31.1.19

“Hoje tenho a consciência do céu”


Talking Heads, “Heaven”, in https://www.youtube.com/watch?v=sZpZuIWu1tw
Tirou a mortalha dos dedos, sem se incomodar com o amarelecido que os cobria. Era mais um cigarro. Só mais um cigarro. Já aprendera a não importunar os outros com o fumo expelido pelos cigarros seus. Refugiava-se na solidão enquanto saboreava um cigarro. Melhor dizendo: acantonava-se na solidão, já habituado a ela. O cigarro era o móbil dos prazeres que, nesta altura da vida, importavam.
Não o dizia para se convencer da ausência de outros prazeres. Não o dizia com ressentimento, nem como máscara de uma punição que se virava sobre si mesmo. Era mesmo assim. Por isso fumava como nunca. Perdia a conta dos cigarros durante o dia. Propositadamente, perdia-se no inventário. E nem a doença que o acometera atuava como travão ao tabaco. Tinha todos os incentivos do mundo para deixar de fumar: a doença atacara os pulmões e os médicos, sabedores do vício, eram categóricos ao ordenarem a proibição do tabaco. Ele dizia que sim, com ar falsamente pesaroso. Só não queria suportar mais minutos dentro do consultório. Quanto menos tempo lá estivesse, menos tinha de lidar com a maldita doença – e, o que o apoquentava mais, com o moralismo dos médicos disfarçado de altruísmo.
Ninguém sabia que estava doente (a não ser os médicos que o acompanhavam). Não queria exportar a dor para os outros, os mais próximos de si. Não estava seguro se era por esse motivo, ou se era para prevenir as reações caritativas ao saberem da doença. Fosse como fosse, convenceu-se que a dor só cabia a ele. Mesmo quando perguntavam por que estava magro e macilento, respondia não ser nada de especial, apenas um pequeno descontrolo de alguns parâmetros das análises sanguíneas, e que estava em diligências medicamentosas para suprir a fraqueza. Terminava sempre com um pedido, que por dentro de si soava mais a um apelo: “não se incomodem comigo. Está tudo bem.” Para, depois de uns segundos de pausa e do olhar perdido na lonjura do horizonte, repetir, sílaba a sílaba, “es-tá tu-do bem”.
Não entendia por que não tinha perdido o sono. Dantes, quando era confrontado com a doença de pessoas próximas, ao deitar-se, interiorizando sobre o assunto, pressentia que se calhasse a sua vez o sono ficaria diluído na dor pungente e no medo da morte. Surpreendentemente, tudo acontecia ao contrário. Já não se lembrava de noites seguidas sem interrupções no sono, sem insónias, sequer. Sabia que ia morrer. Para se convencer, repetia um lugar-comum: “todos vamos morrer, um dia destes.” – e logo de seguida, fazia o que era costume quando decaía para o lugar-comum, vilipendiando o lugar-comum (e a existência de lugares-comuns), como se estivesse a castigar-se pelo perjúrio. Era muito provável que a doença o consumisse a ponto de as defesas ficarem exangues e, assim, fosse deposto nos braços da morte. Não tinha a certeza que este era o epílogo da doença. (Ou desligava-se da corrente de cada vez que os médicos franziam o sobrolho, ao interpretarem as recentes análises, observando, com um ar profissionalmente compungido, “isto não está nada bom...”)
Restavam os cigarros. E a decadência. Descobriu outra razão para esconder a patologia dos outros. Não queria os mais incrédulos a repetirem à exaustão “o pobre, tão novo e já encomendado”. Não queria saber se era novo ou velho para deixar de viver. Não queria saber da comiseração dos outros. E dispensava o fatalismo irrecusável assinado pela caridade alheia. Talvez sem contar, deu consigo a dizer: “hoje tenho consciência do céu.” – e lembrou-se que estava a citar de cor do “Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa. 
Nesta proclamação, meteu-se no estábulo do insólito. A menos que desse conta que estava a falar pela boca de uma metáfora.

30.1.19

Sufrágio (short stories #92)


Bob Moses, “Heaven Only Knowns”, in https://www.youtube.com/watch?v=xjt6tZmuoWM
          Por que palavras seria escrutinado? As que escrevia? E se não escrevesse nada? Se apenas as dissesse, as palavras – seria apenas por esta medida que seria inventariado num sufrágio? E quantas seriam as palavras deixadas de fora do inventário e, logo, não sufragadas? Mesmo que apenas contassem as proferidas, seria exercício rigoroso? Não poderia decantar as palavras, metodicamente libertar as que apenas fossem compulsadas num sufrágio favorável? Ou, pelo contrário, indiferente ao fervilhante pulsar dos outros, diria as palavras que apetecesse, sem esmorecer o sono temendo o mau sufrágio sobre elas? Talvez as frases não devessem terminar em pontos de interrogação. A reação só é epidérmica se formos caução própria de uma seriedade que é o rebate de nós mesmos. Que perda de tempo, acreditarmos que temos de nos levar a sério. É o critério fiável para não descuidarmos a consciência quando traduzimos um mau escrutínio dos outros. Não é que essa empreitada interesse muito; por vezes, é irrecusável: e lá decaímos, quase sem dar conta, no escrutínio dos outros. Como se fosse preciso como imagem mimética do escrutínio que, diz-se, outros de nós fazem. Não tenciono destemperar as palavras, deixá-las seletivamente assisadas, ou despojadas de sal, só porque o escrutínio possa agilizar o despeito. Cuidada a responsabilidade pelas palavras, e sabendo que, uma vez seladas (por escrito ou pela voz), elas são irremediáveis, o escrutínio é um não assunto. Não fugir das palavras, das ditas e das escritas, é exigência de honra interior. Não importa determinar como são as palavras detidas por quem as ouve, ou por quem as lê. A soberania da subjetividade, a intensa diferença que medra por dentro de cada pessoa, não autoriza a singular, unívoca hermenêutica. Como são acolhidas as palavras, é responsabilidade de quem as interpreta. Quem as diz, ou quem as escreve, não pode ter a intendência de pressentir a exegese que delas se faz. Sob pena de o feitor das palavras se aprisionar na possível constelação de sentidos que poderão ser atribuídos por quem as recebe. Não seria do domínio da justiça, e das possibilidades legítimas, abrigar esse sentido especulativo. E seria uma ceifa a adejar sobre a liberdade de quem tutela as palavras.

29.1.19

Operação de destruição do anticiclone


Dead Can Dance, “Ulysses”, in https://www.youtube.com/watch?v=2Uk3sExKtao
Era uma operação secreta, à revelia das autoridades. Um grupo de cientistas, farto do inverno que de inverno só tem o nome, e sabendo que a culpa de o inverno visitar outros lugares era do anticiclone dos Açores, congeminou uma operação de implosão do anticiclone.
Eram - por assim dizer – cientistas que se insurgiam contra o monopólio da natureza, não aceitando que ela adultere aquilo que os tempos imemoriais emolduraram como estado natural: o inverno sempre fora feito de chuva, tempestades, frio, às vezes neve, e um punhado de dias de sol para desenjoar de tanta invernia. Mas era isso o inverno: inverno. Não como agora, um inverno apenas de nome, ou um inverno disfarçado de outono, enquanto outros lugares, mais setentrionais e a Leste, continuavam a ser fustigados pelos rigores do inverno. 
Os cientistas, insatisfeitos com o boicote que a natureza impunha sobre si mesma, serviram-se do seu conhecimento para a operação secreta de implosão do anticiclone dos Açores. As altas pressões atmosféricas, teimosamente estacionadas sobre o mar adjacente ao arquipélago dos Açores, desviam as tempestades, a chuva, o vento, o frio e a neve para lugares mais setentrionais e a Leste. Decidiram que tinham de atuar sobre a origem do problema. Queriam resgatar o inverno tal como dele tiveram conhecimento desde a infância. 
(Um deles, mais radical, não se cansava de protestar: “se fosse para ter este tempo a destempo, mudava-me para os trópicos.” Mas este cientista sempre fora conhecido pelos exageros.)
No dia combinado, e uma vez assegurado o financiamento (os financiadores ficaram na sombra, pois se a maioria protestava contra o inverno ameno, o que diriam do inverno recuperado por esta operação secreta...), os cientistas tomaram lugar no avião com todo o equipamento necessário. À última da hora, avisaram os navios nas imediações da área sob intervenção para desviarem a rota para um perímetro de segurança. O mesmo para o tráfego aéreo. Não podiam correr riscos: a implosão do anticiclone dos Açores, através de raios gama, podia causar ondas de choque nos lugares mais próximos à sua ativação. 
Quando o cientista-chefe acionou a tecla “entre” do computador principal, os raios gama começaram a ser libertados de uma altitude de quarenta e um mil pés sobre o epicentro do anticiclone. Não tinham a certeza se estavam seguros: as ondas de choque podiam atingir o avião e fazê-lo despenhar. Estavam tensos, perante o risco que corriam. Conseguiram anestesiar o medo em função da curiosidade científica da operação montada. Das janelas do avião, aperceberam-se de um esvaziamento do ar, como se alguém tivesse retirado a rolha e todo o ar fosse sorvido de fora para dentro. Era o efeito esperado. O avião sofreu apenas uma turbulência média, durante uns breves segundos.
Fizeram as medidas atmosféricas relevantes após a implosão do anticiclone. A pressão atmosférica descera, e significativamente. Se tudo corresse de acordo com os ensaios científicos, o inverno estaria de regresso dentro de um par de dias. O anticiclone dos Açores tinha murchado e as baixas pressões tinham autoestrada livre para caminharem em direção à península ibérica. 
O inverno estava de regresso, ao fim de anos de muito tímida presença.

