31.10.12

Manual da ingenuidade


In http://jean-oliveira.zip.net/images/ingenuo.jpg
(Com serventia para os dias sufocantes que vão correndo, tão lentos)

Acreditemos. Na bondade dos outros. Recusemos vê-los como o lugar onde se acoita uma alcateia feroz. Acreditemos nos instintos, avancemos sem cuidar das feridas por lamber. Confiemos nos quadros que nos pintam. Nos que vêm ungidos com cores garridas e nos outros, mais abundantes, luto ao porvir que a poucos contenta. Confiemos nos diagnósticos perfeitos que adivinham as intenções de um punhado que se destaca quando as crises adejam, incessantes. Às vezes, convém torcer as verdades para elas rimarem com as ideias que transitam no bornal. Não capitulando, porém, às serenatas enegrecidas que desfiam o rosário das iniquidades – como se os superiores fossem todos malvados e fadassem ao empobrecimento quem não é da sua casta. É o estar bem com deus e com o diabo, para haver um aliado útil qualquer que seja o cenário triunfante. Acreditemos nas patranhas que nos contam. Os seus fautores precisam de comiseração. E a piedade há de merecer recompensa. Se não divina, pelo menos espiritual. Sejamos otimistas antropológicos. Olhemos por cima do ombro, lá à frente onde se resguardam os vestígios do tempo futuro, e cantemos as trovas que compõem os porvires radiosos. Nem que tenhamos de beber ao mesmo tempo as profecias hagiográficas dos que encontram vestígios de otimismo e os oráculos dos outros, mais numerosos, que percutem um céu denso e negro à medida que passam os dias da inquietação. E nunca por nunca nos alistemos num dos lados. Pois esse pode ser o lado derrotado. Depois sobra o ostracismo e todo um chão árido repousando sob os nossos pés. E as dores dos arrependimentos (uma das maiores inutilidades). Não queiramos experimentá-las. Queiramos ser como os bonecos que são títeres arqueando-se de um lado para o outro, sem se comprometerem com um dos lados. A não ser quando se destapar o véu das incógnitas e um dos lados triunfar.  

30.10.12

Bons rapazes


In http://www.icbas.up.pt/~vazpires/pessoal_files/fotografia/Miudos%20carro%20rolamentos.jpg
Não era do orfanato por onde dormiam e eram educados. Ou as ruas desertas, palco de tresloucados atos quando decidiam fugir das camaratas. Não eram as traquinices diárias – os ovos deitados no banco da paragem sob as calças finórias de um engravatado, ou a bola rebentada enchida com um paralelepípedo antes de pedirem a um velhinho para a chutar, ou as apalpadelas em meninas colegiais e senhoras lascívias no meio da multidão acotovelada à saída da estação de comboios. Nem os sustos que pregavam ao pedinte cego quando faziam de conta que tomavam o pecúlio das esmolas, antes de o devolverem um punhado de minutos depois. Nem era o vernáculo escorreito, quando gente bem comportada reprovava os desvarios que cortejavam nas ruas. Não eram as faltas à escola (que os professores agradeciam a ausência). Não eram as carteiras de turistas furtadas com esmero de profissional. Não era pelas brigas com bandos rivais, nem pelos dentes que partiam e as cabeças que, esmurradas, iam a caminho do hospital. Não era pela fruta que roubavam às feirantes, apesar delas vociferarem a pulmões inteiros. Não era pelos charros, e depois pelas drogas duras para as quais não tinham réditos, que a culpa era dos teimosos preconceitos sociais que as mantinham ilegais e as encareciam. Ou sequer pelos furtos mais frequentes, com uso de destreza, que os vícios tinham de se pagar e os furtos eram a devolução com juros pela teimosia da ilegalização. E nem sequer quando, já adultos, fizeram da violência bruta a muleta da diária delinquência, nem assim deixaram de ser bons rapazes. Os outros, os que se louvam de não serem transgressores e de serem exemplares cidadãos, tinham deles visão distorcida. Os bons rapazes sempre tiveram um fundo bom. Corrompido, porém, pelas adversidades em que a ruim sociedade dos dias atuais é pródiga. E tinham a sua maior serventia: eram observados por sociólogos, antropólogos e psicólogos que ensinavam como os bons rapazes eram vítimas de todas as contrariedades exteriores a eles. Aos demais só restava a tolerância. Nem que fossem suas vítimas na diária atividade de delinquência.  

