31.7.18

Má vida


Underworld & Iggy Pop, “Bells & Circles”, in https://www.youtube.com/watch?v=KmJWD9jQvhc
Ouviu dizer, e como modos depreciativos, que havia a má vida. Incrustado numa concha de ingenuidade, queria saber mais sobre este mau modo de vida. Deitou-se às perguntas que eram o aperitivo das repostas que queria ter em mão (provavelmente para decidir se ia começar a transitar pelos modos da má vida). Fez muitas perguntas a alguma gente – gente toda ela desembaraçada das peias da ingenuidade e, portanto, preparada para desembolsar as respostas sobre os maus modos de vida. Ouviu de tudo. Respostas desassombradas, embebidas em altivez moral. Respostas timoratas, cientes da dificuldade em retratar o questionado num conceito singular. Elaborações do tema, em derivações que apenas têm o condão de evitar a pergunta. Tentativas de sufragar uma visão alternativa do significado de má vida. E até breves ensaios filosóficos sobre o tema. Vamos por partes (e respetivamente, cobrindo todas as hipóteses).
1. A má vida é a promiscuidade, os vícios degradantes que acantonam as pessoas no lodaçal maldito da sociedade. Os que à má vida se entregam são os párias. Uns, provocadores natos, que se abraçam desconsoladamente à má vida só para causarem choque nos demais. Outros são genuínos e não se importam com os juízos de quem os esteja a julgar. Adoram, e genuinamente, os maus vícios que corporizam um certo sentido de má vida. Não quer dizer que vivem mal; têm uma má vida por serem dissidentes dos cânones aceitáveis. São puros sacerdotes da imoralidade vigente.
2. A má vida é volátil. Dirá respeito apenas a quem nela encontra albergue. Não podemos tirar julgamentos finos e reprovar esses comportamentos, porque ficamos expostos à mesma bitola. Por respeito à integridade dos limites dos outros, deixemo-los entregues à sua vontade. E se a vontade quadrar com aquilo que está convencionado como má vida, deixemos que a soberania da vontade esteja preparada para conviver com os deslimites da má vida. A má vida só diz respeito a essa vida.
3. Quem pode ter a ousadia de acusar alguém de má vida? Quais são os parâmetros escolhidos para medir as teias onde se entretecem os meandros da má vida, se quem o faz pode ser exemplo acabado de má vida, todavia assim não reconhecida? Quem se arroga ao direito de julgar outros por má vida, não exibe uma mal disfarçada inveja de não ter a coragem de se atirar aos braços dessa má vida? A má vida é um conceito impossível. Por vício de subjetividade.
4. Má vida, não é o anti uso das convenções. Não são os perigosos caminhos da depravação, das viciantes dependências, do uso abusivo dos outros sem por eles ter o menor cuidado. Má vida é a vida sombria, sonolenta, desprovida de imaginação, rotineira, acanhada, acostumada às convenções sem as sopesar na balança crítica, a vida mesquinha, adulterada pelo imenso tempo gasto a olhar pelos outros de cima a baixo, a vida acomodada, com medo do tempo presente, hipotecada ao gasto pretérito, a vida que se gaseia com a sua constante exaustão por ausência de panorama. A má vida é a autoproclamada boa vida que não se esgueira dos alqueires da comodidade e dos bons padrões que levam os tementes pela esquadria da obediência.
5. Não há conclusões definitivas sobre a má vida. Se alguém é acusado de má vida, não podemos ter esse juízo como absoluto, pois são os outros que tiram as medidas ao comportamento alheio, um padrão ilegítimo. O que conta é saber o sentir interior dos que são acusados de má vida: têm consciência do pulsar tóxico dessa má vida, ou navegam nas suas águas sem qualquer vestígio de remorso? E mesmo os que não admitem o recurso à má vida podem ser eximidos do libelo acusatório? A má vida depende sempre da vida que se deita na almofada que lhe empresta a má conotação. Mas apenas dessa vida.
Ao compulsar as várias hipóteses, ficou confuso. Já não sabia o que era boa vida e má vida. Aprendeu que o melhor remédio é apenas a vida, sem o lastro dos adjetivos.

