30.11.22

Três tretas dos trastes

Frankie Goes to Hollywood, “Relax” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=WMlUhIi5N-g

Ondas hertzianas: o batismo correu mal e o nascituro, ao deixar de o ser, abjurou a jura metafísica. Alistou-se no exército dos trastes. Não havia redenção à sua medida. Outro atraiçoou a própria alma (dizia-se, sem serem adiantadas provas). Um terceiro era embaixador da desonestidade. Todos pareciam pimpões, mestres na retórica, convincentemente vendendo o invendível, defendendo o que mais ninguém defendia, impecavelmente desfilando os smokings na lama que era o seu habitatnatural.

Três eram os trastes e não se conheciam. À vez, eram autores de tretas inomináveis. A pose solene, quase aristocrática, escondia todos os alçapões por onde eram apanhados os descuidados que se deitavam no emaranhado das insuspeitas conspirações. Só depois de cominadas as tretas é que as vítimas se apercebiam do seu estatuto (de vítimas). Os trastes não deixavam vestígios. Pareciam fantasmas, depois de consumadas as tretas.

Um dia coincidiram no mesmo lugar. Só estavam eles. Olharam uns para os outros, com a pose garbosa que vinha a preceito das ocasiões solenes em que fingiam ser gente de gabarito. Cada um interiorizou que os outros eram as vítimas ideais para o logro do dia. Nenhum sabia que os outros eram tão diligentes na arte. Prometia ser aparatoso. 

Um deles tomou a palavra. Queria enganar os outros dois com um só golpe de asa. Aparentava ser o mais ousado. Os outros dois não foram tão ambiciosos. O segundo traste queria enganar o terceiro traste e este apontou a artilharia ao primeiro traste. Falavam todos ao mesmo tempo. A definição acabada de cacofonia. Salvaram-se uns dos outros porque, no meio da cacofonia, ninguém entendia ninguém – ou, em hermenêutica alternativa, todos fingiam que não percebiam o que era dito pelos outros dois à medida que contribuíam para a cacofonia reinante com a sua dose de arrazoado prolixo.

Todos prometeram a todos que iam pensar nos assuntos. Todos sabiam que eram candidatos a vítimas, virando-se o feitiço contra o feiticeiro. Naquele dia, as tretas dos três trastes não vingaram. Anularam-se uns aos outros. Salvaram-se, ao menos num dia, de serem mentirosos profissionais. Prometeram encontrar-se amiúde. Para contrariar a sua natureza. 

29.11.22

Comezinhos de algibeira

Big Audio Dynamite, “E=MC2”, in https://www.youtube.com/watch?v=cHTDkJ-bQqM

Uma lupa. Uma lupa intrínseca, para poderem revistar milímetros de forma que pareçam quilómetros. Nunca em exercício introspetivo: o empreendimento direciona-se para fora do ser, para os outros que são titulares de vidas mais interessantes. 

A lupa sofre um súbito embaciamento quando obedece ao efeito boomerang. Empalidece. E, tomada por uma timidez que a condena à miopia, a lupa cala-se quando inventaria os detalhes que haveria a anunciar da vida própria. Estes meirinhos que perscrutam vidas exteriores mostram uma generosidade desarmante. Sua é a confissão (todavia não apalavrada) de consigo carregarem vidas desinteressantes, sem-sal, vidas que não dariam direito a biografias. É um desprendimento que não pode deixar de ser louvado. 

Quando a demanda se enlaça na peugada de vidas outras, os meirinhos exercem um metódico inspecionar que não deixa nada ao acaso. É como se cada segundo dessas vidas estivesse à mercê do escrutínio dos presuntivos engomadores de vidas alheias. Como cães pisteiros, farejam cada milímetro das vidas alheias. Talvez encontrem pecadilhos que mereçam denúncia, pois muito embora ninguém lhes tenha endossado o mandato de avalizadores morais, eles chamam a si a incumbência na mesma. Não é de estranhar. De tão desinteressantes vidas, são sanguessugas das vidas que se alinhavam pelas costuras da controvérsia. Ficam reféns de um papel contraditório: oferecem ao escrutínio público os desvios dos cânones, e escondem, em segredo, como gostariam de saber conduzir as suas vidas pela mesma craveira.

Vão ao fundo das suas algibeiras para disfarçar as ambições de serem o que participam em forma de libelo acusatório. Aspiram o desprendimento das peias que os mantêm nas baias da pequenez. Soubessem ao menos compreender que não há correspondência entre a dependência dos lugares-comuns e uma existência à prova de bala, e deixariam de carregar o fardo que os acantona no fundo das pequenas algibeiras de onde espreitam.

28.11.22

As histórias que contam poemas

Porno for Pyros, “Pets” (live at Woodstock), in https://www.youtube.com/watch?v=dEn8EyM_A-U

Caio de pé. Com a fala que contém as minas que anoitecem o chão. Sei do alívio próprio que é a fome do medo. Na enseada em que desaguou o ontem, desisti de saber dos oráculos propedêuticos. Aceito que o leito em que me deito seja o xisto carnal que, irregular, desmancha o chão. Não sou arrás das apostas que centrifugam as inúmeras equações feitas de sortilégios. Espero. Apenas espero. Dentro do tempo consentido.

Caio de pé e resisto às pulsões tentaculares que arrematam as árvores. A viagem não têm apeadeiros. No esgrima dos motivos conservam-se obsoletos versos escritos num idioma datado. O corpo, pelo contrário, está atualizado, confessa-se ao contemporâneo que não deixa de existir, está preparado para litigar com os contratempos.

O circo não passa de uma ilusão – pretendem os patronos dos costumes consolidados, verberando os rebeldes que abjuram os lugares-comuns que movem a turba. Não sou de linhagem que se convença com a primeira palavra que recusa a sindicância. Jogo a insubmissão contra a anestesia forçada a que nos condenam. Nem que seja por dissidência metódica. Nem que seja pelo reconhecimento da loucura que verseja com o pragmático que se omite nas veias lacustres.

E continuo a cair de pé, do miradouro enevoado perscrutando um quase nada, que é um imenso tudo para gáudio do olhar interior que não se consome no teatro das banalidades. De pé, contra os arsenais herméticos que não poupam a honra, contra os diletantes pregadores de verdades imperativas. A favor de um projeto de algo que possa ainda não ter domínio delimitado nem bocas que possam ser suas embaixatrizes. No povoado palavroso, as intenções são jogadas num labirinto de silêncios. O juiz supremo será o acaso.

Sem saber cair a não ser de pé, como os gatos que não esgotam todas as vidas em crédito; como os gatos, insuspeitamente independentes. Por preço nenhum, que a verticalidade não se penhora por sinecuras nem se coloca à mercê de um punhado de genuflexões aos senhores dos destinos por que nos conduzimos. Pois cair de pé é a fiança de um sono desembaraçado, à espera que apenas do presente haja notícias. 

O passado deixou de ser matriz. E o futuro é uma constelação de negros e vigilantes sóis à espera de serem desvelados. Um poema contínuo aos lugares onde apenas a incógnita se faz ouvir.

