30.9.09

Acreditadores



Garantes: acreditamos sempre em algo. Mesmo quando queremos provocar os outros com uma tempestade agnóstica. Pois até o agnosticismo é crença. Em nada; mas crença em algo que é um nada qualquer. Disso não posso fugir – dizes, em pose desafiante. Logo eu – insistes – que arrebato todo o orgulho quando garanto nada acreditar.

A lição contínua que escuto: as pessoas são entidades que mergulham na imensidão da sua pequenez quando mostram uma crença. Ou num deus (o mais óbvio), ou fora da metafísica. Naquelas coisas que – prossegues – com desdém alimentam a minha sátira. Acusas: que o deserto em que habito é uma ofensa para os que querem acreditar num algo qualquer. Ofendo-os quando não me fico pela exibição de agnosticismo com que julgo maçar os acreditadores, ao embelezar a sátira com palavras corrosivas.

Confrontado com o libelo acusatório, vacilo. Uma hesitação que me consome, nas dúvidas que pesam como um jogo de sombras negras que insinuam aterradores fantasmas à espera de rasgar a coerência que de mim reclamo. Como se fossem carrascos só à espera de uma distracção, da cabeça a arquear-se no tronco derrotada por um sono fatal. Nunca julguei – contrapões – que do lado de fora me vissem diferente daquele que interiorizei ser; e como é de fora que as imagens se desnudam na sua nitidez, cultivo um eu desfocado – é a tua instigação, em jeito de provocação.

Não sei se me dás a provar do veneno que costumo cuspir quando dizes que sirvo as palavras corrosivas em bandeja enferrujada. Não me diminui se vacilar diante do que julgara serem certezas (quando há um vestígio de certeza a espreitar pela janela entreaberta). É a minha vez: serve-te à vontade do gourmet da retórica, desfaz-se em elaborados raciocínios que conduzem ao lugar onde queres que eu chegue, um lugar onde seria a negação do eu que em mim projectei. Insiste por aí, na irrelevância das ilações que julgas serem em mim um devastador abalo telúrico. As coisas que escolheram povoar o pensamento são como são. Concordo: as relativas, muito relativas verdades, são o sumo da negação do que nos aparece como evidência. Ou então uma dolorosa lição que se sobrepõe a todas as outras: as verdades não passam de um disfarce que nos entretém enquanto o mundo inteiro passa por baixo e por cima da nossa existência.

Se fosse pela heurística que escolheste, se alinhasse nessa urgência de derreter a espessura do eu que julguei ser, não custaria a admitir que em nada acreditar é uma crença. Não religiosa, por certo. Mas caoticamente metódica, a sistemática busca da rejeição de tudo o que fosse dado como certo. Podes dizê-lo: uma absurda negação de tudo o que ganha espessura; como se essa espessura fosse o esgoto por onde se esvai a simetria das coisas possuídas pela sua nitidez, já então apenas vestígios desprovidos de utilidade. Aceito o teu perplexo diagnóstico: um permanente estado de insatisfação, a angústia perene que, de tão poderosa, já nem em dor se consome.

Teimas. Não desistes de me convencer a entender as coisas do mundo por outro ângulo. Pois há-de haver uma crença, uma qualquer, metafísica ou não, uma que seja muito ou nada esotérica; mas há-de haver uma coisa em que acredite para além da acidez de um nada que me deixa exangue. Se quase todos somos acreditadores num algo que seja, já me foi dado a perceber o desengano em que macero na teimosia dos sentidos maltratados mercê da metódica anemia em que habito?

Sabes? Sossega-me o ensimesmar das mágoas que de mim sou feitor. Replico: eu tento, juro que tento. Não são poucas as vezes que em mim levita o cansaço da negação de tudo. E arremeto pelas veredas diferentes que podem alcançar outras respostas. Nelas só vejo um nevoeiro denso que me leva a tactear, às cegas, as pedras pontiagudas que já deixaram os pés sangrados. Da experiência não trago ânimo. Só um espasmo demorado, como se fosse um lancil dobrado e a seguir o corpo caísse no imenso vazio.

Lá ao fundo do precipício, achei-me no lugar de onde saíra. A contemplar, com uma inveja sadia mas perturbante, optimista procissão de acreditadores de variada espécie. Na senda da candeia, nem que seja uma imaginária candeia, que perseguem.

29.9.09

Escravatura no Douro?



Não há vez que vá ao Alto Douro sem que de lá saia encantado. Com uma paisagem que é uma lição para os sentidos, como se os sentidos reaprendessem diante da grandeza da paisagem moldada. Arrebatado com o que essa paisagem significa: os degraus esculpidos em terreno agreste, para que da transformação humana germinasse uma vinha abundante a enfeitar os montes domesticados. Os socalcos dispostos, com uma aritmética impressionante, são o testemunho da audácia da mão humana que dobrou a árdua resistência dos granitos encavalitados monte acima. Se há alturas em que sinto orgulho da espécie humana é quando aprecio, demoradamente, os montes que deixaram de ser bravios para acolheram a harmonia da vinha frondosa.

Pisar o terreno, caminhar nos socalcos, é a experiência viva do tanto suor vertido por gerações inteiras que foram arroteando as montanhas que escondem o Douro nos desfiladeiros em que terminam. O solo pedregoso, inclinado, rude; alindado nos degraus que se sobrepõem num presépio ordenado que alberga as uvas que se hão-de dar a um néctar que dizem divino. É preciso pisar os socalcos, uma arte humana que tornou a tarefa fácil. É preciso meter os pés na poeirenta terra onde se misturam calhaus graníticos, os vestígios do monte talhado pela mão do homem. E olhar em redor, escolher um monte contíguo despido de vinhedos. Ver no monte ainda virgem as suas formas arredondadas, ao longe discernir as asperezas do granito espalhado num caos natural. Depois, desviar os olhos para o monte que abraçou as vinhas. Para notar as talhadas de rocha levadas do monte até que ele aceitasse o seu novo rosto – os degraus com uma esquadria digna de um colossal arquitecto, como se ali tivesse chegado um Gulliver que, com a sua mão de gigante, ordenasse os socalcos durienses numa harmonia milimétrica. Assim dispostos para o plantio da vinha.

É com os pés pisando os socalcos que nos apercebemos da tarefa, dir-se-ia sobre-humana, que pela mão do homem se tornou possível. E humanizou uma paisagem severa, fazendo de um terreno montanhoso, e à partida hostil ao cultivo do que quer que fosse, um vinhedo formidável. Tecendo, através dos dedos dos muitos homens e mulheres que esculpiram com as suas mãos os degraus nas montanhas, uma paisagem arrebatadora.

Nisto, lembrei-me do que ouvira uns dias antes na TSF. No anúncio de uma reportagem sobre as vindimas no Douro, um catedrático de uma coisa qualquer a asseverar que o Douro, o Douro que hoje conhecemos como património mundial, foi erguido à custa de escravatura. E os conceitos valem a mesma coisa em tempos diferentes? Conheço alguns catedráticos da ciência vesga, cultores de uma ciência a que gostam de chamar "heterodoxa" ou "progressista", muitas vezes apenas o instrumento de uma agenda ideológica de que são adeptos. Curiosamente, propagam o relativismo como instrumento de análise (e no relativismo até estamos de acordo). Mas como podem apregoar o relativismo e depois fixar conceitos imóveis no tempo para tirar as conclusões que são simpáticas à militância com que confundem a sua ciência? Quem pode, no seu juízo, falar em escravatura quando se olha o Alto Douro em retrospectiva?

Dizem que a ciência avança quando os seus intérpretes descobrem novos métodos de análise ou chegam a conclusões que destapam novos horizontes. O que parece exagerado é torcer a análise e apreciar uma realidade por um conceito na sua aplicação contemporânea: se o que se fez no Douro quando ele começou a ser erguido a pulso foi escravatura? É escravatura tal como a definimos hoje, ou escravatura como era definida ao tempo em que tantos homens e mulheres foram esculpir os montes em alindados socalcos? Mas se é escravatura na sua roupagem actual, como se aplica aos tempos de antanho?

Talvez o catedrático de uma coisa qualquer (que dissertava com a certeza que os catedráticos emprestam ao que dizem) não tenha percebido a ofensa ao Alto Douro inteiro. Às sucessivas gerações que lá deixaram o seu suor, para hoje o catedrático se extasiar quando empreende viagem até aos vinhedos durienses. Ainda fico a pensar, meio perplexo: escravatura? E se não fosse essa "escravatura" a que se dispuseram homens e mulheres que romperam os montes para fazer o Alto Douro, quanta mais miséria não teriam famílias inteiras passado?

28.9.09

Um tosco analista de eleições



Desta vez armei-me em cidadão, daqueles muito responsáveis que se interessam pelo fenómeno eleitoral e tudo. O abstencionista militante até foi votar. Eram 8.20 – estreei a minha mesa de voto. Estive à "escuta" dos resultados eleitorais. E apeteceu-me fazer de conta que era "analista". Repito: fazer de conta. Ao acompanhar o rescaldo de eleições, reconfigura-se o adágio popular para se dizer que "de poeta, médico, louco e analista eleitoral, todos temos um pouco". Aqui virão palavras escritas por um analista tosco. Ou talvez por um "analista" que foge ao convencional, sem alinhar na postura respeitável dos analistas credenciados que aparecem só para dizerem o óbvio.

