30.9.04

Ainda: a vida é bela; a vida é um milagre; que porcaria de vida

Na sequência do texto de ontem, lembrei-me de outro filme que há anos passou no circuito comercial: “A vida é bela”. Se não estou em erro, realizado por um cineasta italiano de que não me recordo o nome. Assim que a memória foi assaltada pelo título deste filme, não pude deixar de me interrogar: afinal a vida é bela, ou é o produto de um milagre? Devemos celebrar a vida, festejar a beleza que ela contém, a felicidade de apenas estarmos vivos? Ou elevá-la a um plano místico, sublinhar a sua faceta misteriosa que, todavia, é também motivo de regozijo?

Questionar se a vida é bela ou se ela é um milagre é ver a questão pelos dois lados da mesma moeda. Dizer-se que a vida é um milagre encerra em si a beleza da vida. Como podemos compreender a beleza da vida pelo misticismo que a envolve, por darmos conta de como ela se renova, dia a dia, em milagres sucessivos. Ontem, a propósito do filme de Kusturica, avancei uma interpretação possível para a ideia de “vida como milagre”: a vida é um equilíbrio instável, cada vida humana é efémera, no sentido de hoje se estar bem vivo sem saber que amanhã a morte pode ter marcado encontro sem aviso prévio. Um equilíbrio instável porque a vida depende muito do que fazemos com ela. Mas depende ainda mais do aleatório, que ultrapassa a nossa vontade.

Ao chegar a este ponto, sou levado a outra interrogação que pode desmentir a ligação entre a “vida é bela” e a “vida é um milagre”. Admitir como a vida é um equilíbrio instável como explicação para o misticismo que a envolve resulta no reconhecimento de que a preservação da vida ultrapassa a vontade de cada indivíduo. Neste sentido, não há nada para festejar ao dizer que a vida é um milagre. O milagre da vida não nos apresenta a beleza da vida, apenas sublinha como ela é tão efémera que nos pode ser roubada à primeira distracção, ao primeiro azar que esteja inscrito no roteiro que nos foi destinado. É o misticismo que agrilhoa o indivíduo a factores exteriores a si. Ele não pode responder por si, nem pode conduzir a sua vida. A direcção é-lhe imposta pelas vicissitudes do destino, pelos caminhos ou descaminhos que lhe são colocados no mapa da vida. Remeter a explicação da vida para um milagre resume o fenómeno a uma dimensão metafísica, transcendental. Ela ultrapassa-nos, e por isso é um milagre. Hoje estamos vivos, sempre pelo milagre que nos marcou encontro com a sorte a que os infelizes que já partiram não puderam assistir.

Não é neste sentido que quero admitir que a vida é bela porque é um milagre – ou que é um milagre porque é bela. Estabelecer esta relação de causa e efeito traz para a superfície a necessidade de agradecermos a uma qualquer entidade divina a realização do milagre. É a negação da natureza, a sagração da divinização que explica pelo misticismo todos os fenómenos da natureza. Não é por aqui que a vida é um milagre, e muito menos que ela encerra a beleza de estar vivo. Nesta ideia vejo a fealdade da vida, as sementes lançadas num terreno duvidoso, a entrega do indivíduo a entidades exteriores que são as generosas doadoras da vida, os anjos da guarda que mantêm a vida ligada ao balão de oxigénio da sobrevivência.

Reiterar a ideia de que a vida é um milagre com o seu sentido místico é arrepiar caminho para os cépticos que desconfiam da generosidade da vida, dos que desdenham dela. É dar trunfos para que se interrogue a todo o tempo a justeza da vida. Quando se atribui ao milagre da vida este significado, há uma espada diabólica que pesa constantemente sobre a nossa cabeça. O sabermos que estamos vivos por mercê de quem fez o milagre, e que com um simples estalido de dedos a vida pode ser furtada, ou passar a ser um inferno em vida. É idealizar um estado de dependência, uma sensação permanente de insegurança que nos faz ser tementes da vida se diluir no nada, num ápice.

Prefiro ver o milagre na vida de outra forma. No esforço que cada um faz para estar vivo, para festejar a beleza que é estar vido e aproveitar o tempo que a vida nos creditou. Um esforço individual, um respeito íntegro pela vida dos demais. Sem tempo para lamentar a desdita que bate à porta daqueles que não puderam prolongar a sua vida por mais tempo, quando ainda tanto tinham para lhe sugar. As lamúrias pela morte alheia são o tempo perdido que nos leva ao encontro da vida como milagre no seu sentido negativista – de entregarmos o destino nos braços de uma entidade divina ou numa realidade transcendental sem rosto.

Trilhar esta avenida da vida como milagre é agendar a dependência, a negação do eu; e pesa a toda a hora o estigma da antítese da vida. Logo, aqui a vida é um milagre mas não é bela. Pinta-se em tons de cinzento chumbo, com a densidade impenetrável de um mistério insondável com uma conotação negativa. A vida é bela quando se compreende o milagre de cada um ser espontaneamente o eu que se encerra dentro de si. O desafio está em saber – ou querer – libertar esse eu que tantas vezes vive reprimido. Para que a vida seja não seja um sacrifício, melhor será esquecer que é um milagre.

29.9.04

“A vida é um milagre”, de Emir Kusturica

O filme retrata a vida de uma família sérvia que se deslocou para uma zona montanhosa da Bósnia. A acção passa-se em 1992, iniciando-se em plena véspera da sangrenta guerra que levaria à independência da Bósnia. Luca, um engenheiro ferroviário aficionado pelos comboios, pelas maquetes e por aves, tem uma relação conturbada com a sua mulher, uma ex-cantora de ópera semi-ensandecida. Milos é o filho que acaba de sair da adolescência, um intelectual em potência conhecido pelos amigos como Einstein. É também uma promessa para o futebol, acabando por ser contratado pelo Partizan de Belgrado depois de uma exibição memorável num jogo local. A sua promissora carreira futebolística é amputada precocemente quando foi chamado pelo exército sérvio.

No clima de festa que sempre habita os sérvios (a julgar pelas amostras dos filmes de Kusturica), os pais de Milos organizam uma festa de arromba para comemorar a partida do filho. Só nesse dia hão-de ficar a saber que a convocação de Milos para o exército tem uma finalidade exacta: engrossar as fileiras que se preparavam para o conflito bélico com as milícias muçulmanas bósnias. Perante a desconfiança da mãe, sempre atenta às notícias entre dois momentos de loucura em que a lucidez vinha à superfície, Milos fica a saber que vai ser chamado a pegar em armas e a combater o inimigo – onde se incluem alguns dos seus amigos, de etnia muçulmana.

Só então o seu pai, aluado por estar embrenhado no seu mundo particular, se convence da inevitabilidade. Sente então que o chão lhe escapa debaixo dos pés, tal o baque sofrido. Para piorar as coisas, a sua desvairada mulher decide abandoná-lo no rescaldo da festança, fugindo com um músico húngaro, o artista convidado para o espectáculo musical organizado para a inauguração da linha ferroviária que ia resgatar aquele local montanhoso do isolamento. No fundo, Luca sentia-se aliviado pela partida da mulher que apenas aturava por imposição do filho, ainda preso por laços maternais que se confundiam com um inequívoco complexo de Édipo.

Com a progressão da guerra, Luca continuava absorto. Como se a guerra passasse ao lado da sua vida, ainda que as bombas rebentassem nas imediações da sua casa, fazendo-a estremecer com estrépito. Só acorda para as consequências da guerra quando lhe é dado a conhecer que Milos foi feito preso pelos muçulmanos. Só então sente na pele as vicissitudes da estúpida guerra. Dias mais tarde, os seus amigos sérvios do exército entregam-lhe uma prenda: Sabaha, uma jovem enfermeira muçulmana que tinha sido presa. O objectivo era informar os muçulmanos que tinham em sua posse Sabaha, para a trocar com Milos.

É neste momento que o argumento cresce de intensidade. Da desconfiança inicial começa a germinar uma atracção entre Luca e Sabaha. Que se transforma numa relação intensa, a antítese do ódio que a guerra trouxera a sérvios e muçulmanos. O amor de Luca e Sabaha era a negação das divisões étnicas que tinham semeado o conflito. Quanto mais se adensava a guerra, mais crescia o amor entre os dois. Planeando a fuga para a Austrália, Luca e Sabaha caiem numa emboscada de snipers muçulmanos junto a um rio que separa a Bósnia da Sérvia. Quando a liberdade estava a dois passos, um tiro furtivo alojou uma bala mortal na perna de Sabaha. Perdendo muito sangue, foi transportada com esforço por Luca, entre a neve abundante, até a um hospital onde estavam albergadas tropas sérvias. Por milagre, Sabaha escapa numa intervenção cirúrgica sem condições.

Já com as forças das Nações Unidas no terreno, está tudo preparado para Sabaha ser trocada por Milos. A separação dos amantes perfilava-se no horizonte. Mas Luca não esmorece e consegue contornar a segurança dos capacetes azuis, indo atrás de Sabaha, transportada numa maca depois da intervenção cirúrgica que lhe salvou a vida. Quando atravessa a ponte que separava os dois lados, depara com Milos. Um abraço forte, contentamento reprimido por saber que estava a deixar fugir um amor como nunca vivera.

O regresso a casa é feito com contrariedade. A sua mulher tinha voltado, depois de ter sido enganada pelo húngaro. Entristecido pelo seu destino, Luca planeia o suicídio. Sentia que lhe faltavam razões para continuar a viver, agora que tinha perdido a mulher que amava e que no horizonte se desenhava o inferno que vivia antes, ao lado da louca da sua mulher. Sentindo a aproximação de um comboio, coloca a cabeça em cima do carril. Já de olhos fechados, respiração contida para minorar o sofrimento do golpe surdo que lhe ia roubar a vida, eis que sente o comboio a travar com violência. Para sua surpresa, deteve-se metros antes para não atropelar uma burra – Milica – que fez o papel de narrador sem palavras, de guardião dos sentimentos belos, sempre presente para caucionar a boa consciência desses sentimentos. Por milagre, a burra estacionou na linha de comboio metros antes do local onde Luca tinha preparado a despedida da vida. Tinha-lhe salvo a vida, num golpe de sorte que trouxe a mensagem fundamental do filme: que a vida é uma milagre, um equilíbrio precário, sem nos darmos conta da precariedade que abraça a vida.

Kusturica retrata com mestria como o Homem é coveiro de si mesmo. Como se deixa assenhorear por sentimentos que não hesitam em ceifar a vida do próximo, como se a vida fosse um valor desprezável. Corporizando o equilíbrio instável, precário, que faz da vida um pretexto para celebrar, sempre festejar com os requintes de doce loucura que são a imagem de marca do cineasta. Este filme não é tão alucinante (no bom sentido da palavra) como “Gato preto, gato branco”. Ainda assim o non-sense está presente, em doses mais contidas. Kusturica soube construir uma história que mistura as agruras da guerra, uma história de amor sem exageros lamechas e o surrealismo. Uma história de amor hilariante, que desmerece a guerra e faz saber como somos estúpidos em não atribuir valor à melhor coisa que todos temos – a vida.

28.9.04

Ecos do Outono que se anuncia

Percorro a minha rua. O empedrado aparece preenchido por uma cama de folhas acastanhadas, que se acumulam junto ao passeio. Parece que ali foram cuidadosamente depositadas, abrindo alas à passagem dos carros. Esta cama de folhas secas traz a notícia do Outono que entrou no calendário – não na atmosfera, tal o calor seco e incomodativo que veio a destempo. É o Outono que se anuncia com o seu cartão de visita mais típico, as folhas que se desprendem das árvores com o vento quente e seco que as traz até ao solo num leito de regeneração. São os despojos da época estival, o prenúncio das borrascas invernais que estão para vir.

