28.2.22

O pescoço de atalaia

Linda Martini, “Eu Nem Vi”, in https://www.youtube.com/watch?v=QSZwEvmAhac

Por estes dias parece que o sol está a arder, mesmo quando é a chuva que toma lugar na nossa língua imobilizada pela letargia. Por estes dias, em que o futuro está do avesso e os dias se contam da frente para trás. E nós, peões num lugar embaciado, somos testemunhas da demência que se enquista nas mãos ardilosas de uns mandantes ensimesmados.

Por estes dias, escrevemos as estrofes depois do pesadelo. Os pesadelos que não rimam com o sono enfeitiçado, mas pesadelos feitos de lava pestífera que se levanta das vozes arqueadas nos rios que transbordam de loucura. Da má loucura, que a boa continua a pertencer aos poetas, esses homens e mulheres desarmados que não se adiam no jogo estratégico feito de vidas cerceadas no seu deslimite. E nós, testemunhas à distância, anestesiados pelos braços impotentes, cuidamos da fala em que fermenta a rebeldia dos fracos que, juntos, congeminam a maior fortaleza que os lugares podem conhecer.

Por estes dias, as vidas perderam valor na bolsa das enfermidades. O palco, povoado por envilecidas personagens sem corrimões para se ampararem, faz gala de colocar os inocentes em posição semelhante. São eles, iconoclastas das paredes túrgidas que são um ermo onde sozinhos habitam, são eles que recusam afeições. São eles, tresloucadamente, que teimam que todos os demais sejam refrão das suas quintessências, como se de nós não sobrasse vontade a não ser que seja uníssona com a deles. 

E nós, por estes dias, podemos jogar ao mais belo jogo que pode existir neste alinhamento de circunstâncias: o jogo da cidadania. O jogo em que cada um de nós diz em voz firme que não se deixa hipotecar por tiranos de pé de palco, ensoberbados pela falácia em que nidificam sem darem conta do estado de negação. Somos nós, por estes dias, que temos de tomar conta dos dias para que eles deixem de ser acantonados num lugar pútrido e deles façamos, em fala pejorativa, estes dias por que passamos sem fala válida.

Pois, por estes dias, só as vozes alcatroadas, em clamor que se eleva mais alto do que mil sois profundos, se sobrepõem à intimação dos poderosos que estão sentados sobre a soberba da sua força. Somos nós, vozes não hipotecadas, vozes não contagiadas pela diligência dos calculistas – vozes que se fazem fortes de tão frágeis se aparentarem –, que nos podemos oferecer mártires. Em verbo mártir, em substantivo mártir, em austero adjetivo mártir. Até que as vozes juntas dissolvam as fronteiras e façam das distâncias uma ninharia e povoem rotineiramente os sonhos mais sombrios dos facínoras que nem a si se respeitam. Ao menos uma vez, a vingança dos fracos seria a prisão dos fortes inundados pela sua cegueira.

25.2.22

Alçada

Radiohead, “There, There”, in https://www.youtube.com/watch?v=7AQSLozK7aA

Remoço o retrato que se aviva na luz clara da manhã. A carne não capitula ao saber das marés contra, nem se intimida com o peso do calendário. A usura não é um domínio do tempo; é do pensamento, se ele não se deixar domar pela rendição. O pensamento não é refém do tempo.

As vozes tumulares reivindicam o seu lugar no espaço em que se abraça o tempo. Dizem que ninguém se filia na eternidade. Não era preciso o lembrete. Da efemeridade somos tributários, sem fuga possível. Mas enquanto a efemeridade não é selada mais ninguém se assenhoreia da vontade que é um desenho vívido da genética. Nem que seja preciso investir contra a corrente forte que se constitui no santuário da maré. 

Deponho o futuro no palco irregular em que determino os paradeiros. Se o quero guardar para uso privativo, ou a se a ele quero admitir outras presenças, sou o único juiz com alçada sobre o domínio. Se é da absolvição do tempo que se trata, advirto que é um equívoco: o tempo adeja sobre nós, não tutelamos a sua vontade; apenas somos capazes de tutelar a vontade de que é feita a ossatura em que assentamos. Por isso, a alçada de que somos magistrados não transige a não ser com o que de interior a vontade se compõe. 

Depois, os preparos que denunciam os arrependimentos escusados são hipotecados. Há pessoas que parecem em permanente processo de aprendizagem do arrependimento. Como se andassem de dia em dia no inventário de arrependimentos, e disso não passasse a sua passagem pela vida. Um arrependimento consome-se na sua vacuidade. Talvez chegue para forrar as funduras da consciência, as pessoas convencendo-se que a formulação do arrependimento acalma a convulsão interior que as desassossega. O arrependimento não entra na alçada. É um endosso da responsabilidade para uma ficção, externa ao seu titular.

Na intempérie permanente que se arremata da convivência imperativa, um arrependimento é o cárcere no passado. A alçada da vontade interior exige que o olhar supere a dicção dilatada de um tempo extinto. Para não se desaproveitar o que o vindouro nos preparou no sortilégio do desconhecimento.

24.2.22

Os ossos arrumados no armário dos desperdícios (short stories #377)

 

Nick Cave & Warren Ellis, “Carnage”, in https://www.youtube.com/watch?v=FXmDoN3mBao

          Não se pedem apeadeiros no cais onde o nevoeiro é colhido. As bocas estão fechadas, diz-se que é a “happy hour” do silêncio. Sobram os pensamentos. Se eles fossem hertzianos, ou vertessem uma forma de radiação, seriam como vulcões à espera de sair do seu eclipse. Atropelar-se-iam numa cacofonia que ditaria a impercetibilidade da tela bordada pela profusão de pensamentos. Seria como arrancar os ossos ao magma, deixá-lo levitar sobre os umbrais onde as palavras se fazem gente. As ossadas despojadas num baldio ermo seriam inventário sem tutor. Ninguém quer deitar as mãos aos ossos assim deixados ao desbarato. Não é por acaso que se usa a palavra “desbarato”: toda a ossatura perdeu validade e nem sequer se encontra quem celebre a memória dos que foram seus portadores. O olhar vira-se para a paisagem arcádia. Precisa de desprender-se dos vultos escondidos nos ossos que foram arrumados no armário dos desperdícios. Todos os ossos estariam à espera de identificações. Amontoados, entrelaçados uns nos outros, ficam órfãos. Os ossos vão continuar a ser o penhor do anonimato. Apenas se sabe que dantes, quando não eram matéria inanimada, pertenciam a pessoas. Agora são tutelados no esconderijo da indiferença, como se as pessoas que neles andaram nunca o tenham sido. Para piorar, ninguém sabe dos algozes da carnificina, quem desterrou todos aqueles ossos para um ermo lugar à espera que ninguém por eles esperasse. Hoje, tirados os juros a limpo, os ossos que esperam incineração esbarram na inclinação das pessoas que neles andaram: ninguém admite a sua existência, nem os algozes que conservam segredo da carnificina. Às vezes, o passado oblitera-se na cumplicidade dos que o tutelam desde um tempo que lhe é posterior. Dos mais altos salões, soergue-se a determinação do esquecimento como caução do apaziguamento.