28.1.19

O pirata doce


Mão Morta, “Tiago Capitão”, in https://www.youtube.com/watch?v=q7t7mXbpG5I
Nasceu num berço de rebeldia: o pai, vigarista habituado a frequentar os salões da alta sociedade, homem dotado de um charme singular, enriqueceu à custa de golpes tão cirurgicamente praticados que eram à prova de condenação em tribunal; a mãe, cartomante nas horas vagas do trabalho na repartição de finanças, granjeou fama farta pelas profecias que acabavam por coincidir, com uma impressionante dose de sorte, com os acontecimentos.
Medrou nesta rebeldia desde novo. Na escola, foi o terror dos professores. Era discretamente malcomportado, compensando com inteligência, gosto pela atualidade e pela cultura que ultrapassava as demandas dos professores. Tinha um prazer irreprimível em dirigir interrogações sensíveis ao professorado. Só pelo deleite de os ver atrapalhados, incomodados com o topete que, todavia, era ao mesmo tempo sinal de inteligência acima de média.
Ciente dos seus dotes e embebido numa rebeldia que era maior do que o seu tamanho, um dia escreveu, numa daquelas composições estéreis pedidas pela professora de português, que queria ser pirata quando atingisse a idade adulta. A adolescência ensinou que o trabalho é um aborrecimento – e desde que lera Agostinho da Silva a argumentar que a obrigação do trabalho que impende sobre as pessoas é uma violência, a negação do estatuto da humanidade, mais se convenceu que tinha de colocar a inteligência ao seu serviço para ser pirata a tempo inteiro e não ser coagido a encontrar biscates nos tempos livres. 
A lábia estava nos genes. Assim como assim, nas veias circulava sangue igual ao do pai. Em cima destes pergaminhos estava um encanto que parecia hipnotizar as donzelas que se ufanavam de pertencer à alta sociedade. Era o caldo de que precisava o pirata. Elas diziam, perdidas, não de amores (que esses eram artificialmente cerzidos para um proto aristocrata com quem as conveniências e as convenções mandavam contrair matrimónio), mas de desejo. Chamavam-lhe o pirata doce, sintomaticamente. Diziam, quando se encontravam em conversas secretas nas melhores vernissages, que tinha uma pele doce – que tudo nele era doce, até quando ele lhes facultava os prazeres libidinosos de que os consortes eram incapazes.
Um dia, uma destas donzelas ficou ressentida com um não que ouvira do pirata doce. Queria a senhora que ele fosse seu amante em regime de exclusividade. Não o queria partilhado com as outras (“galdérias”, foi o libelo acusatório que, sem noção de si mesma, usou para as concorrentes). O pirata doce não queria deixar de continuar a espalhar a sua generosidade. A exigência de exclusividade não combinava com a generosidade de que se julgava tutor. A madame, vingativa (o que não quadrava com os pergaminhos da alta sociedade, sempre no afã de ensinar a superioridade moral), denunciou o pirata doce.
Quando se adivinhava que os maridos, agora conscientes vítimas de adultério, organizassem uma caçada ao pirata doce, o insólito aconteceu: eles pagavam a preço de ouro os conselhos que o pirata doce tinha para vender para se tornarem aquilo que, dentro dos lençóis, nunca tinham conseguido ser.
De uma assentada, todos ficaram a ganhar. Os proto aristocratas, que só lamentavam terem estado tanto tempo a definhar por causa da moral cristã que os castrou durante o tempo pretérito; e as donzelas da alta sociedade, que já não precisavam de procurar fora de casa o que dentro dela estivera ausente. E até o pirata doce tirou proveito do novo cenário: era principescamente pago pelos seus conselhos de alcova. A idade mudara-o: o materialismo suplantou o hedonismo dos prazeres carnais.

25.1.19

Santuário das palavras esquecidas


Trentemøller, “Where the Shadows Fall” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=OsUmgRXyPBY
As pedras inamovíveis sobre a memória impedem uma palavra de vir à superfície; diz-se, a palavra emaranhada debaixo da língua, mesmo à mão de semear, mas a boca não a consegue pronunciar por um qualquer impedimento mental. E a palavra é mesmo precisa naquele momento e recusa-se a ornamentar a frase, que fica incompleta, talvez até ininteligível, se a palavra em falta for a mais importante da oração.
Ou então, uma determinada palavra, das que se entronizam na categoria de palavras-chave, anda esquecida na indústria tentacular do vocabulário. Às vezes, vem a propósito admitir como anda esquecida a palavra e como ela não merece o olvido. Outras vezes, a palavra fica acantonada no esquecimento por excesso de uso. De tanto ser aplicada, rebenta na boca como palavra sem sentido – os sons entoados quando a boca a pronuncia soam a um idioma estrangeiro, desconhecido. 
As palavras são esquecidas por ato volitivo ou contra a vontade – neste caso, como se ganhassem vontade própria e se escondessem da boca que as promulga. Têm o mesmo estatuto: esquecidas palavras. Para umas e outras, pode ser conveniente mantê-las em banho-maria. A sua utilidade não se desfaz no esquecimento voluntário. A vontade dá muitas voltas e mais tarde pode a sua utilidade constar do manual das intenções. Por maioria de razão, não pode ser a baça cortina do esquecimento a travar o passo à palavra esquecida. 
Tem de haver um lugar de onde se possa resgatar as palavras esquecidas. Um santuário, que forneça pistas a filólogos generosos dispostos a resgatar a palavra do olvido, ou arquivando num lugar seguro as mnemónicas que reativam a esquecida palavra. Um canto quase anónimo nas curvas do pensamento, que dê caução à recuperação das palavras esquecidas. Arrumando-as em categorias, para instruir a tarefa e os clientes não se queixarem à proteção dos consumidores. Um santuário interior, fechado ao resto do mundo nas horas do expediente (quase todas) e que apenas se dá a conhecer quando a demanda por uma palavra esquecida ferve a irritação ao não ser possível dar conta do seu paradeiro. 