Ainda não havia projecções, ainda não eram oito da noite e os açorianos ainda votavam. O sorriso de orelha a orelha do comentador Vitorino, o embaixador do PS e do governo na RTP, falava mais alto que os números das projecções que só se conheceram às oito da noite. Foram divulgadas as primeiras projecções. Suspeito que as empresas de sondagens que trabalharam para as três grandes televisões prepararam um acordo secreto uns dias antes, pois as três projecções eram notavelmente coincidentes – coisa nunca dantes vista. Depois do banho que apanharam nas eleições europeias, não quiseram outro desaire. Ou falham todas, ou acertam todas. Enternecedora solidariedade corporativa.

Primeira impressão na ressaca imediata das projecções: só houve vencedores. A excepção moderada foi o PSD, apesar de ter ouvido uma deputada independente (aquela que era do CDS, concorreu a estas eleições pelo PSD e apoia, daqui a quinze dias, o candidato do PS à Câmara de Lisboa) assegurar que a perda da maioria absoluta se ficou a dever à líder do PSD. Ganhou o PS. Uma vitória amarga. O grande, querido líder terá que vestir a roupagem de cordeiro manso para seduzir a extrema-esquerda – e, olhando aos números, a tarefa exige um "ménage à trois". Perdeu a maioria absoluta? Foi uma penalização do eleitorado? Irrelevante, dizem os apaniguados. Vitória é vitória. E se perderam a maioria absoluta, ou a causa foi a crise – o desconfortável pano de fundo para a governação –, ou foi pela campanha de "bota-abaixismo" feita por todos os adversários (o "bota-abaixismo", esse formidável neologismo que entrou, com a chancela do primeiro-ministro, no dicionário da língua corrente). Até os comunistas, que lograram ficar em quinto lugar, entregando a palma aos arqui-inimigos da extrema-esquerda caviar, ganharam. Nada de novo: estes ganham sempre. Ao menos, disse um porta-voz, deram o seu contributo para que os socialistas perdessem a maioria absoluta. Ganharam porque os outros ganharam mas não ganharam tanto como há quatro anos.

As noites eleitorais são um expoente de desonestidade intelectual de políticos que abrem a boca para os microfones em directo. Ouvi a D. Ana Gomes, que por pouco não espumava raiva pelos cantos da boca, a caucionar a vitória incontestável do seu partido e a assegurar aquilo que ela adorava que acontecesse: isto vai virar à esquerda, para gáudio da senhora que, continuo a ter essa impressão, se deve ter enganado quando bateu à porta do PS para se filiar. Depois foi esse imenso senador da república, Jaime Gama, a triunfar no campeonato da análise vesga: convidou-nos a comparar o resultado alcançado pelo seu PS e o resultado obtido pelos democratas-cristãos na Alemanha. Só para percebermos que os socialistas tiveram uma vitória retumbante, pelo menos por comparação com a dos democratas-cristãos nas eleições alemãs. O que interessa que países diferentes sejam diferentes realidades eleitorais? Que interessa que em ambos os países haja diferentes sistemas eleitorais? Para D. Gama, o melhor é disfarçar uma vitória azeda com uns pós cosméticos que têm o perfume da desonestidade intelectual.

O que se esperava, até quando deitou os olhos às projecções? Uma parelha entre os socialistas e a extrema-esquerda caviar, sem que estes tivessem pouso no governo. A extrema-esquerda chique conseguiria conservar a sua natureza anti-sistema, passando a influenciar a governar de fora para dentro. Os números trocaram as voltas à ambição do Prof. Anacleto: o somatório dos deputados do PS e do BE não chega para a maioria absoluta. O Prof. Anacleto falou cedo de mais, quando na sua prédica já começou a impor exigências. Não está em condições de exigir nada. Nem vai ser o fiel da balança que ambicionava ser. Coitada da D. Ana Gomes, que disse, toda encrespada, "coligação com o CDS, nunca, jamais".

Agora entendo o acto desastrado do presidente da república quando se meteu na embrulhada das escutas, oferecendo de bandeja ao PS uma vitória mais expressiva do que se esperava. Esta incerteza governativa é o melhor cenário para o protagonismo que o actor político Cavaco sempre gostou de ter enquanto esteve na vida política. E que não se esqueça isto: as suas possibilidades de reeleição seriam menores se o PSD tivesse ganho as eleições. Bate certo o momento escolhido para demitir o seu conselheiro de imprensa.

Percebes agora, Rui Miguel, por que não quis ir comentar as eleições para aquela rádio?

24.9.09

A igreja católica dos muitos paradoxos (ou de como a vida terrena é inútil)



Se morrer não custa – pois num funeral o sacerdote que preside às exéquias consola a família, assegurando que o falecido entrou "no reino de deus" e agora é que está feliz – para que andamos aqui a viver?

Nisto da fé, ou se acredita ou não. Não me parece que seja possível encontrar meio-termo. Os crentes do catecismo católico vivem na esperança de encontrarem o paraíso depois de se despedirem da vida terrena. Teoriza-se: a vida terrena, a única vida que os sentidos conhecem, aquela de que temos provas indubitáveis, é uma "passagem". Um tirocínio para a existência que contará. A vida noutra dimensão, já sem a prisão do corpo e dos sentidos que tanto nos conferem prazeres como tristezas desatadas. A existência extra-sensorial, toda embebida numa espiritualidade de que não há prova tangível. A morte não é amarga. É só escutar a oratória do pároco quando um féretro se entrega à despedida abençoada pelo "ministro de deus": que se enxuguem as lágrimas dos familiares e amigos, que aquele que ali se homenageia está melhor do que todos nós que ainda estamos presos à vida terrena.

Se assim é, porque somos teimosos ao ponto de verter lágrimas quando um ente querido nos deixa? Porque insistimos em tornar a despedida um momento carregado de tristeza? Há aqui uma contradição insanável: em vez de toda aquela gravidade e recolhimento dos funerais, devia ser como em certas religiões que reúnem os familiares e amigos do desaparecido e fazem uma festa, com direito a lauto banquete e tudo. À memória vêm certos filmes rodados nos Estados Unidos, retratando o costume dominante: ninguém derrama lágrimas, as pessoas riem-se com as boas recordações de quem homenageiam, o luto não é tingido de negro.

O catolicismo aprendeu muita psicologia e pretende contagiar as pessoas entristecidas pela morte de alguém que lhes é querido com essa psicologia anestesiante. Quando o sacerdote confirma que o óbito é um acto de bondade do infinitamente bondoso deus, pois a pessoa que morre entrega-se nos braços da prometida dimensão celestial onde terminam as amarguras da vida terrena, parece retórica de vendedor de apartamentos a tentar convencer o incauto a comprar uma casa que aparenta maravilhas mas depressa se descobre ser um logro. A mágoa dos familiares e amigos deve ser apaziguada pela consolação das palavras analgésicas do sacerdote. Daí a acreditar-se na ladainha que se escuta numa cerimónia fúnebre, é uma questão de fé: ou se tem e as palavras de consolação reconfortam, ou se não tem e aquelas palavras incomodam.

Se morrer é a festa maior da vida, então qual é a utilidade dos anos que a vida nos consome? Parece tempo perdido, viver a vida de que temos prova. Será isto a confissão da inutilidade da vida? Por que motivo a doutrina católica é tão ríspida com o suicídio, ao ponto de recusar campa benzida aos suicidas? Assim como assim, o suicídio podia ser encarado com a antecipação da existência gloriosa que nos é prometida quando o deus bondoso decide levar-nos para junto de si.

O ateu continua atormentado com o fenómeno da morte. É um ponto final, sem parágrafo que se siga ao termo da frase – e esse é um ponto final angustiante. Por isso é que, como ateu resoluto, tenho um pavor indescritível da morte. Ou talvez não, depende do estado de espírito. É que todos temos daqueles dias em que nos olhamos no espelho e temos orgulho do que vemos. Nesses dias, a morte amedronta. Pensamos: que desperdício para o mundo se alguém como eu disser adeus à existência. Mas há outros dias em que não gostamos de quem somos. Nesses dias, a morte deixa de ser uma consumição.

23.9.09

O horrível sotaque




Ouço lá dentro o ruído da televisão. Dão notícias de uma gala da agremiação desportiva mais representativa da cidade. Fala o eterno presidente da agremiação regional. Com aquele sotaque carregado e tão típico da cidade. Aquele horrível sotaque. Digo: um autêntico atentado à língua que se convencionou ser a língua da norma.

Não somos a Itália, com uma profusão de dialectos regionais – ouvi contar, uma vez em Itália, que quase existe um dialecto por cidade. Por cá temos pronúncias regionais, maneiras diferentes de acentuar certas palavras, regionalismos que só existem nas regiões que vulgarizaram esses termos; mas não temos dialectos (tirando o mirandês). Distingue-se um alentejano de um minhoto, ou um transmontano de um açoriano, pela forma como falam. (E, ao que sei, dentro da mesma região os locais conseguem identificar diferentes declinações do idioma: um habitante de Vila Real denuncia a sua pertença ao chegar a Chaves). Não sei se é por ter nascido no Porto e por sempre ter aqui vivido (descontados os dois anos e meio que estive emprestado ao Minho castiço), mas é o sotaque daqui que mais me agride os sentidos.

É isto que me causa confusão: falar à moda do Porto é uma deformação do idioma. É sintomático quando a turba se reúne no estádio onde aquela agremiação regional disputa jogos de futebol: quando a equipa marca um golo, ouve-se em uníssono um coro de bardos excitados celebrando o "guôlo", as goelas bem abertas para dar mais ênfase à sílaba onde o imaginado "u" se abre demoradamente. De resto, é enigmático como uma palavra com duas sílabas se transforma, mercê dos caprichos de uma pronúncia que corrompe a língua, numa palavra com três sílabas ("gu-ô-lo").