23.2.22

Lugar, tenente

The Stone Roses, “Fools’ Gold” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=k4H4ztXsPrc

Perguntaram se acreditava na guerra (o rastilho está aceso e a Rússia quer invadir a Ucrânia). Respondi que não acredito na guerra. Desconversei, empurrando a pergunta para fora do seu contexto, distorcendo-a a pretexto do entendimento que quis dar à pergunta: quem acredita que a guerra é uma solução? Foi assim que me conveio tresler a interrogação.

São demenciais os arquitetos das guerras, soldados de variadas patentes que se colocam a soldo de políticos megalómanos ou que, eles próprios, tomam as rédeas do poder e põem boca nas armas, deixando-as a falar o idioma sangrento das vidas que se apagam. Há dias, num golpe de Estado na Guiné-Bissau, que ainda está por apurar se foi golpe ou golpada; e agora, com a fervura na Ucrânia que contrasta com as imagens do Inverno rigoroso, as belas paisagens cobertas do branco da neve violentadas pelas lagartas sujas dos tanques na sua marcha a caminho da violência. São demenciais e ignaros: desprezam as lições da História, que ensinam aos tributários de pelejas armadas que os últimos exemplos de guerra na Europa mostram que aqueles que as iniciaram sempre as perderam.

Quem acredita na guerra? A pergunta devia ser diferente: quem acredita que a guerra está à distância de uma mão cheia de loucura? Por estes ou por outros termos, essa era a interrogação certa. Volto à interrogação na sua formulação original: quem acredita na guerra? Serão os que têm certidão de óbito aprazada para o tempo que a guerra durar? Será tanto o despojamento da sua individualidade que se oferecem, mártires instantâneos para serem o instrumento da gula demencial dos mandantes. Os mandantes não devem dormir descansados. Há instâncias que os podem convocar a responder por crimes contra a humanidade. Mas nem assim se demovem, os políticos que parecem viver no limiar do ensandecimento, incapazes de perceber que uma vida humana devia valer mais do que todas as guerras juntas, por mais justas que as invoquem os seus defensores.

 Os militares de variegadas patentes deviam ser submetidos a um curso intensivo de História e outro de Filosofia. Intensivo, mas de nível elementar (tanto bastava). E deviam voltar às casernas, bebericando boçalmente as cervejas ou a vodca que os mantêm ocupados enquanto se entretêm com passatempos vários, entre as guerrinhas de brincar em cenários diligentemente montados e exercícios faz-de-conta só para desenferrujar a artilharia e dar combustão à adrenalina. Sem terem de matar inocentes. Sem irem dormir com esse peso a arquear-se sobre a consciência (a dar-se como provada a sua existência).

Aos militares de variegadas patentes, dir-se-ia: (ao) lugar, tenente. E o lugar são as amuralhadas casernas, de onde não deviam sair sob pretexto algum. O resto da espécie agradecia o contributo para a paz.

22.2.22

Direção-geral da imaginação

Killing Joke, “Lord of Chaos”, in https://www.youtube.com/watch?v=SSVjEc5rIMc

(Das agências noticiosas e de umas quantas fontes bem colocadas junto do partido do governo)

O primeiro-ministro vai criar uma direção-geral da imaginação, sob a sua tutela direta. Esta é a surpresa que está a ser preparada e, não fossem os habituais indiscretos, que os há em todos os lugares, seria uma decisão insólita. Não há conhecimento, no país e ao nível internacional, da imaginação merecer tutela governamental.

Segundo as fontes que revelaram o segredo, o primeiro-ministro deseja que a maioria absoluta não seja considerada (pelos que no partido do governo não votaram) sinónimo de fechamento. Ficará por confirmar se a intenção é retórica ou se será confirmada quando os acontecimentos saírem da casa de partida.

Pelo que foi dado a saber, o líder da nação quer emprestar valor à imaginação como recurso estratégico. É de esperar que das artes e das letras (mas não tanto da publicidade e do marketing, que andam arredios da imaginação e fracos na estética) venham contributos para estimular a imaginação dos concidadãos. A direção-geral será catalisadora de todos os contributos de cidadãos anónimos e não anónimos, vertendo-os num documento estratégico que funcione como o farol de longo prazo para o país se extrair dos lugares derradeiros da Europa. Espera-se, também, que o voluntarismo imaginativo sirva para desmatar a tradicional letargia que afasta os concidadãos da entrega à coisa pública; e que o mítico sebastianismo seja capturado, como acontece com o carbono para fins ambientais.

Os serviços da direção-geral da imaginação serão itinerantes, não ficando presos a um lugar estático algures no Terreiro do Paço. O primeiro-ministro considera que o grande capital de imaginação está no país profundo. É esse viveiro que os serviços da direção-geral cuidarão de inventariar, na sequência de laborioso trabalho de campo. 

Ficou por saber se os cidadãos que se distinguirem por contributos imaginativos serão premiados e, em caso afirmativo, como. As fontes que sub-repticiamente divulgaram a informação foram omissas quando confrontadas com a pergunta, o que poderá sugerir que os contributos serão voluntários e não compensados – e poderá, também, hipotecar os resultados esperados da medida. 

Se as fontes forem fidedignas, esta será a primeira vez que uma direção-geral é dirigida de fora para dentro. As fontes, excitadas com a ideia, remataram a conversa anunciando que nunca como agora, e no âmbito desta direção-geral, a governação se aproximou tanto do ideal da descentralização.

