30.9.20

Whiskas saquetas

Perfume Genius, “Sides”, in https://www.youtube.com/watch?v=jjZqvLi43ac

Dois septuagenários, já a caminho da octogenária condição, disputam a presidência de um país (chamemos-lhe “Ocidentalândia” – também podia ser “Cowboylândia”). Aproxima-se o dia do primeiro debate transmitido pela televisão. O recandidato exige que o outro candidato se preste a um exame de despistagem de drogas antes do debate. 

O recandidato é que sabe da poda. Os serviços secretos (ou um punhado de lunáticos a seu soldo) terão descoberto que o outro candidato se perde nas noites intermináveis dos lugares mais procurados pelo êxtase da vida noturna em Ocidentalândia. São noites desvairadas com o deboche por pano de fundo e o prestimoso apoio de substâncias ilícitas – como poderia, de outro modo, o quase octogenário candidato aguentar noitadas consecutivas?

O recandidato tem de precaver. Deve o leitor ao rigor da análise um esforço de entronização no lugar onde se situa o recandidato: fará o que for preciso (até invocar batota, que só acontecerá na hipótese de derrota eleitoral) para manter a sinecura. Assim acontece com todos os detentores do poder que se recandidatam. A invocação da batota pesa mais do que simples ameaça: é todo um programa de intenções – o que pode ser ilegítimo se não correr de feição inverte o curso (e o juízo) se o pleito se saldar pelo triunfo. Ao recandidato devemos a surpreendente revelação: o seu adversário usa e abusa de drogas. Não seria outro o entendimento ao dar conta da condição imposta para nivelar o debate.

Ou então: o recandidato, imerso na condição de incorrigível apedeuta, terá informações de que o adversário tem as narinas largas por eventual consumo de mistelas inaladas que ativam a função cerebral; e de análises sanguíneas compatíveis com pastilhas que excitam o sistema nervoso-sensorial. Em vez de se nivelar pelo consumo de tais substâncias, o recandidato prefere o nivelamento por baixo, impedindo o adversário de recorrer ao manancial de substâncias psicotrópicas de que é um consabido consumidor. Aliás, um dia destes, o adversário foi apanhado a sair de uma after party a já altas horas da manhã, era quase hora do almoço e a consorte telefonou a lembrar do almoço que não tolerava atraso.

Está explicada a longevidade dos arcaicos candidatos às eleições da Cowboylândia. Não se confirma a imagem pré-datada dos foliões que gravitam no rock and roll e no punk e que, apanhados nas malhas das drogas, envelhecem precocemente (quando não partem desta muito antes do tempo). As drogas retardam o envelhecimento, previnem achaques próprios dos septuagenários e imprimem um vigor intelectual de que teriam inveja os adolescentes (se não estivessem à Leste das eleições). 

Ainda se há de descobrir o arsenal de drogas do candidato rival e as identidades dos dealers responsáveis pelo abastecimento contínuo. Até que, pela infâmia que se abaterá sobre o seu adversário, o recandidato fique sozinho no concurso eleitoral. Para, definitivamente, embolsar a garantia da vitória.

29.9.20

Onde está o limão?

Deftones, “The Spell of Mathematics”, in https://www.youtube.com/watch?v=NUyV3uklpcY

Mormente o vidro ácido que se despoja do orvalho e deixa entrar o solfejo do dia, por mais que o dia esteja tristonho – mas quem mandou às convenções apostrofar de tristonho um dia arroteado pelo nevoeiro persistente? Sabia-se ser modesta a claridade escondida, quase como se fosse a sua autêntica negação, a luz espreitando por uma fenda. Mas era a claridade possível, ainda assim a antinomia com a noite sempre medonha. O dia estava a preceito para resgatar leituras hipotecadas ao passado.

O cliente sugeriu que se acendessem os candeeiros. “A luz está fraca”, acrescentou, como se os olhares atónitos do empregado de mesa e do dono do café soassem a reprovação. Contrariado, o empregado de mesa acendeu apenas um candeeiro. “Este chega. É claridade de sobra.” O cliente não se intimidou. Continuou a beber o seu café enquanto passava a vista pelas páginas de um livro que, pelo aspeto puído, fora comprado num alfarrabista. 

O empregado de mesa percebeu que o cliente seria demorado. Já não folheava páginas avulsas do livro. Deitara-se à leitura metódica. Em sinal da demora – e talvez porque o estágio demorado no estabelecimento comercial ditava o imperativo de consumir algo mais – pediu uma tosta mista e um carioca de limão. Desta vez, o empregado de mesa foi mais prestável. Assim como assim, a manhã estava fraca (as pessoas continuavam relutantes em readquirir velhos hábitos). Era preciso fazer negócio. Se o patrão não faturasse, seria difícil arranjar meios para pagar o seu salário. Ao servir o requisitado, perguntou ao cliente:

- Se não considerar ousadia da minha parte, que livro está a ler?

O homem ficou sem reação. Não esperava que um empregado de mesa se interessasse pela literatura, e menos ainda por um livro que visivelmente tinha sido arrancado à estante de um alfarrabista.

Foi um achado que encontrei no alfarrabista, ali na esquina com a praça central. É um livro sobre a vergonha de um criminoso que sempre soube esconder os seus crimes e que, entretanto, fez carreira diplomática.

- É um livro antigo. Vê-se que já teve muito uso.

O leitor não sabia o que o empregado de mesa queria dizer. “Muito uso”, seria um livro manuseado por muitas mãos, numa contínua estafeta de donos, ou apenas de leitores, que trespassou o tempo? Ou seria um uso passivo, o natural amarelecimento das páginas por ter feito demorado estágio na madeira que bordeja as estantes de sucessivos alfarrabistas? Quis tirar a limpo:

- O que quer dizer com “muito uso”?

O empregado de mesa ficou impassível à frente do cliente, com a bandeja inerte. Ele próprio não sabia o significado do que perguntara. “Que raio”, vociferou em voz interior, arrependido de ter iniciado o diálogo como o letrado, “por que não estive calado?” Por não querer dar parte de fraco, arriscou uma resposta, hesitantemente:

Muitos olhos e muitas mãos terão gasto as páginas desse livro e com isso terão crescido com ele. Ou então, ele estava há muito tempo sem uso, a fazer companhia às térmitas das estantes de um alfarrabista. Mas isso não interessa. Está a ser agradável, a leitura do livro?

Não estava interessado em continuar a conversa. O cliente do café, autoconvencidamente letrado, pimpão no património da sua erudição, defendia no seu íntimo o que em proclamações públicas era por ele próprio desmentido: os letrados não se misturam com o povo iletrado e não há possibilidade de diálogo entre ambos. Matou a conversa, ao disparar arrogantemente:

Este carioca de limão só tem umas envergonhadas aparas de limão. Onde está o limão?

O empregado de mesa recuou, em silêncio. Apetecia-lhe trazer um limão inteiro e uma faca para o letrado depositar na bebida o limão que lhe agradasse. Apetecia-lhe atirar grosseiramente o limão e a faca para cima da mesa, bolçando, mal-educadamente, “sirva-se à vontade”. Mas os tempos não iam de feição para o negócio. Os clientes tinham de ser tratados na palma da mão. Não podia ser de outro modo. Não podia atraiçoar o patrão. Seria o mesmo que atraiçoar-se a si mesmo. 

Regressou à mesa com outro carioca de café.

Diga-me, por favor, se assim está a preceito?

- Agora sim. 

É por conta da casa. Bom proveito.

28.9.20

Projeto

Poolside, “Getting There From Here” (with Todd Edwards), in https://www.youtube.com/watch?v=CbaNXY2sZxg

Uma ponte sobre o chão de nuvens: tirando à sorte o avesso do dia, preferíamos o musgo de onde podíamos resgatar o conforto. Anotávamos as intenções. Podia ser em papel gasto, amarrotado; as intenções não ficam diminuídas. 

Prosseguíamos com a safra do dia.

Algum tempo em demanda interior não é um ultraje à exiguidade em que ele se debate. Ou melhor: com que nos debatemos depois de darmos conta da exiguidade do tempo. Os corredores por onde andamos parecem os apertados limites de um túnel, a escuridão atemorizadora como pano de fundo. Nem assim nos intimidamos. Julgamos ser maior a nossa força. Não é errado o juízo de valor. Avançamos porque intuímos uma centelha a fulgurar um pouco mais à frente. 

