28.2.20

Ao portador (short stories #199)


Jambinai, “Onda”, in https://www.youtube.com/watch?v=Z71tKxrztC4
          Não se alcance a confiança necessária para o esteio das pessoas. A única janela está fechada. Não é possível entrar na casa – ninguém tem a chave para abrir a porta. Que se encomenda à combustão dos espíritos, a não ser um módico de esperança? E o que é a esperança? A partir de quando ela é confundível com a ilusão? Melhor critério será ter um cais em que os pés estejam solidamente ancorados no chão. Apenas se conta com o que se pode contar. Não se espera nada que não sejam números escritos nos dados visíveis. A milésima tentativa de acostar na enseada onde as quimeras se prometem veio adornada com o sabor amargo: não se aprende nada e as ilusões estão três passos atrás dos sonhos, quando se aprecia a probabilidade de umas e de outros. Não se sabe se a janela à mostra, a janela que todavia está fechada, pode ser superada. Não se sabe se é perjúrio a intrusão consequente. Menos se sabe o que haveria para descobrir dentro da casa. Não se consegue refrear os dedos quentes, a emanação do sangue por sua vez fervente. Não é ao gato que pertence, a título exclusivo, a curiosidade irreprimível. A diferença é que os gatos têm sete vidas e a curiosidade não mata apenas o gato. E se a casa está armadilhada com a aliciação depois inescapável? O preço da curiosidade não pode ser a irretratável dependência. O medo será o vício da casa. A ela voltar, uma e outra vez, sem interrupção dos dias. Sem saber porquê. Um percurso maquinalmente empreendido, para da casa sair apenas com o proveito de a ela ter voltado. Como se houvesse purificação através do vazio. Os sonhos não são um paradigma. Não tornam legíveis as experiências havidas fora do sono. Antes uma taluda modesta, mas ao portador, do que uma quimera prometida e à partida impronunciável.

27.2.20

Agência (short stories #198)


Imploding Stars, “Childhood”, in https://www.youtube.com/watch?v=upgI3ZZCwOA
          Eram os braços mais compridos que se conhecia. Do tamanho de tentáculos de polvo (sem o lado sombrio que se poderia desenhar através da metáfora). Pesavam mais do que estátuas e, todavia, açambarcavam uma leveza surpreendente. Desmultiplicavam-se na sua generosidade. Parecidos com braços de rio, num delta que tinha cabimento na incomensurável precisão dos outros. Era como se fosse um confessor sem confessionário estabelecido. Nómada. Um pouco como os seus braços em que se refugiavam os que deles precisavam, na modesta reparação das almas que não sabiam do mar, na decantação das angústias que não se suprimiam pelo dote da vontade, na fonte de onde obtinham sereno encantamento pelo porvir. Ninguém cuidava de aferir as suas interiores dores. Quando se estabelece um modo de vida, quem quer saber da sua antítese? A meticulosa indagação das amplitudes das marés não tirava o sono. Se ao menos houvesse manhã sem a tergiversação do orvalho, o palco ficaria desembaraçado de contratempos. E, porém, ninguém cuidava de perceber se por ser o cais onde tantas importunações alheias aportavam, o homem com estes braços tão compridos não seria avexado pela insónia. Ninguém cuidava de estimar a medição das cogitações que o assaltavam por se prestar a este papel. Os que conseguiam ter um lampejo de lucidez e começavam a interrogação, depressa capitulavam: “ele é forte, está preparado para purgar as angústias dos outros”, diziam, talvez em exercício defensivo que precatasse possíveis desaguisados da consciência que deles tomassem conta. Um dia, o seu lugar ficou vazio. Na geografia dos seres, a sua ausência não foi notada. As almas errantes tinham um manual de instruções de onde constava o inventário dos homens com braços insolitamente compridos. A indiferença pelo lugar vago era um excruciante egoísmo. Era como se o lugar vago não precisasse de indagação. Ninguém queria saber do fado do homem imensamente generoso.

26.2.20

Invisível


Weezer, “Paranoid Android”, in https://www.youtube.com/watch?v=4nTo8rjo-lM
Fora do radar. Como se o corpo fosse um fantasma aos outros olhares. O sucedâneo de um fantasma. Invisível.
É deste calibre um anseio. Diferente da arrogância dos ensimesmados, dos que se julgam matéria centrípeta do mundo, narcísicos. Talvez: uma misantropia virada do avesso. À consideração da peugada da alma, quando ela for dada a um paradeiro. No lado contrário dos narcísicos, ajuizando que o inferno é ele próprio. Dos seus fantasmas que lucubram na medula que é um labirinto sem fuga.
Invisível, sem terçar a irresponsabilidade. Sem querer fugir ao escrutínio, que começa (e acaba) nos interstícios da alma que se enredam numa matéria complexa que não oferece respostas. Ousadia. Porque a invisibilidade pode ser treslida pelas convenções. Mas pouco importa. A condição da invisibilidade não se entrega ao juízo dos outros. Restringe-se aos cânones interiores.
A invisibilidade pode ser um logro. Pode parecer que se atravessamos as ruas da cidade sem sermos notados pelas pessoas que, maquinalmente, nos ignoram. Convém não abusar da invisibilidade. Um só ato excessivo, uma chamada de atenção que perturbe a abúlica condição dos passeantes, e depressa se revela como a abúlica condição é apenas um fingimento. É um paradoxo: na voragem da cidade, ninguém repara em nós e estamos sempre sob uma disfarçada vigilância dos olhares que fingem não estar atentos. Não há margem para descuidos. A invisibilidade pode ser um desejo. Um impossível desejo.
A vigilância que se tornou em predicado contemporâneo impede a consumação da invisibilidade. Pode parecer que as ruas são atravessadas e as pessoas se cruzam sem reparar em nós. Mas há sempre a vertigem de uns olhares forasteiros prontos para desmentir o anonimato. Uma escala austera impõe-se sobre a aparência da invisibilidade. 
Afinal, ninguém é um rosto tão anónimo como intuía o desejo de ser invisível. Como as celebridades, denunciadas pelos olhares voyeurs que esbarram na sua pública condição, ninguém escapa à verificação meticulosa dos olhares outros. Se assim for preciso. Estar invisível parece a condição inata da imensa massa de anónimos. Até deixar de o ser. Quando a pessoa transborda do seu anonimato.