21.2.22

Não dirás vingança

Black Country New Road, “Good Will Hunting”, in https://www.youtube.com/watch?v=EX67uWOlbgs

Não sabes – ninguém sabe – se a maré se subleva e atira a nós do avesso. Às vezes, as coisas incompreensíveis são a caução de teorias sem preço. Só que as coisas incompreensíveis acabam sempre por ser reconciliadas com uma explicação legível. Convém não tirar da tela esta mnemónica.

Dizem que há imagens pungentes que colonizam a memória. Como se fossem uma guilhotina que está sempre à espera do algoz para descer sobre os pescoços inocentes de uns quantos que não se importam de ser inocentes. Tu dizes que eles são é ingénuos. E eu fico sem saber qual é a diferença. 

Um dia, vi o mar a tornar-se malvado. Foi o que me ocorreu. Mas depois vim a pensar se tinha sido justo com o mar. Ele está no seu domínio. Somos nós que o invadimos, quase sempre sem perguntar se autoriza a invasão. Não sabemos se o mar não quer ser banhado com os nossos corpos, mas avançamos na mesma contra as suas águas destemperadas. Um velho pescador disse, uma vez, que o mar não se vinga de nós quando subtrai uma vida. Limita-se a ser o mar que é, contido nos seus limites, obrigado a conviver com alguém que o desafiou nos limites que não lhe são consanguíneos. De acordo com o velho pescador, o mar não é vingativo. Convinha ficar perene na tela por que nos seguimos.

Sem te deteres, atiraste com a convicção dos sábios que as pessoas são como o mar: só aparentemente somos tangentes à vingança. Quando sondamos as coisas na sua fundura, quando elas tocam no magma que lhes é alicerce, sentir-se-á o aroma de um vento que refresca o olhar e exclui as conclusões lapidares e contundentes do cardápio da hermenêutica das almas. Dize-lo, com a mesma contundência com que negas a contundência dos farsantes que se disfarçam de vinganças sob pretexto de outra coisa qualquer. Dizes: o mar contém o mesmo sal do nosso suor.

E eu não persigo as versáteis elucubrações dos sábios. Julgo poder dizer, em minha defesa, que a modéstia das capacidades o impede. Também não consinto as páginas inescrupulosas que incendeiam o crepúsculo com os matizes da vingança. A madurez tem esta vantagem: os choques frontais podem ser evitados com uma manobra diligente do olhar, enquanto os dias pesarosos são endossados aos sacerdotes pagãos que se inebriam com o seu privativo mar de contradições. Parece-me que o nosso suor não é da mesma cepa do sal do mar.

A vingança, por contrário que pareça, não tem paga em bom conceito.  

18.2.22

Ilhéus

Grizzly Bear, “Deep Blue Sea”, in https://www.youtube.com/watch?v=jMkk8FZfOxE

Somos todos ilhéus porque estamos cercados por tudo e por todos os lados. Somos ilhéus porque sabemos que o mar nos separa dos ilhéus outros. Somos ilhéus, porque somos únicos sem termos a pretensão de ser centrípetos. 

Somos ilhéus na identidade que nos desmata. Peças sem semelhança, matéria-prima distinguível no fogo não fátuo da existência. Somos ilhéus porque acendemos os clarões que trazem sentido à vida (mesmo quando o palco se congemina para o desmentir). Como ilhéus, tratamos por tu o sangue que se alimenta das veias, o sangue que é o fautor da vontade em que nos investimos. Devíamo-nos mentalizar da condição de ilhéus para não sermos atraiçoados por convocatórias de pertença que absolutizam um grupo e reduzem o ser à insignificância. 

Devemos ser ilhéus, mesmo que tudo concorra no sentido contrário quando somos colocados à mercê do voluntarismo dos regentes que impetram um destino comum. Corremos por fora, se preciso for, e guardemos no peito a idiossincrasia que nos apresenta como ilhéus. Pois o mar que nos separa de ilhéus outros é o obstáculo à fusão tencionada. Como ilhéus somos a tração da nossa própria vontade – e só nos entregamos a idealismos comuns na exata medida da sua utilidade para a esfera do ilhéu.

Somos ilhéus e sabemos do cuidado que devemos ter com a coutada que nos pertence. Os demais ilhéus seguem o mesmo critério. Não é plausível que a generosidade, e o desprendimento do eu, sejam tanto que um ilhéu se negue a si mesmo, convencido que tem de cuidar dos demais ilhéus de que se diz pertencerem ao seu arquipélago. 

Somos ilhéus e estamos cercados por todos os lados pelo tudo que é composto pelos outros ilhéus. Investidos do encargo máximo de não postergar os demais no altar do nosso ensimesmar, somos, todavia, ilhéus. Mesmo que o mar nunca tenha sido visitação.

17.2.22

Desproteção

Massive Attack, “Protection” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=BFhICIUBlCk

À velocidade estonteante, a geografia proclama a sua matéria e nós, com exultação, consumimos o mais que podemos o legado da paisagem. À velocidade estonteante que é o débito do nosso sangue, um eflúvio que se levanta contra o remanso. 

Parece que estamos expostos aos elementos. Não vem daí grande mal. Se estivéssemos hibernados teríamos a desaprendizagem como proveito. Não queremos ser reféns de um espaço exíguo. Não queremos invocar o conforto de quem conhece, e de cor, todos os milímetros do chão que pisa. Preferimos deixar a casa da chegada e partir sem mapa nas mãos, os lugares escolhidos ao acaso como se as nossas mãos fossem o avesso de um atlas sem denominação de origem.

Convocamos as partidas do mundo que são o itinerário dos nossos corpos. Um chamamento que está em espera, sem sermos culpados pela espera. Torna-se mais aguda a procura de novos lugares. Como se a demorada manutenção no mesmo lugar fosse uma corda que ameaça deitar-se sobre as jugulares, seccionando a sede de conhecimento que habilita um fogo irreprimível no qual cuidamos dos frutos deixados em legado.

Não precisamos de proteção. Avançamos sem medo. Sabemos que os lugares que vierem às nossas mãos serão sempre dádivas. Avançamos desprotegidos, à espera que seja a silhueta e a luz que desenha cada lugar a deixar que às mãos se deponha a proeza. Desprotegidos, porque temos de nos dar aos lugares por conhecer para que eles se ofereçam em reciprocidade.