30.7.18

Ninguém é uma ilha


Idles, “David Nadelko”, in https://www.youtube.com/watch?v=QkF_G-RF66M
(Mote: a t-shirt do protagonista do videoclip)
Que estultícia maior do que a sanha dos que perseguem o outro, apenas porque o outro assim se identifica e parece que, por ser o outro, amanhece em transgressão. Os que assim se tomam como penhores de uma identidade, como se a convivência com o outro pudesse ser lesiva da venerável idiossincrasia, medram num pensamento mesquinho. O outro não é o fautor de uma teia conspirativa com o propósito de dissolver os traços da identidade dos que o recebem na sua terra. Não lhes é dado raciocinar que se o outro tivesse esta aspiração, a sua própria identidade seria objeto de fusão, ao menos parcial, com a que é corporizada pelos que o hospedam. 
Os cultores da estanquicidade das identidades estão equivocados por duas ordens de razão. Primeiro, mesmo que seja para seu desprazer, as fronteiras esbateram-se, deixaram de ser barreiras que segmentam as identidades. Já não vivemos afastados dos outros. Eles viajam com facilidade, como nós viajamos com facilidade até aos seus domínios. O turismo massificado é um avanço cultural sem precedentes. À medida que conhecemos outras terras e “outros outros”, enriquecemos a bagagem cultural. A identidade que nos é subcutânea expõe-se a influências de outras identidades. E nem é preciso sairmos do canto onde teimamos (alguns) em não sair: a música, os filmes, o teatro, a literatura, os costumes embebidos no aburguesado consumismo, fazem o favor de moldar a identidade, que perde os seus traços de exclusividade identitária.
Segundo, em muitos casos não é possível afirmar a homogeneidade da identidade, pois ela espartilha-se na diversidade de muitas idiossincrasias regionais. Em muitos desses casos, um elemento que afirma a riqueza da identidade amalgamada é a diversidade das fontes regionais de identidade. Convivem em paz, sob o chapéu de uma nação onde se albergam as nações que afirmam a sua identidade específica. Considerar que a entrada dos outros e a sua quotidiana convivência connosco constitui uma ameaça (à nossa identidade) é um logro, a expressão da incompreensão do mundo moderno e uma manifesta prova de má vontade.
O húmus cultural que nos diferencia do outro não pode ser a origem das desavenças que firmamos em relação a ele. Nem fazem sentido as desconfianças dirigidas ao outro, como se fosse um intruso com o único propósito de boicotar a nossa identidade. Não somos ilhas. Nem nós, nem os outros que migram e passam a ser existência quotidiana no nosso espaço. Recusarmos, como princípio de ação, a hipótese de ficarmos mais ricos com a exposição aos outros, da mesma forma que negamos a possibilidade de os outros incorporarem elementos da nossa identidade, é uma tacanhez. O problema, é que essa tacanhez se apropria dos males de duas dimensões do tempo: do pretérito, pois a exclusão dos outros e a respetiva perseguição estiveram na origem de guerras sangrentas; e do porvir, pois o reacender de animosidades contra os outros passa uma esponja nos ensinamentos da História, correndo-se o risco de a má História, a que envergonha a humanidade, se voltar a repetir.

27.7.18

Perdidos e achados


Shame, “Concrete”, in https://www.youtube.com/watch?v=_MVLqZpnwow
Num estio sem freio, onde tudo se perde e tudo se acha, mas depressa o que se acha fica órfão de detentor, remetido outra vez ao lugar ermo de algo que está perdido. Num esteio frágil, os remendos do tempo não chegam para convencer os desapossados de terem tomado mão da coisa perdida. Perguntam: e esta é a mesma coisa que dei como perdida? Não tendo sido devidamente inventariada, sobeja a interrogação excruciante – tanto mais pungente, quanto maior for a desconfiança congénita dos que protestaram o objeto perdido. 
O mercado onde se faz o encontro de solicitações de perdidos e manifestações de achados não tem essa serventia. Limita-se a fazer o encontro dos perdidos e dos achados. Depende da boa vontade de quem toma conhecimento do objeto perdido e das solicitações de objetos perdidos por seus legítimos donos. Para tornar o assunto mais complexo, muitos dos objetos perdidos não só não foram inventariados por seus legítimos detentores, como não são objeto de registo de propriedade. Não há como fazer prova de ser seu legítimo detentor. Alguns sinais podem ser convocados para a prova: uma acareação entre o objeto achado e quem o reclama, com o seu penhor a demandar o reclamante sobre algumas características que identificam o objeto antes de o mostrar. 
Houve uma vez que um homem se entregou aos bons ofícios dos perdidos e achados. Abeirou-se do balcão dos perdidos. Depois, em silêncio, olhou para o lado direito, onde se situa o balcão dos achados. Ficou mudo durante uns minutos, perante a indiferença dos funcionários (habituados às lides, só se dirigem aos utentes quando são por estes interpelados). O homem, de meia-idade, rosto cansado, olhar perdido numa lonjura difícil de quantificar, um olhar melancólico, exibindo sinais visíveis de descuido (o cabelo, a barba e as roupas imundas, as unhas nauseabundas), parecia perdido e não sabia se o balcão dos perdidos ou balcão dos achados era o local certo. Com o tempo a contar e perante a hesitação do homem, alguns utentes passaram à frente. A certa altura, deu um passo em frente, inclinando-se para o lado do balcão dos perdidos. Os funcionários do lado de lá do guichetjá se tinham apercebido da hesitação. Sem terem falado uns com os outros, tinham adivinhado que o homem haver-se-ia de decidir pelo balcão dos perdidos. Ele era o exemplo acabado de um perdido. Estaria nos perdidos e achados para comunicar que estava perdido de si mesmo?
Em vão. O homem deu mais outro passo na direção do balcão dos perdidos mas, à última hora, recuou. E à medida que recuava, encaminhando-se para a saída dos bons ofícios dos perdidos e achados, vociferou: “Não pensem que estou perdido! Se tinham dúvidas em coro com as minhas, dissipei-as agora. Não consegui comunicar que estava perdido no balcão dos perdidos. Acabei de descobrir que me reencontrei no âmago desta perdição. Posso estar esquecido de quem fui. Do lugar a que pertenço. Posso até ter-me esquecido de todo o pretérito que foi meu património tangível. Era disso que precisava. Perder-me, para me sentir achado por dentro da errância.” 
Partiu sem deixar vestígios, no colo da indiferença dos funcionários dos perdidos e achados, que prosseguiram com as rotineiras lides.