25.2.20

Quem leva o arroz para o restaurante?


Pixies, “Gouge Away” (6 Music Live Room), in https://www.youtube.com/watch?v=7aSbf406xaw
Miguel Esteves Cardoso, Publico, 24.02.20, p. 7.
Quando alguém vai a um restaurante, aceita tacitamente a integralidade do cardápio proposto pelo restaurante, ou levar partes de refeições que o levem a abdicar da integralidade do cardápio é apenas uma manifestação da sua liberdade individual? 
Alguém pode pensar: “não há melhor arroz do que o meu”. E não hesita em preparar uma dose desse arroz, acondicionando-a devidamente, pedindo ao empregado de mesa para o aquecer em micro-ondas (ou em banho-maria) a tempo da restante refeição que for escolhida. O que dirá o gerente do restaurante? Aceitará um ato que, visto do exterior, parece uma bizarria? Se o restaurante se encher de brios, pode considerar ofensivo que o cliente dispense o arroz meticulosamente preparado pelo chefe. Podem colidir duas formas diferentes de liberdade individual: a do utente do restaurante e a do restaurante (descontando o facto de não se considerar liberdade individual, pois um restaurante é uma empresa). Não pode o restaurante alegar que a sua ementa é um todo, um ato de criação do chefe contratado, e que o cliente que decida amesendar neste restaurante tem de aceitar a integralidade da ementa? Não pode estar a ser hipotecada a liberdade criativa do chefe do restaurante? Como decidir um possível conflito entre o restaurante e o cliente: o restaurante tem o direito de recusar o cliente se ele insistir em comer o seu próprio arroz?
Não é procedimento habitual um empregado de mesa ser confrontado com o pedido do cliente que traz o seu próprio arroz de casa. Não se ordene o problema pelo prisma da “normalidade”. Em todo o caso, é insólito o comportamento de um cliente que leva e o seu arroz para o restaurante. Mudando de palco e tentando a analogia: se esta pessoa é convidada para jantar em casa de um amigo ou de um familiar, também leva o seu arroz confecionado de forma inigualável? Não pode o anfitrião sentir-se atingido na sua personalidade, entendendo que o convidado não confia nos seus dotes gastronómicos? Se é tanta a frontalidade do convidado, por que não a usou para recusar o convite do anfitrião, argumentando que em sua casa se come um arroz medíocre?
No plano das hipóteses, também se pode equacionar um restaurante que não tenha tantos pergaminhos, sem o gerente considerar lesivo da reputação do estabelecimento se um cliente carregar o seu bornal com o arroz preparado de véspera e em sua casa. Este gerente verá no episódio uma oportunidade de negócio: “aviso o senhor que não fazemos desconto nos pratos constantes da ementa por abdicar do arroz que os acompanhar.” 
Afinal, ele há gente tão generosa que, não prescindindo do seu pantagruélico arroz, se predispõe para engordar os lucros dos restaurantes. São os maiores adeptos do capitalismo. Do capitalismo que aproveita aos outros. Uma espécie de filantropia invertida (pois que se considere que os restaurantes possuem melhor condição económica do que o cliente que trouxer o arroz de casa).

24.2.20

Complexo épico


Trentemøller, “Silver Surfer, Ghost Rider Go!!!” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=989pjmGhK24
Ninguém devia guardar fantasmas sem os exorcizar. Ou melhor: devia-se aprender na escola como exorcizar, e a título definitivo, fantasmas que viessem a ser povoamento da alma. Para não sermos reféns de complexos épicos.
A compreensão das angústias interiores não é empreitada fácil. Não há suficiente perícia para juntar as variáveis todas num tabuleiro liso, para depois as depurar devidamente e chegar a uma terapêutica. São épicos, estes complexos que gastam as veias e envenenam o sangue. Em vez de haver espírito para receber no regaço os predicados que merecem exaltação, o pensamento descai para os tenebrosos fantasmas que são uma tela baça contra a lucidez.
Houvesse ao menos a capacidade para sabermos sair da cápsula restrita de onde nos tomamos muito a sério e seria uma ajuda a não desprezar. Não sabemos contemplar o logro da imperfeição. É um paradoxo: ninguém põe de parte essa inata condição, mas não somos estrénuos ao lidar com as fragilidades. Ou reagimos em estado de negação, fingindo que as fragilidades não nos habitam. Ou somos servidos na fogueira das aflições internas, porque, apesar da nossa imperfeição, interiormente não toleramos que seja essa a nossa condição e que, por ser essa a condição, algumas fragilidades sejam a voz mais alta.
Sonhamos acordados quando temos pela frente o repto do complexo épico. Confundimos conceitos: um drama é menos do que uma tragédia e, contudo, é frequente convocarmos a tragédia como estado de alma. Sonhamos acordados com o fingimento de nós mesmos. Não é irrelevante repeti-lo: marchamos continuamente num palco onde fazemos o papel de um outro que não corresponde com o nosso eu. Sem sabermos que na finitude do palco se encontra um precipício. Esse é, talvez, o maior dos complexos. Um épico complexo da revelada fragilidade que nos custa como a dor de um punhal que rasga fundo até ao osso.
A astúcia está em não nos levarmos a sério. Se aceitarmos que somos uma microscópica emanação do todo, não nos revemos na solenidade com que nos tomamos repetidamente. É o primeiro ato para o silenciamento dos complexos épicos que nos sobressaltam. Sem nos tomarmos a sério, não nos importunamos com as pessoais vergonhas.

