30.6.22

O negativo

Jack White, “Seven Nation Army” (live at Glastonbury 2022), in https://www.youtube.com/watch?v=3ehxW9MKRH0

Só os operadores de fotografia, quando se moviam pelo processo de revelação, tinham acesso aos negativos. O avesso das fotografias. Era como ver as pessoas do avesso, ou como elas tivessem sido vestidas ao contrário e as tonalidades invertidas mostrassem o escondido que navega na oposição do sangue. 

Era do negativo que muitos concorriam em negação. Soubessem ser íntegros na compleição do que são, teriam de arrematar o seu negativo. Teriam de saber das costuras da alma que se alinhavam no lado oculto. Teriam de partir em demanda do avesso da alma para de si saberem um pouco em acréscimo.

Uns escondem-se involuntariamente do seu negativo. Ignoram a sua existência, convencidos de serem curadores do seu nanismo. Outros são delinquentes voluntários do avesso de si mesmos, ocultando o negativo de propósito. Alguns por temerem que o negativo revele um eu embaciado pelo seu avesso, um eu que não colha a apreciação geral do avaliador. Outros, por suspeitarem que o avesso que escondido vegeta na sua penumbra possa ditar uma convulsão, um abalo telúrico para o qual não estejam preparados.

Não devíamos recusar o negativo. Devíamos tê-lo entre as mãos, pendê-lo na linha do horizonte e partir para uma observação cuidada e meticulosa. Da silhueta, das diversas tonalidades que percorrem o corpo, da alma no seu estado avesso. Devíamos, na posse do avesso, sondar as propriedades químicas do sangue, do qual apenas sabemos viajar nas veias. E devíamos tirar notas, mentalmente, para coligirmos os dados e cotejá-los contra a ideia que temos de nós mesmos. Para percebermos se o retrato do avesso diverge da imagem que temos de nós, ou se até no avesso coincidimos com a fotografia na forma positiva que tiramos na andadura do quotidiano.

Na hipótese de o negativo ser o avesso do positivo, caber-nos-ia intuir se do avesso revelado não sobram intenções para memória futura. Caber-nos-ia decidir, em harmonia com o sangue em acalmia, convocar fragmentos do negativo para os adicionar ao positivo existente. Dando cobertura a um novo retrato na sua ilharga positiva, à mercê da metamorfose operada pela incorporação de vestígios, em doses variáveis consoante as pessoas, do negativo dado em revelação.

29.6.22

Perdulário

The Fall, “Big New Prinz” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=KiDSoT5vy-I

Não sobram vestígios da vetusta contabilidade que se abraça aos majestosos troncos de árvores centenárias. Os destroços estão espalhados na gramática que se consome nas suas aflições. Há a decadência que se aquartela na cumeada de onde a paisagem se oferece em socalcos. A decadência, que é quando o que se perde fica tangível, está embebida na carne magoada. Tem as suas cicatrizes, imorredoiras.

E, todavia, o pior ensaio é olhar pelo espelho que só tem avesso. As contabilidades que arrematam as perdas são paradoxalmente pueris, a frequência da sua utilização aumenta com a idade do usuário. Só a agnosia do presente justifica que o mergulho no passado não pareça supérfluo. Costuma lobrigar arrependimentos que parecem servir para legitimar, aos olhos próprios, o acontecido que, pudesse o tempo ser restaurado, não teria lugar em tempo algum. A pior ilegitimidade encontra-se nestes desvios do tempo sem caução. Nem os arrependimentos são um restabelecimento razoável, nem se compreende porque a autojustificação do pretérito é demandada.

O que se perde não é a cicatriz do erro que é legado do passado. O que se perde é a diligência do tempo que chega às mãos. Dir-se-á, em abono do resgate do tempo pretérito, que o olhar sobre o tempo vindouro só pode ser descomprometido se o passado estiver resolvido. As suas perdas não podem ser encorajadas para a posteridade, pois esse tempo pode chegar amputado pelas consequências exorbitantes que são herdadas. 

O que é perdulário é todo esse exercício. O distanciamento do tempo pode embaciar a lucidez. A revisitação de acontecimentos já devidamente empoeirados pode acabar numa tresleitura. Todo o tempo desse modo consumido é esbanjado. Esmera-se uma função porém gratuita, que apenas dará a impressão de que o passado mal resolvido está arrumado com a intermediação do arrependimento. Sem lucidez para reconhecer que o exercício labora num equívoco do pensamento, refém do asseio do passado. Como se tivéssemos o dever da pureza. 

28.6.22

Corrosão (vidas ainda)

Dandy Warhols, “Godless”, in https://www.youtube.com/watch?v=LduipA_XUJ8

Tirando da pele as rugas tatuadas, descontando do corpo os hematomas que têm a serventia do tempo a desfavor, arrumando para o lado o olhar desfocado se nos olhos não houver os óculos assistentes, excetuando o pensamento que foi mudando, dir-se-ia tudo ser igual.

O reduto das ilusões pode reinterpretar o corpo e alma de modo que passe a ideia de que não mudaram com o tempo, que, esse sim, é que mudou as circunstâncias. Pode-se invocar uma certa suspensão de tudo que trava os relógios só implacáveis com os outros. Pode-se alinhar com a mentira de si próprio e acreditar que a indiferença do tempo é a marca registada que desmente as convenções. Imaginar nunca foi o selo da indigência.

A corrosão que se instala nas partes sensíveis do corpo não deixará de ser notada. Pode ser aplacada se o corpo e a alma não capitularem à versão irremediável da vida que fica sempre mais próxima da morte à medida que vai emoldurando os dias consecutivos. A corrosão é a prova desse tempo que se subleva contra os corpos e as almas. Uma mnemónica atempada para que o tempo não deixe de ser servido no seu lugar próprio. Pois, de outro modo, no templo onde fermentem as ilusões abonadas por engenheiros das almas e por druidas que prometem a juventude imorredoira, o aterrar do corpo na sua inata descapacidade será mais doloroso.

Não se diga que temos de nos entregar passivamente a um processo que extravasa a vontade. Seguimos pelos corredores estreitos de um tempo que de si se estreita, mas não deixamos de correr. Se a moeda válida for o valor incomensurável da vida, não será a aparição das rugas tatuadas na pele, ou os crescentes hematomas que endurecem a alma, ou o olhar turvado que conspiram contra a necessária procrastinação do tempo. E se disserem que a corrosão é o fruto do esquecimento dos deuses, oponham-se ao argumento: os deuses não sabem o que é a corrosão. A corrosão não averba a decadência.

Há sempre um módico de vontade própria que não se apaga do idioma em que se terça o tempo. Somos seus cativos e entendemos a corrosão como uma medalha de diligente comportamento, a sagração da vida que não cessa de procurar os deslimites que lhe sejam caucionados.

