Cara de Espelho, “Político Antropófago”, in https://www.youtube.com/watch?v=U13tItb5CQU
“A direita nunca gostou do 25 de Abril.”
Manuel Loff, “O 25 de Novembro em tons de 28 de Maio”, Público, 27.11.24, p. 10.
As análises são sempre parciais, eivadas de relativismo. Duas pessoas podem ter entendimentos diferentes da mesma realidade, por serem diferentes os pressupostos de que partem e diferentes os ângulos que escolhem para analisar a realidade observável. Por exemplo: um comunista, daqueles que ainda é radical (não se modernizou depois da hecatombe da União Soviética) pode chamar-me “fascista” porque sou de direita (sossegue o leitor: sou de direita moderada). E eu posso repudiar o uso abusivo que o comunista faz da palavra “democracia”, na inesgotável retórica de quem convoca para si o papel de tutor da democracia inaugurada em 25 de abril de 1974. Ou podemos, eu e o comunista, verter diferentes interpretações sobre o 25 de novembro de 1975. Eu ficarei com as minhas dúvidas, o comunista continuará agarrado às suas inabaláveis certezas, à sua cosmovisão hipotecada pela História e com adesão insignificante na sociedade portuguesa.
Como partimos de diferentes pressupostos, olhamos com olhos diferentes. Os pontos de chegada são antagónicos. Cada um ficará amarrado às suas conclusões. Sei que as minhas dúvidas metódicas não se impõem ao comunista radical. E sei, por muito que isso me possa custar (mas dou de barato), que o comunista encosta-me aos fascistas e não abdica da sua verdade irrefutável. Incontroverso é que nem eu consigo convencer o comunista, nem o comunista me convence. Cada um ficará com o seu olhar particular.
Vem este (longo) exórdio a propósito do artigo de opinião de Manuel Loff no Público de 27 de novembro. Loff entra a matar, categórico: é a citação que dá o mote a este texto, que abre o artigo de Loff e é repetida no início do quinto parágrafo. “A direita”, no rosário de generalizações que lhe é grato – muito embora, a páginas tantas, Loff distinga a direita conservadora, a direita neoliberal e, vá lá, o PSD, da extrema-direita –, “a direita” não gosta do 25 de abril. Se tivermos por barómetro a representação parlamentar resultante das últimas eleições, 60% dos deputados não gostam da democracia, e semelhante é a proporção do povo antidemocrático. Eis o clímax da arrogância: Loff, o historiador (ou será apenas Loff, o cidadão?) a julgar mais de metade dos eleitores por serem portadores de pergaminhos antidemocráticos.
A contundência dos argumentos emana do dogmatismo que ocupa o pensamento de Loff. Pode Loff resgatar a história pré-25 de abril para convocar os créditos do PCP no combate à ditadura, que isso não serve para legitimar o pepel imorredoiro do partido como vigilante da democracia. É com base neste pressuposto que muitos transigem com o tudo-e-mais-alguma-coisa do PCP que, talvez (sublinho, talvez), explique a ambiguidade dos comunistas nos acontecimentos de 25 de novembro de 1975.
As interpretações dominantes do episódio selam a narrativa de legitimação do PCP. À falta de provas sobre a ignição da revolta pelo PCP, fica para memória futura a ideia de que o PCP está entre os vencedores do 25 de novembro porque não foi ilegalizado, como queriam muitas personagens de direita radical. Da hipotética conspiração para um golpe que liquidaria a democracia (isto sou eu a ensaiar História contrafactual), os comunistas passaram a perfilar ao lado dos vencedores do 25 de novembro. Daí à ideia de que é despropositado “a direita” celebrar o 25 de novembro porque nem sequer esteve envolvida nos acontecimentos, vai um pequeno salto argumentativo. Típico de quem medra na desonestidade intelectual, de quem está habituado a patrulhar a liberdade dos outros. Falta reconhecer, a estes historiadores oficiais do regime, o simbolismo do 25 de novembro: a Liberdade ficou a salvo de aventuras totalitárias.
Agora é a vez do tipo de direita chegar a conclusões – às suas parcelares e muito relativas conclusões. Continuando o exercício de História contrafactual, que pode ser tão fantasioso como as elucubrações que Loff dá à estampa no Público num registo quinzenal, se o 25 de novembro não tivesse sido um coito totalitário interrompido; se o PCP esteve mesmo na retaguarda da sublevação abortada; o comunista que me perdoe, mas a sua linhagem, que é de alguém que tem saudades da União Soviética, leva-me a concluir que o anti-25 de novembro podia ter ditado a sovietização de Portugal.
Quase a terminar o artigo de opinião, Loff assegura – e afirma-o a sério – que para “a direita”
(...) entre as datas da contemporaneidade, a única alternativa disponível – e não exagero – era continuar a comemorar o 28 de Maio e a “Revolução Nacional” de que falava Salazar. (...) Sendo-lhes inviável fazê-lo, as direitas querem comemorar o 25 de Novembro mas como Salazar comemorava o 28 de Maio. (...) Nesta falsificação repetitiva da história, é sempre assim que as direitas veem os processos de mudança democrática. A democracia fez-se apesar delas, contra elas. Mas ainda não desistiram de vingar-se.
Depois de me sentir esmagado por esta certeza categórica, eu, que não sou militante ou simpatizante do Chega, do CDS, da IL e (vá lá) do PSD, sinto-me desorientado, órfão de referências. Confesso: nunca enverguei um cravo vermelho à lapela, mas custa-me admitir que alguém me julgue por demissão da democracia à conta desta omissão pessoal. Como amante das liberdades, celebro o 25 de abril como celebro o 25 de novembro (sem cair na risível proposta de elevar esta data a feriado nacional).
Mas depressa recupero a lucidez. O que me separa do comunista radical é um mundo inteiro de coisas. Desconfio (contrafactualmente, outra vez) que se o 25 de novembro dos golpistas tivesse vingado, e se o comunismo não estivesse em vias de extinção, hoje não podia publicar este texto. Guardo, como imagem animadora, a certeza de que Loff pode continuar a escrever quinzenalmente onde lhe apetecer e onde tiver acolhimento. Graças à democracia que ele abjura.
Esse é um favor inestimável que a democracia nos faz.