Passo pelas folhas inertes por entre a acalmia passageira do vento. Silenciosas, simbolizam a queda de uma estação, os agasalhos que se vão recuperar aos armários, as lareiras que crepitam, a chuva que cai impiedosa e insistente. Nas folhas secas que caíram das árvores estão as imagens de um Inverno que não demora a instalar-se. Com o tirocínio do Outono que o precede, para que nos vamos habituando aos rigores invernais que hão-de chegar. Diria que o Outono nos prepara para o agreste Inverno que vem de visita por uma temporada. O Outono marca encontro com algumas das intempéries que vão ser mais frequentes, mais incisivas com a chegada do Inverno.

Ao passear na minha rua detenho-me nas folhas acastanhadas que ecoam o final do Verão. Ao calcá-las, elas crepitam. Por entre a secura que delas se solta estalam e quebram-se em pedaços. Parece que soltam gritos aflitivos, como se estivessem a despedir da efémera vida que tiveram presas aos galhos das árvores que as expulsaram pelos caprichos outonais. Mas a imagem tão entristecida como a sugerida não é a correcta. Não é o fim de um ciclo, a morte de um ser vivo. Apenas a regeneração ditada pelos mistérios da natureza. A queda das folhas envelhecidas sugere a vinda do Outono, o final da estação luminosa que é o Verão, as árvores desnudadas que ficam expostas aos elementos, desacompanhadas numa nudez paradoxal; mas há que olhar mais além por entre as frinchas do tempo: ultrapassadas as vicissitudes da invernia regressa o ciclo da vida em todo o seu esplendor.

Entretanto há tempo para deliciar com os tons acobreados do Outono. Passear em Trás-os-Montes, entre montanhas e vales, encontrar manchas de choupos e castanheiros que são, ao longe, um extenso quadro avermelhado. Diria que as árvores foram tingidas por uma cor diferente, como se uma mão gigantesca tivesse passado uma trincha que lhes roubou o verde que festeja o retorno ao calor. A despedida do verde dá lugar aos tons avermelhados, que com o envelhecimento das folhas se transforma no acobreado que dita a partida das folhas das copas das árvores assim que os ventos frescos do Outono as vêm agasalhar.

Muitas são as sagrações da Primavera. Muitas loas se tecem à revitalização da natureza que se transforma com a chegada da estação das luzes. Poucos enaltecem a beleza das cores que tingem o quadro outonal, os odores que se desprendem dos elementos que se aprestam a finar num momento regenerativo. Se perguntarem qual a minha estação preferida, digo sem hesitações que é o Outono. Ainda que seja difícil encontrar uma explicação racional, é o Outono que me enche as medidas.

O Outono sugere o recolhimento que a inclemência dos elementos invernais faz apetecer. O recatamento, uma introspecção que leva a procurar as energias para deixar para trás o incómodo do Inverno que há-de dobrar a esquina. O recolhimento serve para um balanço do Verão que acabou de ver rasgada a folha no calendário. O Outono, a charneira que liga o passado ao futuro, o elo de ligação que permite avaliar os erros do passado, captar as lições positivas dos tempos idos; e arrepiar intenções para o futuro que se anuncia.

Com o Outono vem uma espécie de letargia que nos prepara para o que vem a seguir. Permite recolher os despojos das folhas caídas para procurar a rota certa no doravante que há-de chegar. Com a vantagem dos elementos estarem num fulgor surpreendente, por estranho que pareça: a decadência que alguns encontram na estação outonal é uma lição para captar a essência da vida. Evitar cair nos desmandos outonais é a expressão vivencial que se retira do significado do Outono.

Ecos do Outono que se anuncia

Percorro a minha rua. O empedrado aparece preenchido por uma cama de folhas acastanhadas, que se acumulam junto ao passeio. Parece que ali foram cuidadosamente depositadas, abrindo alas à passagem dos carros. Esta cama de folhas secas traz a notícia do Outono que entrou no calendário – não na atmosfera, tal o calor seco e incomodativo que veio a destempo. É o Outono que se anuncia com o seu cartão de visita mais típico, as folhas que se desprendem das árvores com o vento quente e seco que as traz até ao solo num leito de regeneração. São os despojos da época estival, o prenúncio das borrascas invernais que estão para vir.

Passo pelas folhas inertes por entre a acalmia passageira do vento. Silenciosas, simbolizam a queda de uma estação, os agasalhos que se vão recuperar aos armários, as lareiras que crepitam, a chuva que cai impiedosa e insistente. Nas folhas secas que caíram das árvores estão as imagens de um Inverno que não demora a instalar-se. Com o tirocínio do Outono que o precede, para que nos vamos habituando aos rigores invernais que hão-de chegar. Diria que o Outono nos prepara para o agreste Inverno que vem de visita por uma temporada. O Outono marca encontro com algumas das intempéries que vão ser mais frequentes, mais incisivas com a chegada do Inverno.

Ao passear na minha rua detenho-me nas folhas acastanhadas que ecoam o final do Verão. Ao calcá-las, elas crepitam. Por entre a secura que delas se solta, estalam e quebram-se em pedaços. Parece que soltam gritos aflitivos, como se estivessem a despedir da efémera vida que tiveram presas aos galhos das árvores que as expulsaram pelos caprichos outonais. Mas uma imagem tão entristecida como a sugerida não é a correcta. Não é o fim de um ciclo, a morte de um ser vivo. Apenas a regeneração ditada pelos mistérios da natureza. A queda das folhas envelhecidas sugere a vinda do Outono, o final da estação luminosa que é o Verão, as árvores desnudadas que ficam expostas aos elementos, desacompanhadas numa nudez paradoxal; mas há que olhar mais além por entre as frinchas do tempo: ultrapassadas as vicissitudes da invernia, regressa o ciclo da vida em todo o seu esplendor.

Entretanto há tempo para deliciar com os tons acobreados do Outono. Passear em Trás-os-Montes, entre montanhas e vales, encontrar manchas de choupos e castanheiros que são, ao longe, um extenso quadro avermelhado. Diria que as árvores foram tingidas por uma cor diferente, como se uma mão gigantesca tivesse passado uma trincha que lhes roubou o verde que festeja o retorno ao calor. A despedida do verde dá lugar aos tons avermelhados, que com o envelhecimento das folhas se transforma no acobreado que dita a partida das folhas das copas das árvores assim que os ventos frescos do Outono as vêm agasalhar.

Muitas são as sagrações da Primavera. Muitas loas se tecem à revitalização da natureza que se transforma com a chegada da estação das luzes. Poucos enaltecem a beleza das cores que tingem o quadro outonal, os odores que se desprendem dos elementos que se aprestam a finar num momento regenerativo. Se perguntarem qual a minha estação preferida, digo sem hesitações que é o Outono. Ainda que seja difícil encontrar uma explicação racional, é o Outono que me enche as medidas.

O Outono sugere o recolhimento que a inclemência dos elementos invernais faz apetecer. O recatamento, uma introspecção que leva a procurar as energias para deixar para trás o incómodo do Inverno que há-de dobrar a esquina. O recolhimento serve para um balanço do Verão que acabou de ver rasgada a folha no calendário. O Outono, a charneira que liga o passado ao futuro, o elo de ligação que permite avaliar os erros do passado, captar as lições positivas dos tempos idos; e arrepiar intenções para o futuro que se anuncia.

Com o Outono vem uma espécie de letargia que nos prepara para o que vem a seguir. Permite recolher os despojos das folhas caídas para procurar a rota certa no doravante que há-de chegar. Com a vantagem dos elementos estarem num fulgor surpreendente, por estranho que pareça: a decadência que alguns encontram na estação outonal é uma lição para captar a essência da vida. Evitar cair nos desmandos outonais é a expressão vivencial que se retira do significado do Outono.

27.9.04

Politicamente incorrecto (outra vez a voz do povo)

Há males que vêm por bem. Há muito que andava a prometer a mim mesmo que deixava de dar tanta atenção às notícias difundidas pela imprensa. Pelo efeito contra-terapêutico que têm, tanta a desgraça, a vilania, a miopia da comunicação social que enfatiza o que menos merece atenção mas é sobrevalorizado por um povo ávido de dramas ensanguentados. Demitindo-se de uma função pedagógica, esta comunicação social casa-se na perfeição com o povo merdoso que por aqui anda.

Tudo a propósito de mais um execrável crime de que uma criança foi vítima. Ao que parece, a menina terá sido assassinada pela mãe, com a conivência do tio materno que encobriu a cena macabra até se ter arrependido, confessando à polícia. Como disse no início, há males que vêm por bem: depois de na sexta-feira ter sido invadido pelas reportagens que tresandam a voyeurismo, meia dúzia de minutos bastaram para recusar ser parte no espectáculo colectivo de que somos intervenientes passivos enquanto telespectadores que consomem este tipo de informação pestilenta. No fim-de-semana não houve noticiários que entrassem pela minha retina. Para evitar a inoculação das poucas cenas lamentáveis a que assisti naquela meia dúzia de minutos.

Já não bastava o crime hediondo, ainda temos que levar com as suas sequelas. A necessidade de escutar a voz popular, para sentir o pulso da revolta que incendeia os espíritos da população local. Escutar os maiores dislates que vêm de gargantas doídas por tanta ignomínia, mas que exalam um odor fétido feito de uma mistura de emoção à flor da pele e ignorância, a mais pura ignorância. Não sei qual será o sintoma: se a tendência contemporânea de alimentar as audiências, indo ao encontro das detestáveis preferências do espectador padrão; se um sentimento de democracia popular que se traduz na espontânea audição da voz do povo; se uma comunicação social que se abastardou e já não se distingue das ignorantes massas que representam a maioria da população. Só sei que este esgar de violência colectiva, tisnando ignorância por todos os poros, é um sinal que me traz profundas dúvidas sobre outros aspectos mais densos da organização social e política que nos rege.

Este caso do Algarve é o segundo acto, em poucos dias, da relapsa figura de um povo embrenhado na sua estupidez. Mais do que sublinhar outra vez a impossibilidade da justiça popular (porque as duas palavras contradizem-se por natureza), interessa agora dar conta de tão elevada ignorância popular. Os homens peroram sobre o que fazer com o irmão da mãe assassina que tenta colaborar com a polícia para descobrir o corpo da infeliz vítima. Empossados de dotes que fariam de cada um juízes com elevadas qualidades, disparatam a torto e a direito, com a complacência dos jornalistas que querem descer o juízo opinativo à voz mais chã. Mães revoltadas insultam o cúmplice trazendo a tiracolo os seus filhos, na convicção de que este é o melhor tipo de educação que podem oferecer aos seus rebentos ainda imersos na inocência.

Espíritos mais revoltados e condescendentes avisar-me-ão que se trata de emoções trazidas à superfície, toldando a sensatez que deve imperar nestes momentos. Desconfio que este não é o diagnóstico correcto. É mais acertado concluir que se trata de ignorância, da profunda ignorância de um povo que raia os limites do analfabetismo. Pela amostra a que pude assistir, a faixa etária é elucidativa da ignorância vegetativa: pessoas que vêm de um tempo em que um ditador considerava que a melhor maneira de se perpetuar no poder era manter a população mergulhada num terrível obscurantismo.