27.6.22

Pastelaria (sem ser Césariny)

The Smile, “Thin Thing”, in https://www.youtube.com/watch?v=J1_Cf55cS8I

Era por onde as pessoas diziam “outnumbered”. A lógica dos números, outra vez. Era na pastelaria que ouvia os turistas dizerem, com um rasgado sotaque americano, “outnumbered”. A entronização do turismo como indústria expoente tinha mudado as convenções. Havia lugares na cidade em que se ouvia falar mais idiomas estrangeiros do que português. Os mais velhos não disfarçavam o incómodo e o enfado. Ouviam falar aquelas línguas ininteligíveis e sentiam-se forasteiros. Vilipendiavam o turismo. Fugiam dos lugares que eram apresentados aos turistas como os lugares que não podiam deixar de visitar. 

O edil exultava quando lhe falavam dos turistas em barda. Sabendo que fora uma bandeira que empossou na campanha eleitoral – e desfeiteada a peste que suspendeu as pessoas durante um período – trazia a proeza à lapela. Ninguém o calava. E ai de quem ousasse criticar a massificação do turismo e uma certa desidentificação da cidade, que logo os críticos eram arrumados a um canto habitado pelos hereges. Um conselheiro perguntou ao edil se não se incomodava com a superioridade de número dos forasteiros. A sua carreira meteórica na política local terminou naquele dia. (A tolerância não era o forte do edil.)

Até os mais jovens e os que aceitam a cidade cosmopolita começavam a mostrar saturação. Começavam a usar a palavra “outnumbered” como linguagem de código (o edil não falava inglês). Aos poucos, uma maré sem rosto começou a cobrir as paredes da cidade com “outnumbered”. Depressa o movimento ganhou espessura, continuando mergulhado no anonimato. A mensagem passou as fronteiras e os futuros turistas começaram a procurar outros sítios. O equilíbrio de números começava a ser reposto. O desnorte apoderou-se do edil, que começou por formar uma brigada que apagava o “outnumbered” das paredes. Já não foi a tempo de travar o êxodo antes do tempo de turistas que não chegavam a sê-lo.

Um dia, ao entrar na pastelaria onde antes os idiomas estrangeiros se sobrepunham ao português, o edil perguntou ao dono como andava o negócio. Que a faturação tinha diminuído, é verdade, mas estava contente porque os locais voltaram a poder frequentar o café – respondeu o dono da pastelaria. Iracundo, o edil perguntou se não se importava de ter lucros mais baixos. O dono da pastelaria disse que não, desarmando o edil que saiu porta fora, mal-educadamente. 

Agora, as paredes da cidade já não eram presenteadas com uma palavra em inglês. Em entrevista com voz disfarçada e rosto escondido, os promotores do movimento inorgânico esclareceram que não eram contra o turismo nem fora sua intenção banir os turistas. Apenas queriam advertir para um certo sentido de proporções. Uma cidade que se adultera para receber os forasteiros deixa de ser a cidade que esteve na origem do chamamento dos turistas. E deixava de ser uma cidade que convocava os seus a saberem da sua pertença. 

Bem disso sabia o dono da pastelaria. Nos “anos de ouro do turismo” (foi assim que o edil cunhou o período), o dono da pastelaria mudou as receitas de doçaria tradicional para a adaptar aos forasteiros. Perdeu o pau e perdeu a bola.

24.6.22

Aritmética por um triz (short stories #384)

Goon, “Angelnumber 1210”, in https://www.youtube.com/watch?v=Uzu_AOa4JzY

          Sabíamos, de fonte segura, que não sabíamos de nada. Nem as contas mais simples, aquelas que nos devolviam à simplicidade de um fiorde, ou as que se antepunham ao punhal que afligia a jugular. Nas ondas amenas, o mar convidava-se a ser forasteiro – ou cicerone, não tínhamos a certeza. Se as espadas se terçassem com a diplomacia dos beligerantes, seríamos todos nados-mortos e todos os lugares seriam ermos de gente. Mas sabíamos apenas que tudo o que soubéssemos era como uma página do calendário que deixava muitas mais por desfolhar. Diziam: é um contratempo quando os planos são como pneus furados. Mas o mal é teimar-se na estultícia dos planos. Ao deixarmos de lado a contingência, aquela imponderável peça do tabuleiro que não conseguimos domar, fica o tremendo vazio contra o qual investimos em armaduras. Voltamos à aritmética. Pudesse ser a tatuagem da simplicidade e aportaríamos a um rubicão. Mas até a aritmética encerra o seu sortilégio. Contamos os números para rimarem com os objetos da contagem e não podemos garantir que a contagem não deixou de parte um ou mais objetos. Até a aritmética é complexa, como é a atenção de que somos devedores. No penhor das cicatrizes para memória futura, somos indigentes quando emolduramos o esplendor de nós mesmos, como se fosse possível sermos de uma grandeza que a nossa própria existência desmente. Parece que dedicamos o tempo a reparar os arrependimentos açambarcados, sem prevermos que os arrependimentos não são curadoria admitida a concurso. Em vez de tudo isso, se a humildade pagasse juros seríamos credores ao enjeitarmos a estatura excêntrica que amiúde embainhamos. Prevaricamos ao contemplar a estatuária que de nós mesmos deixamos em legado sem legatário. O melhor receituário é contarmos os números, um atrás do outro, vagarosamente. E contarmos com os favores da irrelevância.

23.6.22

Sem o obséquio da angústia

Andrew Bird, “Proxy War” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=nCfVslFTXUY

Eram demoradas, as noites. Povoadas pelos demónios, todos despidos de rosto. Convocava os antídotos. As esperas pareciam perenes. As luzes, desmaiadas. As palavras que protestavam contra o silêncio consumiam-se na sua sublevação. Dizia-se que até os mares dormiam, mas as pessoas não podiam ver o seu sono, que se materializava nas profundezas.

Tudo se passava como se fosse um palco a que subiam presas e predadores, sem que ninguém soubesse o seu papel. O jogo dos corpos transidos, amarrados ao medo de serem vítimas, deixava-os anestesiados. Não sabiam o que dizer, o que fazer. Erravam, circunspetos, como se tivessem sido alimentados por mantimentos fora de prazo e estivessem quase a bolçar. Tudo o que bolçassem seria o parto do mundo. Disso sabiam, sem importar o papel que iam incarnar. 

As silhuetas apareciam disformes. Se tudo fosse de acordo com o manual do otimismo, haveria palavras meãs que sairiam do vocabulário – pois é o destino dado às palavras que passaram a constituir letra morta. Na mortalha, os corpos conspiravam contra os poros que suplicavam por alívio. O mundo só lhes concedia a angústia espartilhada por diversos lugares do tempo. Por mais que intercedessem (sem saberem a quem dirigir a intercessão), os vultos agigantavam-se e tomavam parcelas maiores do palco. Eram eles os predadores, surgidos do nada, paraquedistas sem pré-aviso a embaciar a lucidez dos rostos que já não podiam ser desembaraçados.

As pessoas diziam, num lampejo de ânimo: “estamos juntos, nada nos pode sobressaltar.” E a angústia que fora véspera depressa se tornava anciã, alquebrada, ermal. Despida do seu lugar, a angústia era devolvida aos rostos dissimulados dos vultos, que tão depressa tomaram proporções exacerbadas como desapareceram, saindo de cena sem o mesmo pré-aviso com que nela apearam. 