26.7.18

Pecar por defeito, pecar por excesso


Jonathan Bree, “You’re So Cool”, in https://www.youtube.com/watch?v=gxRq23qVE8A
Que matemática expressão, pecar por defeito. Insinua-se que a ousadia podia ter medida maior, mas a cautela ganhou aos pontos e tudo ficou contido dentro de umas baias exíguas. Há os que gostam de pecar por defeito. Timoratos, agarram-se às saias da precaução por não saberem (ou não quererem saber) os efeitos da desmedida. Em seu favor, a impossibilidade de retrocesso quando os efeitos medidos são um exagero já sem remédio. Para não serem cultivados arrependimentos a destempo, congeminam pecar por defeito. A margem de segurança acautela os efeitos imprevistos que podem tornar uma ação num apocalipse. 
Há os que preferem pecar por excesso. São temerários. Em seu abono, convocam a História e os episódios que são a excelência da audácia e de como a aposta no colossal trouxe proventos que, de outro modo, seriam provavelmente desconhecidos – ou, na melhor das hipóteses, tardios. Admitem que são assaltados por uma certa dose de loucura quando arremetem contra as probabilidades, arroteando um caminho sem esquadria, sem claridade que seja guia, sem saberem se o caminho leva a um labirinto sem saída ou se, no seu epílogo, está um precipício que não admite retrocesso. A ousadia é quase mecânica. Mesmo para quem já tenha sido dela vítima. Aprenderam que é ilegítimo o trunfo do arrependimento quando os efeitos hostis vão para além da medida esperada. Continuam a esboçar desenhos no estirador da ousadia, estendendo os limites para além do que seriam considerados os seus limites. A ousadia confere o espelho dos deslimites. Quando depois navegam em águas propícias, aprendem que os deslimites afinal cabem dentro de limites. A sua dependência do pecado por excesso é quase patológica, como um viciado em jogo que não consegue parar, não consegue resistir ao apelo de mais um jogo antes de abandonar o casino.
E há os que não acreditam no pecado, simplesmente. Protestam contra o exagero da expressão, não interessando saber se o substantivo que a culmina é defeito ou excesso. Insurgem-se contra a noção de pecado. Esvaziam-na de conteúdo. Ao ser dissolvido o seu efeito, deixa de fazer sentido pecar por defeito e pecar por excesso. Tudo andará dentro de seus limites. Não haverá medidas extemporâneas, quer por estarem acondicionadas num espaço exíguo, desaproveitando uma imensa área que podia ser explorada, quer pelo temor que das ações resulte o transbordar das margens, com desfechos imprevisíveis no momento do começo do jogo.
O que conta, é o cálculo de quem é o fautor das ações. Ainda que estejam embotados pela impressão de um pecar por defeito ou de um pecar por excesso, no momento da decisão tais defeitos ou excessos são inconsequentes. Mesmo que alguém seja comedido e acredite que podia ter sido mais ousado, no momento da decisão (que pecar por defeito), é como se essa noção fosse refreada pelo ímpeto da ação. O mesmo acontece para o pecar por excesso. Pecar por defeito ou pecar por excesso só têm aval quando se estimam as consequências das ações. E só por quem delas é responsável. 