Avançamos.

Se o labirinto não fosse um ermo, não seria difícil inventariá-lo. Seríamos metódicos a desenhar as suas veias, a anotar com precisão as pulsões, como se fossem os rochedos submersos no leito de um rio que os navios têm de ladear. Demorasse o tempo que fosse preciso. E depois, a meio do ofício, até podíamos inquirir sobre a utilidade desta cartografia. Todas as interrogações são legítimas. E as tergiversações também. Se fosse preciso, podíamos parar a meio do exercício. Ponderar nos cambiantes da interrogação. Colocando a hipótese de recuar à casa da partida sem completar a carta iniciada. Uma capitulação pode não ser assim entendida. Se a vontade se sobrepuser e arquivar a relevância de um cometimento, ele deixa de ser cometimento por ter sido encomendado à categoria da indiferença. 

Ficamos por decidir se retomamos, mais tarde. 

Perguntamos se temos em mãos o fio à meada da casa da partida. O labirinto é um emaranhado de caminhos que se arqueiam sobre os forasteiros. Neste labirinto, todos se sentem forasteiros. Até quem cuida da sua cartografia. Podíamos jurar que os caminhos interiores do labirinto mudam de dia para dia, como se um sortilégio qualquer cuidasse de mover as fronteiras das paredes e, no dia seguinte, a sua configuração fosse diferente. Colocamos a hipótese de ser propositado: o tutor do labirinto prefere mantê-lo em segredo, inacessível aos que teimarem na sua decifração.

Percebemos: as forças não devem ser gastas numa empreitada que se move por uma constelação de caminhos que se desmultiplicam em múltiplas ramificações. Perder-nos-íamos num ermo, sem sabermos onde estávamos. Encontramos resposta para as interrogações que suspenderam o tempo: em homenagem à finitude do tempo, não nos entregamos ao inventário do impossível. 

Se ele há melhores formas de aproveitar o tempo, para que haveremos de o gastar sem serventia? 

25.9.20

Subir na vida (princípio geral do alpinismo) (short stories #261)

Radiohead, “Airbag”, in https://www.youtube.com/watch?v=jNY_wLukVW0

          Que não seja castrado o poliéster da ambição, nem lhe seja averbada a avareza. Os emblemas da democracia, os sacerdotes da igualdade não mirífica, assim o entoam. A escada deve ser estendida a toda a gente. Dá-la em primeiro lugar aos que se encontram na base da pirâmide. Só que, noutras instâncias, os mesmos iconoclastas protestam contra a subjugação aos valores materiais. Admita-se que subir na vida não quadra apenas com as ambições que se materializam em conquistas materiais. Todavia, pergunte-se aos que vegetam na base da pirâmide, ou a outros com pretensões arrivistas, ao que gostariam de ter acesso a ambição vingasse. Diriam, em sua maioria, tratar-se de coisas materiais. Descontando estes aspetos mundanos, mas não comezinhos, registe-se a propensão das pessoas para serem alpinistas sociais. Sabem (ou deviam saber) que a pretensão envolve um esforço – ou não fosse o alpinismo sobre trepar alcantiladas montanhas, o que não se consegue de ânimo leve. O que ninguém lhes diz, é que precisam de arnês. Os burocratas das ideias que certificam um direito geral à igualdade ludibriam os ascensionais por não serem advertidos para o ónus da queda. E para a probabilidade da queda. Os alpinistas sociais partem para a empreitada sem arnês. Às vezes, a mão escorrega numa aresta da montanha, ou o pé fica sem chão por baixo, e o derribamento é o ultimato a que não conseguem responder. Os potenciais alpinistas sociais margeiam a montanha, a meias com desdém e com usurpação onírica, sem saberem o que fazer para iniciar a ascensão. Muitos deles não passam da intenção. Poupa-se-lhes a vida, ou um esforço em vão, com a agravante da angústia em que se consomem pela inviabilidade do ofício. É a metáfora diligente da sociedade: quase todos não passam de alpinistas em sonhos.

24.9.20

A voz desembaciada

James Blake; “Godspeed”, in https://www.youtube.com/watch?v=OapxMsZHNkw

A miragem desenhava-se no leve adocicar da pele. A luz tímida que se erguia sobre as muralhas do entardecer entranhava-se. O perjúrio da fala não se fazia sentir, o silêncio como um largo oceano à ilharga. Os gatos com cio passeavam no jardim. A sonora cantilena era a prova viva do cio. As nuvens díspares amontoavam-se, pressentindo o crepúsculo que não tardava. O dia fora longo e só apetecia fazer nada.

Podia a voz romper o silêncio estabelecido. Só para se ouvir, depois de ter sido gasta durante o dia. O silêncio perdurou. Era como se a voz quisesse o seu próprio silêncio. Arpoada numa tangente com a solidão instantânea, o corpo imerso num súbito torpor, o olhar fixo num ponto indeterminado, perdido na vastidão do horizonte. A voz falava apenas através de pensamentos avulsos. Decifrava-se, na pessoa desses pensamentos. Recusava prantos e preces.

De repente, a voz emancipou-se das algemas do silêncio autoimposto. Balbuciou umas palavras atiradas ao acaso. Não ficaram registadas em ata, nem sequer mental, essas palavras. Era um exercício destinado a experimentar a voz. Lobrigava as armaduras que se escondiam na véspera da voz agora empossada. Uma nítida sucessão de palavras, a voz resgatada ao silêncio militante que acompanhava, como aperitivo, o fim da tarde. 

Um dia, a voz ouvira-se em reprodução (tinha sido gravada para um efeito qualquer). A voz não se reconheceu. A voz que se escuta a si mesmo parece uma voz alheia. É como se desfilasse um cortejo de vozes forasteiras e, no meio delas, aparecesse a voz inquisitiva: ela não daria conta de ser intérprete de si mesma. A voz não está habituada a ser testemunha do seu palavrar. É uma projeção para o exterior. Não guarda a memória da sua genética. 

De outra vez, em voluntário exílio temporário no estrangeiro, conseguiu a voz estar três dias sem ser pronúncia. Não houve serventia de falar com estranhos, nem as funções repetitivas da rotina de um dia exigiram articulação com os outros. A voz não se esqueceu. Ao cabo dos três dias, continuava a ser a mesma. Não ficou provado que o temporário emudecimento fazia prescrever a voz. Ela mantivera todas as suas dioptrias, capaz de descrever a nitidez com que o mundo lhe aparecia em surdina.

Antes que fosse noite, a voz fez-se voz. Continuava desembaciada. Em contraste com a luz herdada do ocaso.

23.9.20

Absolvição

Doves, “Broken Eyes”, in https://www.youtube.com/watch?v=pISDosb4Aes

Guardo as estrias do tempo para a moldura da memória. Não sei que chuva se promete como bálsamo; não sei que rosa frondosa desembaraça os amantes; não sei que sílabas entoadas afivelam a fala. Os hóspedes do futuro estão lá, à espera, imóveis, como imóvel está sempre o tempo vindouro visto desde a lente do agora.

Que seja seguida uma partitura, é a convocatória insistente dos que se enamoram por uma ordem emprestada à existência. Mas uma partitura não configura a improvisação. Asfixia as capacidades que teriam levedura se não houvesse um espartilho que as cerceasse. Ainda assim – insistem os devotos da ordenação – algum mapa há de ser preciso, umas pistas sobre os lugares demandáveis, outras sobre os caminhos prevenidos. Ninguém nasce com uma cartografia de cor. A prevenção nunca foi da ordem da estultícia.

Pela noite, quando os espíritos se embaciam, os reptos parecem jogos pueris, meras coincidências sem resposta. Apalavram-se as juras improcedentes. Mistura-se lucidez com os sussurros de Éolo que temperam os sonhos prematuros. O corpo arrasta-se num vagar pecaminoso. Não se exerça o meticuloso ofício semântico, não se queira escavar os meandros da palavra até o escafandro atingir a sua medula: ninguém quer saber o significado do pecaminoso, pois todos têm uma vaga ideia.