21.2.20

Escrivão


Sharon van Etten, “Beaten Down”, in https://www.youtube.com/watch?v=gC9GyTAuk8s
I
Estiolam-se as vontades no parapeito do remorso. Entre duas palavras sem espessura, o café é bebido mecanicamente, quase como se nem soubesse a café. Na mesa do lado, uma conversa enfática, engalfinhada. Gente acalorada na tradução de argumentos ímpares. A conversa distraiu-me. Perdi o fio à meada dos pensamentos que eram hesternos à conversa. Os sentidos atraiçoam-se.
II
A meio da tarde fui à janela. Precisava de uma interrupção. Não conseguia encontrar o dínamo da concentração e dispersava-me por assuntos que não eram chamados à colação àquela hora. O dia prematuramente primaveral fazia efeito de estufa junto à janela; o sol estava deitado sobre aquela parte do edifício como lembrança extemporânea da canícula que não tarda a remoer os corpos em mansardas de suor. Lembrei-me dos verões. De como parecem insuportavelmente longos com a passagem do tempo. De como exsudo mais à medida que os verões se sucedem. Lá em baixo, um rapaz surgiu, apressado, montado numa bicicleta urbana. Estacionou repentinamente junto a um automóvel de alta cilindrada. Num golpe seco, partiu um vidro e mergulhou para o interior do automóvel, de onde saiu num ápice na companhia de uma mala. Desapareceu do horizonte quase antes do alarme do automóvel começar a soar. O alarme: era altura de regressar ao trabalho.
III
O fim de semana não tinha agenda. Estava farto de agendas, de relógios, de compromissos aqui e ali, de idas involuntariamente obrigatórias a este lugar e àquele. Podia sair da cidade. Contrariei a pulsão. Queria ficar na cidade e sentir que a ela não pertencia. Tinha de descobrir um quinhão da cidade que não tivesse sido descoberto. Fugir dos turistas, acima de tudo. “Fugir dos turistas”; interiorizei as palavras, debatendo-me com uma contradição interna. Nunca reneguei os pergaminhos cosmopolitas. Sempre que podia, viajava, tornava-me num ser de que estava a querer fugir no fim-de-semana. Tinha de encontrar uma explicação para a contradição interna? Não. Era o fim-de-semana madraço.
IV
A arrogância marialva com que alguns homens abordam as mulheres é indigente. Tamanha sobranceria, a roçar uma superioridade estulta, esconde um amuralhar de outras limitações. Essa era a teoria. Tinha outra: os homens que, em roda de amigos sem a presença do sexo feminino, ou em típica conversa de balneário, empunham os galões de exuberante donjuanismo, devem ser uns fracassados. É fácil tamanho ufanar quando não é legítimo apresentar provas. São como os cães que ladram, mas que ficam a léguas de morder. Escrivães que se limitam a escrever as suas próprias narrativas. Sem saberem passar do papel à ação.
V
         Pobres, os escrivães.

20.2.20

Off the record


This Mortal Coil, “Sixteen Days/Gathering Dust”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZxcYLj7R_9Y
Seriam dezasseis dias. Parecia mais. A parede de silêncio caiu sobre o tempo, tornando-se espesso e viscoso, insuportável. Não podia transigir nos segredos que foram contados. 
Off the record, é off the record, não te esqueças.
Foi a advertência que ouvi como fatura por ter sido nomeado fiel depositário de segredos que não eram meus. Estava equivocado: aqueles segredos passaram a ser meus quando me foram endossados.
- Tinha preferido a imersão no desconhecimento.
Revelei este estado de alma a uma terceira pessoa, sem segredar os segredos que me haviam sido confiados – apenas segredei que alguém (sem identificar) me nomeara fiel depositário de alguns segredos. A terceira pessoa insurgiu-se: 
- Não sejas egoísta! Tens de honrar a confiança. Se essa pessoa contou segredos, não podes alfandegar o arrependimento por teres travado conhecimento do seu teor. É das maiores provas de confiança! Um esteio da amizade. E um reconhecimento. O reconhecimento de que tens a linhagem de alguém que pode partilhar um segredo. Não sejas egoísta!
A angústia emergira do teor dos segredos. Eram excruciantes. Alguns deles, reveladores de uma inesperada maldade. Sentia-se como se tivesse sido indigitado para partilhar as angústias do tutor dos segredos. Como se esta comunhão aplacasse as suas dores interiores, em parte transferidas para o fiel depositário dos segredos. As amizades deviam ser preservadas destas tarefas ingratas. Disse:
- Sabes que há o contraste exato de um egoísmo, que é o outro egoísmo. Não parece que o ato da pessoa que me revelou segredos seja um desinteressado suar de segredos que o deixam sem ar. Se me dizes que fui merecedor de confiança, digo-te que dispensava esse ato. Não posso ignorar o que me foi contado. Tira-me o sono. Que amizade pode tolerar a exportação das dores de outrem? A amizade exige este compromisso? 
Não houve resposta a estas interrogações. A terceira pessoa percebeu que eram perguntas de retórica. Revia-se no interlocutor. Talvez sentisse a mesma angústia se tivesse sido escolhida para ser fiel depositária dos segredos de um amigo qualquer, se esses segredos desnudassem uma faceta repreensível. Percebi pelo seu silêncio. O meu silêncio durava há dezasseis dias. O tempo inteiro que guardei, sozinho, uma revelação de alguém que, através dela, se mostrava obnóxio e soez. Uma revelação que me tirava o sono – não parava de o usar como mnemónica interior. 
       Não contei o segredo. A confiança que o tutor dos segredos merecia impedia-me de o fazer. Mas tinha de dizer a alguém que alguém me contara, off the record, coisas que fariam tumultuar a consciência do homem comum. For the record.

19.2.20

Soberania (short stories #197)


Desert Sessions Vol. 12, “Crucifire”, in https://www.youtube.com/watch?v=7iOS1mNyvoc
          Encher a boca com soberania é como travar o vento com os dedos. Diz-se: estes são os meus limites e para lá das fronteiras que amealhei não admito a entrada de outros. Pudessem as ilusões macerar em terreno tão fértil e não haveria fome no mundo (pressupondo que era equitativa e eficaz a distribuição dos mantimentos). Somos servidos num engodo principesco: os benefícios da materialização da democracia, sob o beneplácito da tecnologia que avança mais depressa do que o tempo, oferecem possibilidades que parecem superar o infinito. Não se tem consciência das contrapartidas. Somos vulneráveis, numa assimetria que configura a nova injustiça nos meios e fins ao alcance das pessoas, uma nova ditadura que se pressente, surdamente. Um punhado de esclarecidos da tecnologia pode, se esse for o seu desejo, manter uma trela apertada sobre o nosso pescoço. E podemos nem dar conta. A não ser que o apetite da extorsão seja ativado e o perito não decaia na insónia ao exercitá-lo. As fronteiras do ser foram dissolvidas na lixívia da tecnologia que atravessa os tempos a galope desenfreado. Somos corpos expostos, vidas translúcidas ao espiolhar curioso. Somos a antítese da soberania. A palavra desmaterializou-se. É uma daquelas palavras que se tornou arcaica, passando a ininteligível quando estala na boca. Os sonhadores podem continuar a perseverar no seu graal. Convencidos da sua impecável diferença, por inigualáveis se considerarem, ignoram como são vetustos esses quadros de pensamento. Quando aterram das ilusões e intuem que a soberania se dissolveu na espuma em que medravam as quimeras, sentem a dor pungente de quem acreditava numa coisa e acordou para o seu contrário. Imputem-se os maiores culpados no processo: os educadores que insistem nos termos atávicos e instruem na matéria decadente que perdeu serventia. Reordene-se o vocabulário. Abra-se uma secção com as palavras mortas que só interessam como curiosidade arqueológica. E atire-se para lá a palavra soberania. 