25.7.18

Sobre o bolor (ou: os sentidos adulterados)


Iggy Pop, “Et si tu n’existais pas”, in https://www.youtube.com/watch?v=BdkeG46BGDw
Os sentidos não são viáveis” – reclamava com convicção, demonstrando que há uma espessura escondida ao olhar mais desatento, o olhar que emerge da mera espuma dos dias. “Aos sentidos oculta-se a densidade que só é possível quando eles conseguem decapar o verniz à superfície, sondando as camadas mais profundas onde se situa a essência que os sentidos devem capturar” – prosseguiu, em elaboração do raciocínio perante a interrogação que a desafiou a explorar o significado da primeira asserção.
Do outro lado, estava alguém que parecia pertencer à multidão que se satisfaz com a visão superficial acantonada nos sentidos não exigentes. Parecia perplexo, sem perceber a proclamação e a sua explicação. Pediu exemplos, para perceber onde ela queria chegar com aquele raciocínio. “Lembra-te dos queijos. Ele há queijos embebidos em bolor e não é por terem bolor que estão estragados. Pelo contrário. Antes de terem bolor não estão prontos para o consumo. É o bolor que os transfigura, que lhes traz a natureza de queijo daquela espécie. Se não soubesses que estes queijos devem ser comidos quando se apresentam raiados de bolor, dirias que estavam estragados. Porque sabes que o bolor sinaliza uma perda de validade. O que está adulterado não é o queijo; são os sentidos que atribuem ao bolor uma má conotação. A menos que os sentidos sejam treinados e se convençam que um bolor nestas circunstâncias significa o contrário daquilo para que os sentidos estão preparados.
Do outro lado, a ideia começava a fazer sentido. Não era, afinal, tão limitado na hermenêutica dos factos como parecia no início da conversa. Sossegava-se, até porque não era confortável a sensação, que herdara do começo da conversa, de pertencer à imensa casta dos frívolos, dos que, sem saberem, eram vítimas da superficialidade dos sentidos. Começou a fazer sentido. E a juntar um punhado de exemplos que confirmavam a adulteração dos sentidos quando sucumbem ao engodo da primeira impressão: o vinho feito de uvas em véspera da podridão; a literatura proscrita por ser considerada um atentando às convenções (e, mais tarde, recuperada para o panteão das letras e devidamente imortalizada); as trufas retiradas ao subsolo pelo faro diligente do nariz de porcos; a generalidade dos queijos, só possíveis depois de o coalho estragar o leite; os grãos de uma colheita específica de café que medram em dejetos de macacos; a música ininteligível à primeira impressão e que só depois de várias audições revela as camadas escondidas e a sua genialidade – o que exige a predisposição para as sucessivas audições; a incógnita sobre pessoas mal conhecidas (quantas pessoas não devidamente conhecidas teriam tanto de louvável a mostrar se fossem devidamente conhecidas?); um lugar a que ficou pespegado o rótulo de feio, por o estado de alma não se ter adestrado para a devida apreciação do lugar.
Ao rol de exemplos, que definitivamente o extraía de um lugar a que só pertencem os boçais da indiferença, ela juntou outro: “e há aqueles homens que são feios, para os cânones da subjetiva beleza, mas que possuem um charme que é difícil de explicar. Um encantamento sortílego, como se houvesse um íman que despoja as mulheres de sentidos. Numa, talvez, genuína adulteração dos sentidos. Em todos os sentidos.

24.7.18

Terra do fogo


Indignu, “Santa Helena” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=SXXUt39Cmxk
À exceção dos loucos, que não percebem o que se passa. À exceção das crianças, que não sabem como é a noturna incubação do destempero. À exceção dos empenhados ao tempo, que sabem estar em falta no conciliábulo do tempo. À exceção dos sacerdotes de religiões várias, que vivem encerrados na existência monástica. De resto, a terra de fogo unge os corpos trespassados e desfaz o medo a uma memória distante, indelével. Pois é nesta lava sublime que se reavivam, que temperam as angústias (que possam ser assalto) com um consolo sem freio. 
Na terra do fogo, andamos em brasas e não é como naqueles acontecimentos esotéricos em que um autoencartado guru das almas as convence que com a força da mente podem andar em cima de pedras abraseadas. Andamos em brasas: pois os corpos dançam no chamamento uns dos outros, numa servidão consentida que ergue castelos no ar, decompõe as fissuras das muralhas, se embebe na vasta albufeira e faz ferver as suas águas. A terra do fogo – protestam uns desvalidos condenados à algidez – é uma capitulação das almas aos perfunctórios corpos que se lhes sobrepõem, como se tudo fosse matéria carnal e os apoderados pelo desejo fossem despojados da sua alma, banais circunstantes iludidos por um império da vontade que não têm. 
A terra do fogo ensina que a carne a e alma se transmutam. Como os corpos emaranhados participam  numa simbiose a que os preclaros sacerdotes da decência (os assim autoproclamados) protestam como sedimento de promiscuidade. E acrescentam ao libelo acusatório: a promiscuidade é decadente. Aprendessem com os arquitetos da terra do fogo: os tabus não têm cabimento; os ponderosos julgamentos da moralidade alheia cristalizam uma certa inveja, talvez por inépcia, talvez por capitulação aos soezes preconceitos que são esteio inamovível. A terra do fogo ensinar-lhes-ia que não há limites no horizonte. Seriam devolvidos à primária essência, desprovidos dos graníticos alicerces em que se escoram, convencidos a desfilar um rol imenso de interrogações sem serem obrigados a esquadrinhar respostas. Pois o princípio de todas as ações é a falência dos imperativos categóricos.
Seria a sua aproximação à terra do fogo. Vagarosamente. Sem caírem no logro da precipitação. Pois a terra do fogo é (protestam os críticos) um lugar de exageros – e não faria sentido virar a página de um exagero para outro que lhe é diametralmente oposto. Seriam instruídos em metódico tirocínio, para saberem dos deleites caucionados pela terra do fogo para, em etapa posterior, serem convidados e inventarem a sua própria criatividade. Poderiam desenhar com as mãos suadas os delimites por onde se movem. 
Depressa a conversão habilitá-los-ia ao olvido do lugar de onde vieram. Nem dariam importância aos ainda existentes sacerdotes da decência que protestam contra a terra do fogo. A atenção, só a merece quem habita no mesmo lugar mental. Não se pode (outra lição da terra do fogo) estender a mão de um deleite a quem está estruturalmente imune (ou assim se exibe).