Um detetive avulso sonda as sombras da noite para saber se emergiu contaminada pela luz diurna. Diz-se que os que imprecam a noite gostavam que ela fosse a continuação do dia, só que com a luz diurna descontinuada pelo leve crepúsculo. Nunca seria noite em sentido próprio. Talvez pudessem ser encomendados ao Ártico no equinócio do Verão. Talvez no dia contínuo, não interrompido pela noite, aos fantasmas não seja autorizado o ar para respirarem e eles emigrem para lugares onde a noite derrota a teimosia do dia. Temem as sombras. Haja alguém que os sossegue: é no avesso das sombras que podem encontrar o vaso onde escondido está o segredo que rompe as angústias.

Guardo as estrias do tempo a tempo de decifrar o seu sortilégio. Um ditongo impercetível, uma sinapse interrompida por uma distração, o sufrágio dos modos arcaicos (se é que hão de persistir), uma vaga maré que mal chega a molhar o cais. Um verbo refeito na cerzidura que se hasteia a bordo do repensamento. Cobrando as dívidas de outrora ao livro das lembranças. As estrias ficam emolduradas como finos escaninhos que participam no desenho do mapa. Não será a noite volúvel, ou os mapas diligentemente dobrados, que absolvem o passado. O passado não precisa de absolvição.

22.9.20

Uma peça de teatro é apenas uma peça de teatro (ou talvez não apenas)

Catarina e a beleza de matar fascistas

de Tiago Rodrigues, 

Centro Cultural Vila Flor, Guimarães, 20 de setembro de 2020

Mote: “Se tiverdes precisão, não hesiteis em fazer o mal para praticar o bem.” E: “Quando a ordem é injusta, a desordem é um princípio de justiça.” (Excertos da peça)

O teatro pode ser político, como tantas vezes é. Pode ser político olhando para o passado, reinterpretando-o, provavelmente emprestando-lhe uma nova grelha de leitura que medra no úbere da criação artística. Também pode ser político como pressentimento, uma certa forma de se fazer oráculo. Tiago Rodrigues combinou as duas facetas nesta peça. Mergulhou no passado da ditadura, no episódio da morte de Catarina Eufémia como ponto de partida para o enredo. Uma amiga de Catarina Eufémia não perdoou o marido, agente policial que assistiu passivamente ao assassínio de Catarina Eufémia, e tirou-lhe a vida à frente dos filhos. Aí começou uma tradição anual que esta Catarina legou aos seus sucessores, todos e todas Catarinas. Todos os anos, um fascista teria de ser morto num ritual familiar e depois enterrado sob um sobreiro, na propriedade da família. 

A ponte com o futuro tem uma conexão atual: a extrema-direita que cavalga perigosamente, seduzindo cada vez mais eleitores por todo o mundo, por toda a Europa, e também em Portugal. No seu oráculo, o encenador antecipa-se ao tempo futuro. Em 2028, o partido da extrema-direita chegou ao poder e formou governo. O ritual anual da família de Catarinas ganha um sabor diferente. É a primeira vez que um fascista vai ser morto depois de os fascistas terem chegado ao poder com a franquia da maioria dos votantes. 

O apogeu narrativo prolonga-se pela peça fora. Naquele ano, o ato iniciático de matar o fascista coube a uma Catarina que chegou aos vinte e seis anos de idade (o selo da maioridade do assassínio de fascistas, de acordo com o código de conduta destes justiceiros). A rapariga ficou paralisada pela dúvida e não conseguiu premir o gatilho. Depois de discutir com a mãe, parece convencida da beleza de que se reveste o ato de matar um fascista. Porque não pode haver hesitações no momento de fazer o mal se esse mal é a janela onde fermenta o bem. Todos os argumentos da rapariga foram anulados pela persuasão da mãe: não adianta dialogar com fascistas, nem conceder-lhes direitos que eles negam aos demais; é improcedente explicar ao povo seduzido pelos fascistas a falácia dos seus argumentos, porque os fascistas instrumentalizam o povo com falsas demandas e vieses da análise; não se pode confiar nas instituições e na democracia, porque foram a democracia e as instituições que caucionaram a chegada dos fascistas ao poder. 

Todavia, a rapariga é outra vez tomada pela hesitação. Não consegue matar o fascista. E todas as Catarinas (“todas” como recurso estilístico adotado, como se as convenções linguísticas fossem viradas do avesso e um grupo de homens e mulheres passasse a ser denominado no feminino) – todas as Catarinas são mortas sem se saber como. Sobrevive uma Catarina, o primo silencioso, possivelmente autista, possivelmente o último penhor de valores que não se reviam na barbárie das Catarinas. E sobrevive o fascista, que escapa à execução sumária. O primeiro que teve essa sorte em setenta e seis anos, depois de setenta e seis fascistas que passaram a fazer de húmus (pútrido, porventura) daquele montado alentejano. 

O fascista ergue-se, vitorioso, exsudando pesporrência. Num salto cronológico, ao fascista é garantido o apogeu num discurso aos sequazes. Um longo e extático discurso. O recurso discursivo bebe no catecismo político dos “fascistas emergentes”, leia-se, o Chega e todos os que têm sido atraídos para o “movimento”: um caldo feito de ideologização nacionalista, racismo, intolerância com as minorias étnicas, subalternização da mulher e irrelevância da violência doméstica, denúncia das elites, respeito quase religioso das forças policiais, protesto contra a corrupção endémica (imputada ao regime político decadente), intransigência com a homossexualidade, apologia do liberalismo económico (onde Rodrigues comete um equívoco), ódio à Constituição vigente. Um discurso inflamado, impetuoso, que começa com uma petição pela liberdade (o fascista acabara de se extrair ao cativeiro dos seus algozes), mas termina com a instrumentalização da liberdade – a liberdade só é válida se for coincidente com as ideias do governo em funções, com o catecismo de valores e de práticas imposto pelos fascistas.

A salvação do fascista parecia ser o epílogo. Se a peça terminasse nesse momento, teria selado a inverosimilhante justiça feita pelas mãos de uma família marcada pelas cicatrizes de uma antepassada. Num momento de coletivo descontrolo todos os predadores do fascista pereceram, menos o rapaz que terá sido o autor da carnificina familiar. Concluir-se-ia que a violência, mesmo contra os que são institucionalmente violentos, está destinada a ser letra morta. Contudo, a pose triunfal e a soberba do fascista, assim que se liberta do cativeiro, fizeram pressentir uma viragem na trama narrativa. O fascista usou o suicídio coletivo da família para se reapossar do domínio do poder. Envergou o papel de herói, esquecido o medo que o consumiu quando esteve no limiar da execução sumária.

O discurso final do fascista é a coroação da retórica nauseabunda que se conhece aos arautos da extrema-direita que despontou em Portugal. O público intervém amiúde: “cala-te!”, ou “mata-o” (impetrando ao rapaz que matou toda a família e que era espetador – distante – da verborreia acalorada do fascista). “Mata-o!”, ouviu-se muitas vezes, na súplica de vários espetadores desde o lugar errado no cenário, pois decerto não seriam a audiência da peça de oratória, destinada aos apaniguados dos fascistas. Os espetadores que saltaram para o palco sem saírem do lugar queriam que sobre o fascista caísse o destino que a família justicialista não conseguiu operar. Sobrou esta mensagem: o fascista não foi assassinado. Não foi morto quando houve oportunidade. A tempo. A beleza do ato não se consumou. O fascista pôde continuar a ser o que sabe ser: fascista. Os fascistas não merecem ser poupados à morte, porque não respeitam a vida e a liberdade. Não se convertem ao humanismo e à decência mesmo depois de passarem pelo crivo do abismo da morte. Mas tão-pouco os agentes justicialistas respeitam a liberdade. Concluo eu: é tão fascista o fascista que mata fascistas como o fascista que é morto. 