É no âmago desta nudez que queremos voltar a partir em demanda. Uma nudez que só nós acautelamos. Sem ser atentado ao pudor, que a sede de conhecimento não é lisonja de injúrias aos costumes. Para depois celebrarmos a nudez preenchida que nos tutela, a nós, que deixamos que em nossa casa entre uma fração de cada lugar que nos ensinou outros olhares. 

É essa desproteção que financia o avivar dos lugares que se fundem num lugar imaginário que não tem lugar nos mapas.

16.2.22

À candeia

Max Richter, “Dream 13 (minus even)”, in https://www.youtube.com/watch?v=8dvpT0hA0Lk

Os corpos repousam. Tomam a ténue luz em seu regaço para que sejam, outra vez, imperadores do tempo. São ousados na gramática que entretecem. Não são como o desejo puído que se torna indigente no sopé da letargia.

A pele sentida encosta-se à pele sentida. Os suores misturam-se numa combustão de olhares embebidos. A pele tatua-se com a pele outra, as duas transformadas numa filigrana única. Os dedos desenham a cartografia do corpo. Seguem as suas linhas como se fossem um montanhista a fugir do absoluto enfado do mundo. Vão buscar a água funda que desmata o estio traduzido em consumição. Apuram outra forma de linguagem.

A cabeça que vem ao regaço inspira-se no tumulto de ideias. As palavras ditas são estrofes que se levantam na madurez do tempo, para o fazer o mais neófito fragmento da vida que espera. A vida é isto. Uma dança sem regras. Os olhares que se combinam no silêncio como se fossem poemas altivos, poemas que respiram pelos corpos deles dependentes. Quando apetece, começamos as frases por minúsculas – e isso não faz das frases pequenos excertos ditos na gare de onde nos transformamos em tutores das marés que se avivam nas esculturas demoradamente cinzeladas pelas nossas mãos. 

Sem sabermos, tornamo-nos penhores únicos do livro que não se desgasta, o livro onde depomos o entardecer em violinos cantantes. A matéria válida que se agiganta do magma entrelaça-se nos corpos. Derramada, dir-se-ia obra irrepetível, a prova viva da consagração dos corpos em sua quimera. 

Resistimos ao desgaste do tempo; aprendemos a namorar com ele, por sabermos que na sua ausência o vazio se apodera de nós e não seremos se não uma remota semelhança de tanta grandeza. Os sentidos estão de atalaia. Despertam do torpor em que se investem na hibernação ocasional. Durante a hibernação, sonham; sonham como se voassem à altitude de um avião comercial, com a candeia presa na mão a mendigar a claridade que se levanta, desapossando-se dos vultos inertes que queriam ser sua mandante. 

E nós, suseranos dessa candeia, desenhamos os nossos corpos por dentro do corpo outro que se entrega no cais sem paradeiro. Só nós sabemos do seu paradeiro. Com a ajuda da candeia, que se não gasta.

15.2.22

Quem quer pertencer a um panteão? (Ou: isto anda um pouco escatológico)

Moderat, “Fast Land”, in https://www.youtube.com/watch?v=qzMP2A66jIQ

(Carta aberta)

Estimados cidadãos: não acredito que se convençam que são imprescindíveis num qualquer panteão. Esse panteão em que estão a pensar passa bem sem a vossa coabitação. Suspeito que esse panteão, ou um outro qualquer, considera-vos dispensáveis nos seus aposentos.

E, contudo, estimados cidadãos, almejais a passadeira vermelha por sobre a qual adejará o vosso féretro devidamente encaixotado pelas melhores madeiras disponíveis, a caminho do panteão determinado em última vontade com selo de notário. Sonhais acordados, porventura, com um tempo em que já não estais com os vivos para saberem como os vivos sobrantes vão congeminar a vossa elegia. Notem no que é importante: sonhais, acordados, com a vossa morte. Não é vida que se leve de ânimo leve.

Pois em verdade vos advirto, estimados cidadãos, que a profusão de intenções a favor de panteões torna-os matéria vulgar, desestimada no lugar onde se mercam estes sentimentos. Se houver panteões para uma multidão já transformada em cadáver, quem quer pertencer a um lugar destes que figura no lado inferior das listas de notoriedade? Não se deixem convencer que um morto tem mais valor do que um vivo, a menos que pretendam, e definitivamente, menosprezar a vida.

(Outra interrogação podia ser laborada: o que interessa a notoriedade a quem a julga ser conseguida só depois de deixar de estar presente entre os vivos?)

Acrescente-se outra perplexidade, estimados cidadãos: até prova em contrário, os vossos sentidos extinguem-se com a paragem derradeira do corpo que consuma a vossa morte. Não acreditem que vos será dado a assistir, desde um patamar extrassensorial, ao decadente espetáculo do vosso funeral. Não procurem o presságio das elegias que possam ser feitas a vosso propósito, pois não há notícia que as elegias se componham enquanto o elogiado permanece entre os vivos. O mesmo se há de aplicar ao panteão a que ambicionam pertencer. Dele se diz ser uma última morada que é a derradeira homenagem à vossa (sempre) efémera transação pelo mundo dos vivos. Se vos assiste algum conforto enquanto, acordados, sonham com a vossa morte, quem são os demais para vos negar a pretensão?

Não vos esqueçais da seguinte pronunciação, estimados concidadãos: até prova em contrário, não há validação de uma vida inaugurada logo que o umbral da morte é atravessado. Não queirais ter, quando a morte se achegar a vós, a visibilidade que não vos foi dada a conhecer enquanto transitaram entre os vivos. Aproveitem para aprender com os erros da vossa vida. Um deles terá sido o tanto tempo deitado fora enquanto vegetaram imersos em ilusões. Não desaproveitem a vida em estéreis ilusões, que não é na morte que a podem resgatar.

O panteão, um panteão qualquer por vós designado, será a tradução, em matéria morta, do viveiro das ilusões. É muito pouco para tanta ambição.