25.11.22

Ir a jogo (sem trunfos)

Nitin Sawhney, “Koyal”, in https://www.youtube.com/watch?v=dEg3Ok7aMyA

Manual de instruções (para os que dele precisarem): não se recusa uma boa peleja, que a verticalidade da coluna dorsal exige o devido cuidado e a covardia é um bolor que apequena. É preciso ir a jogo, sempre. Mesmo que não haja trunfos, nem sequer escondidos, na cartada que se alberga na manga sucessiva.

Ir a jogo, sempre. Porque o jogo ganha-se e perde-se, umas e outras vezes. Que ninguém se convença que existe um imperativo constante de saldar o jogo por triunfos. É da natureza do jogo dele sairmos perdedores, umas ou outras vezes, sem ser preciso cuidar da estatística e cair no poço fundo da angústia se a mórbida curiosidade mostrar números que causam condoimento. 

E pode-se ir a jogo mesmo que se saiba que os trunfos estão ausentes. A perícia do rumor, infundamentado como devem ser os rumores, é a arma secreta que não pode deixar de ser usada. Aceite-se a analogia simbólica: é um pouco como jogar à roleta russa (um jogo, outra vez): a loucura de não saber se o gatilho premido corresponde à câmara vazia ou se ela está, nessa posição, ocupada por uma bala, dispara o termómetro da adrenalina no próprio e no adversário de circunstância. A isto chamam, os jogadores encartados, bluff

E se as limitações da ética espreitarem pelo periscópio, que não fiquem os jogadores embaraçados: o bluff integra o arsenal dos estipêndios do jogo, não se pode considerá-lo uma mentira. Não abarca o remorso legítimo levantado pela consciência que se ativa enquanto tal. Os que vão a jogo devem jogá-lo de acordo com as regras estabelecidas. Delas não consta o impedimento do boato, nem o boato faz parte da semântica da mitomania. 

As dores de consciência por apego à ética ficam reservadas para núpcias diferentes, as que são extrajogo. O jogo admite um parêntesis na ética da mentira, excecionada quando o palco é do jogo. Os jogadores só devem recear se o boato não impedir que se perca o jogo.

24.11.22

Especiarias

Gorillaz ft. Thundercat, “Cracker Island” (live at MTV), in https://www.youtube.com/watch?v=gTs4bv5mZWA

O suor lavado na lava que respira, antes que seja tarde. Um beijo levado ao rosto, que a noite não se envergonha. As mãos tatuadas de blandícia, o capítulo que se segue a uma coreografia lasciva. O vulcão não dorme. Os rostos enfeitam-se na maresia, de propósito; a maresia é a sua maquilhagem. Todas as tatuagens, as visíveis e as invisíveis, desfilam nas paredes onde os remoinhos do medo se dissolvem.

Tudo, como se fosse um souk. As especiarias amontoadas, obedecendo à ordem das cores e dos odores, à disposição dos artesãos. Uma paleta cuidada, avivando os sentidos à medida que se percorrem os corredores do mercado, à medida que os pregões ininteligíveis atropelam o silêncio, emprestando uma gramática singular ao lugar. Os vendedores aproximam-se. Adivinham a origem dos forasteiros. Se não acertam à primeira, não erram à segunda. Nunca se houvera visto relações públicas tão diligentes e mercancias que se tornam exuberantes aos olhos consumidores. Os sentidos pares, extáticos, levitam pelo mercado fora. Não chegam a perceber quando saem do mercado, devidamente anestesiados.

A constelação de aromas fica embebida nos corpos, mistura-se com o suor. As mãos não se fundiram com as especiarias, mas os corpos parece que mergulharam numa piscina onde a água foi substituída por uma infusão das melhores especiarias. Os olhos fecham-se, procuram o sono impetrado por horas consecutivas de viagem pelas estradas intermináveis, por paisagens intermináveis. Os poros que habitam o corpo exalam a fusão de especiarias e de suor. Nem o ar condicionado previne os corpos suados. 

O sono mistura-se com um sonho. Cada capítulo do sonho é o eufemismo de uma especiaria. Como se cada especiaria tivesse estabelecido uma embaixada e reclamasse, a seu favor, uma courela do corpo. Este tornara-se a cartografia das especiarias inventariadas no mercado. Com serventia para fins diferentes, abrindo as hipóteses de utilização do corpo.

Nas noites seguintes, os sonhos assim traduzidos repetiram-se. Podia-se estabelecer que já era um perito nas especiarias. Tratava por tu o cravinho, o açafrão das Índias, a malagueta, o cardamomo, a noz moscada, a pimenta de Caiena, a canela, o sal dos Himalaias, o anis, o pimentão doce, e a fusão de muitas delas, o caril. As especiarias funcionavam como as palavras: tinham de ser escoltadas a preceito das ocasiões, e algumas delas não podiam ser caldeadas. 

23.11.22

A comunidade possível (dodecálogo)

Pond, “Man It Feels Like Space Again” (live at Electric Brixton), in https://www.youtube.com/watch?v=JvMrZEgcAok

(Sob o manto da aparência, um exercício de resignação?)

I. Não se alinhavem as bainhas da perfeição. As pessoas estão longe de a açambarcar. Não se exija à comunidade o que não é do domínio das pessoas.

II. Não seja distante o sedimento da ambição. Se nos regermos pela passividade, ficamos à mercê da diligência dos outros. Não se suponha ser foragido esse cenário. Os insubmissos não estão habituados a amesendar à mesa das resoluções.

III. Não seja uma desambição, o porvir. As fogueiras só se ateiam para memória futura. 

IV. Não se finja o arsenal inacessível. As armas que se terçam no lugar onde todas as beligerâncias são recusadas não coabitam com o vazio dos rumores. 

V. Não sejam vãs as comendas, se o memorial se extingue nos vestígios do passado. 

VI. Não se confunda a memória com o cimento da pertença. As saudades são mitológicas. A boa fazenda não se compadece com figuras messiânicas, meteóricas como sempre o são.

VII. Não se evoquem os nomes herdados do futuro – os nomes depressa condenados à ausência. O horizonte não se adivinha no selo branco dos sonhos.

VIII. Não se levantem bandeiras arcaicas. As juras efémeras jogam-se contra a sindicância das almas, depressa volúveis na confirmação dos estilhaços em que medram.

IX. Não se lancem os dados na provecta imagem da esperança. O conhecimento alivia o desencargo da indigência.

X. Não se confundam os verbos gastos com os que se assenhoreiam do vindouro. Os oráculos dissolvem-se na medida de um tempo que não se confirma. As dores ficam por conta dos que sobram para o inventário.

XI. Não se convoquem as testemunhas da exaltação coletiva. A dilação esconde as fragilidades não reconhecidas. A carne está tatuada de fragilidades.

XII. Não sejamos arquitetos de obras sumptuosas, janelas miríficas abertas sobre ao anoitecer quimérico, poemas extáticos que glosam uma gesta predestinada, um escol que irradia a claridade que se escondeu, por eras a eito, nas sombras avivadas desde os cárceres que encerravam os espíritos. Sejamos a safra que o imperfeito instante cuida de conspirar.

22.11.22

Os guarda-costas das mentiras

The Fall, “Wrong Place, Right Time”, in https://www.youtube.com/watch?v=b2oldN23Ii4

Não são abutres. Nem daqueles mordomos que cuidam das cerimónias que homenagem os finados. Não são, tão pouco, párias que dissidem da pertença, uns apóstatas da sociedade. Passeiam-se como párocos da seriedade. Esse é o paramento que envergam, a par com a sua melhor figura que traduza a solenidade que vem sempre a rimar com a probidade. A verdade não se finge. Não se diga o mesmo da mentira.