Tenho para mim que a gente daqui que carrega forte no sotaque regional é a que possui mais apetência para aprender francês escorreito. As sílabas que terminam em "ã" ("mamã") depressa ganham outra acentuação, tão tangente ao "ãn" que os franceses usam com abundância. Não é por acaso que "mamã" dito à maneira do Porto é tão parecido como o francês "maman". A terrível confusão em que labora o sotaque portuense tem outras manifestações: quando as palavras terminam em "ão" dizem-se "om" ("côm" em vez de cão), mas quando a sílaba terminal soa a "om" no idioma original, o sotaque da cidade encarrega-se de a transformar em "ão" ("são" em vez de som). Esta gente que ostenta, orgulhosa, o sotaque portuense entrega-se ao swinging das palavras.

A minha palavra preferida é "vedante". Se for pronunciado com o forte acento nortenho, transfigura-se em "bedaunte". Outra vez com forte declinação na sílaba onde se aloja o "u", para que o som "aun" apareça com toda a vivacidade: "bedaúnte", assim mesmo com acento no "u" para se saber que é aí que a palavra mais se inclina. Há outro regionalismo que me enche as medidas – e digo regionalismo porque não me é dado a conhecer que o termo seja empregue noutras regiões: "morcão" (do dicionário: "indivíduo indolente, bisonho ou aparvalhado; lorpa; mandrião"). Aqui diz-se "morcom".

E ai de quem caçoe do sotaque daqui, que leva logo com o opróbrio sulista, como se ser sulista fosse a maior das aleivosias. E há mal em ser um portuense de gema a atirar-se ao sotaque dos seus conterrâneos? Ou a perfídia é ainda maior, tal como se fosse uma heresia, pois a um dos seus jamais seria permitido desdenhar dos patrícios que comungam a mesma pertença? Deve ser das tais coisas muito sérias e respeitáveis. Daquelas que nos ensinam a manter um hirto respeito, com proibição total de sátira para se não apanhar com os maus fígados dos ciosos guardiães da genuína pronúncia que assassina o idioma.

Que me seja autorizada a dissidência. Venham lá esses nomes feios que me apoucam. Nem assim hei-de silenciar as palavras a contragosto pela estética duvidosa do sotaque que tenho como coisa horrível desta terra maravilhosa onde nasci e    que habito.

22.9.09

A grotesca desgraça e nós: espectadores como se fôssemos abutres



Metem-me espécie. Os programas de televisão que oferecem, tão generosos, pungentes episódios da vida dos outros. Convidam-nos à comiseração – ou são como uma janela aberta por onde entra algum ar fresco, pois afinal a televisão ensina que há vidas mais desgraçadas (das vidas dos que se entregam ao fatalismo, consequente ou não). Será forte dizer que me enojam esses programas; mas é nojo, e uso a palavra no seu sentido literal, o que sinto. Nojo: por quem se entrega à exploração destes casos, por haver quem se delicie no compungimento que parece lacerar mais quem exibe a pena do quem passou pelas dores da desgraça, nojo até dos infaustos que abrem as suas misérias ao espiolhar dos outros.

Tudo isto me leva a perguntar por que somos especialistas na arte de esquadrinhar a miséria dos outros. Alguém percebe que estamos despudoradamente a desnudar essas pessoas, a liquidar a sua intimidade, a ofender a sua dor? Alguém percebe que lhes agravamos o sofrimento, como se a partilha da dor por uma multidão de telespectadores amplificasse o seu próprio sofrimento?

O aproveitamento das adversidades espalhadas pela vida das pessoas faz dos adoradores do género lamentáveis voyeurs. Onde tudo começa, quem alimenta o género – se o feitio da populaça que sempre gostou de ver sangue a jorrar, se as televisões que fidelizam audiências com estes episódios que dilaceram a alma de gente sensível e cativam a atenção de quem sente um indizível prazer interior ao testemunhar a desgraça que bate à porta dos outros –, isso acaba por não interessar. Só que toda a gente, desde quem aceita expor as pessoais desgraças, passando por quem lhes confere o palco e terminando no público ávido da grotesca delícia com os males alheios, toda a gente se merece na perfeita indignidade de si mesma.

E se não são as televisões que trepam umas às outras para terem mais um ponto percentual de audiência, são os jornais – até os que recusam, com sentido, o rótulo de sensacionalistas – a escorregar para a atroz partilha das misérias dos outros. Há dias, quando morreram sete raparigas num pavoroso acidente rodoviário, o Jornal de Notícias tinha na capa uma fotografia tirada pouco depois do acidente. Ainda com os corpos trucidados à mostra. Não percebi – nem quis indagar – se a fotografia foi tirada por um repórter do jornal ou por um "popular" que a vendeu ao jornal. Num caso como noutro, o atentado à ética jornalística já tinha sido perpetrado. Porventura nem é isso que interessa. Às malvas a ética, mais ainda se for a sectorial e muito escorregadia ética dos jornalistas. Por cima de tudo isso, a dignidade que mereciam as pessoas acabadas de perecer e os seus familiares. Terá alguma criatura com responsabilidades editoriais no jornal pensado no que teria sentido se naquela fotografia estivesse um corpo despedaçado de um seu familiar?

Não sei se é falta de critério. Rejeito a ladainha dos valores que se ausentaram – e o que é isso dos "valores"? Só consigo explicar a náusea que me invade quando este bastardo voyeurismo esvoaça com as suas enormes asas espalhafatosas, dando uns beliscões em quem passa para que não se esqueça de mergulhar no vórtice da desgraça que consome os outros. E não me venham dizer que tudo isto é um singelo convite à solidariedade, como quem sugere que a exposição dos tremendos males que destroçam as suas vítimas é um convite ao lado generoso de quem os testemunha. O que ali há é uma mórbida curiosidade, uma sede insaciável de se enodoar no lodaçal para onde os miseráveis foram empurrados.

Dizem-me que a imprensa, na sua "ânsia democrática", se limita a satisfazer os gostos das maiorias. Eis o que está mal: a duvidosa estética das maiorias e a covardia da imprensa que se esconde em pretextos mal amanhados. Desta náusea sobra o travo amargo da urgência do exílio; exige-o a sanidade mental.

21.9.09

Lembras-te do futuro?



Que nos precatemos de não usar a palavra "tempo". Pois todas as coisas se desfazem nas abóbadas onde o passado se deita. Olhamos em frente e apetece-nos dar a provar o futuro num cálice dourado, sumptuoso. É quando, a destempo, temos saudades do futuro.

Uma sondagem dos dias vindouros, dos que estão à dobra da esquina e daqueles cuja espessura está aprazada para mais tarde – é o que nos honra. Depressa nos cansamos dos dias correntes. Não faz sentido vaguear pelas margens das memórias, como se nessa deambulação algo de exterior a nós se impusesse sobre o que somos quando o somos – que é o agora à espera de todos os amanhãs que queremos ansiosamente degustar.

Apetecível é o futuro. Esse mar imenso onde navegam as esperanças que fermentam o adocicado da existência. Ou apenas uma doce ilusão de um amanhã que jamais terá as tonalidades espelhadas em todos os sonhos. Mas seja: é de hoje em diante que se joga a sobriedade, alguma finitude. De hoje em diante que se acolhem os segredos que um dia qualquer tratará de revelar. É o que sabemos. Que haverá alguns porvires reconfortantes, outros embebidos no anonimato dos dias todos iguais, uns ainda excruciantes. É desses porvires que nos queremos lembrar.

Não me julgues equivocado. Sei da impossibilidade física que é desvendar amanhãs. Quando interrogo se nos lembramos do futuro, quero recordar que as recordações nos conduzem por um, porventura, auspicioso trilho que termina num precipício invisível até a lá se chegar. Esse precipício tem nome: chama-se "hoje" e é doloroso quando insistimos em andar de mão dada com as memórias que são uma imagem esgotada de um passado irrepetível. É por isso que faz sentido perguntar se te lembras do amanhã? Para que te não esqueças que temos uma dívida com os dias que hão-de vir. Seremos caricaturas de nós mesmos se teimarmos na nostalgia. Desse modo, desperdiçamos o hoje que é a parte tangível da existência. Ao derrotar os dias presentes, na indigência do futuro, somos a ausência de nós mesmos. A anulação da nossa existência. Indignos dos porvires que esperam por nós.

Por isso te explico esta obstinação com o passado, uma matéria inerte que extirpa o oxigénio da existência. Não digo que reneguemos o percurso pelos dias que pertencem à história. Só não quero ficar algemado aos outroras que já foram meu império – por mais perfumados que sejam, por mais vivificantes as memórias que se trazem de lá. Prefiro ter saudades do amanhã, esse majestoso gigante desconhecido, a reserva natural de todas as incógnitas. É pela mão das incógnitas que me quero deixar guiar nos amanhãs que espero sorver, com sofreguidão ou apenas com a quietude de quem já não se exaspera por viver mais depressa que o timbre do grande relógio universal.

Dizes-me que os porvires que nos esperam são terrivelmente ameaçadores, debruados com uma escuridão que corta a respiração, que sentes corvos azoando os amanhãs. Dizes-me que passo por cima dos dias presentes com a urgência de quem quer pisar os campos que desvelam os amanhãs. Em o fazendo, que também me demito do eu que sou hoje. Pode ser que sim. Pode ser que atropele a cadência do grande relógio universal pelo febril sintoma dos amanhãs prometidos. Antes virar a cara aos dias emoldurados na rigidez do passado que não volta a acontecer, do que passar ao de leve pelos dias correntes com uma consistência que os sentidos conseguem apurar. Ao menos tenho prometido um futuro radioso, sem estar acorrentado ao peso das memórias irrepetíveis, um peso que arqueia a existência a ponto de a deixar inerme.