O problema é este: como conciliar um regime democrático com a persistência de um povo tão inculto? Se a democracia é o produto das escolhas de todos e cada cidadão, se é tão avultada e profunda a ignorância, podemos estar à mercê das escolhas deste povo? Confesso que ao fim da meia dúzia de minutos agredido pela douta sabedoria popular, compreendi os níveis de governação medíocre que temos tido. É este o povo que corporiza a maioria. É este o povo que elege as maiorias. No fundo, temos tido a governação medíocre que o povo ignorante merece.

Uma interrogação adensa-se no meu espírito: é este o povo que merece um direito de escolha através do sufrágio? Pergunta incómoda, admito, pelo teor politicamente incorrecto que ela encerra. É nesta altura que vem à memória a famosa frase de Churchill que já se elevou ao patamar de lugar-comum: a democracia é o pior regime se não contarmos com os demais. Mas que a democracia baseada na escolha popular pode ser enviesada quando o povo é tão ignorante, parece-me incontestável. A incómoda interrogação serve apenas para despertar espíritos, não para encontrar uma solução no imediato. Encontrá-la pode levar tempo infinito. A fórmula quimérica para deslindar esta equação será arte de um visionário que consiga encontrar a quadratura do círculo.

24.9.04

A aventura de entrar numa estação de correios

Não são muitas as vezes que tenho que ir aos correios. Perto de minha casa há uma estação. Por razões de conveniência é esta a estação que utilizo. É uma estação muito frequentada, sendo raro encontrar poucas pessoas na fila para o atendimento. Dando razão aos que criticam a escassa racionalidade na gestão dos meios de que os serviços públicos são pródigos, aquela estação muitas vezes tem apenas dois balcões abertos para atender a larga afluência de utentes. Apesar de serem cinco os balcões criados, só por uma vez testemunhei três deles a funcionar. Como é óbvio, as filas de espera estendem-se pela estação.

Por vezes desisto ao chegar. A fila prolonga-se para o exterior do edifício. É o prenúncio de uma espera longa. Outras vezes tenho a agradável surpresa de lá chegar e deparar com meia dúzia de pessoas. Como significa uma espera de uns escassos minutos, aguardo pela minha vez. Só que, por vezes, a surpresa está ao dobrar da esquina. À minha frente estão os velhinhos que dedicam pacientemente largos minutos da sua rotina diária para acamparem na estação de correios. E para fazerem outras pessoas, com menos tempo disponível, desesperarem por tanto tempo desperdiçado em tarefas que podiam ser resolvidas fora dos correios.

Da última vez que lá fui estavam apenas cinco pessoas à minha frente. Num dos balcões era atendida uma senhora avantajada de formas, complicando a vida do funcionário por entre mil e uma caixas que podiam servir para as suas encomendas. Quase todo o tempo que ali passei a senhora monopolizou aquele balcão. A fila foi avançando até que as duas senhoras idosas que estavam à minha frente tinham que se demorar. A primeira tinha tirado aquele tempo ao final da manhã para proceder os inúmeros pagamentos que podem ser feitos no Multibanco ou por transferência bancária. Vi logo, ainda esperava a sua vez na fila, que estava carregada de facturas. Era a factura da EDP, dos SMAS, da TV Cabo, da Portgás, da Portugal Telecom e da Optimus. Com todos estes pagamentos escoaram dez minutos, enquanto a gorda do lado continuava hesitante acerca das caixas para expedir as suas encomendas.

Despachada a primeira senhora, era a vez da outra que estava à minha frente. Também vinha com uma carrada de papéis, e fiquei assustado só de imaginar que ia estar mais dez minutos especado. Para piorar o cenário, a senhora ia levantar a sua pensão de reforma antes de pagar a luz, a água e o telefone (vá lá, não havia TV Cabo nem telemóveis para liquidar…). Só que ela também levava os papéis de uma vizinha que lhe tinha pedido o favor de levantar a reforma. Primeiro apresentou o documento relativo à sua reforma. Depois da contagem do dinheiro, apresentou os papéis da vizinha. Para exasperação da funcionária, que não compreendia porque não tinham sido apresentados os dois papéis de uma só vez. “Porque a esta senhora quer tudo assim direitinho, tudo separado”, respondeu, como que sacudindo a água do capote, enquanto assistia à contagem das notas nas mãos da funcionária e depois, zelosa ou desconfiada, fazia o mesmo (duas vezes) antes de abandonar os correios.

Por fim a minha vez. Uma demora de mais de vinte minutos, quando à entrada tinha a esperança que nuns breves minutos seria atendido. Quando avancei para o atendimento olhei para trás. A fila já se aproximava da porta da estação dos correios. Vinte e cinco pessoas tinham-se acumulado. Algumas não disfarçavam o incómodo pela demora causada pelas senhoras que me antecediam.

Não sei se será desconhecimento ou desconfiança nos novos métodos que permitem efectuar pagamentos e recebimentos deste género fora das estações de correios. São pessoas idosas, é certo. Acredito que muitas não têm sequer cartões que lhes permitam ir a caixas Multibanco para liquidar com maior comodidade estas contas caseiras. No caso da primeira senhora, causa-me estranheza que ela se preste ao incómodo de efectuar estes pagamentos numa estação de correio. Não seria por desconhecer outras formas de pagamento mais cómodas, ela que minutos antes de ser atendida exibia a uma amiga, com garbo, as fotografias das recentes férias na ilha grega de Rhodes.

Estas pessoas fazem dos correios uma casa necessária que visitam com regularidade. Uma peregrinação periódica, uma peça fundamental da rotina que elas criaram. Mais do que desconhecerem as outras modalidades de pagamento destes serviços, mais do que desconfiarem dessas alternativas, estes idosos inculcaram um hábito de que não se conseguem desprender. No rescaldo, torram a sua paciência em filas enormes nas estações de correio. E são eles que contribuem para que outras pessoas, em busca de um atendimento célere para tarefas simples, percam tempo infinito à espera de serem atendidas.

Ainda os correios na sua versão ancestral de “casa familiar” que as pessoas gostam de visitar. Quase como se fosse uma segunda ou terceira morada onde se sentem em casa, mesmo que percam meias horas ou mais numa espera que para eles não é cansativa. Antes recompensadora. Estranhamente recompensadora.

23.9.04

Expressões idiomáticas que soam mal: “a minha mulher”

Não que se trate de uma expressão típica da língua portuguesa, porque noutros idiomas também é corrente. É uma simples expressão enraizada nos hábitos das pessoas. Homens e mulheres, indiferentes, usam-na sem perceberem o alcance contido naquelas singelas palavras. Os homens não se importam da recorrência da expressão. As mulheres, quem sabe se resignadas a um passado de subalternização sexista que lhes foi imposto, acomodam-se. Algumas com contentamento, ignorando o verdadeiro teor da expressão no que ela contém de possessivo, de manietação da sua liberdade individual, da subordinação perante o comando do homem-chefe-de-família.

Soa-me mal escutar “a minha mulher”. Curiosamente, já não tanto assim “a minha namorada”. Talvez exista uma coerência para a diferença de tratamento. Uma namorada não traduz um estado de permanência, como se espera que aconteça com o matrimónio (bem sei, bem sei, esta durabilidade é muito relativa nos tempos que correm). Ter uma namorada, mesmo quando há entre as pessoas envolvidas aquilo a que se convencionou chamar um “compromisso sério”, não transporta as mesmas consequências de perenidade. Como as coisas estão, atestar que as namoradas vão e vêm como o vento (e com o vento…) faz cada vez mais sentido. Daí que não doa tanto ao ouvido escutar “a minha namorada”.

Outra é a música que ressoa aos ouvidos com a agridoce expressão “minha mulher”. Metade é feita da recompensa interior de se saber amado por alguém, e de ter a certeza que dentro de nós irrompe o mesmo sentimento por outrem. Esta a origem da doçura da expressão. Que encontra um travo agreste, vindo do significado mais profundo de se utilizar o termo “minha”. Se escutar a expressão sempre me arranhou o sentido auditivo, dizê-lo causa-me mais engulhos. Tento dizê-lo e as palavras soltam-se entorpecidas, num esforço que contraria a espontaneidade com que a expressão devia ser soletrada.

Não me consigo rever no simbolismo possessivo trazido à superfície quando se diz “a minha mulher”. Este é o problema: ler na expressão a tradução de um sentimento de posse que não faz sentido. Talvez seja deformação que vem dos tempos da universidade, quando a contra-gosto estudei direito. Lembro-me de ensinarem, creio que em direitos reais, que a posse não é um conceito muito distante da propriedade (não será tão extenso, mas garante praticamente as mesmas regalias). É isto que me custa na expressão “minha mulher”. Sentir este possuir alguém, como se o sentimento que cimenta a união trouxesse prerrogativas tão largas. Como se alguém se hipotecasse nas mãos do consorte, fosse este o fiel depositário do seu destino.

Dir-me-ão que não devo levar à letra a expressão. A semiótica ajuda a contornar a dislexia que a expressão provoca. Ainda assim mantenho a ideia: há um obstáculo mental que me traz um enorme desconforto ao usar a expressão. Enobrece mais tratá-la pelo nome próprio. Já que não o perde, é o sinal que veio consigo à nascença. A identidade que uniu num determinado momento, a origem de uma cumplicidade que semeou outros sentimentos.

Ver num mero formalismo (o contrato do casamento) o pretexto para alterar o estatuto, para deixar cair o nome próprio que é tão bom pronunciar, é subverter a preciosidade das palavras e o virtuosismo do sentimento. Sem contar que perpetua o marialvismo dominante que teima em não se desligar do meio em que vivemos. Haverá algo mais dignificante, para um macho que se preze, do que ostentar com orgulho que uma mulher é sua posse? E consentir que as próprias mulheres se dobrem perante tamanha manifestação de superioridade amesquinhada (apesar de algumas delas usarem da mesma moeda, avisando a concorrência que aquele é “o meu homem”)?

Há confusões que emergem e que estão na origem desta perturbação das palavras. Mistura-se a fidelidade conjugal com um sentimento de posse cravado nas palavras que afirmam “a minha mulher”, “o meu homem”. Porque outra forma de ler estas palavras, através da sua reconstrução, é dizer “este homem é meu”, “esta mulher é minha”. Como se a posse subitamente começasse a invadir os domínios da propriedade. De uma propriedade que não se pode consentir quando falamos de relações entre pessoas com a sua individualidade.

22.9.04

Cuidado, os Ban estão de regresso

Os Ban eram um grupo de música pop liderado por um rapaz filho do famoso major Valentim Loureiro. Na altura o papá era apenas presidente do Boavista FC (tinha outras sinecuras de menor visibilidade: cônsul da Guiné-Bissau, a par de uma intensa actividade empresarial; e a sorte de ter sido bafejado com algumas gordas taludas). O delfim era rebelde, sorumbático. Vagueava pelos cafés da Boavista de caneta em riste, escrevinhando esquiços de poemas que depois eram musicados nos Ban. Rebeldia natural de quem viveu uma adolescência marcada pela figura tutelar do pai. A música e a proto-poesia seriam um escape para outros sufocos.

Os Ban chegaram a ter algum sucesso comercial. Alguns hits passavam amiúde nas rádios de maior audiência. A idiossincrasia musical do grupo foi mudando. Ao início uma banda de garagem, com uma sonoridade tangente ao punk, a passagem dos anos testemunhou uma metamorfose que trouxe ritmos mais dançáveis, melodias que entravam com mais facilidade no ouvido (e que também esgotavam mais depressa a paciência auditiva do ouvinte…).

