29.6.12

A altivez dos pequenotes


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiWBfIgpTOLVpXAX8ipgxJw61xz4O12Vta0QRlZ-Pfn3xxL89WWS8P304acr2cA9s4NRpVTaBaIgjpis1nMr_Wcr9BiXOFYvzIzoLuWuZ_B7kqR5GTV9prGAfKXi3Hsf6GqXXUu9w/s400/viriato+rev7low.jpg
Quem já ouviu as fabulosas estórias da resistência de Viriato aos invasores romanos, deve agora ter percebido a têmpera de que é feita o povo lusitano. Agigantamo-nos ao pé dos gigantes. Queremos ser como eles, do mais alto da nossa pequenez. Não nos intimidamos com a pequenez. Que não nos medimos aos palmos, nem por milhões de habitantes se cevam os quadrantes de um país.
Poderia lacrimejar, ao jeito do Pacheco Pereira, que isto aconteça quando a ditosa pátria se alevanta para glorificar as proezas dos atletas patrícios. Não interessa a estéril discussão sobre quanto contam os feitos desportivos no engrandecimento das nações. Uns defendem-nos como sinal da vocação superior de um povo. Outros (porventura mais acertadamente) avisam que as proezas dos desportistas são feitos individuais, que é extorsão pegar nas taças e devolvê-las à nação – como se uma nação inteira corresse nas pistas de tartan, ou se milhões em uníssono intelectual ajudassem a meter golos na baliza do adversário.
Tocante é ver, por estes dias de certame futebolístico, como ferve a verve nacionalista. Por vezes roça o primário. Na defesa das “cores da bandeira nacional”, a irracionalidade faz uma tangente aos dogmas de uma religião qualquer. Os mais entusiastas dirão que é um sinal de pertença. Se nos revemos nesta pertença, sobressaltamo-nos quando os “nossos” (ou, na expressão mais idiota que se ouve por estes dias, a “seleção das quinas”) estão no campo de batalha a lutar pelos triunfos.
O circo de outrora, seja o romano em que gladiadores lutavam contra bestas ferozes, seja o das guerras em campos abertos com homens a cavalo metidos dentro de pesadas armaduras, tem a sua versão moderna em relvados alindados. Os intérpretes são homens cheios de tatuagens, calções abaixo do joelho, penteados destrambelhados e propensão para a calinada gramatical. Eles lá dentro aos pontapés na bola, mostrando-se para o contrato melhorado, e nós deste lado julgando que lutam pela “bandeira”. Por estes dias de febre patrioteira, a falta de lucidez faz-nos (aos que se incomodam com o assunto) anões com alma de gigantes. Ao menos isso: a autoestima atirada aos píncaros.
É pena que a fabulosa estória do Viriato seja uma lenda. E, portanto, a tal “seleção das quinas”...quinou.

28.6.12

O céu é piedoso


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiJ-nwq7Wjj72P-wlDH7capwMOvnXwcpAZsv94c_8yu60jOAG4sjMPmS3M_m_-dsQjuy8X_btYsw9vfAD-35mPl-uz8lx87DBYclcqNXJPxTlf3J76yfmNmlPOVwi_Lk7NV6abX/s400/confessionário.jpg
Reza comigo, meu filho”, exortou o velho padre com a voz trémula. Era o epílogo de três horas de expiação. O cura interrogou a infinita paciência se acaso não estava a fazer as vezes de psiquiatra. Talvez fossem as dores da crise. À míngua de riqueza, e como os préstimos dos psiquiatras são alvíssaras dispendiosas, os crentes (e outros nem tanto) visitavam o confessionário amiúde.
Aquela alma sobressaltada aparecera com dúvidas do foro existencial. As perguntas eram excruciantes. O padre reparou na atormentação interior que dilacerava as veias do homem. Ao menos foi honesto logo ao início: “não sou crente. Atende-me na mesma?” (Naquela longa conversa, nunca tratou o padre por padre, querendo atestar o ateísmo pela ausência de tratamento respeitoso.) O padre fez jus aos pergaminhos que a doutrina prega: “não me posso negar a ouvir um filho de deus. Ao que vens?
O homem era um archote de interrogações que ateavam uma farta combustão interior. O sacerdote notou que as olheiras cavadas tinham explicação. O homem começou por advertir que tinha remorsos por não conseguir acreditar numa divindade qualquer. Admitia que a sua existência fosse um navegar de águas serenas se conseguisse ser o contrário do que indomáveis forças interiores o levavam a ser. Começou a desfolhar as interrogações que o mortificavam. O padre foi respondendo como podia, como o cansaço da idade e da hora tardia permitiam. Até que se detiveram na interrogação mais lancinante de todas. Para ambos. O homem queria saber se o céu, o prometido receptáculo celestial onde são depositadas as almas boas, é de entrada difícil.
O padre coçou a cabeça. Desceu ao nível da honestidade do homem que era improvável visita de confessionário: “a impossibilidade da física impede a resposta à tua pergunta. Podia desfiar os dogmas em que fui treinado, mas suspeito que não ficavas satisfeito com a resposta.” O homem retorquiu, sem esconder uma certa ira: “não fiquei satisfeito com a sua prudência. Quero uma resposta inequívoca. É para isso que vocês são treinados.” Sucumbindo ao cansaço, o padre deixou escapar as palavras que queria para pôr cobro à função: “o céu é indolor. Até tu verás.
Nessa noite, o homem deitou-se sem as insónias que o consumiam há meses. A morte já não o atemorizava. Os olhos aterraram no sono no momento em que refletia sobre a paradoxal condição: foi preciso um sacerdote de uma religião em que descria para inaugurar o sossego tão apetecido.