Os muitos hoje que vivemos têm um traço comum com os ainda mais ontem que já experimentámos: a sua grande espessura é a da irrelevância dos dias anónimos, dos dias que não deixam vestígios no grande livro da vida. Se o que se conhece deixa este travo de inutilidade, sobram então as saudades do futuro. Só as teremos se nos lembrarmos que é o futuro que nos tem nas mãos.

18.9.09

ABC do libertário



Vamos falar de utopias. E da mania de nos metermos na vida dos outros. Tanto acontece com as alcoviteiras (as reformadas que se entretêm a vasculhar na vida dos vizinhos; ou os colegas de trabalho que metem o nariz onde não são chamados) como ao mais alto nível, no dia-a-dia da governação. Tanto nos metemos na vida dos outros através dos palpites sobre aspectos da vida alheia que não nos dizem respeito, como aceitamos que se metam na nossa vida através da diarreia legislativa que toca tudo e mais alguma coisa na vida que apenas a nós devia dizer respeito.


Ser libertário é um compromisso apaixonado com a liberdade pessoal. E se tanto amamos a liberdade individual só a honramos se respeitarmos a liberdade individual de todos. Só que somos indulgentes com a suposta bondade das políticas públicas, quando as decisões encerram supostas vantagens que, argumenta-se, facilitam a nossa vida. E, quantas vezes, uma medida vantajosa não é a contrapartida de dezenas e dezenas de decisões que apertam o cerco ao livre arbítrio e nos tutelam como se estivéssemos carenciados de uma paternal bússola? Aceitamos. Julgamos que deve existir uma mão visível, e de preferência firme, que nos ponha no "bom caminho". Quando o aceitamos, demitimo-nos da individualidade que somos.


O libertário não acredita na ficção da sociedade. É uma ficção porque se trata de uma abstracção. E o que é a sociedade? Somos todos nós, o cimento da comunidade – dirá o coro dos bem pensantes. Ao vingar o imperativo das necessidades da sociedade, sobretudo quando os interesses individuais cedem perante o "bem comum", não acabam por vingar certos interesses individuais? Que assim se escondem detrás da máscara dos interesses colectivos – e daí a sociedade não passar de uma ficção, uma patranha bem encenada para levar os incautos no engodo. 


O maior bem que podiam oferecer ao libertário era derrubar todas as algemas mentais que comprometem cada indivíduo no proclamado interesse da sociedade, obrigando-o a sacrificar legítimos interesses pessoais. Depois, os meirinhos desta ladainha (a da superioridade do social sobre o indivíduo) treslêem parte do catecismo liberal para ensinarem que a liberdade de cada um termina quando ela invade a liberdade dos outros. Este é o prontuário oportunista dos muitos engenheiros sociais que oferecem as suas abundantes qualidades intelectuais para tornar este mundo um sítio melhor para se viver. O que nunca revelam é a volátil fronteira entre a minha liberdade e a liberdade do outro. Em vez de deixar aos envolvidos a disputa da fronteira, confiando na capacidade de ambos para delimitar os terrenos das respectivas liberdades, são os engenheiros sociais que as fixam. Fazem-no de maneira unilateral e arbitrária. Atropelando a liberdade dos outros.


É por isso que o libertário desconfia da autoridade de todos os dias e dos grandes planos que nos orientam a prazo. O libertário não consegue agradecer, muito menos compreender, a generosidade e a presciência dos que dizem ter contraído matrimónio com a causa do serviço público. Pois essa é uma utopia – uma utopia de sentido contrário à utopia libertária. Por mais que os servidores da causa pública apareçam comprometidos com o serviço público, como nos convencem que esse interesse não seja individual? E, portanto, não é possível que não contagiem o exortado "interesse público" com o seu interesse individual.


Podem-me aconselhar a pôr os pés no chão, ou a abrir os olhos, dizendo-me: mas isto sempre foi assim, com diferentes actores e na alternância de interesses. Seja. Alguém me censura se aqui vier confessar o cansaço pelo estado de coisas que é a normalidade vigente? Dando de barato que as coisas são como são, é crime confessar o desejo que uma utopia se convertesse em realidade? A natureza humana é o imponderável que impede que a utopia o deixe de ser. Tornámo-nos viciados na dependência recíproca. Achamos que podemos opinar sobre muita coisa que apenas diz respeito aos outros. Enquanto formos seres tutelares da vida alheia, não há utopia libertária que tenha valimento. Pois não somos merecedores da nossa liberdade individual.


Há um sentido no devir libertário: uma rejeição total ao conservadorismo maior que é aceitar a autoridade a que devemos respeito. Os engenheiros sociais, os feitores da diarreia legislativa que pretende resolver todos os problemas que nos aparecem pela frente, são os maiores conservadores que temos.

17.9.09

As irritantes virtudes

Às vezes damos de caras com outros que são o espelho de nós por neles as nossas virtudes se retratarem. Vê-se, então, como essas virtudes, que em nós julgamos serem virtudes, são tão irritantes. Serve, ao menos, para que se perceba que os juízos que fazemos são de uma relatividade brutal: o que hoje enche de orgulho pode amanhã ser a fonte de desprazer.

Há nisto algo de esquizofrénico. Ou uma inexplicável inveja, pois quando são os outros que levam ao extremo determinados traços de personalidade que temos como certos na nossa forma de ser, deixamos de os ter entre o património do elogiável. É, ao mesmo tempo, expressão de um saudável descontentamento com o que somos. Quem gosta de se enquistar numa imóvel forma de ser? Pode acontecer que nos cansemos de ser o que somos com uma certa periodicidade – ou que, ao menos, nos cansemos de certos atributos que são atirados para o quarto escuro dos predicados que o deixaram de ser. Em tudo isto, a sensação de que perseguimos a transiente espessura que nos usurpa. 

Dois exemplos pessoais: pontualidade e organização. Digo que um dos males indígenas – há quem assegure tratar-se de idiossincrasia – é o sistemático atraso. Marca-se uma hora para um encontro, para uma reunião, o que quer que seja. Nunca começa à hora. Contagiamo-nos uns aos outros porque sabemos que um de nós chegará atrasado. Por isso relaxamos enquanto vemos com despreocupação os ponteiros do relógio avançar para além da hora marcada. Como alguém vai chegar atrasado, não vem mal ao mundo se lá chegarmos atrasados também. Como não seremos os últimos, não se considera a falta de pontualidade um atraso. O odioso – e mesmo assim sempre perdoável, com a generosa indulgência que temos – sobra para aquele que chegar mais atrasado.

Exijo de mim pontualidade. Britânica. Se o relógio que trago se atrasa um minuto entro em sobressalto se não o acerto à primeira oportunidade. Mas, por estranho que pareça, aborrecem-me mais aqueles que são ainda mais pontuais que eu. Mais do que aqueles que mandam a pontualidade às malvas. Isto é um paradoxo. Chegar antes do tempo não é como chegar atrasado: só um atraso é irremediável, porque o tempo combinado passou a fasquia do tempo já inamovível. A pontualidade extemporânea – se assim posso chamar à mania de chegar antes da hora – é uma vaidade inconsequente. É de gente que gosta de ostentar o zelo com o relógio, gente que adora esmagar nos demais que levam tão a sério a pontualidade que foram os primeiros a chegar ao compromisso agendado. 

Segundo exemplo: ser metódico. A interior organização de cada um compete a cada um. Não tenho nada contra a falta de método em que os outros vivem mergulhados. Há quem só consiga viver no meio de uma total desarrumação mental. Às vezes gostava de ser assim. Nem sempre é fácil conviver com o espartilho de se ser metódico, pois sobram algumas algemas que limitam a pessoal liberdade. É como se a organização mental que nos impomos actuasse como uma tirania interior que condiciona a liberdade que a nós mesmos vedamos. Todavia, ser metódico é imprescindível para ter um prumo que dê equilíbrio à existência. O mais difícil é atingir o equilíbrio entre o método e não ficar aprisionado nas entranhas do método a tal ponto que já só somos seres metódicos e nada mais. É quando a muita organização interior desagua em nada de palpável. Nessa altura, já só somos forma sem sermos substância.

Também me irritam aquelas pessoas muito organizadinhas, que não dão um passo sem o estudarem meticulosamente. Às vezes, isso confunde-se com um calculismo que semeia desconfiança entre quem rodeia os calculistas. Essa metódica forma de ser levanta a suspeita de que actos e palavras trazem água no bico. Quando deparo com metódicos fundamentalistas, tenho uma súbita vontade de renegar a pessoal organização que julgava ser um distinto atributo. É quando me apetece entrar no aviltante lugar onde nada é pensado e tudo acontece ao acaso, pela mão dos espontâneos actos e palavras. 

Será a negação de pessoais atributos quando os vemos reflectidos nos outros uma crise de identidade, uma negação do que somos quando vemos esses atributos espelhados nos outros?

16.9.09

Estaline?

Não. Está morto. E não consta que aceitasse eleições. Mas ao ler a seguinte frase da Dona Ana Benavente (artigo de opinião no Público de hoje, na condição de "militante do PS"), podíamos dizer: por que não proibir a "direita" de uma vez por todas? Ah, como é adorável o totalitarismo de pensamento em que certas esquerdas escorregam. Eis a boutade:

O elogio dos candidatos

Ando pelas ruas da cidade e vejo como a campanha eleitoral emprestou muita poluição visual à paisagem urbana. Nada que seja desconhecido em vésperas de eleições. Os tempos que são sempre mais modernos é que trazem algum requinte à exposição dos cartazes. Já não são feitos em papel e colados nas paredes – que essa modalidade é deixada para a divulgação de concertos, peças de teatro, bailados e exposições de arte. Agora os candidatos mostram as suas caras e os slogans bombásticos em cartazes amovíveis que se prendem a postes ou estão afixados em painéis criados para o efeito. 