João Loureiro foi perdendo a máscara de rebeldia. Domesticou-se, começou a mostrar uma imagem mais “limpa”, menos lúgubre. A sonoridade mais dançável era o pretexto para a nova imagem mais simpática à maioria das pessoas – ou vice-versa. O sucesso nos tops musicais era a expressão visível de que o jovem Loureiro começava a fazer as pazes com a “sociedade normal” de que o seu pai era lídimo representante. Na metamorfose, porém, uma coisa não mudou: a manifesta falta de jeito para cantar do vocalista dos Ban. A alcunha “aprendiz de cantor” encontra aqui a sua razão de ser.

Os anos passam e as mentalidades mudam-se. A inquietação do passado deu lugar à postura responsável, ao pai de família, ao jovem advogado que começou a trajar o fato e a gravata que apresentam marca de respeitabilidade nas relações sociais. A fonte de inspiração musical tinha-se esgotado. Ou apenas o pretexto para dizer à sociedade que tinha abdicado da máscara de rebeldia inconsequente dos tempos de vocalista dos Ban para entrar no templo da normalidade social. Sinal dos tempos, o jovem Loureiro fez o tirocínio da ignominiosa cumplicidade entre o futebol e a política.

No futebol deu corpo à oligarquia instalada no Boavista FC, sucedendo ao seu pai que entretanto passou a ocupar-se da Liga de Futebol (a par de inúmeros cargos políticos, de autarca a presidente de empresas públicas e da zona metropolitana do Porto, num desdobramento de si mesmo que causa inveja aos que sentem que as 24 horas de um dia são escassas). Na política, mercê do cunho impressivo do seu pai, tinha que se encostar ao PSD. Foi subindo a pulso, sem grande notoriedade dentro do aparelho partidário.

Chegou a deputado da nação, sem levar até ao fim o seu mandato. Era incompatível com a exigente função de presidente de um clube de futebol que quer rivalizar com os três tradicionais grandes. Começava a preparar o salto para outras funções políticas quando uma investigação judicial envolvendo o seu pai lhe tirou o tapete. O “apito dourado” trouxe à superfície as pontas tentaculares do polvo política-futebol-construção civil de que há tanto tempo se falava em surdina. Sendo filho do principal suspeito, o jovem Loureiro viu os seus projectos ruírem. Quando se anunciava um lugar elegível na lista de candidatos ao Parlamento Europeu, lá teve que se resignar à queda do seu nome em favor dos interesses do partido.

Amputadas as ambições políticas, adivinho-o tomado por uma profunda angústia. Os projectos tinham sofrido um golpe sem que ele fosse responsável pelo retrocesso. Ter-se-á apoderado dele um sentimento de revolta, por mais uma vez o seu destino ser traçado pela presença determinante do seu pai. O clube que lidera, obrigado à contenção financeira que varre quase todo o panorama do futebol, perdeu o protagonismo que lhe permitiu ser campeão pela única vez há uns anos atrás. Anda perdido no meio da tabela, sem sequer entrar nas competições europeias.

No pináculo da maré baixa, Loureiro terá sido acometido por saudades do tempo da juventude em que a sua voz se soltava num esboço de cantoria pouco acima do limiar da inteligibilidade. Foi buscar os Ban ao baú das recordações. Notícias dão conta que os ensaios têm periodicidade semanal. Se alguns meteram o socialismo na gaveta, outros terão remetido canções frustradas para a gaveta durante os anos em que a postura responsável afastou as ambições artísticas. Agora terá chegado o tempo de virar a página. Para mal dos nossos ouvidos, as canções arquivadas na gaveta soltaram-se da poeira do tempo. Parece que João Loureiro vem atrás, aos tempos idos da juventude, em busca de um "ideal imaginário"...

21.9.04

A ilusão da igualdade

O cenário é a trapalhada das colocações dos professores nas escolas públicas. As listas que se sucedem, cravejadas de erros, obrigam ao prolongamento da angústia de tantos professores. Regras caducas insistem na centralização do processo nos burocratas do ministério que estão longe das necessidades sentidas por cada escola. Regras que exalam um odor fétido da planificação marxista que teima em vogar sobre a sociedade. Para piorar o diagnóstico, estas regras absurdas prevêem excepções, trazendo privilégios aos professores casados com funcionários públicos. Estes professores sobem na escala de prioridades, tendo preferência na colocação. Eis a igualdade em todo o seu esplendor!

É a mesma igualdade apregoada por certas correntes inspiradas nos valores herdados da Revolução Francesa. Igualdade, liberdade e fraternidade, o tríptico que encaminha estas mentes iluminadas sempre dispostas a intervir para que o destino igualitário seja alcançado. Com as entorses entretanto conhecidas, para gáudio de outras correntes ideológicas que foram nascendo, valoriza-se a igualdade e esquece-se a liberdade.

A fraternidade é um adorno. A versão contemporânea é a solidariedade, defendida pelos percursores dos ventos vanguardistas que relembram a toda a hora os deveres de solidariedade para como o outro. Um dever que se inscreve na rota de cada um enquanto participante activo na sociedade. Um dever inalienável que pesa sobre a consciência de cada indivíduo. Os que renegam a solidariedade são os párias do mundo contemporâneo. Não é o lugar nem o momento para discutir este “imperativo categórico” que nos alicerça o comportamento. Direi apenas que não me apanham na barca colectiva de uma solidariedade que não passa da aparência. Não aceito que me imponham, de fora, os deveres de consciência que só ela é capaz de ordenar.

Interessa reflectir sobre a igualdade. Como todos os dogmas, está cheio de brechas que à mínima pressão o fazem desabar com estrondo. De tanto se querer impor a igualdade como valor que conduz as relações entre os indivíduos, não se dá conta como a igualdade está no domínio do irrealizável. Porque há uma impossibilidade natural de prover a igualdade entre todos os membros que compõem a colectividade. Por mais que seja difícil aceitá-lo, nascemos todos desiguais. Assim que somos concebidos, ainda no ventre das progenitoras, já somos carimbados pela desigualdade que é uma mera extensão de condições desiguais – a geografia, o passado familiar, o meio social onde nos inserimos, o tempo em que vivemos, etc. O prolongamento da desigualdade uterina tem expressão mais visível ao longo da vida de cada pessoa. Querer ir contra esta força da natureza é um acto viciado, é querer corromper as regras do jogo. Porque a igualdade não se impõe por decreto, inscrevê-la como matriz de um programa ideológico é apenas enganar as pessoas que são enternecidas pela ideia.

A ideia pode ser bela, conter os predicados que atraem massas. Terá sido um acto de inteligência a descoberta da igualdade. Foi-o para os sectores que a ela se agarram como a âncora que fideliza a base social de apoio que representa o capital de permanência no poder. Terá sido um acto de inteligência, mas de mero oportunismo. Não creio que os ideólogos da igualdade acreditem que o programa igualitário é realizável. Oportunismo, porque a ideia de igualdade é usada com demagogia. A palavra ressoa como um rebuçado que adoça a boca de quem o saboreia. É uma simples ilusão que se desvanece quando o açúcar depositado pelo rebuçado perde as suas propriedades gustativas. Apenas um biombo que esconde as angústias da consciência, martirizada pelos imperativos de justiça social que nos são recordados a todo o momento, como se fosse necessário agrilhoar a consciência para a sociedade justa que somos incapazes de edificar.

Os privilégios dos professores casados com funcionários públicos devem ser denunciados. Já não bastavam as benesses dos funcionários públicos, e ainda se estabelece mais uma distinção para quem teve a sorte de com eles contrair matrimónio. Não é só o nivelamento por baixo que exaspera. É tomar consciência de que os guardiães da igualdade foram os arquitectos de um sistema que trata alguns como mais iguais entre os iguais. Afinal o romance de Orwell pode ser reinterpretado a uma luz diferente: e questionar os privilégios colocados nas mãos de uma casta menos produtiva do que os demais. Dupla injustiça, ajuizando pelos padrões dos titulares do valor da igualdade: nem todos são iguais (uns mais do que outros) e os menos habilitados são os que têm acesso aos privilégios. Interrogo-me: igualdade será premiar os incapazes?

Há uma solução para os professores marginalizados: façam como os futebolistas estrangeiros que se casam artificialmente com portuguesas como expediente para adquirir a nacionalidade portuguesa; casem-se com funcionários públicos que os vossos problemas se resolvem num ápice…

20.9.04

Encerrar a refinaria de Leça da Palmeira: o mais importante é defender 600 postos de trabalho?

Depois do acidente de Julho, as condições de segurança da refinaria da Petrogal em Leça da Palmeira voltaram a ser tema quente. Mais ainda depois do relatório divulgado pelo ministro do ambiente, que detectou graves carências de segurança. Neste fim-de-semana o Expresso anunciava a possibilidade da refinaria vir a ser desmantelada, de acordo com “fontes bem informadas” situadas algures no gabinete do primeiro-ministro.

Quando a notícia saiu das páginas dos jornais e veio para a praça pública, para os comentários das “forças vivas” interessadas no assunto, intrigante foi observar como muita imprensa teve a reacção espontânea de entrevistar delegados sindicais da refinaria. Em vez de se auscultar a “douta opinião” do falido edil da autarquia onde a refinaria está localizada, a preocupação foi logo trazer à superfície os interesses dos seiscentos trabalhadores que poderão vir para o desemprego caso o encerramento da refinaria se confirme.

Há certas pessoas que têm graves problemas de ordenação numérica. Era bom que voltassem aos bancos da escola. Para a necessária reciclagem que lhes permitisse recordar que a dezena de milhar é uma grandeza numérica bem mais importante do que seiscentos. A partir do momento em que a diferença de grandeza dos dois números fosse novamente compreendida, seria então mais fácil perceber que defender os interesses e vidas das dezenas de milhares de pessoas que vivem nas redondezas da refinaria é a prioridade – muito mais prioritário do que o destino de seiscentos postos de trabalho. Mesmo para os que têm uma dose elevada de “consciência social”, não acredito que possam colocar os trabalhadores da refinaria acima dos interesses da população local, obrigada há décadas a viver com a espada oscilando em cima da sua cabeça devido aos riscos de acidente que existem pela vizinhança da refinaria. Se o fizerem entram em contradição com a apregoada “consciência social”: será que os trabalhadores da refinaria são cidadãos de primeira, e as pessoas que residem à volta da refinaria são de segunda?

Estas pessoas – sindicalistas e muitos jornalistas – têm uma visão estranha do fenómeno das maiorias que está na base de uma governação democrática. Ao mostrarem tanta preocupação pelos empregos de seiscentas pessoas, esquecem-se do risco de vida que correm as dezenas de milhar que vivem cercadas pela refinaria. As seiscentas pessoas que podem perder os seus empregos parecem mais determinantes para a tomada de decisão. Mais ainda do que as vidas de dezenas de milhar de pessoas que podem, a qualquer momento, sofrer o sobressalto de um acidente com consequências imprevisíveis. Não é legítimo que esta ameaça paire constantemente sobre a segurança de tantas pessoas. Sobretudo quando muitas delas compraram casa nas imediações com a promessa (incumprida) de que a refinaria seria desmantelada logo que a zona residencial envolvente fosse terminada.

Estas são as pessoas que agora arranjam pretextos para não fechar a refinaria. Quem sabe porque vivem a mais de trezentos quilómetros de distância, e porque na área onde residem não há o mesmo tipo de ameaça. E são as mesmas pessoas que, se acontecesse um acidente trágico, não hesitariam em aparecer na linha da frente das críticas dirigidas ao governo por não ter ainda fechado a refinaria.