A si chamam a comenda da integridade. Não há quem com eles ombreie na récita da honestidade. Se forem desafiados por uns órfãos de reconhecimento que os encostam à mentira, exasperam-se. Tartamudeiam palavras que se atropelam umas às outras e, trapalhões, juram vingança na barra de um tribunal, que não se hipoteca a honra de uma pessoa de forma tão leviana. Nem a suspeita que levantam pode ser usada a seu desfavor: o ónus corre por conta de quem acusa alguém de ser mecenas da mentira e, mesmo assim, ripostam como se fossem onerados com o arsenal do desmentido. Alguém os devia advertir: quem é acossado pelo estigma da mentira e reage como se tivesse de provar o contrário, tem contas cúmplices com a mentira. De outro modo, não daria o flanco.  

Seja dado vencimento à hipótese de alguém se sentir lesado ao ser encostado às cordas da mitomania. Quer os que são aí depositados por mera infâmia. Quer os que sabem, em pergunta à consciência, que a acusação tem fundamento, mas não dão o braço a torcer. Não se sabe como tirar as medidas de um e de outro. Pode-se peticionar o princípio da insuspeição até prova em contrário, o que nivela o mentiroso escapista e o injustamente difamado. Não deixa de ser um tabuleiro confortável para o mentiroso rotineiro.

Até a prova em contrário, os mentirosos nunca são. Eis o convite materializado para os mitómanos sem remissão o serem sem que seja mostrada a gramática das suas mentiras. Podem ser, ao mesmo tempo, patronos e guarda-costas das mentiras. A sobreposição de papeis reforça a dúplice condição com um só propósito: a mentira irrecusável. Mentir é fácil. 

21.11.22

O homem que lia o dicionário ao deitar e ao levantar

Nitin Sawhney, “Down the Road”, in https://www.youtube.com/watch?v=4NtHo3FYdXw

Não seriam as unções várias a arreliar o alpendre se o sol o visitasse. Era como o homem, proprietário da casa, solitário por militância, que encontrara a sua melhor companhia ao deitar e ao levantar: um dicionário. Abria-o ao acaso. A primeira palavra que não conhecesse era anotada num bloco de notas espartano guardado na gaveta. Depois prometia tecer uma teia em que participassem as palavras anotadas, um enredo em que fossem partes as palavras acabadas de anotar. À falta de melhores entretenimentos, este era o preferido do homem. Não o acusassem de ser inculto, ao menos (que da acusação de misantropia não se safava). A empreitada começava assim:

Catecúmeno: aquele que se prepara para receber o batismo.

E depois,

Eupatia: paciência, resignação.

Quem não se lembra dos bebés, ainda reféns da tenra idade, vítimas prediletas dos costumes religiosos, à espera dos santos banhos que dizem ser a caução para entrarem no reino de deus? E os bebés, pacientemente a serem jorrados com um feixe de água necessariamente benta, acolhidos no país divino, não sem, sorrateiramente ingratos, berrarem um choro convulsivo, para gáudio dos pais, da família e dos restantes entes queridos que eram testemunhas da cerimónia. Os catecúmenos têm de se predispor à eupatia, mesmo que não saibam ao que vão. Literal e eufemisticamente.

Ao que se seguiam,

Dendroclasta: pessoa que não respeita as árvores.

E

Prândio: refeição suculenta; banquete.

A proteção da natureza continua o seu messiânico caminho. Nele, diariamente são arregimentados mais seguidores. Pressentiu que o próximo alvo dos ambientalistas seria a cultura. Não toda a cultura; o feixe de ódio seria dirigido para a literatura. Começariam por acusar as editoras de só ambicionarem o lucro e de editarem incessantemente literatura cuja qualidade não compensa o sacrifício de árvores. Dando a mão aos apóstolos da extinção do capitalismo, parariam no apeadeiro da exprobração do capitalismo, acusando as editoras de querem o lucro em vez do mecenato de quem presta um serviço à humanidade. Constatando que não conseguiam convencer “o mercado” (o somatório de autores, editores e leitores) a abdicar do livro físico, passariam a dirigir a ira contra os livros. Se outros houve, em tempos, que condenaram livros à fogueira, os novos arautos da moralidade irrecusável lançariam o dedo acusador sobre autores, editores e leitores: do libelo constaria a acusação de serem os piores dendroclastas que a História da humanidade conheceu. Ato contínuo, depois de expropriarem livros de bibliotecas em barda, teriam a seus pés o prândio que os apaziguaria. Diriam que os livros banidos eram uma dádiva para a humanidade (sem darem conta de como estavam errados).

Para o dia restante, faltava colher 

Nédio: que reluz; luzidio; que tem pele gordurosa.

E

Onfaloscopia: rezar enquanto olha para o próprio umbigo.

E ainda

Errabundo: errante, vagabundo.

De outra cepa, putativos condutores de almas, ciosos das suas malabares elucubrações, assestavam o arsenal contra os errabundos que, de tão nédios, se dedicavam à onfaloscopia. Ao menos, oravam. Não era comos os hereges admitidos a concurso por deferência dos deuses de serviço, que negavam a existência destes e não participavam no movimento oratório universal. Desses se dizia serem nefelibatas que transitavam pelo excesso de hedonismo, desgraçando-se, sem saberem, por descuradoria dos deuses a concurso. Desses se dizia serem apenas errabundos, os piores de todos.

E antes que a cavalaria dos pesadelos montasse tenda, o homem fechou o dicionário. Não fossem os vultos receber ordem de soltura e lhes fosse encomendado o desassossego do sono que queria plácido.

18.11.22

A chapada de deus

Mogwai, “Like Herod” (live in Sydney), in https://www.youtube.com/watch?v=CPTw44AWNWA

Deus foi chamado a intervir. 

(Alguém perguntou, ciente das modas que triunfam com a modernidade que vingou, se deus não deve ser conjugado no feminino. Não se perpetue a desigualdade de género com o beneplácito de deus, que deus certamente não estranhará a incumbência dos tempos modernos e das suas exigências. Deus não repudiaria o transformismo. Doravante, deus conjuga-se no feminino.)

Uns meliantes torceram a bondade inata da condição humana e andaram a espalhar caos e desconfiança. Tudo sob a égide de deus, mas à revelia do seu conhecimento (provando que o mito da omnisciência é só um mito, infundamentado). Quando soube das tropelias, deus armou-se do arsenal que serve de corretivo. Que esperassem as duras chapadas, os beócios que as estavam a pedir.

Confrontados com o tremendo poder de deus, os meliantes que boicotaram as serenas fundações da sociedade não se arrependeram. Foi-lhes outorgada essa possibilidade, quando depuseram perante a deus, que não escondia o seu estado iracundo. Foi dito, com a voz medonhamente tonitruante que parecia entrar pelas entranhas dos réus, que não era admissível que a conduta semeasse medo e desconfiança entre os demais, tornando-os, por reflexo condicionado, insolentemente cúmplices. Deus não só não perdoava o indecente comportamento dos que estavam perante o seu julgamento, como lhes imputou circunstâncias agravantes por serem responsáveis pelo contágio aos que, antes disso, foram suas vítimas e se tornaram também algozes por ativação do fermento da vingança. 