14.2.22

Planisfério (short stories #376)

Baleia Baleia Baleia, “Egossistema”, in https://www.youtube.com/watch?v=2C24ATUYHAU

          Não cabe este mundo no tamanho das mãos – dizia. Se o olhar se deitasse apenas de perspetiva, podia alcançar o planisfério e tornar-se seu tutor. Às vezes, a vontade é a mandante das coisas que se viram do avesso. Transfiguram-se no marégrafo doseado pela vontade. Dizia: podemos trazer o mundo inteiro pela trela sem ele dar conta. Não queremos que dê conta. Já ninguém quer ser imperador de impérios, por extinção destes. E, porém, na imprevisibilidade dos sentidos move-se um manto branco onde as mãos desenham as estrofes válidas. São elas que investem a insegurança contra a prosápia dos valentes e as fragilidades deixam de contar para os lugares sem direito a cartografia. Neste planisfério, o corpo desvenda-se sem ser preciso ir à sua nudez. É como se esse corpo fosse a procuração da doçura irrestrita que se subleva contra a conspicuidade do tempo dominante. As palavras fervem na boca como compassos indiscretos que fecundam o mundo. É este mundo que vive às custas do avesso do planisfério. Dizia, ainda: a vontade constitui-se o verbo maior na paisagem onde se amesquinham as pessoas reduzidas (outra vez) a súbditos. Se ao menos não houvesse a indulgência datada nas janelas da dependência crónica, se não fosse estrutural a rotina acrítica que conduz os súbditos, a vontade regressaria ao seu estatuto centrípeto. E seríamos todos, na atomicidade da sua centrípeta condição, um planisfério feito à sua medida. Seríamos tutores do nosso autêntico sentir, sem intromissões de mandantes sem mandato ou tirocínios enxertados que se perenizam, intencionalmente. Se houvesse resgate desse planisfério porventura seríamos afetuosos em vez de boçais, compassivos em vez de egotistas, vogais de maresia em vez de reféns de contrafação, compreensivos em vez de exilados numa hibernação disfarçada de outro nome. Se ao menos estes corpos, sem precisarem de uma coreografia de nudez, fossem planisférios – dizia.

11.2.22

O poente como partida

Antony and the Johnsons, “Fistful of Love” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=1-524bnuYdM

Não somos poetas para tecermos obituários. Deixamos que os mortos se levantem na sua partida e fiquem, desimpedidos de nós, os que permanecemos vivos. Talvez não seja fácil o silêncio. Talvez se forjem palavras litúrgicas, como se todos os mortos precisassem de homenagem. Ainda ninguém propôs que a melhor homenagem a quem morre é não o homenagear. É deixá-lo em silêncio, com o amparo do nosso silêncio.

Se entregarmos o corpo à confiança nos elementos limítrofes, porventura ascendemos a um miradouro íngreme ou depomo-nos na finitude da terra que se congraça com o mar. E esperamos que o tempo faça a sua safra, o vento entardecido a beijar os nossos rostos enquanto somos promessas de futuro. Não nos despojamos. Em silêncio, por dentro do labirinto dos nossos pensamentos, constituímos evocações que sejam o fingimento maior: a perpetuação dos que já não figuram entre os vivos, como se as memórias fossem sucedâneas da sua presença. Fingimos um sortilégio, convencidos que os finados precisam de tributo.

Se juntássemos todas as vírgulas que esvoaçam à nossa volta, podíamos traduzi-las nas palavras que são a janela que se abre às memórias. Mas as memórias tornam-se vulneráveis com a erosão do tempo, por mais que elas estejam avivadas na carne como cicatrizes inamovíveis, por mais que o tempo seja generoso e não desbaste as memórias com o seu curso. Dizem que as pessoas que partiram ficam tatuadas na memória, como uma mnemónica que as pereniza. As pessoas que se constituem sujeito dessas memórias não são chamadas à colação. Deixaram de ser matéria sensível. E nós, numa dolorosa peregrinação sem geografia, elevamos o rosto para saber se o sol matinal segreda novas sobre os que já não são inventariados entre os vivos. Procedemos dessa forma porque não estamos preparados para ser matéria morta.

Não percebemos – não queremos perceber – que um dia seremos também matéria-prima para as evocações dos outros. Devia-se abrir a hipótese de, em testamento, ficar vincada a vontade de travar a presença de pessoas no próprio funeral. Olhamos para o poente e sabemos que no seu avesso se encontra o terrível nada onde deixaremos de ser. Olhamos para poente e temos a impressão que é a casa da partida. Pois um dia haverá que ao poente não se segue o dia vindouro.

10.2.22

Desimportância (nada vem do nada)

Madrugada, “Majesty” (Vesterålen Project), in https://www.youtube.com/watch?v=C249TrYwUcA

A nau, errante, não sabe dos caminhos que o mar ensina. Um dia, alguém perguntou a um marinheiro se havia corredores marítimos como há corredores aéreos que contêm a navegação dos aviões. O marinheiro desconversou. Começou a falar de sonhos com sereias, nunca confirmadas pela lucidez dos mareantes. E depois narrou uma estória.

Sem saber, a nau fugiu da tempestade ao navegar para Sul. O comandante, ainda meio ébrio, anunciou que era preciso o conforto dos trópicos, que estava farto da invernia. Os marinheiros (que se livraram dos efeitos da embriaguez antes do comandante) ficaram perplexos. Já não se lembravam dos enchouriçados anoraques que vestiam sempre que o Inverno acompanhava a nau. Talvez o comandante fosse inimputável, de tantas noites seguidas a beber ao ponto de o stock de bebidas estar perigosamente a chegar à reserva.

Um marinheiro mais intrépido, descontente com a errância da nau e com o desinteresse do comandante, preparou uma intentona. Os camaradas não podiam continuar à mercê de um comandante baço e desinteressado. Por este andar, não seria só a bebida a faltar; a comida também. Se a nau continuasse a vaguear ao sabor da estultícia do comandante demissionário, acabariam todos a comer-se uns aos outros?

Terá sido o cenário de antropofagia que assuntou a tripulação. Uma comissão foi empossada para cuidar da transição de poder. Teriam de informar o comandante que estava deposto de funções, por decisão unânime da tripulação. O comandante levantou a cabeça a custo, franziu o sobrolho, e tartamudeou, a custo: 

Quero lá saber. Tomem conta da embarcação. Quero ver como vão tirar o navio do meio do mar.