17.2.20

Arrematação


Handsome Modelling Boy, “The Truth”, in https://www.youtube.com/watch?v=-HW7nj-GUZY
You can´t hide from the truth, because the truth is all there is”. 
Handsome Modelling Boy, “The Truth
Ao olhar para uma câmara fotográfica Nikon, não se pode pretender que seja da marca Canon. Lembrava-se sempre desta frase do avô, que ficou no seu arquivo como adágio. Em vez do dia nebuloso, podia pretender um dia soalheiro. Mas o dia nebuloso é que ficou emoldurado. O que fazer? Contemplar o dia nebuloso. Forçar sobre ele um poema. Um poema apologético do dia nebuloso. É como ter em mãos a máquina fotográfica Nikon sem fingir que se trata de uma Canon (até por ser desconhecedor do meio, não sabendo se a marca Canon certifica melhor qualidade).
A pele da alma parece ganhar rugas. Congeminam-se tratamentos que retardem o envelhecimento da alma. As rugas só conseguirão ser disfarçadas, na melhor das hipóteses. Não se temam as consequências do tempo – outro adágio herdado da avó. Quem quer subir ao promontório onde julga encontrar o elixir da eterna juventude só conseguirá encontrar um nevoeiro denso que nada deixa ver. É uma perda de tempo.
Poderá, a certa altura, uma demanda existencial perguntar pela verdade. Poderão estabelecer-se critérios de refinamento da verdade, deixando de parte o restolho que não contribui para a verdade. Poderão ser feitas sucessivas aproximações ao território da verdade, conduzidas por aqueles critérios. Quem assegura que a verdade é a verdade? Será a verdade assim encontrada apenas a representação da vontade que se mobiliza para encontrar a verdade? 
As baionetas assestadas ameaçam a serenidade do espírito. Podem, com toda a probabilidade, carregar as rugas da alma escondidas sob um verniz qualquer. Podem fingir um dia soalheiro quando ele está plúmbeo. Os corpos transidos exsudam-se no martírio das perguntas sucessivas que não encontram respostas. Essa talvez seja a única verdade: a ausência de verdade, ou a sua delimitação pelo império da vontade. O restante, que seja arrematado numa liquidação das sobras deixadas para trás pelas almas consequentes. Joguem-se os dados num planisfério onde as almas se acotovelam, espartilhadas pelo incómodo de serem multidão. 
Antes isso do que proceder à arrematação das próprias almas. Ninguém garante que algumas fiquem órfãs e se exponham às tribulações da arrematação. Não ficam para trás. Ficam sitiadas num estatuto diferente. Não deixam de ser almas. A estas almas não importa a tradução da verdade. 

14.2.20

A meada dos mitos


Indeep, “Last Night a DJ Saved My Life”, in https://www.youtube.com/watch?v=GtfZbj4J71A&list=RDGtfZbj4J71A&start_radio=1
Dizia o mitómano para o misógino:
Eu sei que tu és homossexual. 
E o misógino, para fazer a vontade ao mitómano e nivelar-se pela sua linhagem, respondeu:
E tu és a pessoa mais honesta que conheço.
O misantropo entrou na conversa:
Também posso dar o meu contribuo para a mitomania reinante e anunciar que gosto de todas as pessoas e eu é que sou o inferno.
O misógino acusou o misantropo de fugir às suas responsabilidades: 
A mitomania não combina com as tuas qualidades. Podes ser misantropo e ser a pessoa mais dedicada à verdade. De outro modo, a tua misantropia não faz sentido.
O misantropo ficou confuso, acusou o toque. A resposta foi ríspida: 
Ao menos, não sou seletivo nos agastamentos, como é o teu caso. De mim pode-se dizer, com toda a propriedade, que sou magnânimo na distribuição das antipatias. Sou, por assim dizer, mais equitativo.
O mitómano não quis ficar à margem do pleito:
Não é conforto que te valha, essa recusa das pessoas. Como podes adulterar a tua misantropia e reclamares uma posição equitativa? Tu detestas todos por igual. Onde está a equanimidade disto?
Antes do misantropo esboçar resposta, o misógino tomou a palavra para, ao mesmo tempo, acudir e atacar o mitómano: 
Tens razão. Mas de pouco te vale essa razão. Ninguém te dá crédito. As tuas trapaças são imagem de marca. Quem saberá se o que dizes corresponde ao que sentes, ou se estás a contar mais uma patranha para alimentar a dissidia entre nós. 
O misantropo suspendeu a querela com o misógino e, em coligação com este, atirou-se ao mitómano, exclamando: 
Ninguém te dá ouvidos! Ou melhor: só te dão ouvidos se escutarem atenciosamente as tuas palavras e delas tirarem a esquadria contrária ao que disseste. A tua verdade está no avesso das palavras que proferes. Mas até no silêncio contas mentiras.
Sentindo-se acossado, o mitómano partiu em sua defesa:
Quem for virgem da mentira, atire a primeira pedra. Mas tenham cuidado, meus caros, tenham cuidado com as vossas cabeças. Suspeito que nenhum de vocês escapa a um traumatismo, pois é muito provável que as pedras caiam sobre as vossas cabeças.
A confusão estava instalada. Depois de muito coloquiarem, o mitómano, o misógino e o misantropo acordaram nas tréguas. A cada um foi dada a palavra, uma declaração final que selava os termos do armistício:
- Misantropo: Declaro que a minha rejeição da sociedade é pusilânime. Aceito a influência do mitómano nesta declaração.
- Misógino: Declaro que a depreciação de mulheres é um fingimento para esconder a minha homossexualidade. Aceito a influência do misantropo nesta declaração.
- Mitómano: Eu prefiro não falar, para não mascarar com a mentira as palavras que viesse proferir. Aceito a influência do misógino e do misantropo nesta declaração.
            Ato contínuo, os três saíram de cena e refugiaram-se numa casa de fados, onde fizeram companhia a uma trupe de toureiros e forcados e fadistas (não necessariamente por esta ordem). Estavam todos no seu habitat natural. O misógino e o misantropo não desconfiavam que o mitómano tinha mentido na sua declaração final.