Ando pelas ruas da cidade e noto a profusão de rostos de candidatos. Ainda por cima, em ano de bebedeira eleitoral (três eleições no espaço de quatro meses, o que não tem precedentes na história eleitoral), multiplicam-se os outdoors à razão das eleições. São as caras dos líderes partidários que se propõem para chefiar o governo (assim se enganando a populaça, que vai no conto do vigário do timoneiro actual, convencido que está, na sua douta ignorância, que estas eleições servem para escolher o primeiro-ministro). E são os rostos dos candidatos às autarquias. Por cá, é uma enxurrada de caras porque os candidatos a presidentes de junta de freguesia conquistaram direito a uma exuberância de cartazes como nunca se viu.

Ao andar pelas ruas da cidade, quem pode ignorar a poluição visual com as muitas caras dos candidatos que estão por todo o lado? É para que não nos esqueçamos que um dia destes há eleições e que os candidatos existem – sobretudo daqueles partidos mais endinheirados e que podem enxamear as ruas com cartazes dos seus candidatos. E tanto vemos cartazes intactos, com os rostos de certos candidatos de idade avançada que aparecem milagrosamente rejuvenescidos (milagres do Photoshop), como se nota a vandalização de alguns cartazes.

É aqui que quero chegar. Devo elogiar a coragem dos candidatos que dão a cara pelo partido que os leva a eleições. Literalmente, dão a cara. Não deve ser confortável ser candidato e, ao andar pelas ruas da cidade, dar de caras com a sua cara vandalizada. Tenho reparado que não há candidato que escape à felonia da vandalização de cartazes. Às vezes perfuram os olhos; não sei se quem o fez quis mostrar que o candidato tem dificuldades de visão e que, portanto, não é credor do voto –  não vá o eleitorado entregar-se nas mãos de um condutor cego. Outras vezes é a boca que aparece rota; terrível acto de censura dos vândalos de serviço, que assim manifestam a intenção de calar o candidato cujo retrato foi danificado, ou apenas o cansaço auditivo de quem é vítima da poluição sonora expelida pelo candidato que é uma picareta falante. O cúmulo da vandalização de cartazes é quando o rosto, na sua totalidade, foi extirpado ao cartaz; tal como se o candidato não tivesse cara – ou a metáfora perfeita para um homem ou mulher que não é digno(a) da cara que mostra todos os dias, pela manhã, ao espelho. E se assim é, indigno será de se apresentar como candidato ao que quer que seja.

A sério: há um notável acto de coragem dos políticos (profissionais ou que ali estão de empréstimo) que se oferecem como candidatos a eleições. Os seus rostos ganham uma notoriedade trazida pela abundância de outdoors. Não me imagino nessa qualidade. Detestaria saber que um qualquer vândalo tivesse profanado o meu rosto (que até poderia ser um adversário covarde, ou alguém a soldo dele). O pior seria o desconforto da privacidade perdida. Só de imaginar que ao andar pelas ruas da cidade teria cada pessoa com quem me cruzasse a olhar na minha direcção com aquela expressão facial de quem diz "estou-te a conhecer daquele cartaz", é o ânimo para jamais ter pretensões a ser candidato ao que quer que seja. Pois um dos bens maiores é o anonimato.

Outra vez a sério: é preciso ter coragem para se ser candidato a eleições. E desprendimento para não recear a exposição do rosto à curiosidade de todos os olhos que a cada instante se cruzam pelos muitos cartazes que semeiam a poluição visual na paisagem urbana. O maior elogio que se pode fazer aos candidatos é a generosidade de quem abdica da sua privacidade.

15.9.09

Por diante, os dias despejados de nuvens


É a centelha que se desprende do horizonte que parece tingido pela escuridão impermeável. As rememorações vagueiam no torpor contíguo à nostalgia, num esforço para trazer dos tempos idos as imagens gratificantes de quem já só pertence à saudade. Uma estranha sensação, a da ausência. Sobrepõe-se a desabituação, como se ao acordar tudo ainda não passasse de um pesadelo. Como se fosse um terrível pesadelo que é desmentido pelo adocicado sabor do acordar. 

De que vale prolongar o torpor da nostalgia? A anestesia que tomou conta de tudo adia-se na demissão do eu. Pode parecer que o corpo se divide entre dois hemisférios: entre persistir no tributo à pessoa ausente que cultiva as muitas saudades e olhar de frente para a existência, aprendendo as lições avivadas por essa ausência. Diante da encruzilhada, quero arremeter pelo caminho que não me aprisione no entorpecimento da melancolia. Conseguindo, mesmo assim, o difícil equilíbrio de prestar tributo a quem partiu.

Lá ao longe, onde a linha do horizonte se confunde com o céu, começa-se a distinguir uma ténue fronteira onde se aclaram as nuvens que teimavam em prolongar o torpor. Aos poucos, as nuvens dissolvem-se à medida que se apaga a anestesia do corpo perante as consumições da ausência. Os dias sombrios são isso mesmo – uma enegrecida existência perfumada pela mágoa. A mágoa que não é nutriente de coisa alguma. A melhor homenagem a quem se ausentou é consagrar a existência dos que dele se despediram. A sagração da vida é essa homenagem.

E os dias hão-de ficar mais claros. A inevitabilidade das coisas que o são acabará por instalar o convencimento de que o torpor da nostalgia desmerece a vida dos que a têm para viver. A candeia alumia-se entre o denso nevoeiro onde o corpo se desorienta. Nem que por momentos pareça perdido no meio do nevoeiro que se entranha nos ossos, consumindo o corpo na dor que se instala. A mão que pega na candeia e a alça pertence à indómita vontade de perseguir a exuberância da vida. A chama, a persistente chama que se solta da candeia, perfura a densa cortina de névoa. A teimosia da candeia empunhada acabará por derrotar o nevoeiro que parecia invencível. Então tudo se aclara.

Os dias despejados que se prometem são a lição aprendida através do crepúsculo que desaguou, por fim, no ocaso. É a força com que as duas mãos se agarraram à existência, superando as contrariedades, sem se amedrontar com os sucessivos sobressaltos que apareceram pela frente. Não serão as forças exangues de quem partiu que semeiam o mesmo comportamento entre quem ficou. Ao contrário: se há alguma virtude na letargia da saudade é o fio condutor com os dias despejados que se anunciam por diante. A tal lição de vida, uma esplendorosa lição de vida.

Eis o convencimento que se enraíza: depois do ocaso não sobra o que ser. Nessa altura, já não há candeias luminosas, nem sequer fugazes centelhas a iluminar  por breves segundos a escuridão dominante. É quando me lembro do lema aprendido com o filme "O Clube dos Poetas Mortos": carpe diem – ou do tutano da vida que tem que ser sugado todos os dias. Enquanto há tutano para sorver. E força e meios para o sorver. Depois disso, quando for tempo do sono final, nem sequer há lugar a arrependimentos.

14.9.09

Esta raiva inútil

O que interessam as interrogações sem resposta? O que interessa saber se há nos interstícios do universo palavras que se compõem em frases inteligíveis, como se fossem as soluções para as equações que se encavalitam? A metafísica – uma espinha encravada na garganta – revela-se, nestas alturas em que a raiva assoma à superfície, uma terrível armadilha. Consomes-te nas interrogações que envias à metafísica. Logo tu, tão negador das coisas metafísicas.

Pelo meio, a espuma da raiva é um veneno que arremete contra a lucidez. Torna-se uma raiva inútil – como serão todas as expressões de raiva. Pode-te invadir uma sensação de injustiça; dirias, com uma doce ironia que é o leito da tua incongruência, uma divina injustiça. Só para sublinhares a prova da inexistência de bondosas entidades divinas. Só para encontrares em ti mesmo a afirmação do que nunca te cansaras de negar. E qual é a urgência em repisar as negações da metafísica? A certa altura desponta a portentosa angústia: de tanto negares deus, de tanto te consumires com a proclamada bondade de deus que nunca é culpado das más coisas que afligem os mortais, entregas-te no minado terreno da metafísica.

Esta é a mortificação maior: a precisão de negar aquilo que não existe. Quando as circunstâncias mais alimentam este estado de negação, o niilismo metafísico é a granada que estoira nas tuas mãos. Quando acordas do êxtase da negação, dás conta do tanto tempo que gastas nas sinuosas estradas da refutação dos deuses. É quando sobra a implacável interrogação: na azáfama de tanto negares o que julgas inexistir, não estás atilado na negação de ti mesmo? Eis a suprema mortificação, a raiva incandescente que irrompe como lava brutal de um vulcão que teima em manter-se acordado.

Regressam, então, mais interrogações. Os espelhos que te emparedam num labirinto asfixiante tornam tudo mais obscuro. O mal é que consegues ver, quando por momentos o discernimento retoma o fio à meada, que nem há espelhos nem as interrogações que povoam os dias de angústia fazem sentido. Talvez seja um refúgio onde fazes de conta que o que os teus olhos vêm não tem sentido, porque o sentido que as coisas têm é dilacerante. E como recusas a resignação da dor como bem da natureza (outro dogma da metafísica reinante), toda a confusão que se espalha é o santuário das coisas ininteligíveis.