Deus não hesitou no julgamento, que foi célere e mordaz. Os réus foram intimados a subir os degraus que os separavam de deus para se submeterem ao seu corretivo. Deus não foi de modas. Puxou a mão atrás, a sua mão grande, pesada e espadaúda, e impôs três chapadas a cada meliante (para confirmar o lugar-comum que aviva a memória que três foi a conta que deus fez). Atordoados, e com a marca da mão de deus tatuada no rosto, os condenados saíram, um a um, do altar divino. Ninguém podia garantir que não reincidissem. Ficava por provar se as chapadas de deus os demoveu da maldade.

Havia um pormenor que não tinha cabimento: deus, na sua infinita indulgência, não acalenta a beligerância das chapadas nos frágeis súbitos do seu reino, por mais que estes cicatrizem a fragilidade de outros. Posterga a punição, pois é a tolerância que o faz deus. Deus não foi feito para esbofetear os que incomodam o seu reino de infinita bondade

17.11.22

A colheita só (short stories #413)

God Is An Astronaut, “When Everything Dies” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=rest_s-0UdI

          As cartas estavam espalhadas – era um baralho estilhaçado. Se as pessoas soubessem do sol luminoso que contrariou os dias anteriores de chuva, deixariam os seus refúgios, sentiriam a rua hasteada pelo sol. Continuavam dobradas sobre o seu dorso, escondendo-se das demais dores. Hibernavam, ainda. Não era esta cidadania que os compêndios regiam. Antes que fosse tardio, o dia colhia-se na sua efemeridade. Uns mecenas irradiavam a cortesia própria de quem não recusa um sorriso ao dia consecutivo. Queriam ser uma centelha, mas não um exemplo. Se os outros acabassem corrompidos por um luar inesperado, acusariam a solidão da culpa íntegra. Mas ninguém podia garantir que o luar ocorresse; ninguém acautelava as cinzas esporádicas que esvoaçassem por ação do vento torrencial. Aos outros só se podia deixar as suas ações, não as intenções. As intenções seriam nulas. Se fossem arrematadas aos mercados ancestrais, as sementes da memória espalhar-se-iam pelos campos assim tornados férteis. Não era a solidão das pessoas que demovia as intenções. Antes a água tumultuosa da maré-viva do que um rio mortiço arrastando-se preguiçosamente para a foz. Os candelabros das salas vistosas ateavam a luz precisa. As pessoas precisam de um sinal para não darem parte ao medo. Precisam de manhã para saberem do paradeiro. Sem que as lojas urdidas concebam os vultos que semeiam os pesadelos. Há um oráculo algures que desata os bordões a que se agarra o sangue que resolveu as suas convulsões. Um úbere que dá de beber aos insaciáveis embaixadores da vida. Se os curadores de esperança viessem na dobra das páginas sucessivas, não haveria o entardecer que desfalece no ventre da noite. Os cometas que deixaram tatuagens lacradas na pele não seriam chamados ao pelourinho da desmemória. A colheita não é dessa linhagem. Não espera que o dia consecutivo ocupe o seu lugar. Ele vem no seu regaço.

16.11.22

Primeiros socorros

The Clash, “Clampdown” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=b9YmHJ9Gkt4

Não era o entardecer que salvaria o dia. Cada onda que se fundia no areal parecia uma faca assestada na fundura da carne. Cada aguaceiro clandestino, entre duas nesgas de sol e uma nuvem timorata, parecia amansar a maré que adornava a finitude do dia. Uma tela que servia para aprender. Os lamentos podem ser matéria gutural, arrancados ao magma que não se deixa intimidar. Não deixam de se lamentos.

O ribombar da trovoada servia de banda sonora. Uma trovoada seca – não havia sinais de chuva por perto, os aguaceiros rarefeitos tinham dado lugar a um ar quente, seco. A trovoada assemelhava-se a uma indulgência. As costas duras amparam as contrariedades que sobram da modesta generosidade das coisas. Se houvesse um plano ideal, não havia entardeceres que se arrumavam no Inverno da alma. Do dia, passar-se-ia à noite. Sem dar conta.

O resgate dos tempos fugidos sobressaía na semiótica hasteada. De vez em quando, anotavam-se os vestígios arrancados à madurez das coisas, como se a aprendizagem não passasse de uma estultícia. Os corpos andavam numa roda-viva, como se fossem apenas peões. Nem os detergentes conseguiam determinar um módico de pureza. Não era para esses fins que se congeminava este higiene. Ela não passava de uma metáfora. Rimava com o estatuto da pureza.

A páginas tantas, uma dor pungente ecoou nas veias, que latejavam a propósito. Ninguém nasce para transportar em si as facas dilacerantes da dor – jurou a si mesmo, enquanto jogava uma roleta-russa com o acaso, sitiado pela contradição. Porventura, chegara a hora dos primeiros socorros. A hora em que o socorro da alma que atravessa uma floresta sem árvores vivas vem primeiro. Primeiro, o socorro. Depois, os primeiros socorros. Antes que a noite fosse um azulejo com inscrições banais, a despeito do lugar sempre inaceitavelmente centrípeto que todas as almas chamam a si.

No leito da noite, a urdidura dos vultos mordia a orelha já de si ferida. Fugia dessa carnificina. Fosse pelos olhares furtivos ou pelas palavras que se demoravam na sua frieza, pouco restava que fizesse lembrar o dia quase acabado. Que se soubesse, o amanhã não tinha sido adiado. Seria um novo nascer. Com o alvo atirado contra o tempo reincidente, aquele que deixara de ser prestável para os primeiros socorros.

15.11.22

Prometia-se o silêncio

dEUS, “Must Have Been New”, in https://www.youtube.com/watch?v=SUCUO5k0MLg

Prometia-se o silêncio na fachada corrompida pelas falas ciclópicas. O atropelo de palavras tornava o ar insuportavelmente insidioso. Ninguém esperava que os outros terminassem o que tinham para dizer. Era como se a cidade fosse composta por múltiplas pistas onde passavam vozes sobrepostas. A fala geral tornara-se gongórica. O ruído era a pior poluição.

Estes eram os termos gerais da depreciação do silêncio. Todos tinham uma palavra, uma palavra que fosse, para esbracejar em sua defesa, ou para arremessar contra o outro, ou para apenas não ficar refém do silêncio. Convencionara-se que a fala traduzia o exercício da liberdade. Não se previu que o exagero da fala a banaliza, corrompe a liberdade.

As palavras eram terçadas como armas. Eram palavras beligerantes. Não acrescentavam património ao espaço que se queria enriquecido com as falas das pessoas. A confusão entre o direito sem repressão e a repressão dos direitos extinguiu a beleza das palavras. Também em relação a elas se cumpria uma função básica da natureza humana: o excesso rasga o valor da coisa correspondente.

No meio da cacofonia, ninguém conseguia descobrir os freios para tanto mercadejar de palavras insignificantes. Pois só se apuravam palavras irrelevantes, ininteligíveis, num mapa onde não era possível fazer um inventário de quem tinha posse na palavra. Este coloquial desejo não era embainhado, não tinha curadores. As pessoas temiam que a apologia do silêncio fosse apedrejado pelos que se apresentam como embaixadores das liberdades, os que não se cansam de apregoar o direito ao uso da palavra sem diferenças de estatuto, quaisquer que sejam. Os que escondem o verniz da utopia na mal disfarçada linhagem de igualitários.