13.2.20

O testamento sem herdeiros (short stories #196)


Nils Frahm, “Harm Hymn”, in https://www.youtube.com/watch?v=5GcivAhZ4qk
          Parece não ter remédio. Os legados perdem-se na vetusta sombra onde as memórias se apagam. Sobra o silêncio, a matéria-prima do esquecimento. Dizem, os iludidos, que somos todos matéria perene. Dizem que não somos apagados das memórias. Não há nada mais errado. Quantas vezes somos apagados das memórias e ainda não foi encomendado o nosso funeral? Depois, dissipa-se a presença que de nós houve nos lugares que foram sendo inventário corrente. Não se ouve a fala. Não se prendem as lágrimas com o caldear que fora nossa marca impressiva. Podem restar fotografias, palavras emolduradas, lembranças que vogam na memória dos outros. Não chega para selar um testamento da memória. Falta a substância, o corpóreo sentir da pessoa que deixou de pertencer aos vivos, a sua fala. Os iludidos pressentem as almas, declaram-nas imorredoiras. Atestam que é no húmus da alma que reside o testamento da pessoa que o deixou para memória futura. Um contratempo insurge-se contra a teoria: o testamentário não pode ser testemunha dessas memórias que são detidas por quem o evoca. Ficará um testamento, mesmo que tenha formalização, mas cuida apenas dos aspetos materiais. O apagamento da memória dilui os ecos do testamento outro que o legatário tenha deixado. Não é apoquentação suficiente, porém. Depois do falecimento, o corpo é apenas um inerte, desligado o pensamento, extintos os sentimentos. A ninguém devia importar este testamento. O seu fautor cuida de uma liberalidade que aproveita aos que dela beneficiam. Mesmo que a correspondência se esbata com o tempo que atravessa o calendário. É uma generosidade que se esgota no ato em si, sem outra repercussão. No fim da linha, o que se pressente é o vazio. O oblívio. A morte é o vaticínio do esquecimento. O testamento, se tanta for a pervicácia, é um documento em vão. Os herdeiros podem ter os seus nomes escritos, mas não passa de uma formalidade.

12.2.20

Em direto: da bouça dos mastins


Destroyer, “Cue Synthesizer”, in https://www.youtube.com/watch?v=06ZLNLz2yGI
Deve haver gente assim: iconoclastas das emboscadas, fugitivos da consciência, fautores das ignomínias que se praticam, avulsamente. Gente meã, proveniente das coutadas onde é nauseabundo o ar que se respira, onde o chão se enodoa com o som das suas palavras. Povoam-se entre os demais, disfarçados. Aparentam ser como os demais, gente vulgar. Não sendo distinguíveis, insinuam-se entre os que deles querem mal. Não há como saber quem são. Os venefícios só se descobrem depois do ato cometido. Como é habitual acontecer com as demais coisas.
A transfiguração esbate-se, a certo ponto. Os azimutes foram reinventados. Há uma tremenda confusão acerca dos pontos cardeais. As mãos dão-se e com o contágio as almas dão o flanco à metamorfose do que aprenderam a ser. Outros há que reagem com virulência às iniquidades que os vitimam. Preferem engrossar o exército dos fautores dessas aleivosias. Já que não as podem sanar na sua pele cicatrizada, já que não as podem cercear, transitam para a trincheira dos que lhes impuseram um mal. Conseguem escapar a males vindouros: eles não costumam ser cometidos sobre os que pertencem à confraria. Mas mantêm uma desconfiança metódica.
Banaliza-se o que dantes era proscrito. Hierarquiza-se com a batuta do telúrico contrabando das coisas. O olhar decanta-se noutras porosidades, recusando estalões antigos, agora entendidos como heresias que previnem os tempos vindouros. Dizem: os tempos mudaram, as pessoas mudaram, os comportamentos mudaram – sem admitirem que há na enunciação qualquer causalidade. O que era penhor diluiu-se na centelha baça da clepsidra que comanda a boca do tempo. Dirão, os penhorados pela saudade dos tempos vencidos, que os juros de mora adiam-se pela impossibilidade do lodo em que habitam os tutores destes tempos novos. 
São pirómanos congratulados. Ateiam os incêndios com a sua boca pútrida e os demais, cedendo à bulimia do espírito, aplaudem. Foram em hibernação para o lugar onde campeia a contrafação das palavras. As palavras deixaram de corresponder aos sentidos. Capitularam, sem darem conta. Tornaram-se um dos viscosos intérpretes das formalidades que selam a nova cartografia em que se movimentam as pessoas. No pórtico de um templo criado a preceito, é possível ler o mote: 
“Não renegues o que leva ao cosmos. Até o que julgares indigno de ti.”
Não cuidem os hermeneutas de dar a saber estas palavras como o manual de um conservador das almas que se insurge contra a sua adulteração. Cada alma é soberana. O resto, deixa-se à fermentação do restolho em que vagarosamente se consomem as atribuições dos diferentes tempos, dos diferentes modos. Tema-se que possam as coordenadas ser adulteradas ao ponto de tudo se esvair num ténue fio que acaba em nada, e do promontório já não seja possível determinar o que é um horizonte. 