Os rostos das pessoas ganharam vivacidade. Sorriam, descomprometidamente. Levantavam o véu dos escombros e conseguiam ver que só havia vítimas em palco. Na ausência de predadores, as presas não eram açambarcadas pela angústia. Também a angústia estava a caminho de ser proscrita, encavalitando-se na armadura a que pertencem as palavras datadas e sem serventia.

Agora, as pessoas sabiam que podiam tratar o mundo por mel.

22.6.22

Costas largas

Joy Division, “New Dawn Fades”, in https://www.youtube.com/watch?v=iHC2ozNKfYA

Era como se estivesse na Cornualha: a maré era invasiva quando estava cheia e depois o mar extinguia-se, deixando um amplo estuário de lodo, como se fosse o presságio de um tsunami. Um murmúrio ateado pelo vento compunha o frio que se depunha na pele impreparada. Por perto, umas andorinhas desenhavam uma coreografia desordenada e o olhar repunha-se no horizonte sem paradeiro. O lodo deixado em herança pela maré-baixa eram os despojos do futuro por haver.

A convocatória do futuro era intimidatória. Sabia-se que a incerteza arcava com a responsabilidade que alimentava o medo. Ninguém sabe nada do futuro e essa é a melhor garantia da igualdade (noutros domínios, mirífica). Em vez de apunhalar o passado pelas costas, sabia-se que era ao futuro que o fardo das costas largas era endossado.

A aproximação podia ser feita mudando a perspetiva: se são largas as costas do futuro, devia-se largar as costas do futuro, deixando-o ser na sua natural e irreprimível espontaneidade. As angústias a destempo não são critério válido. Limitam-se a medrar na combustão das angústias que possivelmente assentem no presente, ou que venham atreladas ao peso inamovível do passado. As diferentes texturas do tempo não deviam ser fungíveis – alguns diziam, uma e outra vez, como se pressentissem uma mnemónica como aval.

E, contudo, talvez fosse um erro atribuir ao futuro a condição de costas largas. O futuro não podia ser culpado do que ainda não aconteceu. O futuro, como conceito, não tem semântica. Voa na liberdade irrefreável do vento, à espera de um apeadeiro para a sua derradeira metamorfose. À espera de deixar de ser futuro, aprisionado pela circunstância e pelo tempo que o torna presente. Tornar o futuro pária pelo que dele haveria de ser recolhido era como dissolver o passado num lençol de desmemórias.

As costas largas do futuro são uma distante evocação das metáforas que disfarçam os ecos dolorosos que colonizam a vida. Sufragam os medos que precisam de cais seguros que os desfaçam em vultos sem beligerância. Se as noites se compõem no desalento do sono, o futuro arqueia-se no adiamento que se espera sem conflitos por dentro do sangue. 

As costas largas têm de ser encontradas algures.

21.6.22

Começa oficialmente a tortura (solstício de Verão)

Dry Cleaning, “Magic of Meghan” (live at WFUV), in https://www.youtube.com/watch?v=7Y2tMN30Zd0

Quando passarem catorze minutos das dez horas, pela craveira da meridiana manhã, o Verão depõe a Primavera. Para a maioria, instala-se a estação preferida. Dos dias longos, dos dias pelo menos mornos, mas se forem visitados pelo calor tórrido são bem-vindos na mesma; dos dias passados na praia; dos dias em que o entardecer se funde com a noite, sem se dar conta da penumbra que se instala à medida que um copo de vinho branco é degustado; dos dias em que as pessoas se despojam de roupas até ao mínimo exigido pela compostura, combinando com o desejo que se inflaciona na exata medida da inflação das temperaturas; dos dias em que as ruas convidam as pessoas para serem suas passageiras, deixando às casas um papel minimalista.  

E se à maioria assiste este desejo, aceite-se democraticamente que o Verão seja a estação predileta. Que aos dissidentes seja admitido equivalente direito de protestarem a sua dissidência. São os que convivem mal com a canícula, incomodados com a destilação dos corpos (dos próprios e dos seus semelhantes, que deixam um aroma pestilencial à sua passagem); os que sentem a respiração restringida pelo ar seco que parece extinguir a função dos pulmões; dos que lamentam os fogos florestais que são a má rima das temperaturas excessivas e do destratamento das florestas; dos que preferem o refúgio da casa para não terem de lidar com multidões que enxameiam as ruas e as praças e os concertos ao ar livre e as praias onde é precisa diligência para conquistar cada centímetro quadrado para a toalha. 

Uma minoria não combina com as preferências democraticamente sufragadas pela maioria. Em relação ao Verão, a maioria não consegue compreender as objeções levantadas pelos que pertencem à minoria e oferecem a sua dissidência à estação estival. Os da minoria são tratados como misantropos do tempo. A misantropia joga-se em dois tabuleiros: afastam-se da maioria que se enamora pelo Verão; e afastam-se das ruas, pois o Verão quadra com as multidões que não se oferecem em palcos válidos para a sua presença.

Os dissidentes do Verão não se escondem. Muito embora sejam atirados para o esconderijo onde se alojam os que (a seu ver) incompreensivelmente abjuram o Verão, não se envergonham de militar na ideia do Verão como tortura. Admitem que há modos de disfarçar a quentura, por mais que sejam a artificialidade intimada pelas engenharias. São os que consideram excessiva qualquer roupa contra a invasão térmica dos dias excruciantes de tanto calor; os que temem submergir em doses corpulentas de suor, reféns do mau odor tangível à sua presença; os que vivem mergulhados no mito da diminuição das capacidades intelectuais na medida inversa da subida de temperatura.

Às dez horas e catorze minutos começa a estação que devia ser metida entre parêntesis. Ou a estação que devia atear uma medida vertiginosa do tempo, para que o vigésimo terceiro dia de setembro se fizesse anunciar como se de uma breve noite se tivesse tratado.

20.6.22

Se a humanidade fosse extinta, ao menos resolvia-se o problema da fome (relicário de cinismo e outros dispersos enfatuados)

Dirty Three, “Sue’s Last Ride” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=NzoAwcg0gsQ

Não vale a pena sopesar dramatismos, porque esse é um mar que não traz enjoos. Um exemplo: os fanáticos da causa ambiental escolhem a humanidade como inimiga a abater (desconta-se, desta árvore de generalidades, uns quantos ramos que alojam os ativistas). A humanidade seria a pior inimiga de si mesma, num processo que podia ser sintetizado numa autofagia. Se a humanidade fosse extinta, ao menos deixar-se-ia de falar da fome como úlcera mundial. 

Evoquem-se os viciados de diversa estirpe. Eles são os primeiros a saber da sua condição. Podem não dar um passo para se amotinarem contra a dependência enquanto continuarem a ser dependentes. Estão no seu direito. Exercem a soberania da vontade. Outros, mais preocupados com o bem-estar da comunidade (e com os cofres em que navega o erário público), a meias com uma irreprimível tendência para exercem superioridade moral, mobilizam-se contra variegadas dependências que, quase sempre, esbarram com os “bons costumes”. E depois anuem que vivemos numa sociedade liberal. (Sem esquecer que a palavra “liberal”, como conceito, é dos mais vilipendiados pela confusão a que se presta e pela sua tresleitura.)