Perde-se tempo. Com as culpas que se endossam pelos males que acabamos por suportar. Com as explicações que albergam o esconderijo das coisas como elas são, por mais que seja custoso entendê-las como são. O pior é que neste estado de negação em que soergue uma inútil raiva, quando chega a vez da sensatez e os olhos espreitam por trás dos ombros, tudo o que vêm são os despojos da existência. Os pedaços desconjuntados sangrados pela ebulição dos sentidos. A confirmação da inutilidade da raiva que toma conta dos dias. E das interrogações, das inúteis interrogações que destroçam a unidade do ser e lançam os despojos que crescem, exponenciais, à medida que tudo se consome num turbilhão onde mergulham as contradições em que a existência se debate. 

Quando somos incapazes de aprender as lições legadas por quem queremos homenagear, vemo-nos aprisionados numa vã injustiça de que somos culpados. Não interessam as raivas que incendeiam as veias, as interrogações constantes que se esmagam contra o peito. Não interessa semear os despojos como se fosse uma aliteração da inutilidade da existência. O ocaso desmente-o em toda a sua flagrância. Ao menos, que sobre alguma lucidez para entender a inutilidade da raiva trivial.

Pelo amanhecer, depois de todos os pesadelos que ensombraram o sono, há-de vir a alvorada com a claridade do sol nascente, vista através dos céus despejados de nuvens. É o bálsamo que limpa os vestígios da raiva inútil.

12.9.09

Epitáfio

Os olhos cerrados
segredam o silêncio do teu sossego.
Por fim.
Nesses olhos cerrados
já não há vestígios dos padecimentos inglórios
nem os sobressaltos de um ocaso indigno.
Agora restas tu
e as memórias resguardadas bem no fundo,
de onde ninguém as pode embargar.
E nem que sopre um vento frio,
um vento que enregela até o sangue fervente,
nem que se escutem preces que desaguam num lamento,
nem que digam que a majestosa árvore que eras
foi arrancada pela raiz;
Nada,
nada disso
pode contra toda a ternura que irradiavas;
nada disso
há-de convencer que deixaste de ser a majestosa árvore.

Nos olhos cerrados
resguardas a tua placidez.
Por fim,
a merecida serenidade.
Foi nos olhos cerrados que te escondeste,
enfim,
das traições em que a existência te fez tropeçar.
Vezes de mais.
Há nos teus olhos cerrados uma lição inteira:
como se fosse um renascimento
ainda que sinta que arrancaram um pedaço de mim.
A árvore majestosa,
centrípeta e matricial,
que continuarás a ser
- pois as memórias são intemporais –
fermentou as raízes lá no fundo,
de onde força alguma as consegue remover.
Legando um manto tão fértil
de onde recolho o manancial da vida.

Não:
os teus olhos cerrados
não são um adeus.
São um livro aberto,
o oráculo tão nítido
do porvir que deixaste a sussurrar na serenidade
dos teus olhos cerrados.

11.9.09

A pandemia da gripe é amiga da igreja?


Andam por aí umas teorias da conspiração. Avisam os incautos (todos nós, à excepção dos visionários que destaparam o cobertor da teoria conspirativa) que esta gripe é uma maquinação dos interesses da indústria farmacêutica que tem medicamentos para a curar. E nós, que vamos sendo instruídos no maléfico poder que os capitalistas têm (ainda hoje aprendi com uma aluna, que escreveu numa tese de licenciatura que o grande capital se alimenta da pobreza), devemos desconfiar dos rebuçados que as empresas farmacêuticas apresentam como cura. Para uma doença que, garantem-nos, terá sido inventada só para que os medicamentos tivessem serventia.


(Isto faz-me lembrar outra deliciosa teoria conspirativa. Há quem assegure a pés juntos que os anti-vírus que instalamos nos computadores são da autoria de génios da informática que, por sua vez, são os inventores dos monstruosos vírus que se espalham pela rede, contaminando os computadores que estejam desprotegidos. A isto chamo o síndrome da pescadinha de rabo na boca: o inventor da cura é o mesmo que espalhou o mal. Só para a cura ser vendida a peso de ouro. Talvez seja ingénuo, mas não me convenço que a estupidez humana atinja tamanhas proporções. Nem no pior capitalismo suicidário.)


A gripe que anda por aí ameaça, agora que o Outono está para chegar. Um responsável do governo previu que mais de dez por cento da população vai ser infectada. A massa cinzenta arregimenta-se à volta de planos de contingência. A prevenção é, mais do que nunca, a prioridade. As pessoas devem ser informadas, alarmadas se preciso for, para comportamentos que reduzam as possibilidades de contágio. Mil e uma ideias têm proliferado. Por exemplo, a hierarquia eclesiástica aconselhou os frequentadores de missas a evitarem a saudação eucarística que envolvia contacto físico, torcendo um hábito sedimentado. Há reportagens nas televisões sobre hábitos de higiene que evitam o contágio da doença. Lá para os países nórdicos, desaconselha-se o cumprimento entre as pessoas sempre que trocarem um aperto de mão ou se oscularem no rosto.


A gripe, que já era má por ter conquistado o lugar de pandemia, ainda por cima exige a alteração dos hábitos sociais. Não que isso seja mau – estar parado no tempo é que é mau (menos para os conservadores). Se já muitos denunciam a frieza nas relações humanas com o distanciamento que se cultiva entre as pessoas, agora o fenómeno vai crescer de intensidade. É que se estamos habituados a saudar as pessoas com um aperto de mão ou com dois beijos (ou apenas um, na versão chique e social-democrata), a troca de afectos vai ser desaconselhada mercê da hedionda gripe. Quando a pandemia já só for uma nota de rodapé, se calhar não vamos readquirir os velhos hábitos. Já só cumprimentaremos os outros com um aceno de mão, ou com o vago uso de fórmulas verbais – o que hoje reservamos a quem não conhecemos de lado nenhum. No rescaldo da gripe, estaremos todos mais frios uns com os outros, menos humanos.


Desconfio que a igreja tem esfregado as mãos de contentamento. Se as pessoas ficarem assustadas com este alarmismo, vão rever outros hábitos tão censurados pela igreja católica. Por exemplo, o sexo com estranhos (as deploráveis – pela igreja – "relações esporádicas ou fortuitas"). Quem se arrisca à troca de fluidos com um desconhecido? Já havia a SIDA a pairar como cutelo na (regresso ao jargão católico) "promiscuidade". Os preservativos (por acaso freneticamente combatidos pela mesma entidade) resolviam os riscos de contágio dessa terrível doença. Com a gripe pandémica, o potencial de contágio por causa da dita "promiscuidade" intensifica-se. Sobretudo se os mortais entregues ao prazer carnal forem adeptos de certas "depravações" (e retomo a linguagem católica).


Se eu fosse um cultor de teorias da conspiração, diria que foram agentes infiltrados da igreja que desenvolveram em laboratório o vírus da gripe A e depois o espalharam metodicamente pelo mundo fora. Se os padres já se dispõem a alterar um hábito consagrado nas missas (o abraço, o cumprimento, ou o beijinho "na paz de Cristo"), dir-se-ia tratar-se de uma táctica só para amedrontar crentes e não crentes (sobretudo aqueles). E assegurar que a libertinagem sexual nunca foi tão desaconselhada. Saibam as hormonas responder ao repto da "razão", pois.


E assim a igreja esposou a gripe A, sua aliada da retrógrada moral sexual que insiste em difundir. Haja uma fervilhante criatividade a fermentar as teorias da conspiração, e tudo se torna possível e provável.

10.9.09

O cão multado (por estacionamento proibido) e outras excentricidades



Foi na Austrália: a dona levou o canídeo a passear e, antes de entrar numa loja, deixou-o preso no exterior. Acontece que a senhora, porventura distraída, "estacionou" o cão num lugar proibido – reza a notícia. Vieram dois polícias zelosos e passaram uma multa ao animal. A multa foi afixada na trela do cão. Assim como assim – terão raciocinado os agentes da autoridade – o bicho estava num lugar onde não se podia parar. Não consta que o canídeo tivesse sido agressivo ao ver um dos homens fardados a depositar a multa na trela. O cão não mordeu nos polícias.


Esta história é deliciosa. Um monumento à absurda condição humana. Tanto quanto sei, o que se estaciona são automóveis e outros veículos motorizados ou não – mas veículos e não animais. Nunca me foi dado a conhecer que os cães eram agentes envolvidos no código da estrada. Não têm bilhete de identidade, nem cartão de contribuinte, ou rendimentos próprios. Li a notícia e fiquei mais perplexo com o destino da multa: o cão tem morada própria? Os agentes da autoridade anotaram no bloco de apontamentos o número da licença do animal, para depois endossarem a responsabilidade a quem ali "estacionou" o cão? Admito que estivessem muito atarefados, os zelosos agentes fiscalizadores do trânsito de pessoas e, sabe-se agora, de animais irracionais também. De outro modo, teriam esperado à sombra de uma frondosa árvore até que a dona recolhesse o cão do "estacionamento" proibido.


Cá está um exemplo de cumprimento escrupuloso das regras – o que nuns sítios existe por defeito, noutros abunda em excesso. Se ali ninguém podia parar por haver um sinal de estacionamento proibido, ninguém é mesmo ninguém. Caso contrário, os animais irracionais que pacientemente esperassem pelos donos tinham uma regalia. E como neste mundo moderno todas as desigualdades são intoleráveis, aos senhores agentes não interessava saber se aquele espaço estava ocupado por um cão, um automóvel, uma trotineta, um skate ou uma roulotte.