O episódio serviu para me deliciar com um camarada do PCP. Nunca tinha visto nenhum camarada a defender com afinco uma empresa, afinal o símbolo do pérfido capitalismo que eles tanto execram. No afã de mostrar argumentos contra o encerramento da refinaria (por se achar na obrigação de defender os interesses dos tais seiscentos trabalhadores que têm o desemprego como solução, ou apenas pela necessidade de contrariar a intenção do governo), o comunista de serviço dissertou sobre as vantagens estratégicas da refinaria naquele local. A administração da Galp não contava, nem por sonhos, ter um aliado deste calibre!

Gostava de saber o que pensa o parceiro da coligação encabeçada pelos comunistas, o Partido Ecologista os Verdes: também defendem a manutenção da refinaria, se for confirmado que as deficiências de segurança são tão graves que não há remodelação que lhe valha? Até agora só o silêncio ecoa deste partido colonizado pelo PCP, o que é sintomático de quanto defendem os interesses do ambiente. Aliás, alguém ouviu aplausos de outros grupos que patrocinam as causas ambientais, em reacção à intenção de encerrar a refinaria? A falta de imparcialidade tem destas ironias!

17.9.04

Requiem pelo serviço militar obrigatório

Sinal dos tempos: de agora em diante os jovens mancebos já não precisam de perder meses da sua vida a cumprir o serviço militar obrigatório (SMO). Os jovens deixarão de ser mancebos.


Os tempos mudam, as necessidades também, e o exército teve que se adaptar aos novos rumos que o mundo tomou. Agora que as “ameaças à soberania nacional” aparecem mitigadas, o exército foi levado a reequacionar as suas funções. Como as guerras já não batem à porta com a frequência do passado, eis que deixa de fazer sentido preparar os homens do país para as vicissitudes de um conflito bélico. A modernidade trouxe a carta de alforria para os jovens.

Para os meios castrenses esta será uma notícia pouco agradável. É verdade que não terão multidões contrariadas a bater com os costados nos exercícios físicos e cívicos que por ali se ensaiam. Com a extinção do SMO só terão voluntários ao serviço: só lá irão parar aqueles que sintam uma vocação digna de um Rambo dos novos tempos. Mas não acredito que aos militares profissionais interessasse saber se os mancebos estavam ou não mobilizados para os meses de treino militar. A disposição pessoal era um pormenor de somenos importância quando comparada com o imperativo cívico, o desígnio nacional, de terem que cumprir o SMO. A obrigação acima do lazer. Para os militares de gema, tão habituados ao exercício da autoridade que escapa ao respeito por mínimos de dignidade humana, talvez fosse mais representativo saber que exerciam poder sobre levas de recrutas contrariados.

Com o funeral do SMO enterra-se o mito dos homens de barba rija – melhor, da barba que só enrijecia quando iam parar aos quartéis. Do imaginário popular consta a ideia de que os homens só se fazem homens depois de passarem pelo crivo da tropa. É aí que deparam com situações delicadas que os põem à prova. Entre as quatro paredes dos aquartelamentos, ao sabor de um regime marcial, travavam conhecimento com as agruras da vida. Aos que já não fossem estranhas as dificuldades de uma vida de sacrifício, a tropa apenas servia para confirmar que a vida de uma pessoa é sofrer e abster desde a nascença até ao morrer. Aos tenrinhos, aos dentinhos de leite que sempre andaram protegidos pela asa de mães galinhas, a tropa era uma experiência enriquecedora que os amadurecia para a vida. Só então estariam preparados para a selva que é o mundo.

Com o funeral do SMO também se desprendem boas novas. Muita gente não se perde em vícios conquistados durante o tempo da tropa. Muitos dos que são obrigados a cumprir serviço militar em idade mais avançada (nos vinte e poucos anos, já licenciados e preparados para a vida profissional) não têm que desperdiçar meses preciosos, adiando ou suspendendo a participação em algo de útil – a sua inserção na vida activa. Precoces pais de famílias não são obrigados a separar-se da sua família.

Muitos jovens não serão jamais forçados a viver na angústia do dia em que vão consultar os editais onde está afixado o veredicto – colocação longe de casa, ou a sorte grande de ingressarem nessa coisa abominável chamada “reserva territorial”. (Abominável porque sobre os que têm a sorte de serem dispensados de cumprir o SMO fica sempre a pesar a ameaça de um chamamento, se a qualquer momento for necessário convocar os “reservistas”. Como se estes fossem um capital sempre disponível para engrossar as fileiras do exército, quando uma vicissitude exija a reconstituição de um exército feito de homens sem preparação alguma. Os reservistas serão carne para canhão. E depois há quem censure outras civilizações por não respeitarem o valor da vida humana…)

Pela parte que me toca, são muitas as lágrimas que verto pela saudade dos tempos da tropa. Foram tempos bem vividos, que a espaços me colocam na senda de uma nostalgia incomparável. O meu SMO foi exemplar por ter me permitido fazer homem e me sentir útil. Porque fui dos felizardos a quem calhou a reserva territorial. É por isso que guardo uma respeitosa saudade do meu SMO – da tropa que tive a felicidade de não cumprir, por capricho do destino. O meu contacto com o SMO resume-se a dois dias de sensações contraditórias. O dia da inspecção militar, talvez o dia mais estúpido da minha vida (e sem dúvida o pior “restaurante” que alguma vez frequentei…); e o dia em que fui consultar os editais, anunciando a colocação na reserva territorial, numa prenda antecipada de Natal. Pelo meio, o orgulho da minha epiderme nunca ter tomado contacto físico com uma arma de fogo é a melhor herança pessoal do SMO. Assim pude respeitar uma das melhores lições da educação dos meus pais (a rejeição de armas).

16.9.04

Uma fronteira difícil: discussão serena ou peixeirada vergonhosa?

Se há coisa que me mete espécie é assistir a “debates acirrados” entre correligionários de uma certa causa que discordam em aspectos pontuais. Se estão irmanados pela mesma causa, porque aquecem tanto os espíritos se as desavenças se resumem a pormenores que não beliscam a fidelidade de todos perante a nobre causa? Acontece onde haja facções diferentes que se digladiam pela detenção do poder. Quantas vezes estes debates são mais inflamados do que discussões mantidas com adversários de outras causas? Quantas vezes a arena política reproduz confrades ou camaradas de armas em punho prontas a disparar à mínima excitação?

O inevitável PS é a demonstração do que acabo de referir. Sempre que há mais do que um candidato a disputar o trono emergem discussões estéreis pontuadas pelo ataque pessoal e soez, pela chicana política. Quando sou apanhado desprevenido e imagens e sons da campanha dos três candidatos invadem a minha tranquilidade, fico intrigado com o belicismo que por lá acampou. Até parece que se esqueceram de combater os partidos adversários, tão entretidos andam com a disputa do poder interno. Claro, será apenas um hiato. Ultrapassado o congresso que irá vitoriar um deles, virá o tempo de concentrar as energias nos adversários. No entretanto, deitam-se uns aos outros que nem machos da mesma espécie que disputam uma fêmea com o cio.

Há quem diga que esta discussão é salutar. Que o contrário seria pior – por exemplo, o unanimismo dos pétreos comunistas. O desafio é encontrar um equilíbrio entre a abertura de espírito que patrocina a troca de ideias e a peixeirada que vinga quando os pontos de vista se extremam e falta espírito olímpico para tolerar opiniões diferentes. Muito se fala de novas modalidades de democracia, enriquecidas pela participação dos cidadãos em debates que se querem abertos e plurais. Seria uma forma de envolver os cidadãos na governação (ainda que das discussões possa não nascer luz para as decisões tomadas). Uma modalidade vanguardista para ultrapassar as limitações da representação parlamentar, mergulhada numa crise indisfarçável.

A ideia merece aplausos. Permitir a discussão em fóruns abertos, convencer os políticos à exposição diante de um público ávido em debater e questionar – contém, como disse antes, os predicados do enriquecimento do regime político. Mas há sempre um porém a toldar as virtudes que, cristalinas, surgem pela frente. Porque há quem não se saiba comportar numa discussão. Quem tente subverter as regras do jogo. Seja logo à partida, para condicionar o rumo dos acontecimentos em seu favor; seja a meio do jogo, quando a discussão não evoluiu favoravelmente. Há quem se esqueça das regras da boa educação. Outros confundem o direito à participação com intolerância em relação aos que deles discordam. É fácil a confusão instalar-se em fóruns abertos como estes. No rescaldo, em vez da discussão fazer luz, ela adensa a escuridão. E desmobiliza aqueles que querem participar de forma construtiva, porque não encontram incentivos para embarcar num jogo que é pervertido pelos que o querem monopolizar.

Como é tão difícil encontrar o equilíbrio. Quem sabe se por impreparação das pessoas, pouco habituadas a terem um local onde possam expor as suas ideias e criticar opções. Ou será mais estrutural, uma tendência inata para o Homem se deixar cair na confrontação verbal que atinge o limiar da violência traduzida no insulto fácil?

Depois há as sequelas difíceis de apagar. Sei que depende de cada pessoa, da sua capacidade de encaixe. Uns conseguem, passado pouco tempo, ultrapassar as feridas de uma discussão que passa os limites do empolgamento. Noutros, a ferida permanece aberta durante muito tempo – o tempo suficiente para que a discussão seja evitada doravante, para impedir que a ferida ainda não cicatrizada abra mais ainda, e para impedir que outras feridas surjam como a consequência de novas desavenças. Seja na política, na profissão, na vida pessoal, para os que têm menor capacidade de esquecer o passado (não digo de o perdoar), o capital de desconfiança acumula-se e limita o terreno para a troca de ideias, para uma relação que devia valorizar o bom que é confrontar ideias diferentes sem o preconceito de querer sair vitorioso da refrega.

15.9.04

Esboço de um sindicalista fracassado (em defesa dos interesses dos professores)

Li informação sobre um estudo da OCDE que compara os sistemas de ensino dos países que fazem parte desta organização. Entre os vários tópicos abordados, há um que me é particularmente caro – as remunerações dos professores. Ainda que o estudo pareça centrar-se no ensino primário e secundário, se fosse estendido ao ensino universitário as conclusões não seriam diferentes. Ali se conclui que os professores portugueses estão em oitavo lugar, a contar do fundo da tabela, no que diz respeito a remunerações.

Ao ler este dado fui assaltado por uma súbita revolta que costuma apoderar-se dos activistas sindicais do país. Descontando o importante pormenor de serem criaturas politizadas, em vez de defenderem mesmo os trabalhadores que representam, hoje quase me sinto como esta tribo que se sacia na turbulência social como abutres que depenicam carcaças nauseabundas. Por um dia, vou vestir a pele de um sindicalista em defesa dos interesses dos professores – mau grado o desconforto que a vestimenta me traz...

Não é novidade que os professores são mal pagos. Aqui como no estrangeiro. Porque o estudo da OCDE esconde uma realidade que passa sempre ao lado de analistas e do público: esta é uma comparação internacional dentro do mesmo sector. Seria mais relevante apurar a valorização relativa dos professores, primeiro dentro de cada país e só depois partindo para uma comparação entre países. Por outras palavras, onde estão os salários dos professores por comparação com as demais profissões que constituem a população activa?