Se os lugares-tenentes das artes não fossem parciais, admitiram a concurso todas as manifestações de arte sem cuidarem de saber dos pergaminhos que o artista traz a tiracolo. Costumam ser curadores dos mais nobres valores, protestando contra o “fascismo” e outras excrescências herdadas do esquecimento da História. Mas usam uma apurada dose de seletividade. São os primeiros a negarem o que dizem defender ao marginalizarem propostas artísticas da autoria de quem não está no seu perímetro. Pela perpetuação deste código de conduta seletivo, os candidatos a artistas são forçados a habitar os armários que fornecem o devido amparo situacionista. 

Os ricos devem ser combatidos. São leais à avareza, defeito que justifica a sua abjuração. São egoístas e insensíveis aos problemas sociais que continuam as iniquidades. Combinam bem com a frivolidade. Não são dados às artes (ou só o são enquanto investimento, emprestando uma materialização a algo que devia ser imune à lógica do dinheiro). Os ricos são vigiados de perto pelos justiceiros que não se esquecem da exigência da igualdade e não sossegam enquanto a utopia (da igualdade) não for confirmada. Eles distinguem-se pela denúncia dos ricos e na exigência de maior justiça social através de um agravamento dos impostos que expropriem (com o manto da legitimidade política) uma fatia maior da riqueza dos ricos. Às duas por três, encontramos esses juízes de superioridade moral, os mecenas da igualdade, afogados em pequenos prazeres burgueses que os tornam permeáveis às suas contradições internas. 

Não é por acaso que o povo (agora redenominado, pelo mais elevado magistrado da nação, em glosa de Fernão Mendes Pinto, “arraia-miúda”) cunhou o lema “olha para o que digo, não olhes para o que eu faço”. As palavras e as ações voluntaristas são pedaços de enamoramento que não podem ser contestados pelo espólio da incoerência selada pelos factos, que devem ser meticulosamente ocultados. 

A incoerência é um direito tão nobre como o direito a ter direitos, ou ideias.

17.6.22

Longa-metragem (short stories #383)

Khruangbin, “So We Won’t Forget”, in https://www.youtube.com/watch?v=lo4KMGiy--Y

          Um vazadouro. Onde eram deixados os despojos dos dias órfãos. Alguém se lamentava que a vida é uma longa-metragem, excruciante. Protestava contra a câmara lenta que conduzia a vida. Se fossem sondáveis as sílabas desemparedadas, encontrava-se um entendimento da existência sem relação com a marcha do tempo. Ninguém parecia satisfeito. As páginas seguiam-se e não havia tempo para a poeira, que ficava suspensa nas promessas que não encontravam fundamento. Era como se fosse preciso aparar as arestas dos dias para ficarem à prova de bolor. Ao contrário das melhores notícias gastronómicas, os bolores que aderem às vidas são uma jura de decadência. Quando se agiganta o tempo no quadro de uma longa-metragem, os sobressaltos são multiplicados à dezena, parecem mais do que a conta em que são medidos. Ou são as pessoas que têm um entendimento distorcido dos acontecimentos. Ampliam os contratempos e desvalorizam o seu contrário. Entendem que os acontecimentos fortificantes, que ficam marcados para memória futura, são o produto válido da sua existência. Um mínimo denominador comum. Não servem para aprovar o orgulho. Comparados com as importunações, os acontecimentos de que se ufanam ficam à míngua. Tornam a existência uma longa-metragem que passa das marcas. Um arrastar do tempo, detonando as miragens que podiam arrecadar esgares de contentamento. Contudo, insurgem-se quando alguém é precocemente arrancado à vida. Protestam contra a insidiosa curta-metragem que cerceou a existência. Não dão conta do perpétuo desagrado com as pontas soltas que aparecem nas extremidades. Uma curta-metragem é exígua. Uma longa-metragem é excessiva. São incapazes de determinar o justo equilíbrio. Não se podem pronunciar sobre princípios gerais se nem nos seus pessoais casos são competentes para apurar a justa medida. Não reconhecem a injustiça do tempo que os rege. Por mais demorada que seja uma vida, uma longa longa-metragem pode equivaler a uma vida inteira que ficou por viver.

16.6.22

Talvez

The Cure, “A Forest” (live at Werchter Festival), in https://www.youtube.com/watch?v=SXgN-7A1MXM 

Se as pernas corressem mais do que o corpo talvez a manhã se sobrepusesse à noite. E então, os vultos seriam defenestrados à porta do tribunal, onde procuradores solícitos desavisam os medos. Tudo seria um imenso tabuleiro de possibilidades. Tudo, envolto em dúvidas persistentes, pois as possibilidades são o cimento do talvez que se adiciona às proclamações.

Os cafés estão povoados por gente em desocupação. Passam o tempo, em vez de o matarem. Talvez saibam que as expressões vulgarizadas nas bandeiras das convenções são mortíferas para o idioma. Pior, talvez sejam mortíferas para o objeto que se deseja proteger. Só uma pulsão de autofagia justifica que alguém mate o tempo, a menos que esteja cansado do tempo e o considere uma ferida cheia de cal viva. Se matassem o tempo podiam ser arregimentados por um dos maiores crimes que a humanidade pode cometer, sabendo-se do tempo como um tão escasso bem. 

Lá fora, na esplanada, as pessoas amesendam de frente para o jardim. Talvez estejam a comtemplar o bucolismo do jardim que foi premiado, em tempos. Ou talvez estejam apenas a libertar o pensamento, o olhar sem paradeiro, ocupado pelo vazio. Avisam o olhar para os encantamentos de um jardim frondoso, as suas árvores centenárias ostentando copas abundantes que repousam sobre troncos que nem os braços do atleta de maior estatura conseguem abraçar. Talvez o jardim esconda segredos agora sem memória, mas se os esconde é porque não têm de descer ao conhecimento público. Se assim fosse, era como se alguém, intendente das coisas comuns, ordenasse a banalização do tempo.

Por vezes, o entardecer parece que se demora. É porque a companhia, na esplanada, alcança o privilégio de demorar o tempo. Há pessoas que conseguem imortalizar um fragmento do tempo. Talvez uma palavra adorne as emoções, como emulsionante de uma quimera em preparação. Os corpos nem dão conta que a noite já passou, anestesiados pelo torpor que deles toma conta. Talvez o tempo seja apenas uma ficção, em vez de uma fruição. E nós, por ele domados, em seu território sitiados, deixamos passar os instantes que somados o perfazem sem sabermos ser todo o potencial prometido que em nós se constitui.

Não há nenhuma circunstância que deixa a diligência das hipóteses à mercê da corrosão. Não se hasteiem certezas, por mais que se enquistem nas convicções. Um sinal persuasivo depressa se transforma em ponto de interrogação, somando um zero à certeza assim liquescida.

Andamos, de talvez em talvez, rejeitando sofismas, levantando os sucessivos pisos da indiferença.