11.2.20

Às terças-feiras há filosofia na Tasca do Almerindo


Baxter Dury, “I’m Not Your Dog”, in https://www.youtube.com/watch?v=x_x9tB2Qsyk
Só às terças-feiras, que é o dia em que amesendam o Tibúrcio, o Rafael e o Jesuíno. Chegam sempre circunspectos, soletrando cada sílaba do silêncio, talvez consumidos pela fome que antecipa o repasto servido pelos amanuenses do senhor Almerindo. Tratam-se pelos nomes próprios, o proprietário da tasca e os três ocasionais utentes. O senhor Almerindo nunca desfiou o rol das interrogações que tem à guarda da sua particular curiosidade. Suprime a curiosidade em favor da reserva dos clientes. Só sabe coisas da vida dos clientes quando são estes a contar-lhas. 
Às terças-feiras, o senhor Almerindo não recusa ser ouvinte atento das conversas entre aqueles três clientes assíduos. Para garantir que não perde uma meada da conversa, reserva a mesa mais próxima do lugar de onde dirige o restaurante (convenientemente equidistante entre a sala de refeições e a cozinha). Antes do vinho, a conversa é servida sem indulgência. Almerindo, senhor de uma prodigiosa memória, anota os pedaços mais insuetos da conversa de cada terça-feira – é a sua empreitada regular a meio da tarde, quando o serviço assentou e há alguma paz entre o almoço e o jantar. Já tanto arquivou a sua caligrafia que podia publicar um livro em nome dos três compêndios ambulantes que às terças-feiras amesendam no seu restaurante. 
Jesuíno – Logo hoje, que retribuí desinteressadamente à senhora da limpeza o meu exemplar do Jornal de Letras, é que precisava dele para vos dar conta da recensão que o Almeida fez ao mais recente livro do Afonso.
Tibúrcio – Ouvi dizer que o autor se aproxima do registo do Tavares. Mais ao nosso gosto, portanto.
Rafael – Ou seja, para glosar a voz popular: esotérico.
Tibúrcio – E o que interessa que se riam de nós? Não vamos dar parte de fraco para sermos acolhidos pela voz popular, pois não?
Jesuíno – Já sabemos que não, já sabemos que esta conversa está encerrada e que não capitulamos às modas. Que se ostracizem as modas.
Tibúrcio – Também ouvi um rumor sobre a Clementina...
Rafael – Tens de contar! Se é sobre a Clementina, tens de contar!
Tibúrcio – Ela mudou de posição quanto à teoria do branqueamento oportunista. Agora já não é tão refratária. 
Jesuíno – Diz-se por aí que foram os bons ofícios do Madaleno, se me faço entender...
Rafael – Felizardo!
Jesuíno – Isso quer dizer que a Clementina já não reprova os taliões que escrevem a justiça impregnada de determinismo? Ela deixou a posição suave que tinha dantes? Fico surpreendido.
Tibúrcio – É pena. Ela aproximou-se das nossas posições. Já não será tão...tão interessante pleitear com a Clementina. 
Jesuíno – Podemos mudar de posição. Só para continuarmos a refrega com a Clementina.
Rafael – Nesse caso, ainda nos atiram à cara o pecadilho da incoerência.
Jesuíno – Quero lá saber. Primeiro, estou para ver quem tem linhagem argumentativa para nos acusar de incoerência. Segundo, só de pressentir aquelas intensas trocas de argumentos com a Clementina, não me desagrada a ideia de ser acusado de incoerência.
Tibúrcio – Esta açorda de ovas de bacalhau está divinal, senhor Almerindo. Dê os nossos parabéns à cozinheira!
Rafael – Julgo que tem um excessivo travo a coentros, dissolvendo o sabor forte das ovas. 
Jesuíno – Discordo. Se não tivesse este aroma a coentros, não suportavas o forte sabor das ovas.
Tibúrcio – Temos de consultar as obras dos eminentes filósofos para sabermos se há alguma menção ao bacalhau.
Jesuíno – Estás à espera que os vultos da filosofia, que não foram portugueses, dissertem sobre o bacalhau, que é uma iguaria que desenha a idiossincrasia gastronómica deste país?
Rafael – Por que não? Nós somos testemunhas do muito insólito que já encontramos nas páginas que lemos.
Tibúrcio – Mudando de assunto: o quadro do Wittgenstein que tenho na sala está manco. Caiu um prego. Para minha surpresa, não tenho pregos em casa.
Jesuíno – Para tua surpresa...Não sejas imodesto. Aposto que nenhum de nós tem pregos guardados em casa.
Senhor Almerindo (que não deixou de estar desatento à conversa) – Eu cá tenho uns pregos que são divinais, não ficam a dever aos do Ramiro. É o que dizem pessoas insuspeitas. E não levam coentros. Na próxima terça-feira posso-lhes avivar a memória e vão provar estes pregos. Asseguro-lhes que o Wittgenstein se endireita num instante.

10.2.20

Quando as palavras podem ser traiçoeiras (ou não)


Balla, “Oub’lá”, in https://www.youtube.com/watch?v=ecfUXtmbkNY
(Não aconselhável a mentes sensíveis – ou talvez não)
É canónico: quando queremos que alguém se dê mal numa circunstância, dizemos “quero é que (fulano) se vá foder”. Quando queremos fazer mal a alguém, avisamos “vou-te foder”. Quando desejamos que alguém fique entregue a si próprio no meio de um qualquer vendaval de difícil extração, proclamamos “ele que se foda”. O termo, usado como verbo ou substantivo, banalizou-se. Ao ponto de o seu sentido ter sido adulterado.
Aprecie-se a lógica seguinte: se o “foder” é sinónimo de ato sexual, e se partirmos do pressuposto que é da natureza humana gostarmos do ato sexual, quando queremos que alguém se foda, ou quando acertamos as contas ameaçando “vou-te foder”, ou quando nos desimportamos de alguém e lhe vaticinamos que se vá foder, estamos a desejar, a ameaçar ou a votar à indiferença usando um termo que tem um sentido oposto àquele que lhe queremos atribuir. Se dizemos “quero é que (fulano) se vá foder”, e se partimos do pressuposto que gostamos do ato sexual, estamos a desejar-lhe algo que não é de menosprezar. A menos que saibamos, ou pelo menos seja nossa desconfiança, que a pessoa a quem o desejamos é frígida, ou que nós, por pessoal antipatia com o ato sexual, lhe atribuímos essa conotação pejorativa.
Quando ameaçamos alguém com um contundente “vou-te foder”, nos tempos atuais isso pode dar origem a um processo judicial, se o destinatário do (convencionalmente entendido como) impropério não sentir desejo carnal por nós e considerar as nossas palavras uma perseguição que cerceia a sua liberdade. Pode ocorrer hipótese diferente: as palavras saem da boca em tom de ameaça, mas a pessoa a quem elas são destinadas oferece-se, prestimosamente, para a consumação da ameaça. Nesta hipótese, é de considerar duas possibilidades: ou a ameaça se transfigura em prazer recíproco, podendo dar origem a uma bela amizade (pelo menos); ou se não correspondemos com o proclamado, deixando à míngua a pessoa que se predispôs à consumação do ato, somos nós que ficamos mal na fotografia, arrostando com o desagradável rótulo da frigidez. 
Os cultores da semântica advertirão que palavras há que são polissémicas. Poderá ser o caso de “foder”, que tanto encerra um teor pejorativo como é alusivo aos irrefreáveis prazeres carnais que consumamos com alguém. Prefiro uma alternativa que escapa à possibilidade da polissemia. Entre as suas duas possibilidades (se a polissemia for admitida), a palavra compreende opostos. É difícil que um idioma consinta uma polissemia tão exacerbada. Caso contrário, abrimos as portas para a promiscuidade semântica, pois o termo pode ser usado como ultraje, ameaça, indiferença, ou como evocativo de algo que nos dá prazer. 
Excluída a possibilidade da polissemia, devem os cidadãos ser advertidos para a não banalização da palavra. Caso contrário, seremos todos promíscuos...