Em Portugal os professores têm salários baixos, quando colocados lado a lado com outras profissões. Claro que a comparação não pode incluir distorções tão típicas e banais como as da classe política e dos futebolistas. Há que ter atenção às “profissões normais”, se me é permitido usar a expressão. Sobretudo àquelas profissões onde é necessário passar pelo crivo das universidades, onde a formação ministrada é essencial para o desempenho das funções. Das coisas que mais me intriga é saber que hoje estou a formar um aluno que amanhã entra no mundo do trabalho e começa a ganhar mais do que eu, que já cá ando há mais de dez anos nestas lides.

Um defensor do mercado, como o sou de forma intransigente, poderá estranhar esta confissão que cheira a inveja. Este é um caso onde aceito sem problemas que o mercado está distorcido – ou que o mercado revela ignorância e valoriza erroneamente a qualidade das funções profissionais de cada um. Uma pergunta será elucidativa: como podem as empresas servir-se de mão-de-obra qualificada se não houver, num momento anterior, um esforço formativo que vem dos bancos da escola primária mas que é sobretudo adquirido nos bancos das universidades? No fundo, é o mesmo mercado que desconsidera a função dos professores que libertam, ano após ano, mais especialistas que alimentam a competitividade das empresas que o constituem. Não há a recompensa justa pela mais-valia que os professores conferem à sociedade.

Bem sei que os professores antecedem uma fama pouco salutar. Que são dados à preguiça, que se escondem detrás de malabarismos argumentativos tentando convencer os outros que a escassez de trabalho (medida em horas gastas) é compensada pela qualidade do que produzem. Não ignoro que se cultiva a imagem do professor indolente, pouco profissional, sem brio, responsável pelo nivelamento por baixo que corrói o ensino – e, por arrastamento, co-responsável pela mediocridade que nos coloca mais longe dos que nos precedem. O problema é que os professores sejam julgados pelas ovelhas ranhosas que habitam o sistema, como se todos fossem as maçãs apodrecidas de um cabaz sem salvação.

Seria o momento de convocar a retórica reivindicativa, bem ao jeito de uma peça teatral de Brecht. Para protestar contra a injustiça, e reconhecer que o sucesso de toda uma sociedade se faz a partir da base da pirâmide, das escolas e universidades onde somos formatados para o futuro. Impõe-se premiar quem se esforça por lutar contra a prostração instalada. Chame-se-lhe justiça social (conceito que não me é caro) ou outra coisa qualquer, mas que sejam dados passos firmes para que os professores deixem de pensar que estão nesta vida para empobrecer alegremente. Até porque eles não são os últimos vestígios dos heróis românticos que acreditam que “um amor e uma cabana…”

É nestes momentos que me ponho a congeminar os efeitos diabólicos de um cenário catastrófico, hipotético é certo, mas sempre delicioso de arquitectar: o que teríamos se os professores deixassem de exercer a profissão? Talvez então os professores passassem a ser recompensados pelo mérito que lhes não é reconhecido agora.

14.9.04

Agualusa, Saramago e niilismo

José Eduardo Agualusa, entrevistado pela revista brasileira Época, disse acerca de José Saramago: “não gosto dele. Saramago cultiva o niilismo. É um pessimista que não acredita na vida e seus livros são contaminados pelo desencanto. É difícil escrever quando se descrê completamente da vida” (via Aviz). Num ponto concordo com o escritor angolano: também não gosto de Saramago. Com uma diferença: Agualusa tece uma análise centrada no plano literário; no meu caso, assumo o preconceito de quase desconhecer a obra literária de Saramago, por não gostar da personalidade do escritor (e as ténues tentativas que fiz para ler Saramago esbarraram na rejeição, ao fim de poucas páginas, por falta de atracção pela escrita e pelo enredo).

Discordo de Agualusa na argumentação utilizada. O niilismo é atacado sem dó nem piedade. É invocada a veia pessimista de Saramago para sugerir uma escrita desencantada que revela uma personalidade que se dá mal com o mundo. Numa palavra, Agualusa informa os leitores que ele cultiva as coisas belas da vida, que o mundo é preenchido por essas coisas e que não há lugar aos profetas da desgraça que desdenham do mundo que os acolheu para a vida.

Não quero fazer o papel de “advogado” de Saramago. A pessoa em si causa-me uma antipatia profunda. Pelo seu passado de inquisidor-mor quando foi director do Diário de Notícias, ao tempo do saudoso PREC. Por ser profundamente intolerante em relação aos que ousam discordar dele, fazendo com que a palavra democracia se azede na sua boca. Por sempre aparecer em público com uma pose de sacrifício, como se estivesse a fazer em enorme frete por aturar a corte que tanto o preza e bajula.

Saramago fica na estante, imóvel, a apanhar o pó que merece cristalizá-lo. Interessa-me indagar a excitação negativa que o niilismo e o pessimismo causam em espíritos abertos e optimistas. O lugar comum é o seguinte: o niilismo – a filosofia do não – não adopta um comportamento construtivo perante o mundo. Limita-se a destruir, muitas vezes de forma impiedosa, sem apresentar alternativas ao que é rejeitado. É uma postura negativa por se limitar a um repetido exercício de desconstrução do que existe. Para muitos que atacam o niilismo, veicula-se a ideia de que anda de braço dado com o pessimismo. São as diferentes faces da mesma moeda. Da mesma forma que o niilismo é arrasado pelas consciências politicamente correctas que aceitam (ou se resignam a aceitar) o mundo em que vivem, também o pessimismo é olhado com desconfiança. Como não contribui para avançar o mundo, o pessimismo é vergastado por quem se lhe opõe.

Não sei se os adversários do niilismo e do pessimismo manifestam esta oposição frenética por simples acomodação ao que têm em seu redor, ou por se cansarem da postura desconstrutiva. Até aceito que, na última hipótese, o cansaço de deparar com sucessivas análises que se limitam a arrasar o mundo instituído leve os optimistas de serviço a causticarem niilistas e pessimistas. Seria aconselhável, contudo, que houvesse alguma preocupação em perceber as origens metodológicas do niilismo. A começar, para compreender que niilismo e pessimismo são coisas diferentes. Quando muito, o pessimismo é a consequência de quem se apresenta ancorado ao niilismo. Mas nem todos os pessimistas se enquistam no niilismo.

Têm razão os optimistas e resignados ao mundo em que vivem quando acusam os niilistas de se limitarem à crítica pela crítica, sem avançarem com propostas alternativas que substituam o que está mal? Na perspectiva dos optimistas, esta obrigação construtiva devia recair sobre quem se insurge contra o actual estado das coisas. Seria um ónus necessário para quem exprime descontentamento. Uma obrigação cívica de procurar novas avenidas que venham mudar os caminhos errados que os niilistas criticam com aspereza.

Equivocam-se à partida: os adversários do niilismo não conseguem compreender a matriz filosófica desta corrente. Um niilista pode-se limitar a criticar sem que isso seja encarado como uma “crítica pela crítica”. O simples facto de despertar as consciências para o que é objecto da crítica é recompensa suficiente para creditar em favor do niilismo. Não se trata de simples desconstrução. Atormentar as almas sossegadas com a quietude do mundo estabelecido é o capital dos niilistas. Quando se pensa que o comportamento negativista arrasa as pretensões dos niilistas, não será, afinal, a desconstrução do fétido que nos envolve a melhor demonstração construtiva oferecida pelos niilistas?

Destruir o que está errado (justificando porque está errado) oferece um enorme capital construtivo. Um economista, talvez sem o saber, ofereceu a melhor demonstração filosófica desta realidade: Joseph Schumpeter e a teoria da destruição criativa (por vezes, do caos se ergue a luz).

13.9.04

Eis o socialismo do primeiro-ministro

O primeiro-ministro fez-se à viagem até Castelo de Vide. Foi no Alto Alentejo, no encerramento de algo chamado “universidade de Verão do PSD”, por entre jovens aspirantes a um qualquer tacho na administração do Estado, que deu a boa nova. Na sua pose de fim-de-semana – blazer, camisa com dois botões negligentemente abertos, nada de gravata, pose desportiva – o primeiro-ministro tirou uma ideia brilhante da cartola: taxas moderadoras diferenciadas consoante as possibilidades económicas de quem utiliza o serviço nacional de saúde.

A medida pode ser vista por dois ângulos de análise. O primeiro é o que se escora apenas na dimensão externa da medida, ou seja, na mensagem que o líder do “PPD-PSD” pretende enviar. Acusado de representar a pior excrescência do populismo, corporizando a facção mais “liberal” (na pior acepção do conceito, o erroneamente usado pelos detractores do termo) do “PPD-PSD”, Santana Lopes não pode perder de vista uma acção política feita de sinais que desmontem os fantasmas a que está associado pelos seus opositores.

Nada melhor do que congeminar uma medida que, em tese, agrada aos que são mais sensíveis à “justiça social”. Pois não faz sentido que os mais endinheirados paguem mais quando recorrem aos hospitais públicos? Venha o estafado “os ricos que paguem a crise”. Pode valer simpatias e votos entre o centro político que anda desconfiado da aliança com o tenebroso Portas do fascizante CDS-PP, bem como entre a esquerda moderada e distraída sempre atraída pelas causas de que Robin Hood foi percursor há séculos. Um certo perfume de socialismo exalado pelo primeiro-ministro, ele que sempre manifestou a sua profunda admiração por Sá Carneiro – que bem próximo estava da “social-democracia” pura do centro e norte da Europa, nada distante de certos dogmas socialistas. Talvez isto explique a sedução de Santana pela ideia; talvez seja apenas um expediente para tirar o tapete à oposição e aos argumentos que ela encontrou para diabolizar o actual governo.

A outra forma de interpretar a medida é a de olhar para o seu conteúdo. Tentar avaliar os efeitos úteis da medida. À partida, uma pequena observação: como seria verificável a capacidade de rendimento dos utentes do serviço nacional de saúde? Pela declaração de rendimentos? Teríamos que andar com a declaração de rendimentos ao pescoço? Seria um elemento fidedigno, se são comuns as desconfianças acerca da fiabilidade do IRS para exibir o rendimento real de quem foge com mais facilidade dos impostos?

Mas as incoerências não se ficam por aqui. Se o serviço nacional de saúde é pago com os impostos, em princípio os que possuem rendimentos mais elevados já terão sido chamados a um contributo maior. Se quiserem tirar partido do serviço nacional de saúde (o que pode ser duvidoso, como adiante será referido), serão chamados a pagar um preço diferenciado que os penaliza uma vez mais.

A ideia até pode ser tentadora, sobretudo para aqueles que não se cansam de apregoar o ideal da justiça social. Sempre estigmatizados pela existência de desigualdades de riqueza, olham com desconfiança para quem gera riqueza e tentam, pela via de impostos que são uma nacionalização do suor empregue no nosso trabalho, forçar os mais ricos a distribuir em favor dos mais pobres. Já estamos habituados a viver numa sociedade em que a mediocridade compensa. A redistribuição de rendimentos pela via fiscal é uma demonstração viva.

O problema da ideia do primeiro-ministro é que os ricos raramente se servem do serviço nacional de saúde. Logo, a eficácia da sua proposta reduz-se a quase nada, porque as pessoas mais endinheiradas recorrem a hospitais privados ou deslocam-se ao estrangeiro quando necessitam de cuidados de saúde. Os nobres propósitos sociais de Santana Lopes vão por água abaixo. O governo até pode concretizar as taxas moderadoras diferenciadas. O que duvido é que a ideia produza os efeitos práticos esperados: aposto que as taxas moderadas cobradas serão, largamente, o resultado dos utentes que frequentam os hospitais públicos – as pessoas com menores rendimentos.