24.1.19

Rasura (dantes escrevíamos em papel)


Beirut, “Landslide”, in https://www.youtube.com/watch?v=GCVB5zjwdzE
Dantes escrevia-se em papel. Dantes: quando não havia computadores e o processamento de texto autorizou a trapaça na escrita. Como já então acontecia, não eram em versão definitiva, os textos. Era preciso ler e reler e voltar a mais outra leitura. De cada vez que os olhos se deitavam no texto, vertiam-se anotações à margem, correções, palavras substituídas, outras omitidas, outras acrescentadas. Palavras em sobreposição de palavras, a mancha do texto tornando-se uma cornucópia selada a cores várias, uma para as mudanças, diferente da tinta responsável pelo texto original.
Dantes, era preciso passar o texto a limpo depois de tantas correções e anotações à margem e reconstruções de frases, às vezes, de parágrafos inteiros. Por maior que fosse a atenção ao passá-los a limpo, uma distração podia enfraquecer a tarefa. Era preciso voltar à folha em branco e, meticulosamente, transcrever o texto depois de depurado na folha que recebera a versão original. Os dilemas eram prolixos. Mesmo quando já atestara uma versão final do texto, ao passar a limpo soerguia-se uma frase, um verbo, um substantivo a carecer de modificação. Eram correções que se sobrepunham às correções; correções à, afinal, não definitiva versão. O texto demorava a encontrar a forma definitiva.
Às tantas, o pensamento debatia-se num intrínseco labirinto, não se contentando com nenhuma versão do texto. E o texto suspendia-se na indefinição, não conseguindo amadurecer na sua definitividade, hipotecado pela impureza. Diante de um mar de hesitações, tinha de determinar o momento para selar a versão definitiva. Os olhos juravam a si mesmos que não voltariam a repousar no texto, pois sabiam que se o fizessem tropeçavam na insatisfação com uma fórmula, um verbo a destempo, um substantivo sem sede própria, um adjetivo dispensável (como, normalmente, são dispensáveis muitos adjetivos).
Só que a folha que a certa altura mostrava o texto imaculado, sem anotações à margem, sem rasuras, pequenas ou extensas, era um desafio. Sabia da propensão para regressar ao texto, para depois decair nas irrecusáveis modificações. O texto nunca mais ganhava forma definitiva. Muitos acabaram por ficar inacabados: assim os considerava, só para resistir ao apelo de mais uma revisão que trazia, era uma certeza, a exigível insatisfação que era pretexto para mudanças. Agora não é muito diferente: a escrita tem a sua convolação, mas as rasuras não ganham forma na folha que a acolhe.
Perdi o rasto a todos esses textos que ficaram em forma de caligrafia. 

23.1.19

História sobre uma história: a estrela de rock and roll que tomou cocaína para engatar uma hospedeira


Underworld & Iggy Pop, “Bells and Circles”, in https://www.youtube.com/watch?v=bd6aJ35UTP8
A estrela de rock and roll atira-se ao fascismo higiénico que proibiu o tabaco dentro dos aviões. Nostálgico, evoca “os anos de ouro da aviação comercial”, quando a aviação ainda não tinha sucumbido aos dogmas do fascismo higiénico e o ar dentro de um avião era uma imensa nebulosa que fundia o fumo de cigarros variados. Até se lembra quando os passageiros encontravam cinzeiros nos braços dos bancos. Agora, voar é um aborrecimento. Tudo hermeticamente higiénico e, todavia, o ar artificial dentro dos aviões continua nefasto para a saúde. Em contrapartida, as pessoas mais nervosas não se podem refugiar no efeito calmante do tabaco.
A estrela de rock and roll lembra-se de um voo em que ficou siderado com a beleza de uma hospedeira. Como a descreveu, uma mulher alta, arquétipo da beleza americana. Para ganhar coragem para meter conversa com a hospedeira, desembrulhou um grama de cocaína e consumiu-a já com os cintos apertados. Era para libertar o verbo e derrotar a inibição. Algo não bate certo: faz parte do imaginário, uma espécie de mito urbano (sem a parte do mito), que as estrelas de rock and roll não esbarram em dificuldades quando fazem adejar o charme sobre o sexo feminino. Em regra, um estalar de dedos garante uma conquista. A estrela de rock and roll teve vergonha. Talvez refém da sua feiura, ou considerando-se uma pessoa desinteressante, socorreu-se de um estimulante para desbloquear a vergonha. Ou então, meter conversa com a hospedeira lúbrica foi o pretexto para consumir um grama de cocaína antes de o avião levantar voo.
A estrela de rock and roll conta a boa notícia: a hospedeira anuiu e escrevinhou, à pressa, o número de telefone num papel, entregando-o em mão à estrela de rock and roll. Depois, a má notícia: inebriado pelos efeitos psicotrópicos da substância inalada, depois de aterrar, e talvez já em si, deu conta que tinha perdido o papel onde estava escrito o número de telefone da bela hospedeira. Arrependeu-se, já a destempo: a cocaína não era melhor do que a hospedeira – atestou a estrela de rock and roll. Literalmente, ficou a ver aviões.
(Altura em que feministas abespinhadas se insurgiriam contra o topete de comparar uma mulher com cocaína, protestando contra a “mercadorização” da mulher. Ou, como no poema de Ana Luísa Amaral (“Incomparáveis receitas”), “Dizem que não se deve comparar humano/a coisas ou sabores.”)
A estrela de rock and roll escorregou para a especulação gratuita. Como pode o músico dar por adquirido que a cocaína era pior, se não chegou a conhecer a hospedeira? A estrela de rock and rollter-se-á arrependido de ser tímido. Ou então, de ter arranjado um pretexto para desembrulhar um grama de cocaína antes de o avião levantar voo. A cocaína teve as costas largas.

22.1.19

Cem histórias a contar (short stories #91)


Mler Ife Dada, “Sinto em Mim”, in https://www.youtube.com/watch?v=R8VWUvSI57A
          Do insistente inventário, um cálculo com efeitos posteriores. Dizes que queres que te contes histórias. Cem histórias. Não colocas prazo, o que me sossega. Agora sei que tenho de honrar a promessa. Contar-te-ei as cem histórias. Hei de reunir as personagens a preceito, os enredos que merecem assentamento no estuque em que se compõem as histórias. Hão de ser histórias sem tédio, prometo. Talvez, algumas histórias com intensidade, digamos, filosófica (porque agora deu-me a mania da filosofia). Mas histórias que não se enredem em labirintos inextrincáveis. Já agora, enredos não emaranhados em vocábulos quase sem uso, nem em gramática gongórica. Verás, desde este ponto de vista, que não é fácil a empreitada a que vou meter mãos. Quero conseguir histórias despretensiosas. Não serão lições de vida – não sou ninguém para alinhavar histórias de vida. Não serão preceitos com moralidade a tiracolo; já aprendemos, na vida que levamos, que as moralidades se estilhaçam com o menor tremor do chão em que assentamos. Cem histórias. Ou mais. Se, pelo caminho, continuares a inspirá-las, quer pela tua presença em mim, quer apenas porque ao estares do meu lado produzes um efeito catártico e as palavras não se encomendam à mudez. As histórias podem ser levemente autobiográficas, ou remeter para um imaginário que medra no fermento do meu pensamento. Admito que será mais o segundo caso – e não o digo por pudor, ou por ser desconfortável a exposição que acontece quando um laivo de autobiografia se enxameia numa história. As histórias serão um arpão que se enlaça com as diferentes menções do tempo. Sem recusar as palavras meãs e as que reivindicam palcos mais altos. Sem recusar recursos estilísticos e o apelo a metáforas, sem pôr de lado as linhas que se leem nas entrelinhas e as palavras que são frontais. Sem fechar as janelas que se antepõem na moldura de uma história em ebulição. Umas vezes, com os olhos claros, despejados, evocando as medidas sem limites que se sobrepõem à costura das histórias. Outras vezes, a personificação de um rosto melancólico que não se esconde no fingimento de si mesmo. Mas sempre histórias. Cem – ou as que forem precisas para sermos atores primeiros num processo dialógico infinito. Revejo os planos: vão ser muito mais do que cem histórias.