27.6.12

Socializar, por aí


In http://openreflections.files.wordpress.com/2011/08/crowd_2.jpg
O senhor secretário de Estado, todo poderoso na sombra, de visita ao centro paroquial. Outra inauguração. Com a procissão de assessores e repórteres e câmaras, fotográficas e de filmar. Mais o povo convocado a preceito. Havia instruções para um banho de multidão acompanhado de cartazes com loas aos que mandavam. Corria à boca pequena: o secretário de Estado, pessoa influente, tinha muitas cartas na manga. E informações privilegiadas, um serviço secreto paralelo. Mandava mais que todos os ministros juntos. Tanto que era o único a despachar com o primeiro-ministro.
A gente estava alinhada à espera de sua excelência. Uns opositores, na contumácia que os levara à dissidência, tinham sido desviados com precisão cirúrgica (uns empacotados para distantes reuniões profissionais; outros atraídos no engodo da bebida fácil). Os petizes estavam numa algazarra ímpar: era dia sem escola. Os aplausos eram garantidos. Os ganapos agradeceriam um dia sem aturar os professores acinzentados (que, admiradores da coisa sindical, foram impedidos de comentar a efeméride).
Uns sabichões, recém encartados em estudos graduados sem serventia, reativaram a militância mal souberam, a uns dias de distância, de tão importante visita. Podia ser a saída para o desemprego teimoso (de uns), ou para o emprego precário (de outros), ou para o emprego aquém das ambições (da maioria). Naquele dia aperaltaram-se tanto que nem nas bodas respetivas (para os que já se tinham desembaraçado do celibato) alguém os vira tão apessoados. Teriam de chegar à fala com o secretário de Estado. Sentar-se perto dele no opíparo manjar que a depauperada autarquia organizara em genuflexão a sua excelência.
Constara que o secretário de Estado reservara hora e meia da agenda para audiências com os dedicados militantes que quisessem puxar lustro à copiosa influência. Era segredo (mal guardado). Os sabichões, aos magotes, apressaram-se à fila. Chegaram à fala com sua excelência. O secretário de Estado prometera, por sua honra, arranjar sinecura local ou nacional compatível. Só não disse em que tempo.
Dois anos depois, quem por ali socializou com tanta diligência estava no mesmo ramerrame ou tinha engrossado o exército dos desocupados. 

26.6.12

A conspiração feminista

In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgpFnhE9I8AL28qFBcsizej03xgk1-apeWHFgrDaBDntJqFwqPUbiW2mQD_cIILhyphenhyphen40EOgDGQpk6zOaUySN-3O_1wowPE4iYr9ZQbbn1npI3WHsUam78pAe3jrOOzlP2T4NXzfy/s1600/Angela+Merkel.jpg
Se eu disser que as mulheres são adoráveis, corro o risco de levar com uma patrulha de feministas. Libelo acusatório: repugnante marialva. Primata que coisifica o sexo oposto. Mas se me atirar com um pedaço de artilharia ligeira aos excessos que as feministas têm sabido influenciar, na longa marcha pela mirífica igualdade de sexos (discriminação positiva, por exemplo), arrisco ouvir das boas por ser misógino.
Nas tintas, é como estou. É que mesmo assim adoro feministas. E quanto mais espumarem de raiva contra todo o espécime que se recuse a envergar saias (escoceses descontados), mais conforto me trazem. (A bem dizer, as feministas também não são grandes admiradoras de saias...) São um entretenimento. Argumentativo, apenas argumentativo.
Vem este já longo introito a propósito de uma lembrança que nasceu do nada. Vamos anuir, fazendo coro com o imenso cortejo de críticos ao atual estado de coisas na Europa, que a culpa é de Angela Merkel. O diagnóstico – lapidar, como é apanágio das sentenças simplistas que mais se parecem palpites simplórios – sai com rapidez: a Alemanha manda na Europa. Os mais catastróficos até já descobriram que a Alemanha há de chegar pela paz aonde não conseguiu chegar pela guerra. Com o beneplácito (e o usufruto a seu favor) da Europa, que mais parece um pau mandado dos teutões.
Vem aí um silogismo. Se na Europa mandam os alemães, e se na Alemanha manda uma mulher, quem manda em tudo isto é uma mulher. É aqui que entram as irmandades de feministas. Andam distraídas e, em vendo bem o panorama, não têm razão alguma para amparar as lamúrias costumeiras. Assim como assim, quem manda em tudo isto – repita-se, em coro com os sacerdotes das catástrofes – é uma mulher. É o sexo feminino.
Uma pausa para refletir. (Cinco minutos, no mínimo.)
Afinal está tudo decifrado. Agora se entende o silêncio das feministas, que nem uma palavra terçam contra a odiosa chanceler que, diz-se por aí, manda na Europa desde Berlim. 