Se ao menos houvesse quem prometesse o silêncio, sem o silêncio ser entendido como as algemas que se abatem sobre as pessoas. Oxalá as pessoas entendessem que o princípio geral do atropelamento da palavra dissolve a relevância das falas. Até acabarmos todos a falar para dentro de nós, numa repetida exaustão de frases ditas em circuito fechado. 

Se ao menos o silêncio fosse entendido pelo que ele é válido e não pelos lugares-comuns que os corruptores da palavra lhe atribuem. Se houvesse quem conseguisse convencer os gongóricos que a exaustão da palavra é a sua denegação. Podia ser que o silêncio fosse a melhor promessa eleitoral.

14.11.22

Páginas amarelas

The Blaze, Dreamer”, in https://www.youtube.com/watch?v=G6K_hkVdQgw

Um forte, sozinho no meio da maré que espera a subida. As aves consultam os ventos. Esperam pelos ventos que sejam a favor, só depois é que armam o voo. Esperam com a paciência genética, amparadas nas ameias do forte enquanto os mariscadores afocinham no lodo que ficou da maré-baixa.

Os poetas não deixaram páginas atravessadas na letargia que se insinua na paisagem. A ermida escondida entre os vales do rio serviu de esconderijo contra as tempestades. Terá sido o salvo-conduto de inúmeras vidas que seriam presas fáceis do tempo tumultuoso. Os poetas ignoram a generosidade da ermida. Preferem extasiar-se com a indolência que os transporta por um palco lisérgico. Os prazeres mundanos servem de matéria-prima para a poesia. Que ninguém maldiga o hedonismo praticado pelos poetas.

As mulheres dos mariscadores estão de atalaia. Neste pedaço da costa francesa, as marés desaparecem num ápice, mas regressam sem pré-aviso. Não se pode confiar nos marégrafos de serviço. As mulheres previnem o cerco dos mariscadores pela maré que não quer ser subalterna. As mulheres querem tanto o sustento da família como a segurança dos maridos. Não necessariamente por esta ordem.

Se em vez da maré for uma tempestade a descompor o horizonte, as mulheres guiam-se pelas aves que esperam um sinal. Mal as aves esbracejam o voo, as mulheres sabem que o vento sopra para o lado que é a viagem das aves. Se as nuvens se congeminarem iracundas a caminho dos maridos, ciciam um silvo. Os pássaros não funcionam nesta frequência modulada. Os maridos, sim.

Se um poeta de passagem não estiver em hibernação forçada por ação do hedonismo prático, irá parar diante da tela que o largo estuário oferece. Ao longe, do tamanho de pequenos insetos, os mariscadores que esgravatam o lodo para retirarem crustáceos pagos a preço de ouro. Na margem, onde a areia não atingida pela maré cheia se funde com o paredão, as mulheres com medo da viuvez (ou, dir-se-ia, ciosas dos réditos da família) inspecionam o horizonte. Procuram marés e tempestades que possam apressar a viuvez. Os poetas saberiam ilustrar, com o poder heurístico das estrofes, que as mulheres ficam viúvas antes de os consortes terem esse direito. 

Os poetas servem-se de páginas amarelas, retiradas a almanaques antigos que inventariam os números de telefones dos assinantes, para lacrar os poemas vividos. Dirão, se sobre o assunto forem perguntados, que amarelo é o sorriso das mulheres que têm a viuvez prometida. Não entendem por que ficam de vigília aos maridos, se são impotentes quando as circunstâncias se jogam contra eles.

11.11.22

Ardósia

Sault, “Heart”, in https://www.youtube.com/watch?v=-5OzNTZystM

Não se diga que o que se escreve fica lacrado na babugem do tempo. Não se diga que são essas as palavras intemporais; o vento alisado pela efemeridade cuida do seu desmentido. As impressões digitais que são o periscópio da alma são conduzidas por uma ardósia visível. Que ninguém tenha a pretensão de colonizar a ardósia.

Dantes, o giz emoldurava a fragilidade. Era fácil apagar o que era dito ou escrito. Não ficavam vestígios para memória futura. As pessoas podiam ser destemperadas. Se houvesse matéria viva para controvérsia, as ondas de choque eram meãs – a palavra de um contra a palavra de outro, e todos nivelados pela igualdade de estatuto. Ninguém se perdia no nevoeiro crítico das palavras que podem ser resgatadas a qualquer momento, mesmo quando o seu autor já delas se esqueceu. 

A ardósia extinguiu-se. Todos os escrutínios se exercem na exposição aos demais. Nada fica por decantar. E até as palavras mais simples se expõem às figuras de estilo acrescentadas pela liberdade hermenêutica de quem as lê, ou pela intencionalidade da tresleitura. Às vezes, é preciso adicionar um guia de leitura. A efemeridade foi liquidada nos saldos da modernidade. Nada sobra da espontaneidade que era possível quando a ardósia era a matéria-prima da escrita.

Os puristas continuam a usar a sua pessoal ardósia. Escrevem, reescrevem, eliminam palavras, passam um borrão pelo texto todo, usam-no como apêndice de outras circunstâncias. Os dedos não se cansam das arestas do giz: a ardósia é sua e só sua, o giz é património de quem tutela as palavras lacradas na sua transitoriedade. Em vez de pesadelos que adulteram o sono, por medo do futuro e do escrutínio à mercê de indisfarçados propósitos, tira-se partido da indulgência de saber que a ardósia não é refém da perenidade. Estes são os que ficam à porta do reconhecimento. Sobram como anónimos, ou como figuras inexistentes porque não se entregam à visibilidade pública.

Enquanto houver ardósia, não somos soldados sem nome que se caldeiam com a verosimilhança dos juízes de causas alheias. A ardósia não se compadece com a intrusão dos outros. É uma coutada, impermeável aos repentes dos outros. Quem domina as figuras de estilo na ardósia é quem dela tem o monopólio do uso. Os outros são apenas testemunhas, passivas.

10.11.22

Pimenta de caiena

The Jesus and Mary Chain, “Something I Can’t Have”, in https://www.youtube.com/watch?v=087CuqXhl7s

Se fosse assim a modos que estouvado, o arquivista dedicar-se-ia à música minimalista, em vez de andar a ver os resultados da fusão do cinema alemão da década de setenta com a arte dadaísta. Cuidaria de andar em linhas oblíquas, para efeitos estatísticos (o registo da métrica do andamento diário, que andava burocrático nos registos quotidianos). 

Não recusaria um Pisco Sour, mesmo que a bebida tivesse sido adulterada com o adicionar de pimenta de caiena. Não seria autor de um raspanete ao homem do bar, ou, em versão diplomática, de uma mera advertência pedagógica, para prevenir iracundos deslindes que possam ferir a imagem do bar. Na hora da repristinação das almas desembaraçadas, saberia escolher as que não voltariam sequer para memória futura. As dos capitalistas donos do bar não participavam dos seus mandados, nem das suas indulgências. Se decidisse passar o entardecer num banco do jardim, levaria tremoços. Esquecer-se-ia do que fosse criteriosamente açambarcado pelo propósito do esquecimento. Antes que fosse noite, devolveria os restos dos tremoços aos gansos que languidamente sulcavam as águas do lago limítrofe.