A tripulação pegou nos manuais do navio. Juntaram forças e perícias para conduzirem a embarcação até a terra firme. Não importava o lugar. Apenas queriam saber como era ver a terra firme, senti-la de novo (e todas as lateralidades que a ida a terra firme cauciona). Como um vulto fracassado, o comandante deposto subia ao convés a espaços. Olhava com esquivança para a tripulação em bulício, perdida na sua ainda desorientação. E depois virava costas, deixando atrás de si um rasto de insano gargalhar: 

Vamos todos naufragar. Vamos todos naufragar. Não tenham ilusões. Nenhum de vocês voltará a saber o que é terra firme. 

Um dos marinheiros perguntou se o comandante não se importava de morrer. Murmurou, a custo, que não. Logo depois, revigorado por um lampejo de fúria, virou-se para trás e disparou: 

Nada tem importância. Nada. A começar por mim. E vocês, também não. 

Alguns marinheiros ensaiaram a sublevação imediata. Se não tivessem sido parados, teriam tirado ali mesmo a vida ao comandante. Um dos que assumiu funções no leme do navio gritou com voz de comando: 

Não se dispersem. Todos são importantes para levarmos o navio para um porto firme. Todos. Deixem o ex-comandante mergulhado na sua desimportância. Deviam saber que do nada só podemos esperar nada.

9.2.22

Que levante o dedo o primeiro que nunca tirou macacos do nariz (mas esconda bem o dedo para não se notar o macaquinho que nele adeja)

Nitin Sawhney ft. Joss Stone, “Immigrant” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=haq-vX6OuCc

As sabatinas de moralismo são um tesouro que não devem ser desperdiçadas. Devem, até, ser emolduradas, para memória futura. Porque os emissários que discorrem com o dedo espetado sobre as poucas vergonhas dos outros não perdem pela demora. Mais tarde ou mais cedo, também são apanhados no alçapão onde tinham caído os que foram por eles abjurados, sem contemplação.

O mal, é que o mesmo dedo erguido em riste contra os cânones moralmente estabelecidos é o dedo que escarafuncha na rede (aparentemente inviolável, de acordo com os sacerdotes da moralidade) que se volta contra a sua sanha persecutória. Das maiores recompensas que um humilde penitente pode embolsar é saber de diligentes guardiães dos estatutos convencionados serem apanhados à má-fé. A revelação encerra duas virtudes: cai-lhes a máscara e a moral, de que se dizem notários, estilhaça-se no nada a que devia pertencer.

As pessoas não se deviam interessar pelos outros. Bem-entendido, não se argumenta a alienação do outro, como se cada um de nós fosse uma ilha sem ligação com os semelhantes. Não se deviam interessar pelos outros no que aos outros fosse considerado um desvio à regra. Se existem regras, não se pode cancelar a hipótese de elas albergarem os seus desvios, por muito que a regra se insurja contra a dissidência e possua o seu exército particular para a combater. Porque não somos ilhas e, mesmo que fôssemos, não podemos ser intrusos nas ilhas outras sem termos a veleidade de os outros não espreitarem entre os interstícios do que está escondido nas nossas janelas.

O que devia achacar as pessoas não é aquele que mostra o macaco distraidamente extraído às cavidades nasais pendurado num dedo. É o que levanta o dedo a denunciar o comportamento desviante, sem perceber que o dedo acusatório não consegue disfarçar os vestígios de um macaco outrora arrancado às cavidades nasais. Pior do que um saliente pecador é aquele que tirou o dia para acertar contas com o pecador, escondendo, todavia sem êxito, a sua propensão para o mesmo pecaminoso arroubo.

Tudo se resolvia se o conceito de pecado fosse extinto do dicionário dos comportamentos.

8.2.22

O pior dos narcisismos é quando alguém diz de si próprio que é a pior pessoa do mundo

White Lies, “Am I Really Going to Die”, in https://www.youtube.com/watch?v=co1LNXyI0-4

Ouvi na rádio que estreou um filme com o título “A pior pessoa do mundo”. Quem pode dizer, de si mesmo, que é a pior pessoa do mundo? 

Dir-se-ia, em primeira apanha da reflexão, que tal pessoa interioriza a desqualificação de si mesma, numa patente viragem contra a maré dominante, feita de auto-heróis, gente muito atarefada dentro da sua altivez, gente que se convenceu que não cabe dentro da estatura que o espelho fala, narcisistas de má cepa. Quem adverte os outros para os perigos de uma exposição à sua pessoa joga contra o ensimesmamento dominante. Podia-se elogiar o desassombro de quem se atira de caras ao opróbrio de si mesmo.

A tarefa não é linear. Quem se auto-despromove ao ponto de se situar na derradeira fila das pessoas creditáveis não pode convencer os outros da petição. Para alguém se considerar a pior pessoa do mundo terá de possuir bases concretas que abonem uma comparação com outros, sobretudo com os outros que reclamam o mesmo estatuto. Como não será empreitada mensurável a comparação de abjetas pessoas, quando alguém afirma que é a pior pessoa do mundo não fala com conhecimento de causa – a não ser o conhecimento que tem da sua própria pessoa.

Por mais que pareça um ato corajoso, jurar com denodo que se é a pior pessoa do mundo resume-se a um narcisismo que levita através do esvaziamento do seu oposto. Quem diz que é a pior pessoa do mundo ganhará o concurso da pessoa mais honesta, a crer nas tendências modernas que colocam uma imensa mole humana no altar das virtudes. A franqueza pode mobilizar uns para uma cerca sanitária em relação a esta pessoa. Mas outros poderão sentir uma pulsão para dele se aproximarem: a vertigem pelo abismo é uma característica inata a certa condição humana. E se os que de si dizem o pior dos possíveis estiverem ao corrente desta pulsão e, intencionalmente, se menosprezarem só para atraírem aqueles que não sabem fugir do abismo? Nesta hipótese, a estratégia está montada para obter o resultado contrário do que é peticionado quando se proclama ser a pior pessoa do mundo.

Acrescente-se outra hipótese: quem avisa ser a pior pessoa do mundo quer afastamento dos demais. Se for genuinamente misantropo, é o arquiteto do seu próprio nirvana. É da natureza humana: as empreitadas não podem ser assim tão acessíveis.