No domínio da bioética, há quem proponha a atribuição de direitos iguais aos hominídeos e aos animais (e, devo dizê-lo, concordo com a ideia). Admito que esta notícia é um bálsamo, um paradoxal bálsamo, para os seus particulares interesses. Um animal, tal como um humano, pode ser destinatário de uma multa. A igualdade de direitos entre seres racionais e seres irracionais já esteve mais longe. Só é desagradável porque culminou com a desconfortável cominação sobre o canídeo.


Não me custa imaginar que os zelosos polícias australianos devem ter aprendido pela mesma cartilha daquele ministro de cá, o da administração interna (o maior cromo deste governo, como é que ele se chama? Já me lembrei: Rui Pereira). Aquela pose de estadista, muito grave, reflectida nos fardamentos que exibam a autoridade de quem representa o detentor do poder sobre os súbditos. Continuando com o exercício imaginativo: se o agente que passou as multas fosse um Rui Pereira dos antípodas, e se fosse convidado a explicar o bizarro acto de multar um cão por estacionamento proibido, teríamos direito a um discurso muito articulado, típico dos tipos que aprenderam a manha toda numa universidade de direito, com muita sofística de permeio com a convicção de quem de uma patranha faz uma verdade irrefutável. Diria o Rui Pereira dos antípodas: a proibição é total e absoluta; atinge pessoas e coisas (e aqui socorria-se da arcaica fórmula das leis que qualifica os animais como coisas). Atiro eu daqui: e extra-terrestres, também?


Não sei se, quando chegaram aos respectivos lares, os agentes da autoridade, decerto de peito inchado por terem passado outra multa de estacionamento, não tinham à espera as respectivas consortes. Elas tinham confeccionado um manjar à base de ração para canídeos.


Uns minutos depois, deparei com uma ideia apresentada na campanha eleitoral pela Frente Ecológica e Humanismo (PEH) (a coligação entre o Movimento Partido da Terra e o Partido Humanista): a "moção de censura popular". Um referendo convocado por petição popular, no máximo duas vezes em cada legislatura, para submeter à consideração dos eleitores a demissão dos titulares dos órgãos de soberania. As utopias não custam nada – estão pelo preço da uva mijona. Admito simpatia pelo espírito da ideia (mais responsabilidade para os eleitos e mais poder efectivo nas mãos dos eleitores – a primeira como consequência, a segunda como causa). Mas existe uma improbabilidade retumbante: só na Austrália é que já possível multar animais irracionais por estacionamento proibido.

8.9.09

As ruínas


O desordenado amontoado de pedras exposto ao vento agreste. As silvas que avançam sem freio, misturando-se com as ruínas lassas. Uma amálgama de pedras despojadas e ferros retorcidos e enferrujados. Como se os ferros fundissem com as pedras despedaçadas, num quadro homogéneo. Outrora, aquele lugar fora um hino de prosperidade. Agora sopra uma melodia suave, os violinos confundindo-se com o silvo do vento que arremete no sopé da serra.


Há naquele lugar um paradoxal efeito – uma paisagem arrepiante, de uma feiura atroz ao início, que todavia esconde uma beleza convocada pela demorada atenção. As ruínas acasteladas, ou o postal avivando a decadência do lugar. Diz quem lá passa com frequência que os elementos da natureza deixam as suas marcas. As pedras tombam, acomodam-se numa caótica ordenação. Arrastam outras pedras que resistiam à monotonia do tempo parado. Só que o tempo não está parado. Investe contra as ruínas, que com o tempo em mutação se tornam ruínas das ruínas que já eram. E, todavia, nota-se uma inusitada beleza embebida naquela decadência. As imagens a povoarem a imaginação, que se tecia nos seus labirínticos corredores: se os olhos se detinham diante das ruínas, é porque, antes de o serem, naquele sítio fervilhou gente e uma intensa actividade.


Era só os olhos fecharem-se. Para sentir o bulício daquele lugar ermo – até nessa altura, ermo. A azáfama dos trabalhadores, o estridente barulho da maquinaria em plena jornada industrial. Os camiões que enchiam de poeira os caminhos pedregosos que subiam pela serra até avistarem o planalto dominado pelo que agora são apenas umas ruínas – apenas. Ao abrir dos olhos, as imagens que tinham passado no imaginário como se fossem o sonho de um tempo ausente, regressariam ao decadente, desértico lugar que ali se tornara. Um desfiladeiro das memórias resgatadas do nada. Ou um convite para mergulhar em livros, nos livros cheios de fotografias que trouxessem um fragmento da industrial imponência que aquele lugar fora.


Os diferentes rostos que a modernidade amealha trouxeram a decadência ao lugar. Uma curva descendente, no notório declínio que ditou o encerramento das instalações. Primeiro, o abandono – das gentes, por míngua de procura para o que ali se fabricava. A debandada de quem ali laborava sinalizava o desinteresse das gentes pela coisa mercada. Depois do abandono, o deserto que tomou conta da convivência das pedras desabitadas, já deixadas, inertes, à sua perfeita inutilidade.


Os olhos demoravam-se na contemplação das ruínas quando uma interrogação se insinuou: o abandono não trouxe a destruição do lugar? Não ficariam vestígios de uma decadência, uma insalubre imagem da estatura de outrora que os tempos modernos deixaram de patrocinar. Não haveria lugar à nostalgia incendiada pela simples existência do lugar encaminhado para as ruínas de si mesmo. Oxalá tivesse havido coragem, ou apenas rasgo, para pontuar o abandono com a devastação das edificações que deixariam de ser um desordenado amontoado de pedras fundidas com os ferros retorcidos e ferrugentos. Durante dias, só teria permanecido uma teimosa nuvem de pó a emoldurar os restos das pedras à espera da lenta derrocada. Não houve mister para encontrar tamanha coragem, ou apenas rasgo. Ninguém ousou mandar máquinas para que aquele lugar ficasse em nada.


As ruínas são o museu singular, espontâneo, da prosperidade de outrora. Perdurava a grandeza das ruínas. Não das pedras sem sentido que escoravam as paredes que se iam desnudando com a sucessão de invernias sempre severas. Era como se as pedras tombassem e com elas se esvaísse mais um vestígio da opulência que houvera naquele lugar. Enquanto durassem as ruínas, sobrava uma memória. Mesmo memória para quem, por acidente da juventude, nunca conhecera aquele lugar na sua vibrante laboração.


As ruínas são uma coreografia encenada sob a batuta das clepsidras que nunca param a função. Uma representação, apenas. O que aquele lugar é não são as ruínas em que ficou. Permanece vivo pelo fulgor bebido nas memórias – as visuais, de quem as viveu; e as fotográficas, de quem as legou para a posteridade. As ruínas não são a decadência convencionada. São apenas um museu, porventura em morte lenta, das coisas feitas quando ali havia um tempo próprio.

7.9.09

Bloco de notas


Afinal de contas, sem razão o cepticismo militante. É só abrir os olhos e ver em redor uma terra debruada a ouro e as carradas de honestidade que transpiram de certos protagonistas. Como são penhores de credibilidade. Meto a viola no saco e começo a exibir um cintilante optimismo. Dá gosto, esta terra. Louvados sejam os protagonistas que ornamentam com a sua existência os dias que nascem sempre com uma miríade de cores, refrescantes, perfumados com as miosótis e as buganvílias que brotam dos seus luminosos dedos.


Passam imagens de uma reunião partidária – do partido que se confunde com o Estado. Fico comovido com o ar extasiado dos militantes e simpatizantes que olham, tão embevecidos, para o grande líder enquanto o grande líder perora verdades. Vê-se, no querido líder, as qualidades de um estadista à prova de desconfiança. Nota-se a firmeza das palavras, a convicção da doutrina que alguém emprestou ao seu discurso. As palavras-chave que arrebatam a adesão de multidões: modernidade, igualdade, justiça social.


A mesma reunião partidária: o discurso do crânio de serviço, o homem que, ao que dizem, tem uma estaleca intelectual inversamente proporcional ao tamanho do corpo. Uma oratória – como direi? – auto-encomiástica. Folgamos em saber que há por aquelas bandas uma bebedeira de auto-estima. O homem debitava, assertivo, os feitos que se devem creditar ao governo do momento. Continuei a escutar com atenção e delícia as palavras do Dr. Vitorino. Num ápice descobri que nos andam a enganar, esses economistas mafiosos, com a historieta da crise sem precedentes. Números e estatísticas provam que, ó surpresa, estamos bem. Ou atravessámos a crise na leveza do ar, enquanto a crise consumia as carcaças dos outros países todos – de todos aqueles países que não tiveram em sorte uma gesta de governantes tão ínclita como esta que é vangloriada por um dos ideólogos da seita. (Que tenha havido distorção das estatísticas? Irrelevante. O povo move-se pelas mensagens de confiança, não pela crueza das estatísticas. É como dizem: uma mentira contada à exaustão depressa se converte em verdade. A que é conveniente, mas só isso, conveniente.)


Prossigo na mesma área política. O patriarca, que já foi duas vezes presidente da república e quis sê-lo outra vez, sentenciou: não vê cenário mais dantesco que uma vitória eleitoral da "direita" (mas o que é a "direita"?). No dia seguinte foi a vez do autarca de Lisboa dar para o peditório do terrorismo intelectual: não votar no PS é votar na direita. Eu gosto de ler estas sábias palavras, impregnadas de tolerância. Gosto. É um postal ilustrado das credenciais democráticas desta gente. Eu propunha que se determinasse a vitória antecipada do PS (e por goleada), ou se acabasse com as eleições, pois nas eleições sempre há gente que, incompreensivelmente, prefere votar noutros partidos (ó gente ingrata, ou ignara).