23.7.18

Entre o céu e a terra, o império de todos nós


Kamasi Washington, “Street Fighter Mas”, in https://www.youtube.com/watch?v=LdyabrdFMC8
Uma certa poeira, decerto cósmica, enovela-se no olhar dos crentes. Desfiando manobras circenses, procura-se a doutrinação dos jovens: “Know Jesus, find peace” e “Don’t panic, just pray”, anunciam, em letras garrafais e cores luxuriantes, t-shirtsde voluntários num acampamento para adolescentes. Não há de ser muito diferente do acampamento dos jovens do Bloco de Esquerda, com a exceção que estes últimos não dedicam parte do dia a preces nem dizem acreditar em deus; fora disso, é um culto, com o inerente penhor das almas que se adestram nos ensinamentos de gurus arregimentados.
Os doutrinadores das almas ensinarão: deus tudo comanda; deus é a bondade permanente. Todo o mal do mundo é produto da vontade dos homens, que se desviam dos mandamentos divinos. Nunca consegui entender este desligar entre a omnipotência de deus e a vontade dos Homens, que se autonomiza quando o que dela resulta é a guerra, a destruição, a vileza, a maldade, e outros cometimentos que engrossam a fileira dos deformidades que se pespegam à pele dos Homens. Isto é a confissão das limitações de deus. Admitir que deus tem limitações é o mesmo que negar a sua existência. Ou se deus continua a existir e todos os maus exemplos da História da humanidade continuam a marcar o calendário, como o marcaram no pretérito, é sinal que deus não consegue ter mão nos muitos lados perversos do Homem – o que desagua na mesma conclusão: a limitação de deus e, por aí, a sua negação. 
Vem isto a propósito do primeiro pregão das t-shirtsdos jovens voluntários no acampamento: “Know Jesus, find peace.” Para alguém se embeber neste pregão é preciso esquecer o rol de guerras feitas em nome de deus, ou das diferentes visões que diferentes pessoas têm de deus e por causa da necessidade de imporem a sua visão à dos rivais. Como pode deus (se existisse) tolerar que haja Homens a fazer guerras em seu nome? Como se compagina esta predisposição bélica, merecedora do devido assentimento divino, com a incomensurável bondade atribuída a deus? Como pode uma guerra ser feita em nome da bondade? Sobram duas hipóteses de explicação – e nenhuma delas abonatória da posição de deus. Ou deus não é bondoso, o que faz ruir pela base todo um argumentário que serve de alicerce à metafisica (e às crenças). Ou deus não consegue dominar todas as ações dos Homens, não tendo poder para os demover de se alistarem em guerra espúrias. Seja qual for a grelha de leitura, a conclusão é a mesma: deus esbarra em limitações incompatíveis com a sua posição divina, o que não é bom presságio para os que anunciam o seu império.
Depois destas décadas todas, continuo preso a um profundo ceticismo quando deparo com religiões e respetivos catecismos, com a proibição de questionamentos como húmus dos dogmas, por sua vez matéria-prima para uma humilhante (humilde, corrigem os crentes) anulação dos Homens perante o deus em que creem. Continuo sem entender as pontas soltas semeadas pelas liturgias em nome de deus. Continuo a não perceber que os que pregam a palavra de deus tenham urgência em incutir uma obediência cega e acrítica aos mandamentos, como se acreditar em deus implicasse um despojamento do pensamento, ou o seu esvaziamento. 
Se deus é isto, as pessoas não são nada. Não me parece que deus (se existisse) tolerasse tamanha soberba e edificasse um muro tão inacessível entre ele e os homens que o seguem. Talvez por isso, e em dúvida, aconselham a que os crentes rezem se forem tomados de assalto pelo pânico (o pregão da segunda t-shirtdos jovens voluntários do acampamento). Como se fosse uma quimera e as preces tivessem o condão de tudo resolverem. 
É pena que as guerras, as contrariedades, as vicissitudes, os malogros, as angústias, a maldade, a vileza, a arrogância, a mentira e muitas outras fontes de pânico insistam em ter tanta visibilidade. As rezas só podem uma anestesia.