15.6.22

O génio isento de médicos

Orelha Negra, “M.I.R.I.A.M.” (ao vivo na Antena 3), in https://www.youtube.com/watch?v=qezimr3dKAU

Era uma almotolia enferrujada. Parecia um objeto vocacionado para o esquecimento, despojado entre a quinquilharia que sobeja do inútil medrar da iniciativa dos Homens. Teria sido, em tempos distantes, depósito de azeite. Na extremidade por onde escorria o azeite notava-se uma pústula encardida de gordura enfezada. Se houvesse algum líquido no interior da almotolia, seria impedido de sair pelo periscópio obstruído.

Numa noite de Inverno, um génio emancipou-se da almotolia. Afinal, não era azeite que preenchia o interior selado da almotolia. O génio isentou-se das algemas da almotolia. Como era possível que uma figura daquela estatura estivesse contida num objeto tão exíguo? Percebia-se. O génio tem diversas faculdades que não estão ao alcance do comum dos mortais. Era como um faquir que tornou o corpo compacto para poder hibernar anos a fio dentro de uma pequena almotolia. Ou como um mágico que desafiava as leis da física.

Não se percebia, nos primeiros instantes, se o génio era de boa cepa ou se vinha ao mundo dos mortais para espalhar o contrário da bondade. De início, o génio não estava interessado nas contingências do mundo a que passara a pertencer. Considerava-o enfadonho – muito embora não se distinguisse maior animação no longo tempo em que esteve hibernado dentro da almotolia. Andava o génio na sua vidinha mundana – talvez aprendente das primeiras observações do novo mundo em que aterrou – quando foi interpelado por um médico oficial. Queria, o perito, fazer uma avaliação do estado de saúde do génio. O génio, que fora encontrado nos preparos de disfarce de um simples mortal, estranhou a demanda. Os génios não têm maleitas. Os seus corpos são imateriais.

(E assim se tornou claro que os génios precedentes, entretanto encomendados ao inventário dos mortos, não eram génios.)

Depois de fugir do médico, com uma estratégia de diversão digna dos melhores espiões, o génio convenceu-se que tinha de ser prudente. Não podia correr o risco de ser descoberto (ainda era requisitado por um governo para tornar a respetiva política acima de qualquer crítica, contribuindo para a sua eternização no poder e para a negação da democracia). O génio queria estar isento de médicos e das exigências (e dos direitos também) da cidadania. Era o mínimo que se podia pedir a alguém que foi gerado, e espontaneamente, nos confins do azeite.

Se se soubesse deste segredo, os que popularizaram o azeite como epitome da inestética teriam de rever os seus quadros mentais.

14.6.22

A chuva que ornamenta a pele

Kate Bush, “Hounds of Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=VerK4zwMRQw

Não postergues o Sísifo que se lança contra a imorredoira insensatez da sua empreitada. Saberás, a meio do dilúvio esperado, que a pele destatuada não é o melhor campo de flores. Saberás, com a demora que for necessária, que o aprovisionamento da alma não é trespassado por doses maciças de rigidez. 

Fala-se do dilúvio. Ele foi avisado pelos peritos. São esperadas as habituais contrariedades. As pessoas previdentes, alardeando a prevenção que usam como critério, arrumam os pertences e constroem diques com o que podem. Os diques deviam ser perpétuos. Mesmo que a chuva copiosa não esteja nos pressentimentos, os diques travam a estouvada safra de outros contratempos. A chuva nem é um deles, por abundante que se anuncie: gostas de entregar o corpo à chuva, de o sentir colonizado pela água que com ele se caldeia.

Se usasses uma tela que apanhasse os movimentos em câmara lenta, demorar-te-ias na apreciação das gotas de chuva despenhadas contra o rosto, como depois escorriam pelo rosto por escanhoar, amalgamando-se com a barba avulsa. Se tirasses os agasalhos, o espelho seria a reverberação de todas essas gotas de chuva sedimentadas no molhado da tua nudez. Saberias que a nudez não é etimologia da vergonha: a pele averbada pela chuva seria radiosa, como se um artesão dela cuidasse como sua filigrana.

Se a câmara lenta fosse o armário do tempo, não saberias quando substituir o molhado da chuva em teu corpo pelo conforto da pele enxuta. Ficarias a contemplar os fragmentos aumentados da pele tatuada pela chuva que a transformou numa tela admirável. Pela primeira vez, serias o teu próprio narcísico. Ou talvez estivesses apenas a deixar que um Sísifo em forma de metáfora te adiasse para o resto das demandas. E tu, inebriado, à conta de violinos intempestivos, espelho do teu próprio espelho – tu, a matéria desnobre revelada em camadas lineares onde perdem validade os despojos inventariados.

13.6.22

Sentido único (ou: sentido estatístico)

Dinosaur Jr., “Feel the Pain”, in https://www.youtube.com/watch?v=JXkN3nJyWEA

Uma banda de veteranos toca num concerto. Já tinham estado na cidade há nove anos e há seis anos. Nessas alturas, perguntei-me se seria a última vez que os via ao vivo. São veteranos. Perdem a chama, esgota-se a criatividade, deixam de ter energia para continuarem a dar concertos. Um depois do outro, provam na carne a teoria da efemeridade da vida, estilhaçando a banda. 

Não se confirmou há nove anos. Três anos depois estavam de volta, um pouco mais veteranos, mas ainda com nervo. Não se confirmou seis anos depois. Outra vez um pouco mais veteranos e quase sem se notar a diferença de força e de empenho. Voltei a perguntar se seria a última vez. Eles são veteranos e se são veteranos, como estamos, eles e eu, na mesma órbita etária, também serei veterano.

Não consigo evitar o lugar-comum da introspeção: o tempo varre-nos, irredutível, e com ele dissolvem-se capacidades. Será mais difícil um músico perder capacidades do que um melómano que continua a ter predileção por concertos? Não há regras estabelecidas. Exige-se mais energia aos músicos que sobem a palco. Até se pode especular (é voz corrente no meio) que os músicos envelhecem mais depressa por serem um legado vivo de uma vida de excessos. A outra incógnita é sobre o estado do espetador. Não se formalizem princípios gerais.

Saltei no futuro. Como se, numa viagem a um lugar distante de casa, a uns anos do tempo presente, descobrisse que a banda um pouco mais veterana ainda estava na agenda cultural da cidade para o dia seguinte. Sem hesitar, procurei bilhetes para o concerto. Encontrei-os. No dia seguinte, cuidaria de desmentir a profecia a destempo, quando vi ao vivo a veterana banda pela terceira vez. Haveria uma quarta vez e não sabia, no dia do terceiro concerto, que o tempo se haveria de adiar até os músicos veteranos ou eu (ou todos nós) nos extinguirmos do inventário dos viventes.

Neste breve salto no futuro, pude de lá trazer a imagem límpida do tempo sempre contingente. Da contingência tentacular, que se pode jogar contra nós ou ser nossa aliada. Nessa ascensional divagação fora do tempo, percebi que não devemos ser reféns da tirania das conclusões precipitadas.

10.6.22

A dívida sem credor

Andrew Bird, “Make a Picture”, in https://www.youtube.com/watch?v=4XdqCjtveTw

A fachada decadente esconde outros encantos. As pessoas passam pela fachada assim gasta e não consideram o edifício. É um segredo bem guardado. Só um punhado – os mais perseverantes e os que esbarraram num acaso – conhece o interior do edifício e as relíquias que ele conserva.