21.1.19

Nunca deixes o olhar


Mr. Herbert Quain, “Let Me Figure This”, in https://www.youtube.com/watch?v=jkO0aNZvTDk
Que o abismo não te emudeça. Pois o abismo é uma fábula da imaginação, sem correspondência com a matéria em que os corpos assentam. Continua com o olhar sagaz à procura da chave do tempo, das barreiras ao melífluo, do olhar compreensivo com a geografia em que se entretece o pensamento. Não descuides a crítica, por assanhada que seja; ao menos, é espírito crítico que medra na cumeada do pensamento, e não a apatia a que somos convidados, o moderno sucedâneo das ditaduras, das ditaduras que se sobrepõem ao pensamento descomprometido.
Nunca deixes que o olhar deixe de fazer o seu caminho. Sem agenda, sem ser tutelado por modas, não transigindo com a morfologia inerme dos que pressentem um apascentar oportuno da turba. Nunca deixes se não que o olhar veja o que lhe apetece. Pois é dessa liberdade que se compõe a grandeza do mundo, para a qual ofereces um modesto contributo através da grandeza que te é própria.
Não deixes que o olhar se hipoteque. Que sobre ele se vertam as cortinas baças. Ou que seja açambarcado pelo fardo pesado que é tácito ao coevo. O teu olhar tem de permanecer vívido, incisivo, construtivamente crítico, para depurar os vestígios em que não se reconhece e melhor saber o lugar a que pertences. Dá ao olhar o máximo do mundo que puderes recrutar. Dá-lhe páginas incontáveis, narrativas inesperadas, versos emoldurados para memória futura. E deixa que o olhar se congemine nas arcadas largas, onde os limites se fundem com os deslimites de ti. 
Não deixes de atuar sobre o teu olhar. Estás numa posição paradoxal: é o olhar que te traz os testemunhos válidos, depois da decantação exigível; mas não sabes se o olhar cumpriu os requisitos da imparcialidade, não sabes se um olhar não totalmente descomprometido não contamina o teu pensar. És influenciada por ele e sobre ele tens de atuar, numa discreta e constante vigilância. Para o olhar não acabar tresmalhado num lugar exíguo, não frequentável, pútrido – o que, em muitos casos, pode corresponder aos lugares que te são dados a conhecer na maior parte do tempo.
Não deixes o olhar decair na indiferença. Não o deixes fugir para lugares domados por vultos, onde campeiam as desalmas. Não deixes que o olhar seja menos do que a voz nítida que desembacia as incertezas perenes. E não deixes que o olhar caia pelo precipício que é o lugar habitual de que somos residentes. Cumpre o teu olhar e inventa os lugares outros, verticais a estes a que os sentidos se emparelham. Para aprendermos a desenhar estrofes em conjunto.

18.1.19

Ou tudo ou tudo


Interpol, “Pioneer to the Falls” (Live for BBC Radio 6 Music), in https://www.youtube.com/watch?v=oeqhWLKJB9I
Subida a parada, o mastro não chegava para hastear a ousadia desfraldada. Não podia haver lugar aos contratempos nas equações que se sobrepunham no papel exposto. O franco desembaraçar dos impedimentos só podia desaguar num opúsculo vibrante, recreativo, fecundo, uma obra-prima. As duas hipóteses reconduziam-se a uma só: tudo estava preparado para sair a ganhar. Não havia meio-termo. Nem o cenário oposto. Porque não é de apocalipses que consta a ementa gravada a talha dourada. 
Dizia-se que os sonhos são um ardil de que só se dá conta quando pertencem à fornalha onde se incineram as desesperanças. Desta vez, não. Desta vez, tudo haveria de dar certo, o desenlace como desejado. Não seriam advérbios de modo orquestrados em salões conspirativos dando a volta ao mundo só para travar o passo ao desejo. Não seriam vultos medrando em sua hipocrisia travando o desiderato. O convencimento era a ignição do resto. Abraçado à perseverança do ser, um autêntico estado de alma, inderrotável.
Nas narrações vindouras, ficaria o selo intemporal do conseguido. Mas era cedo para começar a escrever história no futuro. Sempre alguém, de supersticiosa cepa, podia advertir que o azar pode espreitar, o malfadado, com seu impaciente bafo de contradição. Não era preciso dar crédito à advertência: estava tão seguro, que tais imponderáveis não subtraíam o sono. A visitação consecutiva de frases marcantes que desfilavam na paisagem mental ajudava a consolidar o convencimento do esperado. 
A meio do caminho, foi assaltado por uma hesitação. Apesar de nunca ter pressentida tão certa uma aspiração, interrogou-se se chegava a tinta farta do convencimento do esperado. Outra coisa podia ser o lado oposto do labirinto em que se metera. O que se espera hoje nem sempre é selado no cúmulo do tempo determinado como mapa que transige com o resultado desejado. Nesse caso, já não podia formular, com a determinação de quem é couraça, que é tudo ou tudo.
Foi a tempo de resgatar a postura ambiciosa. Era mesmo tudo ou tudo, sem lugar a alternativas. Teve medo. Nunca soubera a que sabia este grau de certeza à prova de contingências. Tinha a noção das variáveis que fogem ao seu domínio, de como as contingências, inesperadas como são, podem gorar um resultado esperado. Não esquecia como sempre rematara as demandas com uma sucessão de interrogações que obstavam respostas terminantes. Mas não desta vez. Não era o palco das tergiversações, das perguntas metódicas, que estava em causa. Era tudo ou tudo.   

17.1.19

Ainda o tempo (e não é o meteorológico)


This Mortal Coil, “I Come and Stand at Every Door”, in https://www.youtube.com/watch?v=KoDEVKlaW_A
Este bizantino desacerto, como se as pernas não estivessem em sintonia com o chão e os pés fossem sombras cambaleantes. A espuma que se desprende na extremidade das ondas desfaz-se no paredão gasto. O vento moderado arrasta os nódulos da espuma até aos bancos do jardim sobranceiros ao paredão, constituindo anfiteatro de excelência sobre o mar. 
Passam dois idosos na companhia de seus cães, agasalhados contra as agruras do inverno (cães e idosos). Sentado na bifurcação entre o rio terminal e a embocadura do mar, fecho os olhos e sinto como se estivesse a ouvir uma música dominada por violinos. Que metódico esgar faço ao rapazola estouvado que, na companhia de adolescente feminina a condizer, treslouca o espaço circundante com a sua gritaria? Antes gostasse do som do silêncio; mas não naqueles preparos, que o sol raro do inverno quis conhecer este dia e as pessoas, sedentas de sol, saíram à rua e o burburinho é prova indesmentível. 
Levanto o olhar, fazendo menção de me apropriar do espaço que se deita para além da linha do horizonte. São estas demandas abstratas, consumíveis na vacuidade de palavras amontoadas, que me deixam paradoxalmente revigorado. Não quero ser refém do lugar-comum. Não pretendo a distinção pública de nada. Só quero ser tutor das palavras na ordem em que ascendem ao pensamento. Não é tarefa pouca.
Sob a minha direita, um pescador dormita. Não dá conta do fio de uma das canas que balança vigorosamente, sinal de ter arpoado um peixe e parece ser de envergadura. Não o vou acordar. Não tenho o direito de acordar quem mergulhou no seu sono, mesmo que o peixe se consiga soltar do anzol na frenética luta pela liberdade e o pescador lamente a perda de tamanho pecúlio. Ou, talvez, a minha inépcia seja uma tortura para o peixe, que rebate o anzol com a força que tem e se consome no sangue exaurido. Não me interessa o dilema. Não me interessam os dilemas, pelo menos naquela altura de torpor – e se tenho direito ao torpor, como todos arregimentam o seu quinhão de preguiça! Oxalá o pensamento tivesse um descanso. E deixasse de vogar, errante, de apeadeiro em apeadeiro, ao deus-dará. 
Detenho o olhar na margem contrária do rio, no leve declive que levanta a paisagem desde a orla do rio até ao seu epílogo, antes de mergulhar noutro vale. Vem à ideia a imagem de um cobertor verde deitado sobre o chão. Se dizem que as árvores são os pulmões que nos saciam o oxigénio, aquele cobertor não é o sufixo de asfixia. O caudal do rio corre, apressado, para o mar. Traz no seu dorso os vestígios do oxigénio aspergido pelo arvoredo. O salitre, lugar-tenente do mar, cuida de se apropriar dessas partículas, transformando-as na maresia quimérica que toma conta de entardeceres e de manhãs brumosas. E esta amálgama parece rimar com o meu torpor, contra o desejo baço de levitar o céu translúcido que desfila sob meu olhar cerrado. Não me empenho ao amanhã, isso é coisa certa.
Levanto-me e continuo a caminhar. Quase consegui pensar no tempo sem bastião sem mencionar a palavra “tempo”, ou uma palavra sua aparentada. 