Abjuro o sebastianismo dos radicais de direita que se monta no descontentamento popular e consegue crescer na competição eleitoral. Considero abjetas as personagens que cavalgam no oportunismo e se maquilham consoante é prestável o ofício de seduzir uma turba. Tenho medo que estes párias ponham a mão no poder. Mas – e a pergunta foi mal respondida na peça – se estes párias chegarem ao governo com o consentimento da maioria dos votantes? É de aceitar a displicência que trespassa algumas das personagens da peça, que se colocam numa posição demissionária (“não adianta convencer os votantes dos fascistas”)? É de aceitar a sua arrogância ao acusarem as massas de ignorância porque ao votarem (um voto errado) consentiram na tomada de poder pelos fascistas? Tenho medo dos fascistas que se aproveitem da democracia para a distorcer, ou até (no pior dos cenários) para a liquidar. Como tenho medo dos justiceiros que se autoinvestem de poderes heurísticos para decantar a paisagem política de um país, como se fossem os agentes executores da defenestração dos que ameaçam roubar a democracia sem que alguém lhes tenha encomendado a função.

A certa altura, eu, que considero repugnante o estereótipo central da peça (o “fascista”), senti-me como o fascista que era presa da família de Catarinas. O teatro pode ser político, sem dúvida. Mas escusa de atear fogueiras antes do tempo. E escusa de ser condescendente com um justicialismo tão primário como as afeções que contaminam os fascistas. No enredo, o tio da Catarina que estava agendada para o assassínio, exerce o papel do ancião da família e desafia-a para um dilema que teria resposta predeterminada. Foi pena que o enredo não tivesse feito outra incursão pela filosofia moral para levantar estas interrogações: como justifica o “não fascista” que mata fascistas o direito de lhes tirar a vida? Que superioridade moral lhe é investida para ordenar a execução de fascistas à margem da justiça institucionalizada? E – a meu ver, a interrogação decisiva – aceitar que o “não fascista” pode matar fascistas não é equivalente ao fascista que se considera legitimado para tirar a vida aos que se lhe opõem?

Agora, é a vez do meu oráculo: por este andar, de radicalismo que se antagoniza a outro radicalismo à reação deste radicalismo, iremos no caminho de radicalismos de sinal contrário que se autoalimentam, numa interminável espiral de crispação, retórica agressiva e, possivelmente, confronto físico e morte. Não é um bom pressentimento. Que os fascistas não valorizam o outro, é consabido. Nesta peça ficou claro que os que matam fascistas também não dão valor ao outro. Também não dão valor à vida humana. Não são diferentes. São tão fascistas como eles, na sonegação de valores inerentes à convivência democrática.

A desordem nunca é um princípio de justiça: conduz à anomia. E na anomia, salvam-se os mais fortes; os que tiverem armas à sua disposição; os que ganharem, num certo momento, o monopólio da palavra.

21.9.20

O corpo é apenas um corpo

Young Knives, “Society for Cutting Up Men”, in https://www.youtube.com/watch?v=W_mdxI07lq0

Uma imagem no jornal sobre uma coreografia que vai a palco: os corpos nus dos bailarinos entreveem-se no crepúsculo da cenografia retida pela fotografia. E imagino como seria difícil (na improvável hipótese de ter ofício de bailarino, por manifesta inaptidão) tirar as roupas e subir a palco por indicações do coreógrafo – ou, se fosse ator, e se o encenador me informasse que a meio de uma cena ter-me-ia de despojar das roupas e expor a nudez diante do público.

Dir-se-ia que são as sobras da cultura católica que nunca deixou de fazer cair a sua mão castradora, desenhando os limites do censurável na fronteira da vergonha do corpo. É o reduto da intimidade. Não andamos nus na rua, porque as leis interpretam a ousadia como um exibicionismo a que cabe a mácula de um crime. Reservamos os pedaços da intimidade para o domínio do eu. Se a partilhamos com quem aceitamos fazer a comunhão de corpos através da sexualidade que socializa esse domínio da intimidade (em pequena medida – e na medida da ou das pessoas com quem partilhamos esse reduto da intimidade), não deixa de ser do domínio da intimidade, agora já não puramente individual.

Não posso dizer que os cânones da cultura católica deixaram marcas. É o que quero acreditar, como expressão do ateísmo incondicional. Todavia, não consigo reprimir as interrogações que me percorrem interiormente, uma certa convulsão que se acentua ao denotar a contradição entre o almanaque das intenções e o (por vezes) irreprimível bastão das convenções que se abate contra a vontade que se julga cimentada pela razão. Esta vergonha do corpo, será uma herança não desejada dos vestígios de catolicismo que foram sendo deixados nas costuras do comportamento?

Regresso aos corpos nus dos bailarinos (ou aos corpos dos atores que se desnudam a meio de uma peça de teatro): talvez lhes seja mais fácil a nudez, estão em palco a sublimar a arte de atuar, o fingimento exigível a quem é ator. Não são eles, são as personagens que encarnam. Convidados a personificar outrem, não é o seu corpo nu que aparece em cena: é o corpo dessa personagem. Ou então, um corpo é apenas um corpo, uma materialização que expõe a desimportância do corpo e a insignificância da nudez. A medida não é por igual: há pessoas que lidam melhor com a sua nudez diante dos outros, e não são atores ou atrizes. Pois o corpo é apenas um corpo, reservando a parte mais importante do ser para a sua dimensão desmaterializada (não o corpo; a alma). Se dúvidas houver sobre a irrelevância do corpo, o tira-teimas é testemunhar uma autópsia: o corpo é tratado como coisa.

O corpo é apenas um corpo – leio o mote vezes e vezes, como se me estivesse a convencer que o corpo é apenas um corpo. Mas continuo a não ser capaz de ir a uma praia de nudismo. 


18.9.20

Mão dormente (short stories #260)

Flaming Lips, “Race for the Prize”, in https://www.youtube.com/watch?v=bs56ygZplQA&frags=pl%2Cwn

          O sol esbate-se na silhueta da muralha, esbarrando contra o dorso do entardecer. O tempo, subitamente, parece arrastar-se. Quase como se fosse uma suspensão, temporária. A mão dormente assenta na mesa da esplanada. Remexe os tendões e os músculos, à procura do sangue necessário para ser resgatada do torpor. Não é assim com o pensamento, que ferventa. Sobrepõe-se à impostura do tempo; se calhar, é a quimera do pensamento ávido que devolve a impressão do arrastamento do tempo, como se o pensamento insaciável iludisse o castigo do tempo. A mão ainda dormente esboça umas palavras na folha de papel tirada ao acaso. As palavras também são um acaso. Impetram ao labirinto da alma uma centelha de onde possam submergir da letargia imposta pelo dia que se faz ermo. A ponta da caneta saliva umas palavras avulsas que se alinham, sem ordem. Os poetas são artífices nas palavras que reinventam o seu sentido; são pródigos nas entrelinhas que cativam múltiplas leituras, deixando ao exegeta a sua liberdade. A mão parece sair da dormência à medida que as sílabas se emaranham nas linhas sem limites que emprestaram à folha de papel. As palavras contrariam o crepúsculo que se levanta vagarosamente, reificando palavras simples, puros cristais de neve que se amontoam com uma leveza como se não estivessem sujeitas à lei da gravidade. A mão já não está dormente. Por ela foram escritas palavras que a remiram do torpor. Agora a mão serve de pedestal para o queixo que, em pose contemplativa, aprecia o lento devorar da luz diurna. A mão diria à cabeça pensante que o mundo assenta neste canibalismo diário, perene. É por isso que há quem suplique que a noite se demore. A mão tem medo da noite. Tem medo que a noite a restaure como mão dormente.

17.9.20

Intenções do avesso (ou: quando a autocomiseração em excesso é um auto de ufania exacerbado)

Fontaines D. C., “A Lucid Dream”, in https://www.youtube.com/watch?v=2EpoaL2r0k8

Disputam-se os últimos despojos da miséria. Os que se consideram excomungados da alegria competem pelo maior pecúlio possível da miséria a concurso. Seria paradoxal o comportamento, se estes párias de si mesmos não trouxessem a autocomiseração como intenção: sobem a palco munidos de seus mentais andrajos, em contínua autoflagelação, suplicando pela piedade dos que da audiência assistem ao soez espetáculo. 

Disputam o proeminente lugar do mais inditoso de todos. Para os demais – os que se amontoam na audiência, de frente para o palco – este seria um lugar evitável, indesejado. Já os excomungados competem pelo lugar cimeiro na listagem dos que foram submetidos às piores provações e destinados a um eminente lugar miserável. São órfãos de sorrisos, a sua pose macerada e o rosto exageradamente marcado pelo tempo como provas de todos os males que sobre eles se derramaram. Ostentam a condição deplorável. Querem que seja reconhecida pelos que foram convocados para a audiência. Querem ser os corpos onde são depositadas doses maciças de piedade.