29.10.12

Os rostos sorumbáticos dos camaradas do comité central dão má literatura


In http://www.pcp.pt/system/files/images/bandeiras_comunistas.jpg
Comício às hostes. O camarada secretário-geral profere oratória aos militantes. Na sua retaguarda, cinco camaradas ostentando caras medonhas. Todos já passados da meia idade. Todos de braços cruzados à altura do peito, a pose grave a quadrar com a gravidade da crise que se abateu. Nenhum dos camaradas esboça ar feliz. Não se sabe se a pose é estudada, aquele ar circunspecto a sinalizar as dificuldades por que o bom povo passa no açambarcamento ditado pelos invasores estrangeiros. A pose grave como imperativo da solidariedade com o povo (ou só para atrair simpatias, que as votações têm andado em linha com a míngua herdada da crise). Ou não se sabe se o aspeto aterrador é genético, penhor do que os camaradas são instruídos na educação pela cartilha. O camarada secretário-geral puxou da ironia para apoucar os inimigos do povo. Saiu-lhe figura de estilo previsível. Quatro dos cinco camaradas do comité central que faziam retaguarda coletiva continuaram impassíveis. Um deles, porventura distraído da cartilha (apesar de atento à oratória do líder), esboçou um sorriso, tal como nos é dado a fazer quando apanhamos os cacos de uma pilhéria por humorista de qualidade. Afinal há camaradas que conseguem descascar da pose envernizada. Têm sentimentos e reações, como as pessoas menos dadas ao pretérito da educação formatada para o cárcere da disciplina mental interior. Ele há camaradas que não resistem à venalidade do humor burguês. (Que o humor, na sua forma barata tão própria do chinelo que escorrega para a vulgaridade, é burguês. Os burgueses são tutores da estética do mau gosto.) Conjeturava sobre o degredo fadado ao camarada que saiu das amarras da pose obrigatória detrás do camarada secretário-geral, quando de um lapso dei conta: quando for escritor afamado, nunca o acharei de ser. Escritor que se preze não cuida de escarnecer dos camaradas nem do respetivo partido. Pois não é adquirido que eles são os marcadores diletos do que é estético admitir nas artes? Vão lá permitir que alguém ensaie sarcasmo com uma reunião magna do partido. É como a religião: não se brinca com coisas sérias. Quem o ousar em forma de palavra, destinado a ser autor de fraca literatura.

26.10.12

Recompensa


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Eram todos julgadores. Uns dos outros. Afivelavam padrões morais, a lupa de detetive sempre à espreita do primeiro pecadilho dos outros. Andavam todos de dedo em riste a pavonear superioridade moral, como se houvesse como objetivar a moral. Nestes tempos atribulados, parecia que a lucidez era só uma lembrança do passado. As palavras embaciavam-se, perdiam sentido. Certas palavras, aquelas que importavam para os padrões assertivamente alinhavados pelos guardiões (que eram todos), estalavam cruas na boca. Mais pareciam ininteligíveis palavras de um idioma exótico. E, contudo, por entre as margens destes tempos conturbados, havia quem transgredisse. Talvez não suportassem ser juízes uns dos outros. Ou talvez estes tempos, para além de conturbados, eram o lídimo espelho dos ardilosos. A desconfiança berrava aos ouvidos de todos que se ultrajavam ao quererem ser penhores de uma superioridade qualquer. No dia em que um deles dava o flanco e mostrava uma humanidade que rareava naqueles tempos amotinados, praticando a antítese dos julgamentos que ostentara, os restantes atiçavam os mastins. Atacavam em alcateia, os dentes espumando raiva medonha. Era a desgraça para quem se entregara à fraqueza. Não havia lugar ao perdão. Eram julgamentos sumários, perigosamente sumários, sem audição daquele que tinha fraquejado. Aos demais, a vã glória de partilharem os despojos feitos em cima da desgraça do frágil ser. Julgavam que se enchiam de forças à medida que denunciavam os feitores dos males assim julgados. À desconfiança, juntara-se um odor pestífero a delação. Lá em cima, os mandantes precisavam de informações para depurar a colmeia. Os entes podres eram emparedados numa quarenta. À noite, os delatores dormiam com a consciência toda, tanta a apoplexia dos sentidos. A sede de recompensa fora a entorse das acusações. E dos julgamentos sumários, uns atrás dos outros. Uma epidemia incurável. Não demorou a que não sobrasse ninguém. Eram os juros demorados da sofreguidão por recompensas, a grotesca traição até dos mais próximos.

25.10.12

Maresia


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Os golpes sem punhos de renda. Os golpes que atravessam a pele e enfeitam a dor. Fruto do tempo sombrio que deixa atrás de si o desassossego. Não capitulemos. Seria o maior tributo aos que espalham as armadilhas onde querem que nos deitemos. Em vez disso, esquadrinhemos por entre as sombras até descobrirmos uma centelha, um lugar qualquer onde o ar sobrante seja respirável. Se preciso for, persistiremos na demanda, errando pelas quatro partidas do mundo até o ocaso do dia não ser o anúncio da noite que tinge o pano de fundo. Contemplemos o mar que se põe diante dos olhos. Deciframos a coreografia das ondas que beijam os rochedos tão gastos. Vemos como as águas se agigantam, como somos tomados pelo medo quando o mar se enfurece sob a égide do tempo outonal. Temos medo – e depois? Haja, ao menos, a coragem de admitir o medo que se supõe em cada alvorada, o temor de que alvoradas tardias sejam oráculo de escureza absoluta. O passado é que está errado e agora estamos convocados para pagar, com corpo e sangue, as faturas dos desatinos de outrora. O ar plúmbeo é o sinal dos fogos irremediáveis que são a consumição de muitos. Até lá, e antes que seja tarde, oxalá possamos sentir a maresia. Oxalá saibamos o que é ser peixe através do odor da maresia, um bálsamo que nos transporta para o longe que é o idílico lugar com cabimento. Fechemos os olhos, as finas gotas salgadas ungindo as pálpebras, o cheiro forte a mar tomando conta de nós por dentro, e os pensamentos como nómadas, sem freio. Sem desnorte. Regulados pela maresia formosa que embeleza a alvorada enriquecida pelo nevoeiro. Das profundezas do mar há de surgir uma musa que dirá os segredos que queremos ouvir. Ou aos nossos pés no areal molhado depor-se-á uma velha garrafa de onde resgatamos os segredos escritos num papel amarelecido. E que não nos acusem de egoísmo se os guardarmos no regaço que somos, pois esta maresia não aproveita a mais ninguém.