16.1.19

A crise da crise (Ou: a crise está em crise)


Radiohead, “Recknoer” (Thumbs down version), in https://www.youtube.com/watch?v=8OS1U8LjjZw
(Ato primeiro: simulacro de defesa do otimismo irritante e da magnífica gesta que é excessiva na portugalidade que somos)
As provas abundam: a crise, palavra que muitos desafortunados teimam em inscrever num quadro de perenidade, está em crise. A felicidade devia ser determinada por decreto. Só os mal-intencionados e os incorrigíveis pessimistas (a par com os que medram na desgraça congénita) não reconhecem as boas águas em que navegamos. A crise entrou em crise e os que estão habituados a porfiar na crise ficaram a braços com uma intrínseca crise – a que tomou conta deles próprios. Fazem lembrar abutres, de atalaia à espera da primeira oportunidade em que os céus se tingem de nuvens negras, para pressagiarem nuvens ainda mais plúmbeas. Alimentam-se da crise e só sabem viver com o pano de fundo sombrio da crise. Se ocorre o horizonte se limpar das excrescências que são nefastas para o bom viver do povo, abespinham-se, contraem-se nos seus músculos turgidos, acordam contrariados por causa do tempo soalheiro que veio em substituição do seu habitat natural. 
A crise da crise é a meta-análise de um sentir sorumbático, depressivo, talvez nos despojos da falência de (mais) um sebastianismo, uma orfandade advinda de crises pretéritas. Estas personagens azedam na melancolia paradoxal que se entabua quando tudo faria crer que os sintomas apontassem em sentido contrário. Quem não gosta de um palco livre do estigma da crise? Só os que se habituaram a conviver com a crise, saltando de crise em crise, até que intuem que a crise é o estado constante que nos reduz à incapacidade de sermos alguém que olha o porvir com um sorriso descomprometido, de alguém que desaprendeu a usar a palavra “esperança”. A crise da crise é a crise que está em crise. Para infortúnio dos ascetas que nidificam na crise. Manter este comportamento é produto de má-fé (por não admitirem que a crise está em crise), ou patologia incorrigível.
(Ato segundo: a defesa de honra dos visados no ato primeiro)
Os ventos não sopram sempre favoráveis. O clima não é uma constante. Nem as marés. Nada é constante e tudo se expõe à contingência. No movimento oscilante que são os ciclos, devia-se tirar partido das lições da história. Pode a crise ter suspendido as suas funções. Aproveitem-se os ventos contagiantes que sopram de outras latitudes e que aspergem bons efeitos. Não seja, contudo, dada caução à falácia do otimismo irritante. Os bons ventos podem desviar para outras latitudes – ou, pura e simplesmente, hibernar por período indeterminado. Nessa altura, os otimistas irritantes não se poderão esconder em pretextos ou ardis argumentativos. Terão de reconhecer que a crise da crise não foi um sintoma de que a crise estava em crise. Não será a crise que esteve em crise; foi apenas uma descontinuidade na crise.
É compreensível que, na intermissão de duas crises, se distinga o clarear dos rostos e um módico de otimismo tome conta do tabuleiro onde se dispõem as peças do jogo. Adulterar a lógica embebida numa historicidade indesmentível é um logro. Da mesma forma que os otimistas irritantes preconizam a felicidade ditada por decreto, não seria má prática prever, em leis criminais, a punição dos que vendem, a destempo e com a promessa de ser imorredoiro, o que de bom existe e que, está provado pela história, não dura para sempre.
Pois é de crise em crise que o mundo tem avançado. E prosperado. 

15.1.19

Epistemologia do filho da puta


Idles, “Mother”, in https://www.youtube.com/watch?v=BuQG6_evFc8
Não é preciso sermos filólogos para termos a impressão de como a língua (o idioma) é maltratado com uma frequência assustadora. Não é por erros ortográficos, ou de sintaxe, ou do mau uso da gramática que este texto vem ao caso. Trata-se do emprego desenquadrado de étimos e expressões, com consequências não antecipadas por quem é responsável pelo uso indevido. 
Um insulto assíduo é dirigirmos ao insultado a noção de que sua excelência é filho de uma meretriz. Ao chamarmos filho da puta, não damos conta do seguinte. Primeiro, muitas vezes desconhecemos a identidade da progenitora, pelo que o risco de cometermos uma injustiça (e uma injúria) é elevado. Segundo, mesmo que tenhamos conhecimento do paradeiro da senhora, não podemos afiançar (regra geral) que a dita se dedica ao mercado da venda de prazeres sexuais. Arriscamos, outra vez, o insulto gratuito e sem fundamento fático, com a agravante de estarmos a pisar o limiar do ilícito, pois insultar alguém por algo que essa pessoa não é pode constituir o crime de injúria. Terceiro, mesmo que as duas hipóteses anteriores não se confirmem, e a senhora mãe do insultado se dedique à prostituição, acusar o insultado de ser o que ele é não pode representar um insulto. Se o propósito é o vitupério, pecamos por defeito. 
Porventura o mais frequente é a expressão “filho da puta” ser usada como lugar-comum do insulto, sem se poder fazer uma interpretação literal das palavras contidas no insulto. Quando se diz a alguém que essa pessoa tem o inditoso fardo de ter sido gerado por alguém que vende o corpo aos prazeres sexuais de outrem, estamos a admitir (provavelmente, com uma elevada dose de erro à mistura) que o insultado foi concebido por uma meretriz e que esse é um facto da sua história de vida que o deixa menoscabado. Ora, pode acontecer que o filho não tenha renegado a mãe, pelo que acontece, outra vez, o insulto acertar ao lado. Ou pode dar-se o caso de a senhora não ser aquilo que o insulto identifica e, nesse caso, o ultraje atinge duas pessoas (pelo menos): o insultado que é filho de uma senhora que, afinal, não tem os “maus pergaminhos” (no entender das convenções sociais estabelecidas) que vêm de arrastamento com o opróbrio. 
Não seria mal pensado termos travão na língua quando não reprimimos o instinto de chamar a alguém filho da puta. Na maior parte dos casos, estamos a ofender mais a mãe do insultado do que o insultado. O tento na língua é recomendado para não errarmos no alvo da ofensa (se for determinante proferir o insulto, caso em que se conclui não estarmos serenos dentro da nossa identidade e nos prestarmos a convulsões escusadas). Se chamarmos filho da puta a alguém, o maior ultraje não repousa na pessoa do insultado, mas da sua mãe. E, quantas vezes, a senhora, em não sendo aquilo de que vem acusada no ínsito do insulto, não tem culpa de ter parido um canhestro, nem é responsável pela personagem soez em que ele se transformou.

14.1.19

Rádio sem pilhas (short stories #90)


Pond, “Daisy, in https://www.youtube.com/watch?v=Ap2gStsDZZo
          Sem veleidades: o rádio perdeu as pilhas. Ficou confinado ao silêncio. Esquadrinhou a casa toda à procura de um jogo de pilhas de substituição. Por mais que virasse as gavetas e as prateleiras do avesso, não havia pilhas. Não havia rádio. Sobrava o silêncio. Podia pegar num livro, que os havia, e muitos, empilhados nas prateleiras, e prontos para serem estreados. Dava-se o caso de não apetecer ler um livro. Ou ligar a televisão – que não precisava de pilhas –, ou sair de casa e ir às compras ao supermercado (para comprar um jogo de pilhas de substituição), ou outra qualquer coisa. A pura vontade era sintonizar o rádio. Quis recordar os tempos da infância e escolher uma estação em onda curta, daquelas em que o ruído de fundo se sobrepunha ao resto, tornando o resto quase ininteligível. Será que ainda havia onda curta? Não podia tirar as teimas. Especulou. Podia resolver a demanda se se vestisse a preceito (que o dia estava invernal e não convidava a sair) e fosse à loja mais próxima comprar um jogo de pilhas de substituição. Resignou-se a lutar contra a teimosia. Queria algo que não era possível, ausentes as pilhas de substituição. A curiosidade ficava para segundas núpcias – quando o mau tempo amainasse, ou quando dobrasse o persistente cabo da má vontade que o toldava e saísse de casa para comprar as pilhas necessárias. Ou se a vontade fosse calibrada e a teimosia se esquecesse da interpelação sobre a sobrevivência da onda curta. Ficou a olhar para o rádio. Um objeto inanimado. Não é que perca esse atributo quando, dotado de pilhas ainda a uso, debita as emissões captadas na onda média, na onda curta, ou na moderna frequência modulada. Sem pilhas, o rádio não tinha serventia. Enquanto estivesse sem pilhas. Enquanto a teimosia em não sair de casa fosse o obstáculo à vontade que parecia entronizada. Talvez não fosse. Sem admitir, tratava-se de um acesso de mau feitio, quando se martiriza a si próprio por causa das coisas que teve à sua mercê e, entretanto, as perdeu. Assim como assim, o rádio sem pilhas sempre era um objeto decorativo.