A contínua autoflagelação é mais tortuosa para a maioria das pessoas que foram arregimentadas, contra a sua vontade, para a audiência. Afligem-se com as dores excruciantes gritadas pelos excomungados à medida que arrastam as suas angústias dilacerantes pelo palco. Não percebem, os que tiveram a graça de ficar à mercê desta miserável condição, que são vítimas dos oprimidos que sobem a palco. Estes querem comiseração, a paga necessária pelas misérias que os cicatrizam. Como se fossem pedintes de piedade e um imperativo de solidariedade atuasse à medida que os cidadãos poupados às provações se quisessem libertar da sua interior tortura, transferindo generosas doses de piedade a favor dos desapiedados. 

Estes prolongam a tortura. Escondem um falso orgulho sob a densa capa da humilhação que protestam. Exageram nos padecimentos: intuíram que a miséria exacerbada povoa a generosidade dos convocados para a audiência. Mas trata-se de uma escondida ufania. Uma competição sem esteios que se funda na mitomania dos que suplicam a comiseração da audiência, na intencional adulteração dos sentimentos, quando se mostram deliciados com a miséria que os assola. No fim do ofício, e operadas as transferências de piedade a favor dos desvalidos, os mecenas emocionalmente ficam exangues. Os miseráveis esqueceram os infortúnios e hibernam na ufania das almas carregadas de amparo.

Pelo menos no dia da função, não é de estranhar que se invertam os papeis. Essa é a oculta ufania dos que exageram nos padecimentos e se peticionam como credores da comiseração dos outros. 

16.9.20

Quem tem medo do presságio do medo?

Gorillaz (ft. Robert Smith), “Strange Timez”, in https://www.youtube.com/watch?v=bbA5p54Rw2M

Uma luva imensa parece abater-se sobre a totalidade do corpo, colonizando a respiração. Há um instante em que o chão parece escapar sob os pés, como se as marés tivessem sido extintas ou o ocaso da véspera tivesse sido terminal. Não se percebe de onde dimana a luva imensa, nem o que a fez escolher aquele lugar e as pessoas que ali se encontravam. 

O medo depressa medra no expoente pálido da suspensão de tudo. Pressente-se, o medo. É como se viesse de véspera, vestindo um rosto anónimo, acautelando um medo maior que se anuncia para o dia seguinte. Um medo por dentro do medo. O medo inaugural adverte para o medo maior, o que está por vir. Mas o único medo que se identifica é o primeiro: um mero medo instrumental, porque entreabre as portas a um medo que medra numa catástrofe de maiores proporções. O verdadeiro medo é o que está prometido. O medo inicial é apenas o medo de ter medo do medo que está pressentido.

Foi então que se alcançou como o telescópio de medos é extemporâneo. Os medos estão em linha, obedecendo a uma cronologia apenas pressagiada. O segundo medo – o medo axial – não é adquirido. Pode acontecer que seja um ardil do medo instrumental, apenas para ter palco. Ele que, de outro modo, enquanto mero medo instrumental, não passa de um figurante na escala dos medos. É um medo domável. Para ganhar palco, precisa de anunciar de véspera que um medo dantesco está para chegar. E alimenta-se desse oráculo, entoado à guisa de rumor, para encorpar na escala dos medos.

Quem está por fora não consegue pesar a linhagem do medo instrumental. Não lhe conhece os pergaminhos – não sabe se é fidedigno e se a sua confiabilidade atesta a ameaça anunciada de véspera. E também pode ocorrer que a definição de véspera seja elástica: será a véspera de um dia destes, para o futuro, só para cravar fundo as esporas do medo pela indeterminação da sua ocorrência, trazendo constantemente pela trela os que são tomados pelo medo do medo futuro.

Ou pode apenas simplesmente esboçar-se uma solução para a apoplexia dominante, não dando ouvidos às bocas que tartamudeiam promessas de medo avulsas.   

15.9.20

Sermão

Morphine, “Rope on Fire”, in https://www.youtube.com/watch?v=y7cqogdo_Pc

- Se ser relógio das almas fosse ofício regular, não tinha horas de sono.

A incumbência seria levada a sério, um autêntico martírio, todavia irrecusável. 

- Não cabe a todos ser um entre o escol, um eleito. Os colossos não pertencem às ossadas dos comuns.

Não houvera vivalma a sussurrar esta metafísica condição, mas acabava os dias a ser a metonímia de si mesmo, um estendal onde vertia as angústias dos outros, coadas por seu astuto medidor.

- Ah! Quem me tira o deleite de um bom sermão – dos sermões de que sou pregador. 

Não lhe importava a sua risível condição, um ensimesmar – dir-se-ia – patológico. Perorava de forma prolixa, um discurso gongórico, ininteligível, com pose solene e estudada (ou seria estudada e solene?), dirigindo-se à audiência com o dedo espetado como se fosse o fóssil que devolve o perdão aos que precisam de indulto. Sentia-se continuamente sentado na maré alta. Seus eram os adjetivos que postulavam a linhagem de uma alma. Acordava todos os dias convencido que todos os outros lhe tributavam um respeito monárquico, como se fosse imensa a sua corte e ele o suserano à mercê de genuflexões.

Não havia jornada sem sermão. Sentenciava sobre estados de alma, a arte, a genesíaca paisagem (era um naturalista de eleição) e, no que aos estados de alma diz respeito, sobretudo dos que fossem merecedores da reprovação dos costumes enraizados. Sentia-se, de firme propósito, um tutor.

- Os predestinados têm um ónus que os simples mortais não alcançam. As obras de que somos mestres não rimam com lhaneza. Os tortuosos meandros da alma, labirintos diáfanos, não se privam das juras que os desmentem. Os predestinados não se coíbem de conferir chão sólido às ilusões que se desmembram na vacuidade. Somos como que analgésicos. Às vezes, anestesias. Seja como for, uma mão amiga, inestimavelmente amiga.

(Usava o plural majestático como disfarce da sua inane ufania, vista do avesso. Não reconhecia mais ninguém com o seu estatuto. E, contudo, não deixava de empregar o plural majestático.)

Não contava com a farsa dos espelhos. Espelhos que distorciam a imagem. Aumentativos dela. Não lhe avivassem a cal da geografia que era sua moradia: podia ser acometido por uma súbita apoplexia quando desse conta da irrelevância que é apanágio da imensa mole de que se dizia máximo tutor. E de que era, afinal, parte integrante. 

Às vezes, é preciso provar do veneno que se deita aos outros. 


14.9.20

Consentido

Sleaford Mods, “Jolly Fucker”, in https://www.youtube.com/watch?v=NyXt5dPEfeQ

Aproveite-se a generosidade do tempo, de que frui uma estação a destempo: o consentimento não precisa de notário, escreve-se no clima sem morada que destempera o Verão tardio. É como os olhares que são substitutos da fala. O consentimento não precisa de verbo para ter aval.

Neste demiúrgico pesar, as abóbadas que cercam a cidade não se importunam com as vozes que protestam contra a “heresia”. Não se chega a perceber a raiz do protesto, nem que crime hediondo terá sido cofiado para se protestar, em voz alta, “heresia”. Quem invoca uma heresia está no padecimento máximo: a heresia é o pior dos crimes. Contudo, os códigos de leis não incluem a heresia nos crimes com punição. O bramido fica órfão. Não será se não bramido, um legítimo direito ao protesto. Sem outras consequências. 

Não se partilham as ideias se elas partirem de uma imposição. É então muito provável que as divergências tomem conta do dia. São convidativas, as divergências. Se não fosse por elas, os canhestros ideólogos de um pensamento totalizante seriam os fautores de uma ingerência na esfera dos outros. Diriam que tinham legitimidade em nome do “bem comum”. Seriam eles os arquitetos do “bem comum”, e inquisidores em correspondência, sem darem conta que ajuízam em causa própria ao serem censores da “heresia” por alguém cometida. A sua urgência não merece consentimento. Se não tiverem o respaldo das leis, estão condenados a vegetar na irrelevância das suas causas. Se houver identidade com as leis dispostas, legitima-se a intrusão com a aprovação da lei. Não deixa de ser uma intrusão, pois não teve o desagravo do consentimento. Falta-lhe a legitimidade dos que se expuseram à invasão.