A memória era continuamente assaltada pela pimenta de caiena depositada no sopé do Pisco Sour. Voltou ao lugar. Tinha de confirmar que tinha sido um equivoco limitado ao dia em que decidira começar o entardecer bebericando um Pisco Sour enquanto apreciava as mulheres esbeltas que acorrem ao estabelecimento (em vez de ir em retiro para a solidão de um banco de jardim na companhia de tremoços e de um livro ao acaso, só para eventualmente impressionar). O homem do bar era outro. Desta vez o Pisco Sour vinha coroado com angostura, como é de lei. 

Se não fossem estas coisas mundanas, a vida era uma árvore prometida à decadência. Reconhecia-o, mesmo contra a costela de filósofo (todavia, amador) que lhe emprestava o ar lunático reconhecido por quem o conhecia. Não havia problema. Nem com a imagem de lunático andrajoso e misantropo. Nem com a colonização da vida pelas coisas dela mundanas. A pimenta de Caiena não chega a ser um sequer sucedâneo da angostura. O Pisco Sour é que decide. 

9.11.22

Estes pássaros que me atropelam

Yeah Yeah Yeahs, “Wolf”, in https://www.youtube.com/watch?v=otlUyyQSIIs

Em bandos, voando a velocidades vertiginosas, siam sobre os passeantes como bombardeiros convocados para confirmar o princípio geral do desassossego. As pessoas não se habituam a estes bandos de bandidos pássaros. Tremem de medo só de os saberem nas imediações da cidade, ciciando o medo que depois semeiam em alqueires de rebeldia. Ninguém os apanha. São protegidos pelas leis que protegem a natureza. As leis que se desimportam das pessoas, como se elas fossem adereços que estorvam o resto do mundo.

Os pássaros, não contentes com o princípio geral do desassossego que instalam, defecam sem critério sobre quem passa. Não precisam de ser meticulosos na mira: as ruas estão apinhadas, há sempre uma cabeça que serve de chão para os dejetos excretados pelos pássaros. As pessoas ficam indispostas. Há notícia de vestuário definitivamente danificado, tanta a corrosão das fezes dos pássaros que não metem travão no dolo.

Um grupo de rebeles cidadãos que se insurgiu contra a rebeldia da passarada irrefreável pôs-se de atalaia numa milícia indocumentada. Tem de ser assim: as leis não toleram quem importunar um ave destas e são severas para os que ceifarem vidas dos pássaros rebeldes. Clandestinamente, as milícias fizeram o seu caminho. Têm duas árduas empreitadas: dar luta sem quartel às aves falsamente canoras e esgueirar-se à perseguição montada pelas autoridades. 

Aos poucos, a milícia foi ganhando popularidade. A cada dia que passava, e a cada dia que os milicianos divulgavam, em vídeos furtivos, as proezas na caça aos pássaros impertinentes, mais gente sussurrava o seu apoio. Os pássaros, intuindo a guerra estabelecida com os humanos que se escondiam atrás de máscaras (o resto do stock sempre teve serventia), tornavam-se mais expeditos na guerrilha aos humanos. Não se pressentia um final feliz para esta beligerância desatada.

Tempos depois, a cidade estava deserta. O armistício teve esse preço. Os humanos abandonaram o lugar com a promessa de realojamento noutros lugares. Foi o preço a pagar pela não importunação dos pássaros importunadores. Estes estavam, porém, desconsolados. Venceram a guerra, expulsando os humanos para longe da cidade. Estavam desconsolados porque já não tinham vítimas para as suas catilinárias. A expansão do seu domínio foi discutida em conciliábulo. Se expulsaram os humanos de uma cidade (um erro de diagnóstico: os humanos é que bateram em retirada), outras cidades limítrofes havia por conquistar. 

A nova colonização seria dos pássaros. A menos que estivessem, sem darem conta, a exagerar no pressentimento e acabassem vítimas da ambição desmedida. Os humanos capitularam numa cidade. Mas não admitiam capitular em mais nenhum lugar. As armas ainda estavam do seu lado.

8.11.22

Etimologia (short stories #412)

Sigur Rós, “Svo Hljótt” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=DI22uJhgLVM

          Não percebo como os nacionalistas incorrigíveis, os de cerviz ideológica e os mais numerosos que escorregam do orgulho pátrio para o nacionalismo pueril, ainda não descobriram que portuguesa rima com certeza. E ainda ninguém terá explicado aos revolucionários das mais diversas linhagens que o apeadeiro é o lugar onde se apeiam, mesmo que seja contra a sua vontade, os capitalistas que medram na infâmia do egoísmo e da avareza. Não se diga, em abono dos nacionalistas, que a bandeira que dizem honrar é um salvo-conduto da estética – é só perguntar a um tutor da moda e a um cultor da estética, que dirão, sem pestanejar, que não é com essa combinação de cores que os estetas se inebriam. Não se diga, em abono dos variegados revolucionários, que a vida do operariado ficaria melhor se os capitalistas fossem condenados à extinção. Ao centro da mesa, num ecumenismo comovente, sobem em uníssono os nacionalistas e os revolucionários. Deles se diz que não conseguem conviver no mesmo lugar. É um preconceito – e como os preconceitos, fadado para errar. Os nacionalistas atiram-se aos cueiros dos capitalistas. O egoísmo e a avareza são incompatíveis com os deveres perante a pátria. Sem saberem, fazem o jogo dos revolucionários. Estes retribuem a gentileza. As fronteiras liquefeitas opõem-se aos dogmas de que se alimentam. Não enjeitam resgatar o imobilismo das fronteiras que separavam, de viva-voz, os países. Pois desse modo tiram o palco ao grande capital, que precisa da ausência de fronteiras para vender em qualquer lado e para em qualquer lado produzir, contratando a mão-de-obra que for mais barata. Sem darem conta, os revolucionários contribuem para a retórica de ensimesmamento dos nacionalistas. Laboram na mesma etimologia. Numa fraternidade irreconhecível que, todavia, se ativa no ecumenismo que não se cansam de praticar através de refrões tão consanguíneos.

7.11.22

Dueto

The Durutti Column, “For Belgian Friends”, in https://www.youtube.com/watch?v=YDyzOQuBm20

Sempre que aparece o sol-posto, sobem as cortinas que ditam a efemeridade. Não se atrevam balanços de cada dia assim saldado. É uma contabilidade sem cabimento. Em vez disso, o que sobra do dia, já na sua metamorfose de noite, é decantado. Os mandamentos de inviáveis curadores das almas assim diriam. Nós não somos desse rebanho – mas não somos de rebanho nenhum.

Pondo o sono como refém da noite, entra-se no mundo dos acasos. Somos viajantes sem sabermos para onde nos levam os argonautas que retiram lucidez aos enredos dos sonhos. Não há mapa que apanhe a medula dos sonhos que desfilam no cenário em que somos viajantes passivos. Somos levados na curadoria dos sonhos, às vezes dos pesadelos. Não sabemos como somos ora figurantes, ora personagens de corpo inteiro, da matéria onírica.