Às vezes, a insolvência é apenas um disfarce para a posição bem estabelecida. Escondem-se, para não serem incomodados com a convocatória da indulgência a favor de terceiros. Admitem, em segredo, a avareza e a imprestabilidade para serem mecenas. Para não serem açoutados em público, exibem uma modesta forma de vida quase como se estiverem subordinados a um voto de monástica contenção do consumo. São indigentes por critério, maltrapilhos por oportunismo. E às vezes, há quem transborde das capacidades materiais para exibir um modo de vida sumptuoso, todos os luxos pagos com dívida que é encomendada para pagar dívida que vem de trás. 

Entre o muito querer esconder e a abastança mitómana, sobra um manto de indiferença. É pelos extremos que a observação se conduz, por mais que a maioria em silêncio que se dedica a observar os extremos seja uma maioria e não se encontre equidistante dos polos. Os que se anexam à maioria não escondem o arrebatamento pelos que se simulam eus que não são em concursos de bem-falantes sedutores, preparados para dar uma resposta qualquer às demandas. Não conseguem resistir ao apelo do meio social ou à convocatória do dinheiro (todavia, escondido mal consegue ver a luz do dia). Querem ser aspirantes a aspirantes de gente bem-sucedida. Mesmo sabendo do estatuto a que aspiram ser uma mentira por dentro de outra mentira.

É neste sonho contínuo que se fabrica a argamassa do grupo. A pertença não se subleva. Nem perante os avaros que escondem fortunas e procuram disfarçar a exuberância, num disfarce colocado por dentro de um disfarce como modo de garantir o anonimato; nem ao testemunhar a vida radiosa e frívola dos que empurram com a barriga o futuro para um futuro ainda mais distante. Não escondem que dariam o que não têm para serem devedores de uma dívida sem credor (ou, pelo menos, assim fazerem de conta).

9.6.22

Decénio

No Words Left, “You Before Me”, in https://www.youtube.com/watch?v=WwbA60x6da8

Fala-se de expropriação. É preciso reinventar o significado. Expropriação de toda uma massa corporal, de uma alma inteira, não é a usurpação da vontade do expropriado. Pois ele está capaz de soltar fogo de artifício como ato celebratório. É nestes termos que se coloca a demanda. Uma vontade feita à medida da vontade outra, com o obséquio da reciprocidade. 

Multiplicamos duas vidas por um algarismo que se parece com um oito deitado. Na fusão operada, somos sangue próprio com os nossos nomes nele tatuados. Somos corpos preenchidos pelo sangue que traz a identidade do outro. Como se cada um de nós, virado do avesso pela exposição benéfica à alma do outro, soubesse de metáforas que eram dantes desconhecidas. Sabemos fazer as estradas que acolheram o que quisemos ser. Atualizámos os dedos diligentes na geografia atravessada pelos nossos nomes. Arrancámos às raízes os contratempos e somos ufanos do nosso desembaraço. 

Com o salitre das mãos vertemos as sementes que fruíram numa vasta planície cheia de flores, onde se traduz o poema vivo, o poema contínuo, em permanente atualização. Todos os dias, no que fazemos nosso solar calendário. Este é o nosso atlas, os nossos nomes não escondidos. Não somos reféns das cicatrizes. Há uma fortaleza que habitamos no sortilégio dos luares de que somos tutores. 

Da palavra fazemos contrato. E a palavra assim avivada é a aspiração máxima que atravessa as nossas fungíveis almas. Pedes-me dança e eu, desajeitadamente, danço. Pedes-me alma e sei que ela foi expropriada porque a tua foi a mim expropriada. Dir-se-ia, sem o rancor do destempero, que virámos as almas do avesso para serem vestidas pelo outro. Até os silêncios são uma gramática vívida, pois nos silêncios sabemos dar corpo às palavras de que eles são biombos. Vestimos as silhuetas do mundo a que deitámos mão. Desses lugares levamos mais um pouco de nós para memória futura, também o cimento que se ordena nos esteios em que fundeámos.

Três mil seiscentos e cinquenta e dois dias ensinaram a ser um eu que não sabia existir, com a aquiescência do que soubeste revelar desse eu. Estes são os nossos olhares, sem peias. Os corpos que se deitam num amplexo e se alimentam reciprocamente. O idioma do desejo. O labirinto de que somos mecenas. Desinventariámos os medos. Ultrapassámos a noite com o pressentimento da manhã aurida. Fizemo-nos reis ou imperadores ou emires de um domínio de que somos únicos suseranos – os únicos a saberem do seu paradeiro.

Fizemos o tempo, com a ajuda dos miados que o cinzelam, sem critério. Pois as regras a que nos sujeitamos são as desregras que fruem das árvores primaveris que precedem o olhar. Ambicionámos o querer imorredoiro. Um amor destes não se mede através do tempo.

8.6.22

Sem freios (roda livre)

Viagra Boys, “Punk Rock Loser”, in https://www.youtube.com/watch?v=QEfDazTZSPQ

Não dissessem que era fácil andar de bicicleta sem mãos. Dissessem, outrossim, que dar com o corpo desamparado no chão faz sentir dores excruciantes. Não dissessem que a liberdade se investe no engodo de quem atravessa a cidade sem freios. Não dissessem; que no fim da cidade, existe um precipício.

A prudência – uma enfermidade da sociedade convencionada – é verbo primacial no dicionário dos comportamentos. Não cometamos a loucura de trovejar a fala desembaraçada, que a ausência de contrapesos pode levar a que digamos o que não queríamos dizer. Obrigando-nos a arpoar um perdão ou a encher o peito de ar para pegar de frente as consequências desastrosas da língua desenfreada.

Pelo contrário: a prudência pode matar a efusão onde se torna genuína a ebulição de nós mesmos. Atravessamos a cidade e reparamos que não temos freios. Sabemos que a cidade encerra uma pendente no fim, onde se encontra com o rio cavado. Sabemos que a velocidade não abranda. E não fazemos nada para travar a marcha da bicicleta. Para piorar, tiramos a mão do guiador. Esperamos pelo desfecho. Esperamos pelo precipício. Para melhorar.

O enamoramento pelo previsível é um ardil. É uma compensação interior que ultrapassa os medos que esbarram no peito sempre que o desconhecido reclama uma posição no cortejo de cartas. Alguém desconfia que boicotaram a bicicleta, tiraram-lhe os travões. E quem monta numa bicicleta sem apurar se os travões funcionam? 

A partir da roda livre, não há lugar ao medo. O medo foi derrotado quando subimos para a bicicleta e nos fizemos à pendente que termina com o pátio térreo sobranceiro ao rio cavado. Devemos às ruas o tapete que aformoseia uma certa loucura inebriante. Dizemos, sem falar, “seja o que deus quiser” (num raro momento de invocação divina, em completo paradoxo interior). A pendente torna-se mais inclinada à medida que a silhueta do rio se agiganta no olhar. Já não sabemos a que velocidade circulamos. Talvez circulemos à velocidade estonteante da nossa rebeldia.