20.7.18

Geografia armadilhada


Indignu com Manel Cruz, “Nem só das cinzas se renasce”, in https://www.youtube.com/watch?v=pzLRt27R5HQ
Desta vez não se guardam as coordenadas para memória futura. Num salto por cima do precipício, a esquadria de uma geografia absurda. Dá-se corda à ignorância: talvez nunca se tenha olhado para um mapa e nem as coordenadas (ou os rudimentos de uma rosa-dos-ventos) sejam conhecidos por jovens cada vez mais imberbes no conhecimento comum. Trocam as mãos pelos pés: de repente, o Chile foi transferido para a geografia europeia e Checoslováquia (sic), Islândia e Noruega são situados no sul da Europa. Ou à pergunta “que país tem Varsóvia como capital”, esbarra-se num silêncio fundo.
E, todavia, a geografia tem um lugar próprio. É um pouco como o sinal de pertença que diz respeito às pessoas, só que mudado para os lugares. Há mapas elucidativos. O que está em falta, é um módico de curiosidade para saber do paradeiro dos lugares. Não sei se o desinteresse (ou pura ignorância – ou uma mistura de ambos) não é sintoma de um ensimesmar que vem contra a maré cosmopolita que é herança do avanço das tecnologias. Há algo de paradoxal nisto: por um lado, nunca foi tão fácil viajar para qualquer lugar, nunca foi tão fácil estar em contacto com pessoas em lugares que estão nos antípodas do nosso; e, todavia, prevalece o desconhecimento sobre a pertença geográfica de outros lugares. As pessoas ouvem falar de países longínquos e não sabem onde ficam – nem têm o interesse em perder uns minutos a olhar para a cartografia do mundo para descobrirem o paradeiro do lugar.
Pode ser do desinteresse que alastra. Pode ser uma manifestação de boçal ignorância (como pode alguém não se incomodar em saber do paradeiro de um determinado lugar e depois invocar o nome desse lugar nas suas proclamações, em autêntico tiro no pé?). Ou pode ser apenas uma manifestação de exiguidade mental. O olhar limita-se ao pequeno domínio que alcança. Um certo paroquialismo que se confunde com o comodismo de quem considere ser vultuosa empreitada espreitar por cima do ombro e ir além da sua zona de conforto. Os outros deixam de ter interesse. Por arrastamento, os outros lugares ficam perdidos na apneia do desconhecimento.
Este ensimesmar é um contrassenso. Quem se confina à sua exiguidade contenta-se com uma lógica de mínimos. Faz algum sentido. Tenho a noção de uma certa preguiça do conhecimento – ou do acantonamento de interesses, reduzidos a limites exíguos – que não é boa conselheira de um conhecimento que se pulveriza. Pensar custa, cada vez mais. Descobrir é uma canseira. Dentro destes muito limitados quadros mentais, antes ficar sitiado à pequenez dos próprios lugares de que avivar a memória futura com lugares outros. Nesta fratura de gerações, penso como quem assim se comporta está nos antípodas de gerações muito anteriores que foram pelo mundo fora descobrindo novos mundos. (Sem ofensa aos que abjuram a utilização da palavra descobrimento – ou descoberta – no contexto da História, proscrita pela narrativa atualmente bem pensante.) Como pode ser tão grande o contraste, a fratura de gerações? Como pode haver tanta geografia armadilhada?

19.7.18

Um político tem de ser tão popular ao ponto de se confundir com quem representa?