Quando se diz “consentimento” é porque a legitimidade se tornou um labirinto denso, com sucessivas entorses a pretexto do “bem comum” que não pode ser desautorizado. Diz-se, sem elaborar o argumentário, que a urgência da exceção justifica a legitimidade do que, de outro modo, seria uma inaceitável intrusão. Ativado o pretexto, transfigura-se a semântica que encorpa o conceito: o que dantes era ilegítimo torna-se legítimo, mesmo que não tenha havido o selo legitimador do consentimento.

Apure-se a cartografia de “consentimento”. Desmembrada nas suas duas partes, fica “com sentimento”. Nada devia ser admissível contra o sentimento daqueles a quem as ordenanças se impõem. O consentimento, como expressão máxima do sentimento do destinatário, é a chave para os enigmas. 


11.9.20

“Uma mente depravada”


Hinds, “Good Bad Times”, in https://www.youtube.com/watch?v=XVdJUy5KCJY&frags=pl%2Cwn 

O jornalista, muito circunspecto e de olhar pesado, informou que um jornal estrangeiro por sua vez tinha informado que se descobriu que Bin Laden tinha uma abundante coleção de filmes pornográficos. Ficou por saber a origem (diga-se: a fonte primária) da notícia. Ficou por saber se a informação foi sussurrada pelos serviços secretos, à guisa de desinformação, e o órgão de comunicação social amestradamente tratou de a espalhar. Ficou por saber se a informação era fidedigna, ou se cuidava apenas de distrair as atenções. Ficou por saber, se fosse fidedigna a informação, se o terrorista tinha uma coleção de filmes pornográficos por autorrecreação (afinal o homem teria uma abrupta queda pela pornografia, e não deve ser o único) ou se, como era insinuado na notícia, os filmes eram usados para passar informações cifradas aos terroristas recrutados.

E, no fundo, nada disso interessa. 

(Ou melhor: não é que todas aquelas dúvidas sejam irrelevantes do ponto de vista do ofício do jornalista. É irrelevante pelo prisma que escolhi ao trazer o episódio para este texto.) 

O que interessa é o modo atrapalhado com que o jornalista glosou o sucedido. Para rematar a sua intervenção, o plumitivo engasgou-se no silêncio, hesitou por uns eternos segundos, e lá epilogou a custo, com um ar que somava o asco com a superioridade moral, que Bin Laden tinha uma “mente depravada”.

(Também ficou por dilucidar se a “mente depravada” se devia mais ao gosto por filmes pornográficos, ou por ter sido o autor moral de tantos atentados terroristas com as conhecidas consequências.)

O jornalista terá ficado mais horrorizado com a revelação agora feita sobre este traço da personalidade de Bin Laden. Uma “mente depravada” é alguém que vê e/ou coleciona pornografia. Falta acrescentar, em abono da contextualização do sucedido, que o jornalista passou muitos anos na “emissora católica portuguesa”, o que talvez explique o abalo psicológico que sofreu ao saber da propensão de Bin Laden para a pornografia – tanto que escolheu uma irrelevância para comentar notícias publicadas pela imprensa internacional naquele dia. E se não fosse Bin Laden, mas a jornalista que com ele contracenava, também lhe dirigia o labéu acusatório? Não nos digam que os políticos (conceda-se que Bin Laden o foi) ou públicas figuras (os chamados “notáveis”) não podem ter os seus vícios privados, quaisquer que sejam? Se são privados, estes vícios não se sujeitam ao escrutínio público dos grandes tutores da moralidade também ela pública. A vida privada das pessoas ainda é do foro privado, inescrutável pelo público. 

Pelo que se sabe – a prosperidade da indústria da pornografia – o senhor jornalista teria muito pudicamente que bater no peito e lamentar-se que uma parcela significativa da humanidade tenha “mentes depravadas”. Ou então, e de uma vez por todas, os embaixadores das sacristias deviam perder a vesânia de se pronunciarem sobre os hábitos privados dos outros, quaisquer que sejam eles, mesmo os que mais choquem os seus puritanos olhares. 

Para muita gente, desde os embaixadores das sacristias aos vigilantes dos modernos costumes que querem impor totalitariamente, é difícil aprender o significado de liberdade.

10.9.20

O leão noturno (short stories #259)

Japonica, “Through the Mountains”, in https://www.youtube.com/watch?v=mbBlx3Don5c

          Trago um diamante no esconderijo da boca. Não sei se é da noite, mas o sorriso baço diz-se fugitivo no lugar onde se extinguem os reinos sem estação. Talvez seja eu o fugitivo e a noite exílio inesperado. Na opacidade dos dias claros, os lábios esbracejam palavras difíceis. Saem a ferros, às vezes truncadas, mas não deixam por dizer o que querem dizer. Não é de uma alma esmaecida que se trata. Há uma plenitude que compõe o mapa onde assentam os ossos fundos. Uma tela inconfundível, a fala estreita, parcimoniosa nos adjetivos – pois a fala dispensa os ornamentos que distraem do que traz ânimo. É como se pela noite fora cavalgasse no dorso de um cavalo sem cor, os seus olhos tapados por uma venda transparente, só para fingir um olhar embaciado – só para fingir que eu conduzia o cavalo. A cegueira pode não ser do cavalo; a cegueira inventaria-se nos muitos exemplares de desarte narcísica que se esboçam como epitomes de erudição. Uma vanidade. Um logro, como uma joia perdida nas funduras de um poço, irrecuperável. No estio da memória, sangra o suor gasto entre os poros das paredes. É o próprio sentir que parece emparedado, insensível, invisível. Não suplico nada que seja um porto vago de angústia. Aprendi que o sono é o aval da paz interior. Não adianta ser hermeneuta de sonhos insondáveis, os sonhos são um pedaço de teatro sem palco que se insinua. Sem esse fingimento, sobramos nós. Essa simplicidade não aparente. Improcedentes, os exercícios arqueológicos que escavam até ao magma em demanda de outros sedimentos que caucionem um eu diferente. Não precisamos de ser um eu diferente. Não precisamos de eus diferentes. No fio indelével da noite, o olhar de um leão insinua-se na sombra do luar. Esse olhar retém as costuras do mundo. A simbiose da benevolência com que o mundo nos gratifica. 


9.9.20

O elefante está no meio da sala

Nadine Shah, “Out the Way” (live at Hyundai Mercury Prize 2018), in https://www.youtube.com/watch?v=Er2rlIzTydc

A mordaça devia ser o melhor critério. Se a palavra é uma armadilha e invariavelmente desagua num disparate, atiçando o risível que o cobre, antes fosse silêncio sepulcral. Ou recolhimento terapêutico. Caso contrário, ficará emoldurado nos anais como o desastrado elefante que estacionou no meio da sala e, por mais cuidado que tenha, a cada gesto estilhace as porcelanas que o deixam no lugar de ilha.

O elefante no meio da sala não faz de propósito. Ou, por outras palavras: o elefante não faz de propósito para estar no meio da sala e semear desastre a cada gesto. O asnear não é intencional. Em sua defesa, invoca os esforços para não estilhaçar nada à sua passagem. Estuda as intenções, sopesa as reações, mede milimetricamente as palavras, consome-se em hesitações antes de dizer ou atuar, e acaba sempre por ser vítima de si próprio. É como se tudo o que faz e o que diz esteja destinado ao logro. 

Por vezes, durante o metódico e, todavia, infrutífero método para o salvar de ser o elefante no meio da sala, intui uma certa direção das palavras a dizer ou dos atos que esperam prática e, no último momento, ordena uma reviravolta e diz ou atua em sinal contrário. É como se uma contra-intuição de última hora se sobreponha à intuição resultante do cuidado método usado. Mete marcha-atrás e muda de direção no derradeiro instante, movido pelos pergaminhos de elefante que, estando no meio da sala, desata o caos à sua passagem. Elucubra: se a norma do pensamento, da ação, ou da palavra é um desastre, o melhor remédio será, no resgate do último instante, mudar a agulha e pensar, atuar, ou dizer o contrário. 