Amanhã saberemos quantas cicatrizes sobram para contar a história aos netos que houver.

7.6.22

O verdadeiro homem de esquerda só gosta de peões quando joga xadrez

Little Simz, “Woman”, in https://www.youtube.com/watch?v=zHGf6tmnLYE

As frases ambíguas são um polímero de mal-entendidos. Na possível pluralidade de interpretações, podem sitiar quem as pronuncia contra a parede das execuções sumárias (sobretudo se forem correligionários a abjurá-las). 

Quando um homem ou uma mulher de esquerda esbraceja a favor da sua progressista condição, afirmando só gostar de peões quando joga xadrez, quem o treslê pode entender que fora do xadrez não traz os peões à lapela das preferências. E, todavia, o esquerdista apenas terá querido afirmar, na lógica intrínseca da luta de classes que continua a ser a sua candeia, que das peças do xadrez as únicas de que gosta são os peões. A militante esquerdista distancia-se da sumptuosidade do rei e da rainha (é geneticamente contra a monarquia), vitupera o bispo (o ateísmo incondicional recusa privilégios ao clero), e não morre de amores pela torre e pelo cavalo (no primeiro caso, porque é uma construção com laivos aristocráticos e, no segundo, porque a coudelaria tresanda a marialvismo atávico).

O militante de esquerda não pode ignorar o jogo de xadrez. Muitos dos mestres que contribuíram para a evolução do xadrez eram soviéticos. Formaram um escol que, nos tempos nada áureos da guerra fria, serviu de instrumento de confrontação e de exibição da superioridade do “socialismo científico”. Um imaginário que ainda continua a provocar saudades em muitas pessoas.

Estes diligentes adeptos das esquerdas deviam reivindicar uma mudança das regras. Pois os peões são reduzidos à condição que os vulgarizou, subalternos perante a maior latitude de movimentos permitida às demais peças do xadrez. O que levará a militante de esquerda a resgatar a lógica da luta de classes. É inaceitável que os peões não tenham a mesma perimetria de movimentos. Em homenagem à igualdade – pois as esquerdas arrogam-se ao papel de guardiãs da igualdade, e convém não perder de vista esta mnemónica –, os peões não deviam ter as grilhetas que condicionam os seus movimentos. O xadrez é um jogo aristocrático e permeável à sua qualificação como instrumento fascizante. Perpetua as desigualdades que emprestam lastro à existência das esquerdas. Afinal, é do interesse das esquerdas que o xadrez conserve as suas regras. 

O que não se pode admitir é a tresleitura das palavras do militante de esquerda. Ele existe para zelar os interesses dos peões em todas as circunstâncias da vida, pois os peões são os desprotegidos que carecem de proteção. Dele não se entenda que fora do xadrez não acautela os direitos adquiridos, e por adquirir, dos peões.

6.6.22

Os países também mudam de nome

James Blake, “Retrograde” (live on Letterman), in https://www.youtube.com/watch?v=yAEkGbGiv7I

Há aquele arroubo de conservadorismo quando a tendência estrutural para o estabelecido é desafiada porque houve países que mudaram de nome. Mesmo entre os que não se têm em conta de conservadores. Pois estamos habituados a que o nome de um país seja o nome que vem de trás, dos bancos da escola, e os novos tempos apresentam a vontade desse país ser tratado por um novo nome. Mexe com os alicerces estabelecidos, mesmo para os que têm menos propensão para o conservadorismo.

A reação instintiva é olharmos para o rebatismo do país com incómodo. É uma maçada, termos de refazer os quadros mentais (como se fosse esse o caso) para nos habituarmos a chamar o país pelo seu novo nome. Invetivamos mentalmente os líderes do país que decidiram apresentar-se ao mundo sob um novo nome – há tanto tempo que tratávamos o país pelo nome que aprendemos na escola e agora temos de mudar de hábitos. Raramente queremos saber o que levou o país a mudar de nome. O que diz muito do nosso (infundamentado) incómodo.

A Holanda já não é Holanda. Agora vamos aos Países Baixos e os seus nacionais são neerlandeses. A República Checa já não é a República Checa. Agora vamos à Chéquia, mas os seus nacionais continuam a ser checos. A Turquia, parecendo enredar-se num mero capricho para levantar a cancela à entrada da Suécia e da Finlândia na NATO, exige ser tratada por Türkyie. Alguns destes países levam a mal se os continuarmos a tratá-los pelos nomes desatualizados. E, outra vez instintivamente, reagimos com desconforto; a birra do país rebatizado traduz-se numa imposição sobre a nossa vontade. Mas, no fundo, somos nós, afinal tão reféns do conservadorismo que muitos recusam, que viramos do avesso a reação e não queremos sair do casulo em que vivemos acantonados.

Pois os países também mudam de nome e têm todo o direito a fazê-lo. Nós, que não temos a cidadania desses países, temos de nos libertar das amarras do ensimesmamento e recolher informação para saber o que motivou a alteração do nome do país. Ou, se não quisermos ter esse trabalho, devemos abdicar do etnocentrismo pessoal para reconhecer a legitimidade de um país mudar de nome. Se as pessoas o podem fazer e ninguém contesta, porque havemos de ser renitentes em admitir que um país possa pedir que o chamem por um nome diferente daquele a que estávamos habituados.

3.6.22

Epitáfio de um homem absolutamente mortal

Sean Riley and the Legendary Tigerman, “Good Kids” (ao vivo na Antena 3), in https://www.youtube.com/watch?v=M4cYaZCutms

(Como sabia que não tinha o dom da palavra para escrever o epitáfio, pediu ao seu alter ego para o fazer. Além disso, um auto epitáfio é um narcisismo abjeto.)

Os epitáfios são das empreitadas mais inúteis que a vida pode conhecer. A frase antecedente é irrisória: um epitáfio dispõe sobre um falecido para os que dele tiveram conhecimento e o homenageiam no cortejo fúnebre antes de o féretro descer às profundezas da terra. Dir-se-ia, para melhor retratar o sentimento, que o epitáfio é das empreitadas mais inúteis que a morte pode conhecer. O que exige outra, e imediata, retificação: a morte não tem o dom de conhecer coisa alguma. 

Ultrapassadas as estéreis considerações sobre a metalinguagem do epitáfio, mãos à obra ao seu conteúdo depois de apalavrada a vida em rescaldo daquele que entrou no panteão a que pertencem todos os mortos (pois é refrão da igualdade admitir que é na morte que ela – igualdade – se sintetiza na sua pureza).

Não há motivos que sobejem para demorar um epitáfio sobre a morte deste homem. Foi passando entre os pingos da chuva, de ardil em ardil, esforçando-se por não se esforçar grande coisa, adepto confesso da preguiça compulsiva. Dele se disse em tempos que foi um homem que passou ao lado de uma certa visibilidade, todavia impedida pelo triunfo loquaz da preguiça que o colonizou e pelos poucos hábitos de higiene. A sua palavra preferida sempre foi procrastinação. Ficava adoentado só de desconfiar que podia o seu rosto, ou o seu nome, subir à praça pública. Seria como descer ao purgatório.