Nine Inch Nails, “Sunspots”, in https://www.youtube.com/watch?v=zVUtghCDCA0
Parecem estar na moda os exageros afetivos dos altos dignitários, a sua emulsão entre os demais – como se essa osmose fosse critério determinante para a representatividade e, logo, para aferir a legitimidade dos eleitos. A moda, recente, começou com Marcelo. A presidente da Croácia terá sido sua aprendiz e tomou-lhe o gosto durante o campeonato do mundo de futebol. A senhora abraçava-se a tudo o que lhe aparecesse pela frente, multiplicava-se em sorrisos que se entaramelavam, no caso dos seus compatriotas que tinham acabado de perder o jogo, com uma dose presidencial de comiseração. Parecia íntima do presidente francês, que, ali ao seu lado e sendo testemunha da função, não pôde ficar atrás (apesar do exibicionismo de Macron ter sido, por paradoxal que seja a expressão, moderado).
A comunicação social e a voz popular estão encantados com a presidente da Croácia. Li algures que logo a seguir ao fim do jogo e à cerimónia de entrega de prémios, o nome da presidente da Croácia era o mais pesquisado no Google. Há uma excitação coletiva com a simpatia desarmante e com a lhaneza da senhora presidente. Devem ser os mesmos que se excitam com a perene presença de Marcelo no espaço público e de como Marcelo se mistura com o povo, como não nega uma selfiea quem a solicite, como tem opinião sobre tudo e mais alguma coisa (e, ainda por cima, repousando na sua imensa autoridade intelectual filiada no estatuto de catedrático e nos anos que passeou a prosápia como comentador na televisão). Não sei se a presidente da Croácia é assim quando exerce a presidência entremuros. Só sei avaliar a performance a que o mundo assistiu via televisão, mercê da equipa croata ter avançando até à final do campeonato.
Tenho reservas sobre este estilo. Admito que, entre nós, e em defesa do estilo presidencial (digamos) extrovertido de Marcelo, haja quem recue às calendas para evocar o mau exemplo do seu antecessor – e o péssimo exemplo será caução para o estilo desbragado de Marcelo, por antítese. Cavaco foi um péssimo exemplo. Até há quem lhe chame múmia e o epíteto depreciativo não calha mal. Mas nem oito, nem oitenta. Um representante dos cidadãos não precisa de se misturar com eles para provar a sua legitimidade. Não precisa de ser um entre muitos. Não há nesta afirmação nenhuma entorse ao princípio da representação que é esteio da democracia. Se um político reuniu a maioria dos votos, não é obrigado a ser um entre os demais. Por esta bitola, qualquer dia governa-se por sorteio (bem sei, há uns progressistas da ciência política que defendem a possibilidade no contexto do incremento qualitativo da democracia).
Não estou a sugerir que os altos dignitários abusem da pose de estadista. Ele há alguns exemplos que soam a farsa quando se adota a pose de estadista. Paulo Portas é o paradigma. Cavaco não o chegou a ser, por causa dos sucessivos dislates comunicacionais e da pose hirta que não é necessariamente sinónimo de pose de estadista. Marcelo parece não saber que ser estadista não é misturar-se com o povo. Imagino os pesadelos para a logística de segurança, quando Marcelo se mistura com o povo, fala de perto com o povo, oferece o rosto a sucessivos ósculos do povo e se predispõe às intermináveis selfies(ao ponto de se perguntar, em tom jocoso: quem é que ainda não tirou uma selfie com “o” Marcelo?).
É tudo uma questão de medida. A voz popular não gosta de políticos antipáticos e que estão a léguas do carisma. Prefere os políticos simpáticos, que cultivam a proximidade com as pessoas comuns. Mas isto é paradoxal: tenho por manifesto que a maioria das pessoas são antipáticas; se são antipáticas, como podem elogiar um estilo presidencial que faz da simpatia o seu cartão de visita? A ultrapassagem das medidas é um exagero que corresponde à adulteração do que se deseja exteriorizar como comportamento. Simpatia excessiva leva a questionar se é genuína, ou apenas um ardil para atrair o povo. (Quem não consegue fazer de conta que é simpático, mesmo quando não lhe apetece?) Há imagens da presidente da Croácia a festejar no balneário, abraçando-se a jogadores em cuecas. Um dia destes, Marcelo ainda é apanhado numa reportagem ao submundo da prostituição de rua. Não quero imaginar o que Marcelo poderá fazer à frente das câmaras.
A denúncia da embriaguez da popularidade dos políticos não é uma manifestação de conservadorismo. É desconfiar que tanta genuinidade, tanta afinidade com o povo, não passa de um embuste. No caso de Marcelo, trata-se de um estilo algazarrado, destemperado, circense, numa palavra, populista. Não é de admirar. Desde que entrou em funções, Marcelo começou a campanha eleitoral para as próximas eleições presidenciais.