É como se o mundo se escondesse num tremendo parêntesis, ou albergasse uma realidade paralela onde os sentidos se refugiam em hibernação. Diríamos que falamos um idioma que não conhecemos. Que fomos a lugares nunca andados. Que houve gente que esteve na vida sem estar. Sem culpa formada, somos arrastados para circunstâncias que nem sabemos terem acontecido. Tudo se passa como se mergulhássemos nas águas tépidas do mar e por lá nos mantivéssemos, à espera de salva-vidas. À espera de outras vidas.

No acaso dos sonhos (ora dos pesadelos) é outra vida que se vive. Numa argamassa que muitos diriam inviável, ela desdobra-se nos palcos proporcionados pela matéria insubstancial dos sonhos. Uma vida que se conduz em dueto, no diálogo de surdos entre a vida assim considerada (a da lucidez extraída ao sono) e a que se motiva no sortilégio da matéria onírica.

Se o enredo dos sonhos fosse inventariado, que literatura seria legada? Talvez uma fusão entre a cacofonia das sensações irrepresentáveis e o vulcão acrisolado que ateia as convulsões interiores. Um labirinto à espera de tradução. E nós, personagens domadas pela voragem dos sonhos, anotando em cadernos gordos o futuro dos sonhos (ou os sonhos futuros).

 

4.11.22

Desinstalação (short stories #411)

Nick Cave, “Red Right Hand” (live in Dublin), in https://www.youtube.com/watch?v=6Paj0eZumYc

          A quem aproveita o medo? Por mais que se arrematem as virtudes que esconjuram o medo, fica sempre a pairar a sua possibilidade. Mas não devemos nada ao medo. As mãos aguentam todo o suor que nelas desagua, dizendo-se que o suor é outra vítima do medo. Antes o suor do que nós. Antes a safra demorada no púlpito da perseverança, desinstalando os espasmos que nos deixam à mercê do medo. Se ao menos evocássemos o futuro desprendido, as manhãs que se cumprem na sua serenidade, os frutos pendidos sobre a boca, alimentando palavras quiméricas – se ao menos não fugíssemos de tudo isto, o medo era só a tradução da ilusão. A nós compete torná-lo uma ilusão; desfabricá-lo. Como se viesse com uns arremedos de noite e não se furtasse ao nosso escrutínio. Se não devemos nada ao medo, podemos ser nós a escoltá-lo. Não esperemos pela instalação do medo. Montamos a armadilha que proporciona a sua desinstalação – e ela acontece antes que o medo convoque para si um nome próprio. Sabemos onde está o abismo, o mapa já tratou de o cartografar. Se a lucidez não for omissa, não atravessamos o limiar da falésia. E corremos, de mar em mar, apanhando as palavras que esvoaçam, levadas pelo vento gentil, até sermos reitores do dicionário por que nos regemos. Em vez de a inércia nos deixar prostrados, e nessa prostração sermos presas fáceis para o estigma do medo. Cumprimo-nos. Não seremos ideais, que nem sequer acreditamos em ideais. A impressão da imperfeição não colhe armas no (nosso) rosto da fragilidade. Não é um medo que se tenha. Afundamos o medo até que não seja mosto para uma colheita vindoura. E proibimos os submarinos. É nesta Primavera dileta que inscrevemos os nossos nomes. Não há desinstalação que se compare.

3.11.22

Fugir da atualidade como o diabo foge da cruz

Goat, “Run to Your Mama”, in https://www.youtube.com/watch?v=i7zx_n8vi2g

Acompanhar a atualidade pode ser uma empreitada desagradável. Comentá-la pode implicar danos para a saúde mental do comentador. A atualidade está a atravessar um estado lastimável (e quando assim não foi, que se atire a primeira pedra – et pourtant...). Dir-se-ia: um estado comatoso, por causa do exacerbar de opiniões a propósito da subida a palco de personagens que não se cansam de serem controversas, personagens que não alinham pelos códigos de conduta política a que estávamos habituados.

A polarização, em si, não é contraproducente. Venham as diferentes ideias, venham os contributos lúcidos para um debate que não pode, não deve, ser feito de posições exacerbadas que alimentam posições exacerbadas do lado contrário. A desonestidade intelectual sempre teve o condão de ser má conselheira. Ultimamente, a desonestidade intelectual tem passado da conta. Como seria de esperar, os seus promotores não dão conta do dolo e do dano.

Uns idiotas de extrema-direita ocuparam o poder (e outros ainda ocupam). Subiram ao poder sem ser à conta de golpes de Estado. Foi o jogo da democracia que franqueou as portas do poder. Receberam a caução de uma maioria de eleitores. Que exibam, às vezes pornograficamente, uma propensão para a antítese da democracia; ou que sejam autores de declarações insuportavelmente racistas, xenófobas, sexistas ou tresandando a intolerância (e a fanatismo) religioso, é algo que causa um tremendo esgar de desprazer. Já é matéria-prima de sobra para andar arredio da atualidade.

Para quem se opõe a estes (assim por si alcunhados) neofascistas, pode ser conveniente acantonar toda a direita à direita radical. Mas é um exercício espúrio, trespassado pelo pior que a desonestidade intelectual transporta. Tanto tenho uns como outros na conta dos radicalismos que, sem serem solução, contêm em si uma fonte de problemas.

A polarização nas eleições brasileiras foi o exemplo mais recente que constitui um irrecusável convite para andar longe da atualidade, porque a atualidade, talvez mais do nunca, não está de boa saúde e não se recomenda. O Professor Boaventura verteu em prosa, quase em cima da revelação dos resultados da eleição, um exercício de adivinhação, esbracejando com o fantasma do fascismo reprimido que não iria aceitar a derrota eleitoral. O cenário é dantesco: “o golpe de Estado continuado”. Como se fosse um cartomante, o sociólogo pressagia maus tempos para a democracia. Os fascistas não descansam enquanto não liquidarem a democracia. Vejam como será o futuro, segundo o Tarot virado pelo sociólogo coimbrão:

“O golpe de Estado continuado vai entrar numa nova fase. De imediato, será provavelmente a contestação dos resultados eleitorais para compensar o fracasso dos golpistas em não terem conseguido os resultados que pretendiam com as múltiplas fraudes que praticaram. Depois, o golpe assumirá outras formas, ora mais subterrâneas com a utilização do crime organizado para intimidar as forças democráticas.

Do Porto chegou a palavra contundente do historiador Loff. Vigilante atento da democracia (entendida como o regime que zela pelos desfavorecidos, a plenos pulmões negando provimento à igualdade), diagnostica o problema: “[a]o terem derrotado o bolsonarismo numas eleições, os brasileiros demonstraram, não que este não era fascista, porque o é, mas que é possível resistir-lhe. E derrotá-lo.” Loff pareceu não perceber a insanável contradição de termos: se um fascista o é, como se pode permitir a veleidade de uma derrota eleitoral (sempre uma probabilidade no horizonte)? Como pode um fascista que o seja admitir o escrutínio do povo, sabendo que pode perder as eleições?

Carmo Afonso, a cronista do momento, chama a si outro naco de arrogante desonestidade intelectual ao lamentar que quase metade do eleitorado tenha confiado num fascista, rematando, com a soberba própria dos que esculpem a sua própria lápide intelectual: “[a] nossa situação, enquanto humanidade, é preocupante e não há como fugir a esta constatação.” Viva as eleições, desde que elas elejam o “candidato certo”; ou, também se pode alvitrar, viva as eleições, desde que a elas só possam concorrer os que por estes tutores da democracia não sejam apodados de fascistas. Ou até se pode deduzir que a cronista defende que um voto de um eleitor fascista deve contar menos do que um voto de um autêntico democrata (a definição ficaria por sua conta, mas não custa pressentir a latitude do conceito).