7.2.22

Documentário

Jóhann Jóhannsson, “A Song for Europa”, in https://www.youtube.com/watch?v=stI5ig17ths

(Que tem uma pele para ser uma maldição?) 

O ruído que se desenha nas tempestades não deixa que as esculturas sejam a paráfrase do medo. Vociferam as vozes condoídas. Se soubessem da estatura do amanhã, seriam minotauros possantes no uso da métrica com que se arrevesam os poemas diletantes. As janelas são a epígrafe do belo: elas escondem o belo que se detém no seu avesso e, se forem dadas à bondade, destapam o véu que oculta a paisagem irreverente. 

Os violinos falam por nós. O cântico da respiração que despoja o silêncio bate em uníssono. Os dedos amaciam as páginas coladas. As páginas contêm uma certidão em movimento que desembaraça os tabus que pendem sobre as fotografias de outrora. Perguntas: e se fizéssemos um documentário sobre o futuro?

Saímos. O ar pesado levita sobre o nosso suor, enquanto olhamos um pelo outro na atalaia de que somos tutores. Penso: um documentário sobre o futuro; um documentário sobre o futuro. As casas desfilam, devem acreditar no cimento armado e nas cofragens que as mantêm. Nós também temos esteios. São feitos de matéria mais frágil, como atesta a nossa, humana, condição frágil. Por não nos escondermos das fragilidades somos intérpretes de uma fortaleza singular. Mas não é de fragilidades que se ensaiam as figuras de estilo que percorrem a silhueta da tarde que se levanta desde o rio. Se ao menos este lugar não tivesse a originalidade de ser a nossa morada, diríamos que somos forasteiros. Talvez fosse mais fácil o documentário sobre o futuro.

Pergunto: para que queremos capturar nas mãos um módico do futuro? Queremos ser recenseadores do futuro, se o futuro, quando se ajuramenta e passa a ter uma base concreta, perde o seu nome? 

Esgotamos o estuário com as lágrimas que deixamos para serem prantos dos outros. Em nós, os braços não são aventais caídos que perfumam os cabelos arrepiados pela nortada plausível. Não gostamos da palavra “plausível”. E não gostamos de desertos, mesmo desencomendando de nós as lágrimas que teriam uma serventia. Preferimos a intendência do desconhecido, as flores campestres que não dedilham aromas, um promontório tombado pelo nevoeiro, um poema com quarenta e duas sílabas, o vinho irrecusável, os corpos que se deitam a si na única dança que não recuso. 

Talvez seja isso o documentário sobre o futuro. Talvez. Reúno as cinzas herdadas da lareira com as mãos não gastas. Não está frio. Em nós, nunca está frio. Dizem os almanaques que as cinzas são fertilizantes. Mas nós não temos chão para fertilizar; o chão que é nosso património, todas as léguas que não cabem num mapa, já souberam o que é a fertilização quando se depuseram perante nós, seus imperadores. E nós demos-lhes liberdade. A liberdade para, então, serem a sua própria cartografia.

Não encomendamos o passado, que dele só queremos uma viva aceitação sem sermos sitiados pela nostalgia. Insistes: e se fizéssemos um documentário do futuro? Digo que nós temos nome próprio do futuro que soubemos abraçar em nós. Somos um documentário vivo, peças andantes do mesmo, ritual que se abraça à antítese da rotina, olhos que se alinham pelos outros, o roteiro meticulosamente escrito, a quatro mãos, na combustão dos corpos que não se sossegam. 

É isso o documentário sobre o futuro?

4.2.22

O mealheiro (short stories #375)

Arlo Parks, “Softly”, in https://www.youtube.com/watch?v=UOf6N_t69JQ

          Não devia nada a ninguém. A malha tecida na diligência do tempo era a filigrana constitutiva. Como se fosse um hino, mais do que uma bandeira. Acenava com o sorriso de quem soube dar tempero ao sono pretérito, endereçando os demónios ao esbulho de si mesmos. As ruas estavam apinhadas. Passavam corpos, apenas corpos desfigurados. Ou melhor: corpos sem rosto. Uma certa arquitetura rebelde tutelava a cidade. Não sabia dizer se era melhor que fosse assim. Até as vozes estavam emudecidas, como se os regentes tivessem determinado um dia geral de silêncio. Tementes e obedientes, as pessoas cumpriam com a sua vontade estiolada. Quis sair das ruas movimentadas para apanhar uma réstia de mar. Não é por exiguidade que o mar congraça apenas uma módica parte. Por imenso que seja, o mar é sempre exíguo nestas circunstâncias. As suas águas não são tesouro suficiente para cingir as mágoas acrisoladas na espera do entardecer. O mar convocava o entardecer, o céu ocupado por finas nuvens travando o passo à derradeira luz solar. Aquele dia não era um dia solar. Não diminuía o dia por não ser solar. As pessoas deviam aprender o estatuto do belo nas entrelinhas do estabelecido. Libertar-se-iam do jugo dos lugares-comuns e dos cânones avalizados pelas habituais personalidades. Cresceriam por sua conta e risco, sem seguirem à risca um guião que são convidadas a obedecer apenas porque traz embebidas as credenciais incontestáveis dos engenheiros sociais prediletos dos regentes. Seriam. Seriam livres. Livres para escolherem o castelo onde se refugiam. Para escolherem o tempo dedicado ao exílio necessário, quando sufragam o silêncio como voto de protesto contra a fala gongórica e espetacularmente inane. Não fugiriam da nesga de mar que compreende todo o horizonte belamente plúmbeo. Um entardecer sem a cor desmaiada do ocaso também merece consagração.