25.6.12

Um tempero a preceito


In http://e-geo.ineti.pt/divulgacao/dossiers/images/cartografia.jpg
Um esboço. É sempre de uma folha em branco que se parte. Às vezes, podem os primeiros traços que esboçam o desenho (um desenho qualquer) sair a custo da ponta do lápis. É quando o lápis se transforma em baioneta apontada contra quem o adestra. Os traços saem forçados, grosseiros, arrevessados nas suas rasuras – e as rasuras sobrepondo-se às ilusões que embaciam o olhar. Outras vezes, a mão que ampara o lápis parece domada pela inércia. É como se fosse impossível o desenho – ou como se, num acaso do tempo, a mão tivesse desaprendido a arte de desenhar para o mundo.
Mas há outras vezes, escassas ocasiões, em que o desenho, como as palavras ditas em sussurros adocicados, se desprende da mão. Tão espontâneo como o entreabrir dos olhos, ou o ar que se inspira e expira. Tão maquinal que se não dá conta da sua importância. Mas, todavia, tão essencial.
No mapa por diante, os dedos detêm-se, vagarosamente. Os olhos aproximam-se em demanda dos detalhes do mapa. São, os dedos, novos cartógrafos que mapeiam o terreno em redor. Eles redesenham o mapa. Com o atrevimento de rebatizar os lugares por onde passaram. E nem a penumbra obsta a função. Os montes e vales, as ribeiras que separam as porções de terra, exclamam pelas mãos que se entrecruzam. Os dedos numa harmonia intraduzível são pontes que abarcam toda a distância da paisagem. É nessa paisagem que as mãos são artífices de uma gastronomia transformada em quadro gigante. As cores, já não madraças, crepitam nos temperos aspergidos pelas mãos artífices. O tempo, o tempo que por tanto tempo foi apenas vindouro, tratou de levantar as pontas do véu. E tudo ficou ungido com a claridade de uma tarde banhada por uma nortada balsâmica. 
O segredo resguarda-se na alquimia dos temperos.

22.6.12

Página do diário de um manequim


In http://fashioniser.com/imagens/texto_artigo/1278499453passerelle%20PM.jpg
Acordei já o meio-dia tinha batido no sino da igreja. E nem me deitei assim tão tarde, que ontem não houve função. Seriam três da madrugada. Ainda fiquei três quartos de hora na cama. O sono queria vir outra vez e eu a combatê-lo (ou seria o contrário, não percebi bem). Levantei-me a custo. Os chinelos não estavam no sítio. Mas se ontem a noitada não foi de arromba, se estava sóbrio e não me deitei acompanhado, como se explica a desordem no quarto? Pensei uns cinco minutos, a cabeça debruçada sobre os joelhos, até descobrir que a empregada estava doente e já não vinha arrumar a casa há mais de uma semana.
A fome entrava pelo estômago dentro. Sabia que nem devia espreitar no frigorífico: ou era a desarrumação, ou a míngua de víveres. Com a dor de cabeça a bater de cima para baixo, empurrando a massa encefálica contra os ossos cranianos, vesti umas roupas quaisquer que a fome apertava e tinha a impressão que matá-la matava também a cefaleia (isto são palavras caras que ouvi uma ex-namorada, letrada em literatura alemã, a dizer perante uma plateia de peritos. Eu também me instruo). Não se pense que agarrei nos primeiros trapos à mão sem me deter uns minutos à frente do espelho. Nós, os intérpretes da moda, defendemos pergaminhos. Diria que saí à rua com um aspeto propositadamente negligé (uma palavra alemã que a tal ex-namorada me ensinou).
Depois do almoço – uma salada sem molho acompanhada por três garrafas de água mineral (tanta sede, por que seria?) – olhei para a agenda. Que tarde tão ocupada! Só de ler a revoada de compromissos, já me estava a apetecer juntar aos lençóis:
- 15.30: solário
- 16.00: ginásio
- 18.00: reunião com o diretor da agência de modelos que me paga as contas
- 19.45: café com a B., modelo noutra agência, com a qual o meu agente tem inimizades figadais (outra que aprendi com a ex-namorada culta) (com a anotação no final “perguntar se não me querem lá na agência; e quanto pagam – não necessariamente por esta ordem”)
- 22.00: jantar (com alguém lá no restaurante do hotel do costume que se oferecer para pagar a conta)
- 00.30: atividades extra (com anotação, só como auxiliar de memória, “you know what I mean” – mais alemão, estou quase versado na língua de Shakespeare!)
- Sem hora: deitar (acompanhado, ou não; independentemente do sexo do acompanhante; o que depende das substâncias fora da lei que entretanto passarem pela frente).
E isto porque, sendo dia da semana, não havia passerelle na agenda. Quem pode dizer que nós, manequins, não temos uma vida extenuante?