Nem assim se salva do desastre e a sala em que estava o elefante fica em estado de sítio. Seja qual for o caminho por que conduza, acaba no meio de uma exígua sala e tem como fado ser um irremediável desastrado. Por mais que se deixe enredar em teorias dos jogos (“no caso em apreço, a lógica mandar-me-ia fazer ou dizer isto; como é provável que acabe em asneira, vou proceder ao contrário; mas como um fantasma meu está de atalaia, vou apanhá-lo de surpresa e contrario o contrário do que tinha planeado dizer ou fazer.”), é o irremediável elefante no meio da sala, à espera do mínimo gesto para desatar o caos.

Antes fosse um ornamento imóvel que está no meio da sala. Apreciá-lo-iam mais como objeto inanimado. Esse é o pranto que não conseguir reprimir.


8.9.20

Recomeçamos o relógio (a leveza dos nomes)


Nick Cave and Warren Ellis, “Push the Sky Away” (live at Sidney Opera House), in https://www.youtube.com/watch?v=TJZDyIz-0lk 

Um certo dia, a convocatória indelével, o surto que desfaz os mantimentos da nostalgia, os trunfos dispostos para servirem o porvir. O relógio arcaico perde a sua serventia. É como nos jogos de xadrez, o jogador põe o relógio a zero depois da sua jogada e começa a contar o tempo do outro jogador.

Remoçamos a parada como se os apeadeiros dantes espaçados a velocidade estonteante entrassem no paradeiro dos lugares exigíveis. Ou por outras palavras: a ferocidade do tempo vertiginoso caducara com os relógios colocados no ponto zero. Percebíamos que o tempo apressado era um punhal que ensanguentava o chão deixado atrás do corpo, como uma ferida seminal que julgávamos ser o fértil arremedo do restante. Não era por sermos tutores de um tempo vertiginoso que o prolongávamos – muito pelo contrário. Só quando percebemos como éramos algozes de um tempo que se banalizava, ou algozes de nós mesmos, é que recomeçámos o relógio.

Os nomes que vinham ao mapa onde outros se intersetavam connosco perdiam inteligibilidade. Eles tinham âncora no tempo que perdera noção. Eram como rostos indiferenciados, meros anónimos que não queriam dizer ninguém no nosso mapa de nomes. Sabíamos que deles o paradeiro se perdera na leveza do tempo, quando recomeçámos o relógio. O próprio mapa dos nomes passara a ser modesto, como aqueles lugares de pouca densidade populacional.

Essa era a nova partitura. O gesso que moldava a curvatura do tempo. Não eram precisos relógios novos. Tudo que que precisávamos era uma nova medida do tempo. Percebêramos que era viável deixar de praticar entorses no tempo. Ou de o forjar – que era o mesmo que tentar resumir todo o mar às duas mãos. O tempo era a medida levitada pela sua leveza. Ao contrário do tempo pretérito, em que um frívolo furor torcia as esquinas do tempo como se ele pudesse ter uma medida maior do que a dos espelhos, agora os relógios tinham deixado ser exercer a sua tirania. Dissemos bem-vindos à totalidade dos nossos seres, como se o tempo corresse à velocidade que desejava, que coincidia com os nossos desejos.

Já quanto os nomes, deixámo-los em quarentena. Uns quantos para mnemónica, para avivar a memória (que a memória não perde o seu equinócio). Não podíamos exaurir a nova medida do tempo com um caudal abundante de nomes. Os nomes por excesso colonizam o tempo por diante.

7.9.20

A continência do poeta

Fontaines D.C., “Roy’s Tune”, in https://www.youtube.com/watch?v=3D-JYLhN5Yk

Todavia, a insubmissão. Não relevam as botas cardadas. Nem as medalhas amontoadas à lapela e o ar circunspeto de quem ombreia a severidade com a posse bélica. Insubmissão. Diz o poeta ao fardado: não te reconheço legitimidade; não te quero por perto, com o teu odor pútrido ao sangue que mandaste derramar, pútrido por mais que submetas o corpo à purificação dos banhos diários. 

A continência do poeta é a maldição dos castrenses – de todos os soldados que denegam a humanidade, eles ufanos pela maldição de que são mecenas: as vidas que não hesitam em destronar, porque foram ensinados que gente do mesmo sangue mas que se diz ter sangue diferente se desqualifica como inimiga e o diferendo exige que as mãos se metam às armas para derrotar os homens do mesmo sangue que se disfarçam de sangue diferente. O poeta levanta o verso a favor da antinomia dos exércitos que carregam aos ombros este inventário indecoroso. Esse é o seu exórdio irrecusável.

O poeta maldiz-se por ter de amaldiçoar os castrenses. A páginas tantas, está quase na posição do ateu que entretece elegantes argumentos a negar a existência de deus. O poeta exige uma purificação, uma libertação heurística, exige que o corpo percorra outros arruamentos. A continência do poeta não transige com o chão infértil por onde passaram as botas cardadas e os urros dos hodiernos hunos. 

O poeta acorda para o novo dia. Sente-se novo, como o dia. À cabeça, as formas constantes que aformoseiam o mundo – frescas, como a claridade matinal. O amor. A mulher amada. A filha e o futuro que a ela virá, no sortilégio que é conceder a indeterminação do porvir. As avenidas povoadas por tílias, com a sua sombra acolhedora, onde as mãos adestram as páginas de um livro e sente a carne crescer num caudal a preceito onde medram águas construtivas. As empreitadas pretéritas, apenas como mnemónica; e as que são exigidas pelo tempo futuro, em recusa da ociosa hibernação, uma bandeira hasteada que evoca a vida que se sente para ser vivida e não gasta em irrelevantes demandas. Porque um marco geodésico é apenas a janela que se entreabre para deixar o corpo voar mais acima. Sem deixar de ornamentar a vida como um festim, ainda que seja discreta a celebração. 

Esta é a continência do poeta. A submissão única à vida que tem o tamanho dos mares inteiros, para dela fazer (sem citar o poeta maior) um poema contínuo.


4.9.20

Vesúvio

Ólafur Arnalds, “We Contain Multitudes”, in https://www.youtube.com/watch?v=CzShsG8JLBY

Não é o medo arcaico, a sofreguidão dos costumes que asfixia a vontade, a bússola orientada. Podem os juízes alheios perorar sobre os comandos da vida, ditar zelosas sentenças morais que determinam comportamentos, que essa falta de juízo não extrai o sumo da vontade.

O que conta é o magma fervente que, em ebulição, se oferece como maré de fundo. A combustão irradia pelas paredes do corpo. Ardem as veias, enquanto interiores modos cuidam de renegar qualquer báscula que adeje sobre o império da vontade. O magma emergente é o caudal por onde a lava dormente se transfigura. Por fora, o corpo exsuda. O suor canibaliza o temperamento – dir-se-á, a propedêutica loucura está mais próxima. Se alguém tocar no corpo, senti-lo-á erubescente, uma fornalha que, em paradoxal instinto, é convidativa. 

O corpo em ebulição é o seu próprio caudal. Afasta as margens para os limites que à partida eram impensáveis. A combustão interna ganhou vida própria, não há comando interior que a trave. O corpo parece uma matéria em risco de explosão. Fora do controlo da vontade. Ou possuindo uma vontade que se emancipou da vontade que os bons costumes e o arsenal da repressão ancestral ensinam a respeitar devotamente. O corpo insurge-se contra os costumes, contra as ordenações metafísicas que o tentam domar. O vulcão emergente rumoreja contra os síndicos que se anulam a si mesmos e refreiam os corpos outros (porventura por não conseguirem refrear os deles).

O vulcão fala, vagarosamente, em crescendo, aglutinando as sílabas nas encostas que fervem de desmedo. Avisou que não vai esperar. O rumorejo contínuo é a voz das convulsões internas, o magma ascensional que toma conta das veias. Não esperem moderação. Não esperem medo, que é a antítese do medo caucionado pelos habituais estetas da repressão que está em causa. Esperem apenas a expressão da liberdade.