3.2.22

Em câmara lenta, como um ator de cinema (short stories #374)

Oláfur Arnalds, “Near Light”, in https://www.youtube.com/watch?v=0kYc55bXJFI

          Escolhia o peso válido para compensar o tempo. Era do fervor da pele, mas parecia que o tempo se apressava na escola em que se compunha o horizonte, e os olhos fingiam não saberem do paradeiro dos socalcos. Pois era nos socalcos que se refugiava a aragem perfumada com o seu quê de quimera. Se voltasse a página atrás os modos saberiam não ser um fingimento espúrio. E o que interessava? Diziam-lhe que era de pouca lucidez insistir no critério que fintava a destemperança do tempo como ele era dado a conhecer. Nessas alturas refugiava-se em várias personalidades construídas em segredo: ao menos, elas não coabitavam na improfícua tirania do tempo e ninguém sabia do seu paradeiro. Era como se fosse um ator de cinema e as imagens caíssem amparadas por uma câmara lenta. Dizia, em sua defesa: é nesse vagar que se podem captar os milimétricos objetos do desejo que escapam nas intermitências do tempo que nos desarma. Se ao menos houvesse uma porta mágica que abrisse com a voz de comando da vontade e, atravessada a porta, a paisagem já não fosse a melancólica raiz de uma árvore à espera do funeral. Sim, seria ator desfilando languidamente no espaço limítrofe, à procura dos deslimites por onde pudesse ser algo mais do que era. Oxalá pudesse reinventar a velocidade do tempo, torná-lo vagaroso – torná-lo pretexto para consagrar um santuário às muitas vidas que podiam ter sido colhidas por dentro da sua pele. A carne avivada era o fermento de uma lava que se arrumava meticulosamente na paisagem (dir-se-ia) desenhada. E as cordas do violino falando por mim, tolhido pela mudez das estrofes que teriam sido oportunas. Porque, ainda ator, sabia ler de cor o silêncio na pauta demorada atravessada pelo tempo conspícuo. 

2.2.22

Greve de silêncio

Trentemøller, “No More Kissing in the Rain”, in https://www.youtube.com/watch?v=JDLaVXrrzNo

As palavras anestesiam-se contra a moldura da abastança. Ouve-se a cacofonia e ninguém percebe nada. Nem as palavras que aparentemente falam umas com as outras, perturbadas pelo ruído de fundo. O desenho assim masculinizado sobe pela pele das pessoas e é como se elas subitamente ficassem surdas. No entanto, não é de surdez que se fala. Como reação, as pessoas embainham a mudez. Servem-se do silêncio como fala dominante. Não deixa de ser uma fala.

Apanham-se os despojos das palavras que, de tanto entoadas, perderam corpo. Já são apenas um amontoado de letras que aparecem numa forma que se aparenta a um idioma desconhecido. As pessoas refugiam-se no silêncio como arma de arremesso contra as palavras tão abundantes que passam a ser irrisórias. Proclama-se uma greve de silêncio. Por um dia. 

Nesse dia, deseja-se que as vozes se calem contra as palavras prolixas e, contudo, esvaziadas. Pode ser que sejam moderadas no uso da palavra. Que deixem as poses gongóricas que são espelhos de uma vaidade fátua. Ninguém precisa de se amordaçar. É a vontade de resgatar o valor de ouro das palavras que leva a delas abdicar no dia da greve do silêncio. Para que se postulem os fundamentos das palavras embebidas no sentido pleno. 

No dia posterior, as pessoas vão recuperar da mudez. Dirão, talvez, que precisam de desenferrujar a fala. Não podem esquecer o dia pretérito, o protesto contra a vacuidade das palavras que se atropelam nos corredores da presunção. Deverão negociar o regresso da palavra módica, da palavra sopesada, da palavra embebida de significado, da palavra endereçada à metáfora quando a poética tiver o seu dia de plantão, da palavra avivada na silhueta da beleza, da palavra sossegada. Sob pena de novas greves de silêncio serem embainhadas. 

Não se esqueçam as sílabas esquecidas no arreveso das palavras ditas com sofreguidão. Oxalá houvesse uma autoridade sem poderes, mas poderosa para tirar a palavra aos que contra ela atentam na sua verve gongórica ou na rapidez com que assassinam as sílabas do meio. Se a greve do silêncio não for capaz, determine-se a mordaça para os corruptores da palavra. Até que aprendam como é o bálsamo do silêncio que irrompe contra o ruído impossível.

1.2.22

A margem esquerda

Tindersticks, “Another Night In” (live at the Olympia de Paris), in https://www.youtube.com/watch?v=IZS5rj_Angs

Agradeça-se a solicitude das almas caridosas. Fale-se do desprendimento que as tutela. Olham pelos outros como não olham por si. A custódia do medo é desfeita pelo amparo que emprestam aos que precisam de se desembaraçar do medo.

Intuem-se as reparações que procuram margem. Que sabe o caminho? Os olhos fechados não deixam ler nada em redor. Respira-se nas entrelinhas para não gastar as páginas amarelecidas, as páginas que desvendam o segredo de como chegar à margem esquerda. Pois é na margem esquerda que se titula a caridade sem peias. Só lá aporta quem aceitar os olhos vendados. Para não serem estrénuos agentes que se intrometem na bondade estabelecida.

Podem alguns, ciumentos ou patologicamente desconfiados, irromper com dúvidas sobre o descomprometimento dos bondosos. Podem desconfiar das intenções. Argumentam que os caridosos não praticam a caridade sem um fito último e esse fito só diz respeito aos bondosos. Com o que pretendem desmontar as boas intenções que esconderão outras adversidades não confessadas. A bondade desfaz-se nos seus propósitos. Haverá sempre lugar para os que recusam os rótulos invisíveis às coisas mundanas que os não conseguem discernir.

Na matéria conturbada dos dias sobressaltados, é na margem esquerda que se situam os intérpretes da caridade irrepreensível. É aa margem idílica. As margens afunilam na passagem mais apertada do rio. Os barqueiros desimpedem o caudal. São eles, por preço nenhum, que trazem as suas barcaças ao lugar onde os naufrágios podiam acontecer se não fosse pela sua diligência. Os barqueiros participam da lisura do rio. Fazem-no por desinteresse. 

Na margem direita, os indivíduos soturnos estão de atalaia. Dir-se-ia que querem atravessar o rio e tomar de assalto a fortaleza onde moram os bondosos de toda a espécie. Até hoje nunca conseguiram atravessar o rio. A corrente afasta-os da margem esquerda. As embarcações improvisadas também foram atiradas para a casa da partida. Roem-se de ciúme. Não o admitem em público, mas gostariam de não ser colonizados pelo sobressalto contínuo, pela avareza dos sentidos, como se em cada palavra houvesse um grama de veneno que adultera as veias. 

Da margem esquerda há sempre uma mão estendida. Um dia destes, ainda vão ser devorados por serem ingénuos.