Um “bom fascista” é uma contradição de termos; mas é uma figura de estilo que fica a jeito dos tutores da democracia, quantos deles defensores de ideias, práticas e lógicas que se reduzem a uma entorse da democracia. Dizia: um “bom fascista” é o idiota útil dos bons pastores da democracia (do entendimento que dela têm). Gostamos de atrelar o futuro aos fantasmas do passado. Esbracejar a ameaça do fascista (do mau fascista – de todos os fascistas) tem a utilidade de desviar as atenções para o que genuinamente estes pastores da democracia defendem e – agora adivinho eu, para rivalizar com o Prof. Boaventura – poriam em prática se agarrassem sozinhos o poder.

Tamanha presciência esqueceu-se de reconhecer o mais importante: o fascista derrotado foi a eleições, o que não é compatível com a semântica do fascista; e o fascista derrotado, pese embora esteja a ter uma indigestão com a derrota, não torceu as instituições para negar validade ao escrutínio popular, o que também não honra a linhagem do fascista. A realidade mediata teima em desmentir o Tarot do Prof. Boaventura.

Esta atualidade é pantanosa. Por causa dos radicais que coexistem com a democracia e exibem toda a sua boçalidade. E por causa dos radicais de outra cepa, que teriam uma existência estéril se os fascistas fossem erradicados. É desta atualidade pantanosa, pútrida e intelectualmente desonesta que apetece exilar. 

2.11.22

400 metros barreiras

Oláfur Arnalds, “Loom (Eydís Evensen piano rework)”, in https://www.youtube.com/watch?v=1hZOhzKhEho

Da genealogia desembaraçada colhem-se os princípios de um estatuto. Tudo corre a favor do prescrevido, como se houvesse uma maré a levar as catilinárias ao colo e do dolo não sobrassem estilhaços. Conseguimos a manhã diuturna. Oferecemos os olhares furtivos ao labirinto favorável, que restringe o dia na avenida que é diagonal da monotonia. 

Diz-se que a entrega à nostalgia deslaça os nós que sitiam o dia. Sem que a pele venha a saber, o olhar empalidecido fabrica uma cortina de fumo que povoa o fingimento. Sentamo-nos à mesa e não damos conta das pessoas à volta, até que o olhar se alinhava pelas imediações e esbarra num olhar inquisidor. Um olhar forasteiro, apóstolo da intrusão. O livro de reclamações interno regista a ocorrência, em silêncio e com o rosto do avesso. Por dentro, somos uma fortaleza que não se aviva ao olhar forasteiro. É a soberania sem arestas a falar mais alto.

Outras vezes, é como se estivéssemos a correr os 400 metros barreiras. Não é só a corrida; são as barreiras que temos de ultrapassar, cristalizando o paradoxo do movimento. Vamos de frente contra os obstáculos, mas um movimento de última instância transporta o corpo numa levitação sobre os embaraços. De outro modo, esbarramos nos contratempos que queremos que sejam uma peça decorativa no dicionário. 

Desenhamos uma metáfora com a ajuda do xisto resistente. É como o turista que se extasia com o remoinho de mar que povoa a boca do inferno – resistindo a uma pulsão sem explicação que o empurra para se enxertar com as águas assassinas. Os mastins embaciam o mar ali tumultuoso: a água nunca é cristalina, tomada pela espuma que parece a tradução de um mar sujeito a uma cortina de forças, a espuma como porta-voz da ira militante. As pessoas que se detêm na boca do inferno aprendem o significado de ira, caso sejam novatas. As forças que se geram na medula da ira não são espúrias: elas coalham nas rochas que não capitulam perante o mar exibicionista. 

E nós, mecenas da ousadia, caminhamos a par com os dias inextinguíveis. Somos usuários da vida que não se esgota nos vinhedos de onde colhemos o néctar que nos mantém aferroados à vida. É como se caminhássemos ao lado do tempo, vendo como se porta, por fora dele. Nestes 400 metros barreiras que se repetem de cada vez que instruímos a vontade como santuário em que somos suseranos. A dita soberania, sem assinatura no templo.

1.11.22

Golpe baixo

Local Natives, “Just Before the Morning”, in https://www.youtube.com/watch?v=kHfLvdS6ra4

I

A tradução simultânea do medo é a centelha que adeja sobre a manhã. O fio fino tece-se entre as gotas de orvalho que resistem à ocupação do dia pela luz solar. Algures, a aranha escondida. À espera da presa certa.

II

Estas não eram as palavras iguais. As ondas do mar entravam pelo cais, no desenho do tempo sobressaltado, um presságio de tempestade. Desenhavam a enseada. Os reformados escrutinavam as investidas da maré e faziam o inventário provisório dos danos. Era este mar doloso que abria feridas no património das pessoas. Elas deviam saber. Nunca foram dali para fora. O risco não se desembaraça com a mesma ligeireza da vontade.

III

Os miúdos jogavam um qualquer jogo próprio da fase lúdica própria da meninice. Ao longe, um forasteiro descansava num banco do jardim, desfolhando vagarosamente as páginas de um livro escrito num idioma que nenhum passeante conseguia compreender (adivinhava o forasteiro, cidadão falante de uma língua exótica). Tomou a certeza como engodo do erro: já o sol anunciava a hora do almoço e uma mulher macilenta aproximou-se, balbuciando uma saudação naquele idioma. O homem convidou a patrícia para almoçar. Talvez precisasse de falar a língua que podia ter desaprendido, à mercê do êxodo para tão distante lugar.

IV

Depois de anotarem os resultados de um dia de comércio, pai e filho faziam a caixa. O dia fora razoável – razoável: algum pecúlio foi retirado da caixa, depois de calculado o quinhão deixado para as despesas fixas. Assim dá gosto o negócio – pensava, em silêncio, o pai. Passou uma nota das grandes ao filho e encorajou-o a ir jantar fora com a namorada. À hora do deitar, o jovem espreitou para o quarto do pai, para saber se ainda estava acordado. O pai lia um conto de maresia, marinheiros e sereias, com uma letra tão pequena que quase extinguia o olhar. Tirou uma garrafa do saco e ofereceu-a ao pai. Era um vinho que custara o dobro da nota grande que o pai oferecera ao filho.

V

Como se fosse em Istanbul, os gatos colonizavam certas partes das ruas. Eram gatos gordos. Vadios, mas gordos. Um ou outro, com sinais de conjuntivite – as pessoas eram generosas com os gatos no tratamento que dependia do alimento, mas negligentes nos cuidados de saúde. O velho e reformado marinheiro contava os gatos. Um ou outro roçava-se nas calças de bombazine do velho, à procura de conforto (estava frio). Ainda pensou adotar um gato. Naquela terra, os gatos precisam de liberdade, não do espartilho de um teto e de quatro paredes. Foi o que disse a si mesmo, para extinguir a ideia de adotar um gato.

VI

Os homens não são vis – era a convicção do idealista, sentado sobre o promontório de onde tirava as medidas do mundo. Estava com distância a mais para poder ser observador atento e rigoroso. Por isso, nunca abandonava o seu posto de observação.