11.1.19

Os arrumadores de almas


In the Nursery, “To the Faithfull”, in https://www.youtube.com/watch?v=z7I2Vy3T_Bo
Os cotovelos tinham por base a mesa onde repousava a singela jarra que abrigava um punhado de flores silvestres. A água a caminho de se tornar baça. Uma ligeira névoa de fumo circulava a meio da sala, mas não dava conta do fumador. Uma mulher com rosto cansado entrou na sala, as olheiras acentuadas afundando o olhar e, ao mesmo tempo, sublinhando a melancolia. Pediu um café e esperou em pé. 
Lá fora, começou a chover. Um aguaceiro brusco, inopinado. Acompanhado por vento que, de um momento para o outro, se tornou vendaval. As pessoas fugiam, procurando refúgio. Um guarda-chuva voou, a vítima mais recente da intempérie sem pré-aviso. A mulher terminou o café e desfez os planos: tendo ficado em pé, à espera do café, talvez estivesse com pressa de ir à sua vida; a tempestade súbita mudou os planos. Aguardava junto à saída, com alguma impaciência, que a tempestade desse tréguas.
As flores silvestres, como que animadas pela feérica tempestade, saíram da murcha condição. Dir-se-ia que também queriam espreitar, pelo pescoço da jarra, o ribombar do vento que soprava em violentas rajadas, disparando bátegas de chuva. A paragem do autocarro do outro lado da rua estava apinhada. As pessoas procuraram refúgio para não serem atropeladas pelo temporal. Três dessas pessoas atravessaram a rua e entraram no café – era mais confortável o abrigo do café e, vistas as coisas, a paragem estava sobrelotada, as pessoas acotovelando-se umas nas outras para não serem inundadas pela desbragada procela que se pôs. 
Outra vez sem pré-aviso, a chuva e o vento suspenderam a atividade. Havia algum lixo pelo chão, talvez arrancado aos pertences de um caixote de lixo que ainda não fora recolhido. Uma nesga de luz irrompeu, caiando a água vertida sobre as ruas, um rio acetinado que atapetava o asfalto. Parecia a retaliação do sol contra as nuvens fortemente acasteladas que legitimaram a recente tormenta. Num braço de ferro entre sol e nuvens, que se digladiam continuamente pela usurpação do céu. A mulher ensonada saiu do café, já não podia esperar mais na sua impaciência visível. 
As três pessoas que encontraram refúgio, voluntariamente exiliadas da paragem do autocarro de onde fugiram como fogem dos lugares amontoados, sentaram-se em mesas separadas. O homem septuagenário tirou um jornal de dentro da gabardina encharcada. O jornal salvou-se (a gabardine era impermeável). Chamou o empregado de mesa, que continuava a exibir o mau-humor inato apesar das sucessivas chamadas de atenção do proprietário do estabelecimento, que já perdeu clientes à conta da impertinência do rapaz. O idoso pediu, friamente, um café e um pastel de nata, sem dirigir o olhar para o rapaz. Este vociferou, em surdina, “ao menos podia usar se faz favor”. A semi-surdez do cliente foi a sorte do proprietário do café.
Um mendigo entrou no estabelecimento. Dirigiu-se ao balcão. Pela rotina dos gestos, parece habitual. A senhora que tira os cafés e despacha o restante expediente entregou-lhe um saco com várias embalagens. O homem acenou, em tom de agradecimento. O idoso que lia o jornal desviou o olhar e chamou o mendigo, depondo na mão um punhado de moedas (as que tinha na algibeira). O mendigo repetiu o gesto de agradecimento, balbuciando uma semi-palavra que denunciou a mudez. 
Olhou para a rua, tirando uma bissetriz através da jarra onde as flores silvestres novamente afocinharam em seu decaimento. Os excessos da breve tempestade estavam corrigidos. A água tinha sido enxugada. A paragem do autocarro estava vazia. E já não passavam autocarros há vinte e três minutos.

10.1.19

Máscara (short stories #89)


Plastic People, “Riding High on Acid”, in https://www.youtube.com/watch?v=Y3WBdUb7WbI
          Uma máscara esconde o eu genuíno, ou é apenas a proteção exigível contra as contingências do mundo? Um manto não diáfano desce pela colina e estende um nevoeiro que embacia o olhar. Todos éramos atores, pois ao simulacro do outro correspondia, como resposta imperativa, o simulacro do eu. Tudo acabava por se desenrolar dentro de um palco onde desfilava um cortejo de máscaras – ou o palco que se desmembrava em múltiplos palcos, como palcos que emergiam dentro do palco anterior e as máscaras obedeciam ao mesmo ritmo palimpséstico. A certa altura, de tanta complexidade, já não seria possível saber se uma máscara era apenas a exigível reconfiguração do eu perante os desafios do mundo exterior, ou se era a segunda, a terceira, a quarta reincarnação da máscara inicial. Tudo sendo um acumular de sucessivas camadas sedimentando-se umas nas outras, a cada uma correspondendo uma máscara diferente. E qualquer pessoa, aprisionada na sua memória finita, perdendo o rasto das máscaras primevas, já não primordiais – como explicava o esquecimento. Neste estado de coisas, e perante a vulgarização das máscaras, refeitas as coordenadas vigentes, já ninguém prescindia de máscaras (no plural). Já não fazia sentido se não olharmos uns nos outros através das máscaras, até das máscaras indeléveis que se fingiam através do rosto aparentemente não disfarçado. Já ninguém reconhecia rostos não ornamentados por máscaras. As máscaras passaram a ser o rosto visível. Já ninguém sequer retirava a máscara antes do deitar. A osmose entre rosto e máscara deixara de ser um problema. E nem as demandas heurísticas, sobre a perda de genuinidade à mercê das máscaras, pareciam ter sentido. A normalidade tinha sido redesenhada. O vínculo ao fingimento dera caução à substituição dos rostos por máscaras. Até no dicionário: a palavra “rosto” fora banida. Em sua vez aparecia a palavra “máscara”. Mesmo os nascituros conheciam o mundo através da máscara que traziam à nascença. E todos eram atores. Num palco imensurável, com várias estratificações, com várias máscaras a preceito das circunstâncias. Parecia que deixara de fazer sentido reclamar a genuinidade. As máscaras passaram a ser o selo válido do genuíno.

9.1.19

Por encomenda


Trentemøller, “November”, in https://www.youtube.com/watch?v=-MR5SVUuch4
Uma obra por encomenda compromete a autonomia do criador? A história da arte está repleta de exemplos de obra encomendada. Mesmo na escrita. 
(Não se ponha de parte a hipótese de a limitação da autonomia do criador estar diminuída noutras expressões artísticas: o que acontece se um ditador – ou um autocrata com devaneios de grandeza – encomendar uma estátua de si próprio?) 
A questão que se levanta é esta: na escrita, a encomenda de uma obra sobre determinado tema bloqueia a capacidade criativa do autor? Não se afigura o caso. Entenda-se a encomenda (na forma do tema a tratar) como uma sugestão de assunto a convidar a uma reflexão do autor. Talvez o autor agradeça a encomenda, se estiver com pouca inspiração para encontrar assunto para escrever; ou talvez, não declinando o convite, o remeta para tempo futuro, justificando o adiamento com empreitadas pendentes que se sobrepõem, pela urgência que carecem, ao assunto encomendado.
A partir da interiorização do assunto encomendado, nada se perfila como limitação da autonomia do criador. Ele tem total liberdade para pensar sobre a demanda e, no uso da sua capacidade criativa e dando voz à forma como interage com o assunto, usufrui de autonomia criativa. Nem se espera que quem encomendou a empreitada a intua de outro modo. Quando alguém interpela outrem, pedindo-lhe opinião sobre um assunto, o interpelante aguarda pela posição do interpelado. Pode, ato contínuo, dirigir interrogações, fruindo uma função dialógica entre ambos. Está fora de questão interpelar e delimitar as baias por onde se possa mover o raciocínio do interpelado. Era como perguntar algo tendo por intenção obter uma resposta predeterminada. Assim se entenda a autonomia criativa do destinatário da encomenda. 
Nem pode essa autonomia ser limitada pelo possível gosto de quem encomendou: o criador não pode pensar, por um instante, na reação provável do interpelante. Se o autor esboça um texto tendo parte do pensamento locupletado pela preocupação sobre o gosto (favorável ou não) do interpelante, uma camisa-de-forças sobrepõe-se à sua autonomia criativa; mesmo quando o autor, no uso de um aguçado espírito de contradição, entretece um argumentário que sabe ser a desprazer do interpelante, provocando-o desse modo. Saber em que medida aquela limitação afetou a produção intelectual depende de um exercício especulativo: quais as diferenças entre o texto produzido em consequência da limitação autoimposta e o texto que resultaria da inconsideração daquelas preocupações? 
A autonomia só existe quando o autor, colocado perante a demanda, apenas discorre a medida do que sobressai como fonte de inspiração e como seu entendimento sobre o assunto, sem ser hipotecado por demais obstáculos. O interpelante só o será se não aceitar menos do que esta medida de liberdade criativa. 