7.2.20

A casa das limas


Hot Chip, “Positive”, in https://www.youtube.com/watch?v=cjirvFpuLBM
Amanheceu. Saio para saber do fresco da manhã. A ligeira névoa entranha-se nos ossos. Não me recordo dos sonhos que habitaram o sono. Dobro o esforço. Em vão. Não será por acaso: os sonhos furtivos, que escapam ao escrutínio dos sentidos, não querem ser inventariados. É melhor preparar o pequeno-almoço. 
Na televisão, um homem que transporta um ar carrancudo, com um séquito nas suas costas que se põe a jeito das câmaras de filmar, vocifera qualquer coisa. Aparenta ser vagamente um ministro, tão estadista é a pose que, contudo, não quadra com o destempero da fala. Dele há de ser o protesto que destrata um contratempo qualquer que se insubordinou contra a ação virtuosa do governo de que é porta-voz. Só falta uma onomatopeia a gravitar sobre o aparente e possivelmente mesmo ministro, lavrando protesto outro contra as injustiças que se abatem sobre tão virtuoso governo. 
O dia soalheiro não capitula, apesar do presságio em sentido contrário do boletim meteorológico. As crianças puderam ir para a orla do rio, entregando-se às ações da sua especialidade, a lúdica safra de que são criativas intérpretes. Contemplo as correrias, a algazarra, as forças que não abdicam. Admiro-as. A melancolia ainda não entrou no seu vocabulário. 
Entardece. É a metáfora perfeita da existência. A claridade desmaia nos corpos, que se aprontam para a decadência do dia. Outros foram os tempos em que a noite era a ignição do reavivar do dia, quase como se houvesse dois dias por dentro do mesmo dia. Acendo a lareira, que o frio já toma conta dos ossos. No meio da desordem da sala, retiro um livro ao acaso do lugar onde estão empilhados. Abro uma página, também ao acaso. Sob o crepitar da lareira, leio em voz alta as breves estrofes que são a pálida mancha da página: 
“Saiu do fogo intemporal
vagamente lembrado
o ruído desamestrado da fala
a violenta despedida do dia
irrepetível.”
A noite faz o seu caminho e o sono demora-se. As considerações viram-se do avesso, o pensamento convoca o inenarrável como ardil que estabeleça o sono. Algo persevera, sobrepondo-se ao sono. Já lá vai quase um dia inteiro acordado. Talvez tenha sido pelo desprendimento do dia. Agora, a fatura da demorada levitação que atravessou o dia exige a insónia. E esta insinua-se em todos os poros do corpo, numa luta, silenciosa e desenfreada, contra a vontade. 
Vou ao jardim colher umas limas e preparar uma infusão. Pode ser que o sono tenha convocatória.

6.2.20

Quinteto de quatro (joker) (short stories #195)


Fontaines D. C., “Too Real”, in https://www.youtube.com/watch?v=CIbaqtcU0uI
          Cordialmente, os confrades apertavam as mãos quando se encontravam. Era um aperto firme. Sinalizava a solidez da amizade. Podiam contar uns com os outros. Não era preciso consultar um compêndio para saber as boas práticas da amizade. A firmeza dos cumprimentos era apenas um símbolo que cristalizava o laço que os entrelaçava. Não interessava saber como o laço medrou. Mesmo que o conhecimento que travaram tenha sido fortuito, ou que houvesse um substrato que dependia da oportunidade que tiveram para se conhecerem. Depois fruíram os interesses comuns, a afinidade, a convergência de preferências em domínios que transbordavam aquele que fora o inicial cimento do laço. O quinteto não deixou de nutrir os rituais que foram enraizando com a passagem do tempo. Muitas pessoas e diversas circunstâncias passaram. A amizade não tergiversou. Houve alturas em que divergiram. Faz parte do todo que é um processo. É exigível que cada confrade, colocado perante as divergências, consiga respeitar as posições diferentes da sua. Não eram irmãos siameses, disso tinham a noção. Podiam celebrar o resto, que era o mais importante. As fundações não se fragilizavam com os pareceres diferentes a propósito de episódicos assuntos. O quinteto sabia que o mais importante não estava em causa. Até que o quinteto ficou composto por quatro. A irritação passara a subir a palco com frequência mais do que episódica. A maledicência passara a ser o método preferido para instalar as divisões no seio da confraria. O quinto elemento era o joker, o autoexcluído membro do quinteto. O quinteto não vacilou, apesar de composto por quatro membros. Mantiveram-se como quinteto, porque foi como quinteto que começaram. Eram contra os estalinismos professados. Quinteto, porque a exclusão do quinto membro foi voluntária. A qualquer momento, o quinto elemento podia regressar. Fazia sentido que se continuasse a chamar quinteto.