Mas o que importa é a mensagem veiculada – mais uma vez, o invólucro, sem importância para a substância. Fica no ar a ideia de que há sensibilidade social no governo, mesmo que o efeito útil da medida se reduza a nada. Mas isso é um simples pormenor. Porque entretanto temos um governo que dá passos largos para consolidar o socialismo em que vivemos. Ao mesmo tempo, aqueles que tão preocupados ficaram com a hipótese de Santana Lopes chegar a primeiro-ministro podem ficar descansados: ele inclina-se mais para o lado de quem o criticou, com este socialismo que se destapa aos poucos.

10.9.04

A moranguinha da Letónia

Faz amanhã uma semana. A selecção portuguesa jogava em Riga, capital da Letónia, já há quase uma hora. De repente o insólito aconteceu, com a entrada no relvado de uma jovem letã que apenas trazia em cima do corpo uma cuecas vermelhas e uma meias até ao joelho da mesma cor. Ensaiou uma coreografia desordenada pelo meio dos jogadores que assistiam com um misto de estupefacção e embevecimento.

Em ocasiões anteriores, quando espectadores masculinos saltam para o terreno de jogo são logo cercados pelos seguranças que não hesitam em recorrer à brutalidade para os manietarem. Ali aconteceu tudo ao contrário. A menina esteve, impávida, durante longos segundos sem que ninguém ousasse abordá-la. Dir-se-ia que os seguranças se intimidaram perante tal quadro surpreendente. Quando finalmente um polícia se acercou dela, pegou-lhe delicadamente pelo pulso e encaminhou-a, também com delicadeza, para o exterior. Eis uma manifestação da desigualdade de sexos favorável às mulheres: quando os invasores são homens jorra toda a brutalidade da polícia; a delicadeza é palavra de ordem quando uma mulher fez o mesmo papel.

Pelo caminho a moranguinha (assim é a sua alcunha na língua letã) teve tempo para exibir o bíceps numa mensagem decifrada que poderia ser entendida como a prova da sua coragem. De uma dupla coragem, no fim de contas: por ter desafiado a autoridade ao invadir o campo, e pela ousadia de o fazer quase como veio ao mundo.

Agora vêm a lume notícias que dão conta da possibilidade da moranguinha ser condenada a dois anos de prisão por ter ousado exibir-se da forma que o fez. Como se não fosse suficiente a perseguição judicial, também é acusada pela imprensa e adeptos da Letónia de ser a responsável pela derrota. Quem arremete com esta acusação oferece um raciocínio linear: quando ela entrou em campo o jogo estava empatado; poucos minutos depois a equipa portuguesa marcou dois golos quase seguidos que sentenciaram a vitória. Logo, dizem os acusadores, a moranguinha terá sido a musa inspiradora dos bravos rapazes lusitanos, que ficaram com as hormonas tão empertigadas que lhes serviu de mote para vergar a equipa da Letónia. Indirectamente, terá sido a ousadia da menina semi-nua que ditou a derrota da equipa local. Só falta insinuar que a menina foi comprada pelo Sr. Madail para perturbar os jogadores da casa e dar o incentivo que faltava aos nossos, para os inscrever na rota dos golos que naquela altura estavam em falta.

Este mau perder é lamentável. Parece que querem atribuir a derrota da Letónia à graciosa invasão de campo da moranguinha. Desmerecem a justeza da vitória da equipa portuguesa, tentando encontrar um bode expiatório. Como quem sugere que se não fosse o strip público, os jogadores letões conseguiriam aguentar a virgindade da sua baliza e, quem sabe, até chegar à vitória. A acusação é impiedosa: a moranguinha foi a chave para escancarar a baliza da Letónia. Eis a traição da moranguinha à causa nacional letã!

Sem se darem conta, os desorientados letões não se apercebem de como estão mergulhados no ridículo. Sugerir que a imagem da menina desnudada com os seios dançantes ao sabor da sua coreografia motivou os jogadores portugueses é o mesmo que insinuar que os jogadores letões ficaram insensíveis à performance. Tendo o episódio funcionado como um bálsamo para os lusitanos, eis a prova de como as nórdicas adoram passar férias em países latinos. Habituadas ao comportamento gélido dos seus machos concidadãos, eventualmente desapontadas com o fraco desempenho que lhes é oferecido, ficam deslumbradas com as aptidões dos másculos latinos.
Que outra ilação extrair senão esta? Se é verdade que os jogadores de Letónia passaram ao lado do acto inspirador que por segundos percorreu o relvado de Riga, enquanto os portugueses viram na moranguinha a musa que os colocou na rota das energias necessárias para se encontrarem com a vitória – que outra conclusão tirar?

9.9.04

Justiça popular e analfabetismo – duas faces da mesma moeda

Como é salutar ver o povinho espumar toda a sua raiva e sentenciar, para quem o quer ouvir, que é tempo de fazer justiça popular. O povo acha-se preparado para administrar a justiça, como se os juízes fossem simples empecilhos. Juízes que, no fundo, nada percebem e são simples cúmplices da criminalidade que campeia, grotesca, incomodando virgens pudicas ofendidas na sua dignidade. Este povo assenhoreia-se dos cânones da justiça. É ele que impede, vigilante, desvios quando os magistrados se distraem com prazeres mundanos e se alheiam da justiça que lhes justifica o salário. O povo, na sua veste de justiceiro, pronto a fazer justiça instantânea. Não interessa que lhe sugiram que a justiça tem que ser ponderada, tranquila (mas não demorada); que nestas coisas de proferir juízos sobre crimes há que ser sensato, evitar que as emoções que jorram à flor da pele toldem o livre arbítrio. É nestas ocasiões que a “democracia popular” se apresenta em todo o seu esplendor.

Tudo se passou com a brutalidade tão típica da espécie humana. Num acesso de irracionalidade, pai e filho desataram aos tiros a dois polícias da GNR. Foram mortalmente atingidos. Como se entregaram às autoridades, não demorou a deslindar o crime. No dia seguinte, gente desocupada acampou à porta do tribunal de Vila Nova de Foz Côa. O ajuntamento queria fazer justiça pelas próprias mãos. É aqui que a coragem vem à superfície. Se estivessem sozinhos perante os criminosos e quisessem fazer justiça em nome do povo, adivinho-os a fugirem que nem o diabo se escapule da cruz. Em horda, é fácil até ao mais tísico passar por valentão. Não só porque o ajuntamento enfraquece a presa, mas também porque sabem de antemão que as autoridades não permitem que as ameaças disso passem.

O desemprego em Vila Nova de Foz Côa deve ser mais elevado do que no resto do país. É que a multidão não arredou pé enquanto os acusados não deixaram o tribunal, depois de um interrogatório maratona. Um deles ficou em prisão preventiva. O outro, o filho, apesar de constar que é senhor um cadastro bem preenchido, teve sorte diferente: fica em liberdade à espera do julgamento. Esta decisão do juiz detonou a fúria da multidão. A indignação subiu de tom, os impropérios sobre o juiz eram vertidos pelo linguarejar brejeiro e ignorante de quem tirou o dia a julgar que podia substituir o magistrado.

Duas observações intrigantes. À uma, folgo em saber que uma amostra do povo se revelou tão solidária com os agentes da GNR que tiveram o infortúnio de encontrar a morte. Não é costume do povo prestar homenagens às polícias. Não é verdade que a imagem corrente das polícias, sobretudo do paradigma do Chico-esperto que por aí pulula, é a de um empecilho aos expedientes? Eis a incoerência do povinho.

Segunda observação: a ignorância é a campeã entre esta gente enraivecida – ou é a raiva que tolhe o discernimento. Insistindo num raciocínio que não chega aos calcanhares dos quadrúpedes, não têm substância para perceber que ao rapaz libertado não podia acontecer coisa pior. Não seria mais seguro ficar em prisão preventiva, evitando a insegurança motivada pela fúria colectiva que invadiu a localidade? Para quem gostaria de fazer justiça pelas suas mãos, a incerteza que fica a pairar sobre a cabeça do rapaz é solução mais sádica do que a reclusão destinada ao seu pai. Cá está a justiça por linhas tortas que o povo gosta de apregoar!

Nem de propósito, tudo isto no dia em que vieram a público os dados mais recentes sobre o analfabetismo na Europa. Sem surpresa, mais uma vez levamos a palma a todos os demais, num campeonato que ninguém gostaria de ganhar. Temos um milhão de analfabetos – quase 10% da população residente! As manifestações de analfabetismo são tantas e tão repetidas que nem vale a pena recordar o repertório que todos guardamos, por certo, e que dá um bom (mas triste) anedotário. Uma dessas manifestações é a convicção enraizada de que o povo é que sabe de justiça. Os juízes, esses, estão lá no seu pedestal e desconhecem a vida real – a vida dos campos, das fábricas, das tascas, dos bares de alterne, das alcoviteiras que não se cansam de ginasticar a língua, etc.

Associar a palavra “justiça” à palavra “popular” é outra exibição preocupante do analfabetismo que nos acossa. Porque justiça é a negação do “popular”, assim como a intervenção do povo nestes assuntos só pode levar à denegação da justiça. São mutuamente contraditórias. Curioso é que os mesmos que se indignam contra a elevada taxa de analfabetismo (Boaventura Sousa Santos e os seus delfins) venham a montante defender que os juízes devem ter uma “consciência social” mais arreigada, sem o qual não é possível uma justiça equitativa. Curioso e contraditório…

8.9.04

E se a minha filha fizesse perguntas sobre Beslan?

Ainda não nasceu. Está longe de chegar à idade em que as coisas se tornam inteligíveis. Longe está a etapa das perguntas, em que todos os pequenos assobios em seu redor despertam a curiosidade de quem está a crescer. Mas depois de ver a carnificina hedionda de Beslan, com a morte de tantas e tantas crianças indefesas, dou comigo a pensar que resposta daria às perguntas da minha filha se ela tivesse tomado conhecimento do que se passou. Louvo o tempo da sua gestação. Não foi testemunha de um dos actos mais grotescos que vivi nos anos que já levo.

Ponho-me a imaginar a sua curiosidade. As perguntas soltam-se com uma velocidade frenética. Para minha incomodidade, por não saber como responder – ou por não querer dar as respostas que se encontram com a verdade. “Porque foram tantos meninos mortos?”, “que mal fizeram os meninos àqueles senhores das espingardas?”, “porque estavam de castigo, quase sem roupas?”, “e voltam outra vez à escola?”, “os meninos morreram a sério, ou estão a ter um pesadelo de morte?”

Estas e muitas outras que se possam conceber, com a ingenuidade de quem está, para a idade dos porquês, longe perceber a bestialidade de alguns mais velhos do que ela. As perguntas desprendem-se, fáceis. As respostas são quase tão difíceis quanto perceber as motivações dos carniceiros. Se custa a entender a imolação de inocentes, que dizer quando os alvos desta causa que entra para os anais do absurdo são crianças que nada compreendem do que se passa? Exercício inatingível, o de imaginar o que percorreu o interior daquelas crianças recolhidas sob o sequestro de bestas sem escrúpulos. Muito difícil de imaginar o desespero que as tomou de assalto, sem saberem o que viria a seguir. Talvez até tivesse sido melhor. Na ingenuidade própria daquelas idades, decerto não podiam adivinhar o que lhes estava destinado.