8.1.19

Antes que Robert Mapplethorpe fosse embora


Mapplethorpe é daqueles artistas que, caso fosse vivo, não precisava de se promover. Os outros cuidam da função, sem que Mapplethorpe precise de mover um dedo. Tudo à custa da controvérsia da sua obra, com fotografias provocatórias que agitam muitas consciências, sobretudo porque a provocação é tangente ao sexo (ou a comportamentos sexuais que fogem do convencionado).  
Reduzir a obra de Mapplethorpe às fotografias com pénis eretos é uma injustiça. Quando a polémica surgiu, em parte alimentada pelo choque de consciências que algumas fotografias ousadas iam causar (e, noutra parte, pela colisão entre o curador do museu de Serralves e a presidente do conselho de administração), só se falava da obscenidade de algumas fotografias expostas. E, todavia, as fotografias mais belas escaparam à depuração dos críticos e dos outros que, à boleia de uma controvérsia em jeito de crónica de bons costumes, se esqueceram de as glosar (ou não as viram). São fotografias de flores, fotografias admiráveis que põem em alto relevo a quimera que é a morfologia destas flores. Em grande plano, sobressaem os filamentos que dimanam da origem, desdobrando-se em pétalas que desmaiam numa policromia mágica, numa constelação de cores que é um monumento vivo ao belo.
É incontestável que as fotografias de nus, com ou sem falos a adejar, são dominantes no acervo de Mapplethorpe. Mesmo aí os comentadores de ocasião, que peroraram sobre a agitação de consciências e o abastardamento dos bons costumes, falharam ao dar atenção apenas às fotografias que mexem com os padrões que ensinam a ter vergonha da nudez. Há fotografias monumentais de corpos nus, atléticos, com detalhes que mostram a observação metódica do fotógrafo, fotografias em poses coreografadas (e não se pode pressentir o ato artístico na conceptualização das coreografias que dão azo ao retratado?), rostos de artistas conhecidos que aceitaram posar para Mapplethorpe. E fotografias com movimentos cénicos que destacam a idiossincrasia do artista: a fotografia de um rosto quase totalmente imerso em água, apenas deixando o nariz e parte da boca à tona, tanto podendo ser interpretado como o resgate das águas assassinas, ou como o movimento decadente que aspira ao naufrágio; e a fotografia em que dois corpos entrapados se emaranham nas faixas que os cingem, pressagiando uma simbiose que tanto pode ser privilégio dos amantes, como (numa visão moderadamente otimista) da humanidade no seu todo.
Há as fotografias remetidas para uma sala reservada, com advertência às consciências sensíveis sobre o teor sexualmente explícito. Depois de toda a polémica servida quando a exposição foi inaugurada, fiquei defraudado. Muitos pénis, uns eretos e outros não, alguma parafernália sadomasoquista (quase sempre reduzida ao vestuário de couro dos modelos fotografados) e apenas duas fotografias explícitas: um punho metido no ânus de um homem e outro homem enfiando um dedo no óstio externo da uretra, como se estivesse a praticar em si mesmo a algaliação. Não fiquei defraudado da mesma maneira que os seguidores da CMTV precisam de sangue para se sentirem motivados para a vida, e ficam entristecidos porque a jura de sangue não foi cumprida. De tanto alarido feito com a exposição, depois de a ter visitado fiquei com a impressão que toda a vozearia pecou por excesso. (Ou, em interpretação alternativa, que muita gente continua afetada pelo sexo, ainda matéria pecaminosa para uns, ou matéria mal resolvida para outros.)
Há quem assegure que o propósito da arte de Mapplethorpe era ser provocatório, um agitador de consciências. Não conheço o suficiente da biografia de Mapplethorpe para saber se assim era. Independentemente desse juízo, lamento que a arte, quando imbrica com a nudez agitadora e com imagens de sexo explícito, seja abocanhada pela discussão moralista. Para a qual contribuem os que esbracejam os pergaminhos moralistas para a censurar, e os que abjuram essa hipersensibilidade e a atacam partindo de uma posição que se enfeuda num anticlericalismo visceral. Uns e outros consideram aspetos colaterais que desvalorizam a obra de arte enquanto tal. É essa a injustiça que se abate sobre a exposição de Mapplethorpe no museu de Serralves.

7.1.19

“O meu espelho não me envergonha”


New Order, “Leave Me Alone”, in https://www.youtube.com/watch?v=U0uUvCpHDS0
Devo ser eu a absolver o espelho que me ajuíza. De que serve a condenação se o espelho se limita a exarar em ata a silhueta do corpo que trago?
Talvez seja ao contrário. É o espelho que não me envergonha. Não serve de disfarce para o corpo que sou. As formas que se tecem não merecem um refúgio nos contrafortes da ilusão. Outros há peritos no ardil: uns, encomendam um espelho que seja a imagem propositadamente distorcida do corpo que são, para melhor; outros, deixam-se encantar pelo fingimento do olhar, incapazes de ver o corpo que se recusam a admitir. Não interessam as meritórias sentenças dos outros (interessar-lhe-ão, aos próprios). Não interessa o desprezo das formas do corpo que não quadram com os cânones. Houve um tempo – e ficou imortalizado em obras de arte, selando o entendimento da época – em que os corpos eram robustos e ninguém os votava ao ostracismo pela ostentação de adiposidades. As modas são efémeras (ensinam o conhecimento do mundo e a história). Ninguém sabe se, de hoje para amanhã, a corpulência inestética deixará de pertencer ao exílio.
Pouco importa o que será a letra viva do porvir. E menos interessa que haja quem desdenhe do corpo que trago. É o meu corpo. Consegui derrotar os preconceitos que fermentavam por dentro de mim desde que passei a não dar ouvidos aos comentários depreciativos. Passei a confiar no espelho. No espelho que não me envergonha. No meu olhar. Que é, afinal, juiz supremo, sem direito a recurso para outras instâncias. Não quero saber dos perfecionistas, ou dos tutores da estética. Os corpos não se medem aos olhares dos outros. No que me diz respeito, mede-se através da bitola do espelho que entra pelo meu olhar. Não estou à espera de condescendência. Nem de parcimónia dos que se julgam suseranos do meu corpo. Eu sou o único suserano dele. Os outros, limitam-se a ser observadores exteriores, com a mesma importância que têm os forasteiros no governo de uma nação.
Tenho confiança neste espelho que não me envergonha. Orgulho no meu olhar. Não há mais camadas sopesadas no palco onde se terçam as coisas que importam. Não sei se o espelho é fidedigno. Não sei se o meu olhar está propositadamente mandingado. Enquanto trouxer este corpo comigo, não o renego. Não o deixo à consideração alheia. E não deixo que as palavras malditas que sobre ele possam ser ditas pesem na hora do seu adestramento. Porque este espelho não me deixa envergonhado.

