam em confundir o público mergulhado na iliteracia económica. Como convencer as pessoas que esta crise não tem precedentes e se faz prova disso com o aumento dos rendimentos disponíveis? Quando as famílias ficam com mais dinheiro em caixa no fim do mês, isso é sinal de crise? Outra interrogação incómoda, só a talho de foice: não é obsceno passar esta mensagem quando, ao mesmo tempo, o combate ao desemprego é a prioridade da política económica que pretende combater os efeitos da crise tão terrível? Expliquem ao exército de desempregados – aos que já engrossam a estatística, e aos que lá hão-de figurar – que os outros, os que não tiveram (ainda) essa desdita, até ficam a ganhar com a crise. Aposto que os desempregados ficam com o espírito (e o estômago) apaziguado.


Por aqui se vê a anomalia dos tempos que vivemos. A própria crise entrou em crise. Um dia destes, até as tempestades mais devastadoras passam a merecer o rótulo do "bom tempo". O odor libertado pelas fábricas de celulose e pelas quintas de suinicultura deixará de ser pestilento, embora o seja, entronizado então no lugar de aromática essência de perfume. A comida mais intragável, afinal um petisco digno de Pantagruel. Nem sei se a própria noite será leito para a claridade e a luz diurna transformada na escuridão total. Até o relativismo perderá a sua relatividade.


O que vale, é que nesse pequeno país periférico a mediocridade medrou. E há quem, do alto da sua estaleca intelectual, se apegue à desonestidade intelectual do governo para fazer prova que a crise não é crise, ou que a crise não tem direito a incomodar a elevação do governo da sua adoração. Torcer a realidade, eis uma lição que não ficou esquecida do velho estalinismo.



8.1.09

Areia para os olhos


Os brandos costumes, outra vez: foi detido um dirigente de um clube de futebol transmontano que disputa uma divisão inferior do respectivo campeonato distrital. Tentou comprar um árbitro por cento e cinquenta euros. Quanto às grandes batotas do futebol, nem com o auxílio da sonoplastia se lá chegou. O mais hilariante é ter ouvido, um dia destes, numa conversa à roda da mesa, um adepto da agremiação regional envolvida no escândalo da corrupção de arbitragem ter dito, sem corar, que entende que as coisas tenham que se passar desta maneira.


Às vezes não consigo sucumbir à tentação dos moralismos fáceis – e eu que acho abjecto qualquer tipo de moralismo. Neste caso, ao ver o ar natural com que o comensal de ocasião justificava os arranjinhos através de dinheiro podre que corre debaixo da mesa. Era este o raciocínio: por inúmeras vezes fora testemunha de falcatruas semelhantes quando várias empresas tentam triunfar num concurso aberto para determinada obra pública. Ora se isto se vulgarizou no meio empresarial, ainda por cima com a conivência de funcionários do Estado que deviam garantir imparcialidade, por que razão se condena a corrupção no futebol? Concluiu: pois o mundo em que vivemos é uma selva. Só os que atingem a destreza das tramóias é que soerguem o pescoço. Eu rematei a conclusão: soerguem o pescoço do pestilento pântano, onde se demora o resto do corpo.


Não estou a sugerir que se feche os olhos à pequena corrupção. Nem que se feche os olhos ao caso do dirigente transmontano por se tratar de quantia irrisória. O que acho risível é a encenação montada: já que há por aí tanta gente indignada pelo poder à parte dos grandes clubes de futebol, cala-se essa gente com a notícia, diligentemente segredada a jornalistas decerto mancomunados, de que um dirigente já foi apanhado no submundo da corrupção. Pensarão: não se fala mais do assunto; já foi apanhado um zé-ninguém e os profetas da desgraça ficam contentes com a razão do seu lado.


Quantas vezes não se faz justiça, a justiça que aparece nítida diante dos olhos e dos ouvidos, só porque certos procedimentos foram atropelados? Havia escutas, entretanto anuladas por uma sinuosidade processual qualquer. E assim um pormenor tem mais importância do que a substância. Já estou a supor o raciocínio do tal comensal: ainda bem que assim é – ou a versão adaptada do adágio "fazer justiça por linhas tortas". A expressão ajusta-se tão bem ao caso (com o desconto de não se estar a fazer justiça alguma). Que as linhas são tortas, tanto como os caminhos tortuosos que têm assegurado vitórias a eito, dessa mácula não se livram.


Há cerca de um ano, a comunicação social divulgou, com alarde, um caso de corrupção envolvendo um clube dos campeonatos distritais de Viseu. Diria tratar-se de uma precisão cirúrgica, a que permite saber da tentativa de comprar árbitros de futebol apenas entre a arraia-miúda dos dirigentes. Os tubarões são incapazes disso. E ai de quem sugerir o contrário, que logo o ónus da prova sobre si recai. Com a agravante da punição adicional por ofensa à honra e bom nome dos dirigentes enxovalhados. A certa altura, mercê das fantásticas resoluções da justiça encantada com os pedacinhos de processualismo, até as escutas telefónicas pertencem ao património da fantasia colectiva. O que foi dito nas conversas telefónicas espiolhadas afinal não foi dito – ou foi como se não tivesse sido dito.


Lamentavelmente para a gente envolvida nessas escutas, não se trata de uma auditiva alucinação colectiva. Por mais que tentem limpar a imagem e de acusados se façam vítimas, por mais que tenham obtido o cancelamento das escutas, não se livram das palavras que proferiram e que ficaram registadas. Essas escutas podem não ter utilidade para a justiça dos tribunais. Mas têm utilidade para que as pessoas que não julgam ninguém na barra dos tribunais profiram o seu juízo pessoal. Uns, porventura cegos pela preferência clubista, dirão que não vem mal ao mundo se os dirigentes desportivos andam por aí a comprar árbitros, tecendo as mais absurdas analogias com as infames cumplicidades entre políticos e grandes empresas. Mas há maior ofensa aos praticantes quando o seu esforço esbarra no escandaloso concubinato entre dirigentes e árbitros que se deixam seduzir?


Entretanto, haveremos de ter direito a episódicas e cirúrgicas descobertas de dirigentes arraia-miúda que tentaram comprar árbitros e foram descobertos pela tão eficiente polícia. O mais a que teremos direito é que se continue a atirar-nos areia para os olhos. No rescaldo, tudo como dantes.