Não foi pródigo em generosidade. Com os que conviveram no seu arco de vida, amigos e amantes, e até os entes queridos de quem se foi desligando à medida que a idade deitava folhas do calendário pela borda fora. Não foi generoso como os carenciados de diversa igualha, entre os que manifestavam carências emocionais aos pedintes de rua ou nos supermercados. Desconfiava que a repulsa pela generosidade se estribava no princípio geral de desconfiança que o movia entre os dias sucessivos. Estava sempre a desconfiar que alguém conspirava para o ludibriar. A desconfiança metódica foi o esteio do seu atraso estrutural, da muita estrada que ficou por ser feita, do nanismo intelectual.

Andou por diferentes versões subterrâneas do mundo. Das companhias, quase sempre pouco recomendáveis à luz das melhores convenções – mas ele sempre bolçou em cima das convenções; das ideias e dos movimentos e das modas, ou melhor, no seio das antíteses dos modismos do momento, autêntico sacerdote das desmodas; das substâncias proibidas por lei, apenas porque eram proibidas por lei; da promiscuidade, para poder ser inventariado no mapa das pessoas a evitar sob pena de os costumes serem ofendidos (o que, todavia, trouxe ao seu perímetro muitos entre iguais).

Passou pela vida. Ou a vida passou por ele, como gostava de glosar, com todas as sílabas meticulosamente contadas. Dele não houve uma palavra a rimar com arrependimento. Nem um módico de angústia pelo que podia ter sido feito se não tivesse escolhido o que fez. Foi um homem absolutamente normal, anónimo no meio do anonimato. Saiu da vida exultante por saber que foi anónimo no meio do anonimato. E mortal, a comprová-lo este epitáfio.

2.6.22

E deus criou o espião

The Strokes, Eddie Vedder and Josh Homme, “Mercy Mercy Me”, in https://www.youtube.com/watch?v=kBS5tUrVYi0

Primeiro, em forma de homem. Porque o Homem, o espiado, está repleto de fragilidades e a estrutura que o Homem inventou para se domesticar (muito provavelmente sob supervisão oculta da entidade divina) precisava de meios para refrear os instintos selvagens que nunca deixaram de trespassar a humanidade. O Homem deve ser conduzido pelos bons caminhos e deus convenceu-se que devia assistir o Estado nesta incumbência terrena. 

O espetáculo não é recomendável. Gente a espiar gente em nome dos negócios do Estado e da sacrossanta soberania, que sempre que os interesses nacionais são esgrimidos é como esbarrar num dogma – e os dogmas não se interrogam, nem sequer deles se admitem dúvidas a concurso (como bem sabem os crentes das religiões). Deus criou o espião para dar conta das fraquezas do Homem e para as corrigir, por meios persuasivos se eles forem precisos. Ainda não se sabe se os espiões espiam sob tutela de deus. Os poucos que lograram a interrogação não obtiveram resposta à demanda.

Deus sancionou um comportamento que os manuais reprovam:  não espiolharás a vida alheia – se não é mandamento divino, anda lá perto. Admite-se exceção se for em favor dos interesses da nação, mesmo que a sua invocação não venha adicionada de fundamentação, que noutras circunstâncias seria pressuposto de legitimação. Deus conspira a favor do Estado. Ao inventar o espião e ao permitir que ele espie sem que o comum dos mortais dê conta que está na presença de um espião, deus está ao serviço do Estado.

Depois, não satisfeito, deus inventou o espião em forma de algoritmo. E a espionagem espalhou-se a tudo o que mexe, ficando o princípio geral da intrusão, de que ninguém pode dizer que escapa, vertido em regra de ouro. A espionagem desmaterializou-se e avivou-se de tal forma que entrou no quotidiano, na nossa ossatura. Com o beneplácito do tempo e da habituação forçada das pessoas, o sentido da palavra “espionagem” vulgarizou-se. Em cada dia que passa, quase ninguém sabe que foi espiado, quando foi espiado, no que foi espiado e para que propósitos poderá ser usado o pecúlio da espionagem sobre si feita. E de que matéria é feita os espiões que compilam o que sobre nós foi arrancado ao segredo.

Estejam sossegados, gentios, que vos deixo uma nota de otimismo. De deus não há notícias da sua identidade. Desinquietem-se, pois. Com a mesma probabilidade da inexistência de deus, daremos conta da improbabilidade de um exército de espiões, assim incarnados ou em forma de algoritmos, sobre nós a exercer meticulosa atividade intrusiva. 

(A menos que os espiões existam e não tenham sido inventados por deus.)

1.6.22

Atalho

Moderat, “A New Error”, in https://www.youtube.com/watch?v=JWnX41TBFF4

Os furões, com a mania de serem antes dos demais, esfacelam os caminhos habituais. Estão convencidos que existe um atalho que lhes dará vantagem. Começam a indagação. Nada se faz sem esforço. Nada se alcança sem sentido – e o sentido arremata-se com os planos sortidos na diligência do estirador. 

Os atalhos não fazem parte da cartografia. São buracos negros, não pertencem sequer à geografia. Mas os furões são tão espertos que intuem a existência de atalhos. Se for preciso, serão eles os arquitetos e depois os engenheiros dos atalhos necessários. Como não fazem parceria com os geógrafos, os atalhos não são inventariados na cartografia.

Os atalhos são uma epístola das coisas que não são visíveis ao olhar comum por serem subterrâneas. Entrecruzam-se, por ser numerosa a casta de furões que, não contentes com a prestabilidade da igualdade (sempre tão democrática), espreitam pelo periscópio para seu ser o olhar mais empolado. Não guardam fatura nem declaram os proventos. São tantas as vantagens que os próprios furões ficam perplexos por serem uma casta que podia arregimentar uma pertença mais numerosa. É tudo tão fácil, os atalhos mesmo à mão de semear, e um contingente abundante não mexe um dedo para esgaivar o seu próprio atalho. 

Elegantes análises sociológicas dividir-se-iam sobre o diagnóstico: uns argumentariam com a preguiça indelével dos que podiam ser furões, outros, não tão céticos, diriam que os que recusam engrossar o exército dos furões têm um sentido íntegro de cidadania. As divergências entre o escol são irrelevantes para os furões. Notam, contudo, um efeito de contágio. Os furões potenciais, quando distinguem as vantagens que lhes podem calhar no alforge, não querem ficar para trás. Os lorpas é que ficam para trás, a léguas das regalias de quem lança um atalho ao atapetado em que todos somos peões.

Os atalhos pertencem a uma cidade subterrânea, onde se movem os que avançam na iniciativa de serem peças à margem dos cânones. Movem-se, libertinos, atrás da cortina baça que os esconde dos demais. Não se importam que os diligentes cumpridores dos cânones sejam prejudicados. Para ser furão não é preciso conhecimentos acima da média nem portas especialmente abertas. Está ao alcance do comum dos mortais. Eles, furões, são os lídimos descolonizadores da autoridade. E dizem, seguros da superioridade moral que se confunde com pura indigência: só não é furão quem não quer – não há nada mais democrático.