5.2.20

O homem que não virava a roupa do avesso


Faith No More, “Evidence”, in https://www.youtube.com/watch?v=7lvMNLhJrb0
Tinha medo dos avessos. Era como se as coisas como as conhecia fossem mudadas. E a muda era uma incógnita que não conseguia suportar. Um dia, disse a uma amiga que o avesso das coisas era como ficar sem chão sob os pés. Nunca se comprometeu com um precipício se não usasse um arnês.
Toda a sua roupa era como se não tivesse avesso. Cuidava dela pessoalmente, não endossava a tarefa. Nunca olhava para a roupa do avesso porque nunca a virava do avesso. Nunca se interrogou se esta malquerença era por não gostar de ver a pele sem roupas. Não aceitava que houvesse quem fizesse campanha por mudanças significativas das coisas como eram conhecidas. Temia que persistisse um abismo entre as coisas no seu estado anterior e a habituação às coisas reinventadas. Não se sentia à vontade com a ideia de ver o avesso das coisas colado à pele. Entrava em contradição: considerava que o avesso não fora feito para andar à mostra, com o que anuía que o avesso tem a pele como residência inata. Nunca quis responder ao desafio de quem o interpelava para sanar a contradição. Preferia desconversar.
Mantinha que o avesso das coisas pertence à intimidade das pessoas. Ninguém precisa de espiolhar as costuras que são a trama interna das pessoas. Assaltado por esta aversão, alguém advertiu que não estava em causa andar com a roupa do avesso. Tratava-se de devolver a roupa ao avesso antes de ser lavada, por exemplo. Ou da irrelevância de ter o avesso da roupa à mostra quando é arrumada nas gavetas. Não concordava: era uma questão de método; o avesso foi inventado para andar em coabitação com a pele, não fora feito para andar à mostra. Que se falasse de estética, ou dos termos pragmáticos em que as roupas são fabricadas. Há sempre um avesso. Destinado a andar escondido dos olhos outros. E dos próprios também.
Um certo dia, foi de ir de viagem até Montevideu. Distraído, ou apenas desconhecedor da geografia, não deu conta que estava no avesso do mundo. Assim andou, de avesso, durante uma semana inteira, a tratar de negócios. Quando chegou, vestiu a roupa do avesso durante um mês inteiro. Sem dar conta.

4.2.20

C’est à dire


Tame Impala, “Lost in Yesterday”, in https://www.youtube.com/watch?v=utCjuKDXQsE
As palavras dançam no parapeito do indizível. Procuram-se outros sentidos entre a polimorfia dos sinónimos. Considera-se a necessidade de arejar o vocabulário. Até a sintaxe, por estar refém das convenções. Como se pudesse ser a caução de uma reinvenção da gramática e de seus poros extrair um qualquer sortilégio. 
Diga-se: “quer dizer” ou “isto é”, como prólogo do enxugamento da fala. As palavras não devem ficar seladas na sua original formulação. Devem ser mudadas, uma e outra vez, as vezes que forem precisas. Até já não se sentir a pulsão de dizer “isto é” ou “quer dizer”. Seriam as palavras definitivas. Não ficariam devedoras da perenidade. Não, que ninguém se convença do axioma. As palavras só são definitivas quando a elas não se volta. Ninguém pode atestar que não volta a umas palavras emolduradas no tempo pretérito. Essa é uma perenidade efémera.
Às vezes, as palavras que saem do estreito dos dedos não quadram com o pensamento que lhes deu origem. Não ficam representativas. Perde-se algo, no hiato entre o pensamento de que fermentam as palavras e a sua consagração. Podem-se reescrever. Pode-se tentar, ao menos, para que sejam uma correspondência confiável com o pensamento que lhes deu origem. Nessa altura, já não se pode certificar se o pensamento que serve de âncora às palavras reinventadas é o pensamento original. O tempo que passou pode ter adulterado o pensamento e o seu tutor pode não ter consciência da adulteração. É inútil toda a definitividade das palavras. Como é inviável determinar a perenidade do pensamento. 
Que seja dito, as vezes que for preciso, “isto é”. Não funciona como uma exegese que parte do tutor das palavras. Funciona como o lastro que se empresta à riqueza semântica. Uma crisálida que se abre às imensas possibilidades de recriação das palavras que foram ditas. Um processo colaborativo, uma parceria em que as palavras são oferecidas aos destinatários e admite que sejam por eles reinventadas. 
Nessa altura, serão eles a proclamar, como ponto de partida: “c’est à dire”. E o processo vai por aí fora. Sem direitos de autor.

3.2.20

Roubarás descaradamente o título do livro de Walter Benjamin


Ty Segall and the Muggers, “Emotional Mugger/Leoperd Priestess” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=tUKwrxt27JA
(Escrito em dia londrino, em antítese do dia primaveril por antecipação)
Parece que o nevoeiro está para durar. Tenho as ideias baças, a combinar com o dia. Não sei se levanto voo por cima do nevoeiro, como se fosse um avião, para alardear ter visto o sol num dia em que ninguém o conseguiu ver (como fazem os pilotos de aviões). E qual é a serventia de ver o sol? Garante o desembaciamento das ideias?
A interrogação que se segue: e por que hei de querer as ideias desprovidas de impurezas? Diriam, em resposta fluída: a quem interessa o caos a contaminar as vias internas por onde circulam as ideias? Talvez se olharmos para a História, saberemos da pedra angular onde se firmam as coisas válidas. Não será espúrio o esforço para tornar límpidas as entrelinhas que emprestam morada às palavras. Entre a noite e o dia, compõe-se um vasto mar à espera de voz. Da voz que se arremata no horizonte que desfaz os vestígios de impureza, até ficar uma tela onde sobressai um azul que fere a vista. 
Mas é preciso uma folha de papel imaculada para ajudar o pensamento a vingar? Dizem que se soubermos ser hermeneutas da História, temos em nós cabimento para a experiência. Será então menor a probabilidade do engano, menores os sinais contraditórios que colocam no meio de uma encruzilhada. Os amarelos ramificam uns com os outros. Se alguém convencionou que o amarelo é uma cor proscrita, que venham outros meirinhos das modas desmenti-lo na moda seguinte. Não é a leitura do sal cristalizado nas rochas abertas pela maré-baixa que serve de oráculo. O sal assim deposto é a vingança sobre a maré cheia que quis invadir o espaço vital que já não pertence ao mar. E por que quero saber a delimitação precisa entre a areia e o mar, se me posso servir da tabela das marés?
Cuidam os seguidores do estio apalavrado de emprestar as suas orações ao funeral do inverno, cuidando de o encomendar aos anjos a jeito. Comparam outras tabelas, as que desenham os números que tingem as estações do ano com estatísticas diversas. Querem saber, pela amostra da História, se a teoria do aquecimento global se pode jogar a seu favor, eles que estão tão cansados do inverno e o inverno ainda mal passou o primeiro terço da sua residência. Invocam um “Anjo da História” que possa vir em seu socorro.
Continuo a preferir os rigores do inverno. Não preciso de anjos da História. Tenho uma vaga lembrança de como ela foi. E isso basta-me.