4.1.19

O dia ímpar (short stories #88)


Nils Frahm, “A Place”, in https://www.youtube.com/watch?v=emo-ch_nEBc
          Em aparente contrafação, o dia ímpar. Não o dia singular, que esses têm caução de serem industriados pelo desassombro, pelo insólito, selados no calendário dos tempos com uma marca indelével. O dia ímpar, por fugir ao testamento tornado matéria viva. Mas o dia ímpar, que também há lugares no calendário que são destino do dia ímpar. Algures entre o impermeável pensamento, um sobressalto inesperado (e não são todos inesperados, os sobressaltos?). Uma química substância apodera-se das veias, destronando o viés do sangue fervente. A inércia contamina-se. Não se afigura o paradeiro do sobressalto, que provoca uma combustão ao contrário: o fogo extingue-se no diadema do dia ímpar. Mercê da improvável inércia, desenvolve-se uma espiral sem freio: a cada hora que passa do dia ímpar, parece que o dia se torna cada vez mais ímpar, o sinónimo de insuportável. E que se chegue à frente a primeira pessoa que diga de si mesma que nunca se sentiu insuportável! Este é o condão do dia ímpar. É, nessa medida, reconfortante. Por ser ímpar, uma exceção que se enxerta no vasto território onde campeiam os dias pares. Esses é que são a singularidade apreciada. O dia ímpar não se interpola, com precisão matemática, com os dias pares. Estes é que têm o presságio da pluralidade; o dia ímpar é singular, mas apenas como antónimo de plural. Por isso é que o dia ímpar acaba por ser uma reconfortante paisagem, habilitando-o como medida suportável do estado insuportável que subiu à tona. Não interessa se não deixar as horas fazerem seu percurso no dia que as habilitou. O sono será a esperança que levita o suplício do dia ímpar, sepultado no refúgio de sonhos não malsãos. É esta a utilidade do dia ímpar: se todos fossem dias pares, sem haver a degustação do aziúme a que vem acorrentado o dia ímpar, o deleite dos dias pares dissolvia-se na letargia rotineira. 

3.1.19

Pacto de agressão (lamber as feridas) (short stories #87)


Tim Bernardes, “Recomeçar”, in https://www.youtube.com/watch?v=mfRj60-MpRU
          Nos termos do acordado, os contratantes farão os seus melhores os esforços para arremessarem o gládio aos demais, num feixe de insuperável idiotia de que não dão conta. Nos termos do acordado, os contratantes farão de suas bélicas demandas o leito nupcial onde terão a mais alta decadência. Insultar-se-ão em prosa rimada. Não perderão o ensejo de esbofetear o outro à primeira oportunidade e, de preferência, com dolo indisfarçável. Perderão a paciência ao menor sibilar do vento, não decantando as sílabas entoadas pelo vento ouvido. Congeminarão os ardis agressivos como proposta de defesa – sem intuírem que a predisposição para a agressão não precata a dissuasão. Depois, em função do estatuído, os contratantes cuidarão de lamber as feridas abertas. Cada um será penhor das cicatrizes fundas, das cicatrizes que teimam em ser feridas abertas à medida que os termos do acordado forem um labirinto contido em múltiplos labirintos, com a metódica desconfiança a medrar no púlpito de uma rosa enegrecida. As limalhas das engrenagens gastas serão o nutriente pútrido que sobrará entre a devastação que é paisagem dominante, depostas sobre a pele condoída. Lamber as feridas, nestes preparos, é uma dor excruciante que se sobrepõe à dor excruciante acendida pelas feridas abertas. E, mesmo sabendo dos despreparos em costura, as partes contratantes soerguem, em companhia de solene traje, a cicuta que arregimentam ao formalizarem o contratado. Não lhes interessa mais nada: convencidas que os termos do acordado servem o mais elevado fito (o salvo-conduto da identidade e a inexpugnável malha que a entretece), os contratantes firmam o passaporte do desassossego contínuo. Como garantia do cimento assegurado para o respeito pelo pactuado, as escolas servem para ensinar os seres que aprendem a pensar que não se interroga o pacto de agressão: ele dever ser obedientemente seguido. Não sabem, os seres que aprendem a pensar, que estão a ser atirados para a boca do lobo e serão eles os futuros a lamber feridas.

2.1.19

Estaleiro (short stories #86)


Shame, “One Rizla” (live on Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=wkK5qTohwRc
          O cerimonial não quadra com o labirinto. Os andares a perder de vista, corredores exíguos, sobrepostos, um mosaico de cores sem cor; as paredes nuas, dando a entender que não têm limites, ou que as paredes, por indistintos limites seus, estão ausentes. Medra o estaleiro, a matéria bruta. O silêncio que se converte em idioma. E, contudo, é neste lugar que se ensaiam as ideias. É neste lugar que ocorre o tirocínio das palavras antes de elas serem ostentadas em solenes exibições, já no exterior do estaleiro. Os sintomáticos coros são o sacrifício menor que inquieta os atores: um murmúrio constante, as palavras não retidas por a elas se sobrepor o murmúrio. Passam horas a eito à procura das sílabas corretamente encadeadas, da entoação que pareça perfeita, sem haver lugar ao esquecimento. No estaleiro, antepõe-se um monástico arranjo da matéria ainda por desabotoar. Como é tudo matéria bruta, os botões estão no pesponto das casas do casaco, a ele unidos como se fossem matéria indistinta. Sabe-se que só depois de libertados os botões é possível atear a lucidez precisa para um lampejo sobre a inteligibilidade das coisas à volta. Ninguém é atirado aos leões sem lhe ser conferido o direito ao estaleiro. Manejam as armas que seja preciso terçar por quesitos de sobrevivência. As pessoas atropelam-se nos corredores mais apertados em suas loucas demandas pelo insondável. Ninguém intui maldade: é a báscula da sobrevivência que se arqueia sobre os instintos, a seiva que desconta a zero a pertença a um grupo. Vistos à distância, com uma visão do conjunto do estaleiro, os artífices são como abelhas em árdua empreitada para vingarem antes de serem retiradas do estaleiro e ficarem por sua conta. No alforge ornamentado a fazendas cruas e baratas, a sela do mundo espera-os. Espera que saibam ser artífices dentro do estaleiro para depois vingarem com sua marca indelével. Não há modo semelhante ao labiríntico estaleiro, que é a aprendizagem armada. Como se fosse a colmeia onde se adestram as abelhas antes de serem atiradas ao mundo em demanda do pólen. 

1.1.19

A sombra começa à porta de tua casa, mas no sentido da saída (Manual do sedentarismo salubre) (short stories #85)


Conan Osiris, “Adoro Bolos”, in https://www.youtube.com/watch?v=h_wnOLEx-OQ
          Aos visionários do apocalipse (e há-os para os mais variados gostos): não recusem os bondosos conselhos aos demais. Nunca será tarde para advertir os semelhantes que o fim do mundo está para vir e, em alguns casos, está marcado no calendário. Talvez sejam estas as pessoas mais bondosas de todas. Em pressagiando o decesso do mundo para breve, e sendo insistentes na divulgação da profecia, esbofeteiam o mais próximo com a fulgurante despedida do mundo. Dir-se-ia que são fantasmas que adejam sobre a nossa existência e que, de tanta insistência, povoam o horizonte de sobressalto, confundindo-se com a impaciência para com eles lidar. Quem assim lidar com os profetas do apocalipse está a cometer uma tremenda injustiça. Deviam agradecer e, de preferência, sugerir uma comenda ao presidente da república, ou encomendar umas alcavalas que sustentem as necessidades materiais de gente que presta serviço público tão inestimável. Pois não é dado a perceber, aos impacientes e aos incréus, que tomam conhecimento da data (dia e hora) em que o mundo passará a ser um imenso buraco negro? Deviam agradecer. Sabendo da proximidade do apocalipse, ser-nos-ia dado (se não fossemos ingratos e incultos) a perceber que somos devedores perante nós mesmos de todas as empreitadas que nunca foram feitas por pudor, por ausência de possibilidades materiais, ou porque considerávamos que excedia a medida do aceitável e nos podiam pespegar o rótulo de loucos. Na proximidade do decesso do mundo, tudo o resto deixa de importar, a não ser as juras feitas, os planos que vinham sendo constantemente adiados, ou mutilados, as dívidas não contraídas por sobrepeso no orçamento familiar, ou apenas as palavras nunca ditas e que tanto apetecia proclamar no meio de uma rua inundada de gente, só para perceber que a vergonha já não intimida. O fim do mundo, afinal, até pode ser um desiderato agradável. Venham, pois, as comendas e as encomendas materiais para os profetas da malquerença.