Por princípio, sou avesso à justiça de Talião. Não aceito que pessoas com civilidade e na posse do seu juízo aceitem o “olho por olho, dente por dente”. Mas há limites em tudo. Quando esses limites são ultrapassados, quando entra em acção a brutal dimensão da desumanidade, pergunto-me se não se deve dar lugar à excepção.

O mundo anda louco, definitivamente. Os desvarios crescem de tom. Os actos tresloucados, a violência fácil, a percepção de que somos seres errantes, que podemos tropeçar em brutos sem paixão por si mesmos (quanto mais pelos outros). O valor da vida desce vertiginosamente, resvala pela ladeira da ignomínia. Relatos ensandecidos puxam lustro a premonições de outrora, que adivinhavam o abismo para onde a humanidade parece caminhar. Sem que ninguém queira parar, a loucura infesta a atmosfera. O que me inquieta: onde está a fasquia desta corrida repulsiva rumo a um precipício sem rasto?

Apetece-me ser egoísta e ter consciência de que a filha que aí vem não foi espectadora atenta desta carnificina. Bem sei que a dor é maior, muito maior, e mais prolongada, para os que não tiveram a desdita de sair da escola sem vida. Os traumas hão-de perdurar por todo o sempre. As mortes contam-se às centenas, por entre o desespero de pais e mães que ainda olham com uma esperança quase perdida que um cadáver ali, outro aqui, não seja o dos seus filhos ainda desaparecidos. Este sofrimento é ímpar. Daí o egoísmo quando agradeço que a minha filha não tenha sido testemunha desta encenação macabra.

Que me seja perdoada a franqueza. Mas os laços apertam-se quando a infortúnio se aproxima de quem nos é querido. O distanciamento não autoriza senão exprimir a repugnância por quem orquestrou a dança lúgubre de tiros cruzados que só pararam nas costas de crianças indefesas. É o máximo que consigo alcançar. Sem deixar de interiorizar o sofrimento que anda à solta naquela cidade da Ossétia do Norte. Nem deixar de imaginar a dificuldade de tantos pais que, por esse mundo fora, têm que responder às interrogações incómodas dos filhos que buscam porquês. De porquês que nem os seus pais conseguem encontrar, quanto mais esboçar uma tentativa de explicação que satisfaça a curiosidade das crianças.
Uma lição pode ser retida. A honestidade será brutal para mentes ainda à procura de uma bússola que as oriente. São as crianças que hoje se interrogam no meio da desorientação que amanhã procuram uma alicerce para os seus valores. Eis a lição: que lhes seja dado a compreender que a bestialidade não tem limites. Que as perguntas não fiquem sem resposta, por mais traumáticas que as respostas sejam. É que os filhos que anseiam pelos porquês são o garante de que a deriva demencial rumo ao precipício não avança para além dos limites que não encontram um desfecho.

7.9.04

Devem as bibliotecas pagar às editoras?

Há dias recebi um e-mail, daqueles que corporizam o significado moderno do “passa a palavra”, com o seguinte conteúdo:

Graças a uma daquelas mudanças na legislação, influenciadas pelo neoliberalismo e que ninguém percebe bem, a Comissão Europeia quer que as bibliotecas passem a pagar às editoras para emprestarem os seus livros ao público! Consequência: as pessoas passariam a pagar para ler ou consultar livros nas bibliotecas públicas!!! A APBAD (Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas; e Documentalistas) está a fazer uma petição para tentar evitar esta monstruosidade:

http://www.petitiononline.com/PetBAD/petition.html

Assine. Impeça o crime. Não custa nada!


Da minha parte quebrou-se a cadeia de transmissão. Não disseminei o e-mail pelos contactos guardados na minha agenda. Porque não concordo com o conteúdo, nem tão pouco com os termos exagerados da petição patrocinada pela APBAD. Mas antes de explorar o assunto na sua substância, impõem-se alguns comentários sobre a forma.

Primeiro, tinha que surgir o papão do “neoliberalismo”. Para certas franjas enquistadas num revolucionarismo demodé, ainda faz sentido a retórica passadista. Ainda vêm à lembrança as palavras de ordem usadas nas “manifs” que embelezaram a sua juventude feita de actos de rebeldia. Passa o tempo, mudam as circunstâncias, mas permanece intacto o modo de operação. Verdade seja dita, com o advento da globalização nota-se um esforço de adaptação linguística. Os chavões têm que se moldar à invasão impertinente do capitalismo: onde há coisas erradas temos a culpa do selvático neoliberalismo. É o culpado fácil, o culpado conveniente. Mesmo que não saibam ao certo o que é o neoliberalismo, ele é o bode expiatório para a afirmação das suas causas.

Segundo, quem pôs a circular a mensagem não se deu conta da confusão em que se embrenhou. Pois se é afirmado que “a Comissão Europeia quer que as bibliotecas passem a pagar às editoras para emprestarem os seus livros ao público”, logo na frase seguinte entra-se em contradição ao alertar as pessoas que “passariam a pagar para ler ou consultar livros nas bibliotecas públicas”. Afinal em que ficamos? A Comissão quer que as bibliotecas paguem apenas quando os leitores requisitam livros e os levam para o exterior da biblioteca? Ou pela aquisição de todos os livros que fazem parte do espólio de uma biblioteca? Fiquei sem perceber. Desconfio que a resposta está na primeira hipótese. Mas não custa nada adensar a confusão, alimentar o exagero, com uma nota adicional que escapa ao rigor e que serve para mobilizar as opiniões apaixonadas contra esta diabólica medida da Comissão Europeia.

Terceiro, os exageros semânticos. Palavras como “monstruosidade” e “crime” agridem a sensibilidade do destinatário do e-mail. Bem sei que por vezes usamos palavras que se furtam ao seu sentido literal. São utilizações sugestivas, enfatizam o significado da causa defendida na mensagem. Neste caso passa-se do admissível. “Crime”? Será que as pessoas da APBAD se substituíram ao legislador e introduziram à socapa um novo tipo criminal no Código Penal, sem que ninguém tivesse notado? Pode não se concordar com a medida proposta. Daí a considerar-se um crime vai uma distância enorme, só explicável pelo desbragamento verbal dos proponentes da petição.

“Monstruosidade”? Aqui entro na essência da questão. Se for verdade que a medida se impõe só aos livros que os leitores transportam consigo para o exterior, qual é a estranheza desta medida? Não é verdade que frequentadores assíduos de bibliotecas se servem deste procedimento para fotocopiarem livros inteiros, ou partes substanciais deles, assim escapando aos direitos de autor? Mesmo que haja algumas casas de fotocópias que exibem pudor e se recusam a fotocopiar livros inteiros, não é fácil reproduzi-los integralmente se a tarefa for dividida por três ou quatro estabelecimentos que se dediquem ao negócio?

Os amantes do livro e da cultura ficam presos numa contradição insanável. O negócio livreiro atravessa dificuldades. As edições são cada vez mais onerosas. Mas há ainda editoras que persistem na teimosia de prestarem um serviço inestimável à cultura, através das publicações que colocam no mercado e que engrossam as estantes das bibliotecas. Se as bibliotecas continuarem a permitir o empréstimo gratuito, as editoras poderão ver o cerco apertar-se. Quem sabe se a única solução não passará por publicar a uma cadência menor, ou até pelo encerramento das editoras que não conseguem ter viabilidade económica.

É isto que os amantes do livro desejam? Se fossem coerentes, aplaudiam com entusiasmo a medida preconizada pela Comissão Europeia. Dela depende a sobrevivência do sector (e é uma medida de elementar justiça). Dela depende a existência de bibliotecas. Se não se deixassem enlear por retóricas bacocas e preconceitos ideológicos, dariam conta de como resvalam para a incoerência.

6.9.04

O odor da chuva sobre a terra seca

Dias sem chuva tornam a terra ressequida. Depois o tempo azeda. Não daquele tempo húmido, das nuvens batidas pelo vento marítimo, aquela humidade que entra nos ossos e não se cansa de os corroer. O tempo altera-se anunciando trovoada. As nuvens ganham terreno ao céu azul e começam a tingir o horizonte. Ao início acastelam-se, parecem claras batidas para suspiros. Aos poucos deixam-se escurecer, num breu compacto que lança o aviso da tormenta que está para chegar. O ar permanece quente, abafado, quase irrespirável. À medida que as nuvens varrem o sol, umas grossas pingas de chuva começam, timidamente, a tombar sobre a cabeça. A aragem refresca-se. Lá ao longe, uma coreografia de raios instala o quadro de tempestade fugaz e violenta. A trovoada que se desenha vem acompanhada por trovões que se fazem audíveis, cada vez mais audíveis com a espessura das nuvens mais negras.

Os pingos de chuva abandonam a sua intermitência. Vão caindo mais ritmados, deixando um rasto no solo que perde a secura de longos dias de estio. Um odor inebriante pulsa da terra, mistura da água vinda do céu com os aromas depositados nos solos. Uma mistura mágica levanta um odor incomparável. Apenas dura uns segundos, quando muito uns breves minutos. Quando a chuva aumenta de intensidade este cheiro deslumbrante desaparece, levado pela água já abundante que lava as poeiras acumuladas.

Apetece parar o tempo quando se anunciam as gotas de chuva que trazem os odores magníficos. Desligado do tempo e do espaço, só reter a brevidade do perfume exalado pela terra molhada pelas primeiras gotículas vindas das nuvens tormentosas. Parar o tempo, pois essas nuvens são a ameaça para o deleite dos sentidos. Prolongar o tempo, como se cada segundo durasse mais tempo do que o retido nos ponteiros do relógio. Ou esperar pela próxima vez que à aridez estival se sucedam as chuvas que abrem as portas à enxurrada de emoções silvestres, sentir a natureza à solta. Esperar, para voltar a saborear a dança dos odores vindos da osmose de água e terra.

Nestes momentos, revigorar a mente. Ver como as coisas belas da natureza compensam as angústias do mundo. Observar como a desordem da natureza é um caos tranquilo, um manancial que alimenta as forças interiores para a sagração da beleza. Esquecer o dantesco envolvente através da organização imponderável da natureza. Fazer a ponte com os seus delicados mecanismos, sem hora marcada nem lugar anunciado, admitir que a natureza (mais do que o homem) merece atenção redobrada. Buscar nesta fonte o alimento para andar de bem com o mundo. Reter nestes momentos o quadro que nos segreda, num quente sussurro aos ouvidos, que apenas vale a pena o que é harmonioso, evitar o que o mundo traz de atroz.

É um refúgio necessário. Uma ordem intangível, luz refractária que apresenta o bem-estar. Refúgio natureza, olhar distante para os seres que como nós formam o colectivo de onde somos indissociáveis. Mas de onde apetece abstrair, para que o refúgio seja o quarto esconso onde se busca o bem-estar interior e tão ansiado. Um ascetismo que radica na excelência da natureza, uma comunhão mais íntima que abdica da propensão auto-flageladora da espécie humana.

Uma ironia: essa espécie, senhora suprema entre as espécies, é o arsenal da sua auto-destruição. Somos coveiros de nós mesmos. Por rejeitarmos o que a natureza nos ensina, na sua metódica sabedoria. Os odores que vêm do casamento entre as tímidas gotas de chuva e as poeiras assentadas no solo são a tisana que ensina uma lição de vida: o regresso à natureza, a recusa da humanidade contemporânea com os traços de destruição, sementes de ódio, intolerância que tresanda à incapacidade para aceitar (ou pelo menos compreender) quem é diferente. A harmonia da natureza fornece a lição, sempre ignorada pelos humanos que teimam em cantar a sua superioridade genética.