O oásis que somos, mercê dos prestimosos serviços e inigualável destreza dos socialistas, é fértil. Há dias o ministro dos negócios estrangeiros (o homem que nunca tem posição sobre nada) foi a Tripoli prestar vassalagem ao ditador líbio, que festejava quarenta anos de exemplar governação. Não sei onde li, mas faz sentido rebaptizar o ministério dos negócios estrangeiros: aquilo é um ministério de negócios no estrangeiro. Feitos por gente especializada em dobrar a espinha.


Num semanário de referência, uma fotografia deliciosa: Pinho, o ex-ministro que se enterrou por causa de uns chifres extemporâneos, foi com a consorte a um concerto de Tony Carreira. Para uma das figuras emergentes do jet set indígena, há algo de sintomático no evento diligentemente fotografado pelos paparazzi de revistas cor-de-rosa que agora não largam a bainha do desastrado ex-ministro. Só não sabia que o jet set indígena faz fila nos bastidores para chegar à conversa com um ícone da música pimba. Também gostei de saber: que o jet set ouve insistentemente música pimba. Um jet set pimba, pois – sopa no mel. (Ou, se calhar, Pinho não é tão jet set como delirantemente se imagina).


É belo estar neste lugar. Com estes protagonistas, tão zelosos do seu amadorismo. É belo: uma terapêutica para o riso.

4.9.09

Joy Division, "Atmosphere"

Repreensão dos instintos

Os passos, só o barulho dos passos no silêncio da madrugada. Nesse silêncio escutam-se apenas as dores interiores, as veias incendiadas pelo arrependimento das palavras ditas, de uma inteira maneira de ser. Caminham, os pés. Erram pelos caminhos que se tecem, aleatórios. É o profundo pensamento que os conduz, como se fossem os dedos meticulosos metidos num tear a dedilhar os fios que se tecem num caótico tapete. E vogam, os pensamentos. Desalinhados, sobrepondo-se numa desorganizada sucessão.


É tremenda a confusão que troveja no pensamento. Por vezes o corpo estremece, electrizado pelo relampejante acosso da consciência. A consciência; a dolorosa chamada à terra, ou uma culpa enfim domada. Pois há na consciência que aterra uma paradoxal sensação: ora a mordomia de uma aterragem suave que acalma o fervente turbilhão que inflamou os instintos; ora a negação dos instintos, que renega a espontânea forma de ser, um borrão sobre o que se possa pensar ser a essência do ser. Atado a esta encruzilhada, oxalá o pensamento não mergulhasse na sua profundidade. Lá, onde se torna insuportavelmente doloroso.


Ao falarem as águas lânguidas da consciência, soltam-se as amarras da lucidez. Ou do que se julga ser a lucidez. Impõe-se a repreensão dos instintos que foram caução de gestos improváveis, ou de palavras que deixaram em alguém um travo amargo, ou da estranha sensação de desprazimento com o ser que se é. Da repreensão dos instintos, mas não da repressão dos instintos. Mal das águas remansosas da consciência se fossem sempre a compressão dos instintos. É que os instintos desdobram-se na sua esquizofrenia. O mesmo instinto pode infligir dor e pode ser a inesperada porta que se entreabre, a súbita saída encontrada no nada para um labirinto demencial.


Tudo isto se faz em silêncio. O turbilhão do indomável pensamento exige o silêncio do mergulho nas águas profundas onde mora o patrono da lucidez. É ele que vai temperar a fervura das águas que se revolvem numa correnteza bravia. Do silêncio, dir-se-ia que é o medicamento que acalma as consumições fermentadas no leite coalhado que é o arrependimento.


Não custa destapar as algemas do arrependimento. O que custa é ver o que está a montante e a jusante do arrependimento. A montante, a ferocidade dos instintos que se soltam na sua selvática, porventura genuína cadência. Deixando um rasto de equívocos, palavras que não deviam ter sido ditas, uma inteira forma de ser que parece profundamente errada. Depois o tempo acerta contas com o arrependimento, quando a aflitiva consciência faz as vezes do paredão da barragem que retém as tempestuosas águas que ali se espraiam num vagaroso leito onde as águas enfim repousam. A jusante, para além do paredão da barragem, depois do abrupto lancil onde se despejam os excessos dos imoderados instintos, estremece uma culpa.


É neste fluxo de opostos que macera a existência. Retalhada entre o algo e o seu contrário. Num constante deambular entre o ser o seu inverso, quando no silêncio da lucidez que aterra grita a negação do que fora dito ou feito, às vezes a negação do ser que se é. Não sei o que mais custa: se admitir a negação de tudo isto, ou as dores que admiti-lo causa. O corpo entrega-se a esta mortificação. Nas palavras de Fernando Pessoa, "feliz do homem que pode pensar profundamente, mas sentir tão profundamente é uma maldição. Como descrevê-la? Horror sobre horror."


Das alturas onde nasce o rio despenham-se as águas na sua ferocidade. Tropeçam nos penedos que se atravancam no caminho. Essas águas fulminam-se no cimento dos instintos, a pureza do ser nem que dessa pureza sobrem todas as angústias mais tarde domadas no silêncio da madrugada. E também não sei o que sou: se as águas transparentes que tragam o caminho pedregoso, todos os turbilhões que se sucedem com alguma selvática intensidade, ou o lado a jusante da barragem quando a repreensão dos instintos desastrados destapou o alçapão do arrependimento.

3.9.09

A paternalista autoridade exibe-se e o cidadão aplaude


Na praia, corria a notícia: ia um pandemónio no cais onde se apanham as barcaças que sulcam a ria até ao areal. Fila de gente muito para além do habitual. A polícia marítima marcara para aquele dia uma "acção de fiscalização". Os agentes da autoridade estavam no cais a contar as pessoas que embarcavam. Impediam a sobrelotação das barcaças. Ao meu lado, um cidadão – o protótipo do "cidadão consciente" – aplaudia à distância a operação policial. Assertivo, atirou para o resto da família: "pois eu cá acho muito bem; é para o bem de todos nós".


Subiu-me pela pele a alergia do costume quando sinto exibições gratuitas de autoridade. Quando a autoridade passa das marcas e escorrega para o autoritarismo. Fico mais inquieto quando vejo ao meu lado "cidadãos exemplares" que ovacionam o paternalista braço das autoridades que se esmaga sobre todos nós, como se fosse um beijo de Cassandra. Há gente que não cresceu, mostrando os laços avivados de uma espécie de eterna adolescência: querem a carta de alforria, mas quando sentem que a maré vem contra convocam o auxílio paternalista de uma suprema autoridade. Neste caso, as autoridades existem – pensam os adoradores das autoridades de pulso firme – para prevenir grandes males. E para os reprimir, caso seja necessário.


Ao fim da manhã, quando o sol já ameaçava a saúde da epiderme, regressámos a terra. Do outro lado da ria, confirmei o bulício. A fila que se alongava pelo cais flutuante, subindo a escadaria até à rua, dobrando a esquina pela esquerda. As pessoas impacientes, sussurrando impropérios aos agentes pela demora a que não estavam acostumados. Entre o bordo do cais e as barcaças que nele atracavam, agentes da polícia marítima com cara de poucos amigos, ar tenso e, sem exagero, marcial. Faziam a contagem de quem saía das embarcações. E eram eles que substituíam os comandantes das embarcações na contagem dos passageiros que iam a bordo na curta viagem até à praia. Com gestos militares, voz de comando a que a turba tinha que obedecer sem esboçar a mínima objecção, tal era o ar ameaçador dos agentes em gratuita exibição de autoridade.


Se ali estivesse o "exemplar cidadão" que fora ocasional vizinho na praia, adivinho-o a destilar astutas lições de moral sobre a demora necessária suportada pelos veraneantes que se faziam à praia a horas impróprias (no entender de dermatologistas). Com aquele ar de nazi travestido de socialista, com o dedo erguido a defender as diligentes autoridades que só querem o nosso bem. E que, por tanto quererem o bem comum, ostentam autoridade para a prevenção de males maiores. Ensinaria aos relapsos, o "exemplar cidadão", que a imprevidência geral exige o punho de ferro das autoridades. Os veraneantes em demorada espera, no pino do sol que se fazia tórrido, aconselhados pelo "exemplar cidadão" a não serem comodistas. Um pouco de inteligência; como disse o "exemplar cidadão" na praia, de dedo erguido para sublinhar a assertividade das suas verdades, "é para depois as pessoas não se queixarem". Depois, supõe-se, é quando o mal tivesse acontecido.


Se ali estivesse o "exemplar cidadão" a dizer tudo isto, eu dir-lhe-ia que confio mais nos comandantes das pequenas embarcações do que nos zelosos agentes que passeavam a autoridade da farda (ou que passeavam, de farda, a autoridade – não cheguei a perceber qual das duas era). Os males acontecem, estejam as paternalistas autoridades de olhos bem abertos, ou estejam elas com a atenção desviada para os errados locais. Prefiro confiar na aleatoriedade das coisas do que na abusiva presença das autoridades convencidas que saldam as hipóteses de acidentes com uma fugaz, mas intrusiva, "acção de fiscalização".


Dispenso estas autoridades que se querem insinuar no seu paternalismo inevitável. Um paternalismo sufocante, como se fosse uma jaula que nos limita os passos. Mas o mal é meu, que confio demais no valor da liberdade. E não sei o que é pior: se ver os untuosos agentes da autoridade a cavalgarem num autoritarismo ainda mais perigoso por ter a caução da democracia; se "exemplares cidadãos" que esbracejam ensurdecedoras palmas quando são testemunhas destas "acções de fiscalização". Estes "exemplares cidadãos" são tiranetes em potência. Dêem-lhes uma farda e temos pela frente pequenos Estalines.