O vulcão há de ter a fala derradeira, explosiva, quando aos soluços bolçar a lava incandescente que se desprende sem critério pelo espaço limítrofe. Dessa lava que não abraseia o corpo ungido dir-se-á ser nutriente sublime, a prova de um desejo sem freio. O vulcão não se contenta com a ocultação de provas. Derrama-se, avulsamente e sem critério, como se estivesse a agradecer à terra exterior que o hospedou por o ter contido durante a hibernação. Fertilizada, a terra agradecerá em uníssono, abraçada pela lava derramada, os dois, terra e vulcão, arqueados e premiados pelo império a que deram fala.


3.9.20

Janelas imprescritíveis

Asylums, “Who Writes Tomorrows Headlines?”, in https://www.youtube.com/watch?v=rkuJolfbwFk&frags=pl%2Cwn

Renúncia. Os novelos de nevoeiro esportulam a luz baça sobre o lugar matinal do dia. Os rostos que parecem cambalear na rua são a rima condizente com a luz entediada, em sua estrénua forma. Há janelas escondidas; mas janelas existentes.

No parapeito da angústia, onde são emulsionadas as consumições avulsas, uma escotilha sobe ao conhecimento. Soergue-se vagarosamente do horizonte do mar, parece vir espiar a beleza da terra limítrofe. É uma janela que abre de par em par toda essa beleza, não estivesse ela embaciada pelo nevoeiro obstinado. Pelo andar do dia – e já vai tardia a manhã – o nevoeiro não vai ser dissolvido tão depressa. Mas há janelas por onde o olhar se pode demorar. Janelas que não se intimidam pelo parêntesis devido pela firmeza do nevoeiro. 

Colhem-se flores silvestres espontaneamente brotadas de um canteiro. As pessoas passam amiúde, nos seus trajetos habituais, e não reparam nas flores silvestres. Não sabem que elas são janelas por onde espreita o tempo distraído. Contêm todo o mel fervido na viável atenção de um punhado de pessoas, como se elas fossem as abelhas que mergulham luxuriosamente nas flores e dessem, em dobro, uma fotossíntese que é o ardil para a dissolução do nevoeiro temporão. Pois há janelas que não prescrevem nem com a madurez do tempo – nem com a pervicácia de um nevoeiro plúmbeo. Resistem à corrosão do tempo, essas janelas. Nunca chegam a ser órfãs.

As gotas do orvalho matinal descem pelos vidros das janelas. Desenham curvas irreparáveis, avulsamente, deitando para o interior do quarto uma nesga do jardim que se aformoseia com a claridade nascente. O olhar estremunhado desembacia-se. Mesmo que seja noite, as portadas não estão corridas; no império da noite, há sempre uma candeia que espreita, servindo-se do peito aberto aprovisionado pelas janelas que não dormem. 

Na sua imprescritível natureza, as janelas oferecem um olhar imorredoiro sobre o curso dos dias. Não se escondem, nem das piores contrariedades. Tanto servem para decantar o jardim bucólico, como para apreciar a fúria embelezada de uma tempestade. Por ao menos sabermos, do âmago da impertinente indeterminação das coisas, que as janelas oferecem ao olhar a sua manumissão.


2.9.20

Arquipélago

Tricky (feat. Oh Land), “I’m in the Doorway”, in https://www.youtube.com/watch?v=xSrAxyUAMfw

A sujeição aos limites que transcendem a vontade, armadura que se veste no corpo sem ser a pedido deste. Diz-se: é uma proteção contra a verosimilhança da geografia intransigente, uma aguarela límpida que ornamenta a cartografia do lugar. Mas uma sujeição. Não se é arquipélago sem o penhor da angústia.

Mas ser arquipélago é uma condição inata. Pode-se ser arquipélago em sentido literal, um conjunto de ilhas contíguas que formam um todo e, todavia, entre elas uma dissemelhança que suplica múltiplos heterónimos, ou personalidades que correm em paralelo. Ou ser-se arquipélago apenas como metáfora, sem um mar à ilharga e, todavia, arquipélago, um amontoado de ilhas que se desprendem do território limítrofe por a identidade se ter desidratado com a passagem do tempo.

O arquipélago pode ser um ónus. A unidade espartilhada em diversas parcelas, com a descontinuidade a fermentar a pluralidade. Não é fácil habitar na diversidade contida num arquipélago. Apesar do módico de identidade (ou não se podia falar de arquipélago), os estilhaços desenhados no mapa, que quadram com as várias ilhas, são o espólio da disparidade. Nem sempre a memória consegue adestrar o compêndio das diferenças que formulam a identidade do arquipélago. Parece que as diversas partes não compõem um todo, estranhas entre si.

Essa é a fortuna do arquipélago. Embebe-se na pluralidade, não tendo razões de queixa do tédio que se instrui na continuidade do que é sempre igual. Pode ser um mostruário armadilhado, se a diversidade for tão visível que salta aos olhos, de tal forma que se pode interrogar se as diversas partes formam um todo. 

Há quem prefira evitar as dores genéticas de um arquipélago traduzido numa bandeira policromática. Julgam que tanta diferença é impeditiva de um mínimo denominador comum de identidade, caminhando para um abismo onde a hesitação medra na complexidade. E há os outros, metodicamente hostis à reprodução mecânica dos dias uns atrás dos outros, que constroem o seu próprio arquipélago como reduto da necessária reinvenção. Os arquipélagos mentais são em maior número do que os arquipélagos geográficos. A metáfora sobrepõe-se ao limitado espaço onde se arquivam os mapas que desenham os limites da terra.



1.9.20

Os artesãos sem rosto

Idles, “Kill Them With Kindness”, (live at Abbey Road), in https://www.youtube.com/watch?v=1vfzo1SDsI0

Um curativo sob os auspícios dos artesãos sem rosto: cuidavam do aformosear dos lugares, convocados para a decantação dos argumentos inválidos. E quem decidia que os argumentos eram inválidos?

A avareza dos Homens não podia ser subestimada. Por muito que fosse razoável admitir que a generosidade conduz as almas, era mais prudente ter uma reserva de desambição de lado para lidar com as congeminações que desmentissem esse lugar idílico. Os artesãos sem rosto eram os curadores da empreitada. E que credenciais tinham os artesãos sem rosto?

As pessoas gostavam de mapear fotografias do mesmo lugar. Numa das fotografias o retrato do lugar como ele é agora e na outra a sua moldura num qualquer tempo pretérito. Era como se se exercitassem no ludismo de quem é desafiado nas páginas dos jornais a descobrir as diferenças entre dois desenhos. Fazia-se a contabilidade das diferenças num papel à parte. Quanto mais abundante fosse a contabilidade, mais exultavam os impetrantes. O progresso era a sua medida. E quem assegura que o progresso é o estalão legítimo?

 Entre duas garfadas e um copo de vinho, os que estavam amesendados amoedavam uma frivolidade qualquer. Não se espere destes manjares profícuas demandas sobre a existência, ou sobre outras especulativas demandas a coberto das humanidades. Os prazeres mundanos não foram proscritos. Quase todos faltavam à chamada se o oposto fosse o alinhavo reinante. Areópagos outros existem onde essa finalidade é prosseguida. E quem sentenciou que os prazeres da boa mesa têm de ser incompatíveis com densas elucubrações da alma?

Na estrada entre dois sítios ao acaso, vão sendo contadas as árvores que a bordejam. Que idade terão? Teriam feito a contabilidade dos veículos que foram suas testemunhas? Terá repousado neve naquelas árvores? Uma curva apertada anestesia o exercício especulativo. Não é intenção dar de provar a uma árvore mal situada o impecável vestido do veículo e, para que conste, os passageiros não têm hora marcada no hospital mais próximo. E quem julga que uma árvore está mal situada?

À hora marcada, encontram-se para o encontro combinado. Um deles pergunta pela vida do outro. Este devolve a deferência. Demoram-se no protocolo e arrastam-se nas convenções imputadas aos (soi-disant) bem-educados, adiando os assuntos substanciais. Quando se despedem, não passaram do prólogo convencional. Talvez não tivessem nada para dizer. Encontraram-se na mesma. São artesãos sem rosto. Um deles ainda se descaiu: “é preciso matar o tempo”. O outro não o desmentiu com o silêncio. E por que se convencionou frase idiomática tão simultaneamente assassina e suicida?