18.7.18

Se tivesse asas


At Freddy’s House e Cavalheiro, “Quero é viver” (cover de António Variações), in https://www.youtube.com/watch?v=ApbrdzlBHbU&list=LLRLcHvidG6BocfU7CHznhag&index=8&t=0s
Se tivesse asas não perdia um minuto com o sono. Atirava-me ao mar e recolhia-o sob minha proteção, todo ele aninhado em minhas mãos. Destruía a soberba militante com golpes de humilde reverberação. Colhia o pólen macerado nas portadas da madrugada e dele fazia um néctar singular, quimérico. Cantava as canções eternas ao ouvido da minha amada enquanto retínhamos o ocaso em nosso olhar.
Se tivesse asas, descia as cortinas baças sobre os beócios, os contumazes desfazedores das palavras em sua singularidade. Ajuramentava o desejo máximo na urdidura do destempo. Combinava cafés com amigos de que perdi vestígio. Desarmadilhava os preconceitos que insistem em minar-me pelo interior. Pedia favor ao céu para ser espelho fidedigno do mar, e eu tutor de ambos. Recolhia em asilo os impostores de si mesmos, até saberem de mote próprio que são afortunados pela comiseração de que não precisam.
Se tivesse asas não queria saber do amanhã. Não perfilhava o pudor incandescente que obriga o rosto a fechar-se às possibilidades. Não tirava a medida às distâncias, as asas incansáveis sempre preparadas para devorarem as milhas que me separem de um destino qualquer. Emparelhava o sentido equinócio com o verso noturno, desfazendo o medo que da noite tive. Renegava pesadelos com a espada desembainhada na combustão da vontade. Remediava o pesar com trovas sobre o cais fundido. Perguntava às divindades sem rosto se tinham existência, ou se era apenas teimosia minha (não esperando réplica, nem murmurada).
Se tivesse asas desenhava os meus próprios mapas. Cortejava os cabos cerrados despenhando-se sobre o mar adulterado. Emoldurava os limites das montanhas e os caudais dos rios, com uma visão simultaneamente de conjunto mas com capacidade para reter os segredos escondidos nos recantos inacessíveis.  Esquartejava em múltiplos pedaços a sobranceria dos que se passam por eruditos, deixando-os no mesmo invertido pedestal da turba que desdenham. 
Se tivesse asas, partia sem ter a certeza de a algum lugar chegar. Voava e voava, numa errância militante, sublime. Não teria o apelo de portos protetores nem de atalaias em esboço. Seria ao mesmo tempo a antítese de um anjo e o anjo de mim mesmo (apenas, e sem revelação exterior). Seria senhor de terçar a paz sobre todas as terras. Denunciaria os embustes que se esteiam nas religiões. Aprovaria os mapas por mim desenhados enquanto perdurava a demanda na ausência de sono. Ao mesmo tempo, se tivesse asas, traduziria os sonhos em bases concretas, tangíveis, levemente acetinadas, em forma de poemas. 
Se tivesse asas, tudo seria falado e escrito em poesia. E eu vivia – vivia sem parar, até poder dizer que era vida por dentro da vida.

17.7.18

O verniz disfarça, ou o verniz embeleza?


Siouxsie and the Banshees, “Cities in Dust”, in https://www.youtube.com/watch?v=wsOHvP1XnRg
Reparem: aquela parede antiga parece nova. Pintaram-na de novo. Já não oferece aquele aspeto decadente, de coisa que tinha sido abandonada, ou pelo menos negligenciada, pela usura da indiferença. Sobre duas demãos de tinta, um verniz reluzente para acicatar as reavivadas cores.
Os olhos habituais (os que se intrometem no espaço da parede) não podem disfarçar a exultação. Os sentidos são sensíveis e as cores avivadas pelo requinte do verniz despertam os processos químicos interiores que disparam o alarme do bem-estar. Sobretudo aos olhos habituais, pelo termo de comparação: dantes, era uma parede no limiar da escombreira, estilhaçada, desprovida de cor, uma bandeira hasteada que soprava os tétricos ventos da decadência. Porventura, alguns olhares desviavam a parede do seu campo de observação. Não queriam a agressão visual, autêntica poluição do olhar. Agora que a parede se revestiu de cores neófitas e foi ajanotada por um verniz luminoso, o olhar habitual sente-se desafogueado. Outros depreciam a reinterpretação da parede: ela esconde a parede sob a fina camada de tinta e de verniz. A cintilação é uma pose que não combina com os poros estruturais da parede.
A parede não é a mesma? Tornou-se instrumento de um processo de rejuvenescimento à mercê das tintas coloridas e do retoque final do verniz. Mas a parede é a mesma. Estruturalmente igual. O que difere é a capa exterior através da qual a parede se apresenta ao mundo (também exterior). Pergunta-se: o tratamento estético não foi apenas isso – estético –, sem alterar as interiores moléstias que já apoquentavam a parede ao ponto de ela estar no limiar da decadência? Ou, ao contrário, tem cabimento disfarçar as ruínas potenciais com uma demão de tinta garrida e outra de verniz refulgente? 
E quem se importa com a resposta, se ela for intrusa na carne própria de quem se submete à estética reconversão? Cada um terá a sua resposta. Que a guarde. Que se dispense dos juízos de valor, por exemplo, como acontece quando se descobre uma atriz deslumbrante despojada de maquilhagem e se descobre, também, que na comparação com as públicas fotografias aparece irreconhecível? Não cuidam dos fingimentos se não os que a eles se emprestam. Os demais, cuidem dos seus interiores pecadilhos e não se escondam deles através do escrutínio dos outros. Pois o refúgio no verniz dos outros pode não ser se não um verniz (assim não reconhecido) por quem dele se serve.

16.7.18

Câmara lenta


Joy Division, “Heart and Soul”, in https://www.youtube.com/watch?v=0TC_OWpDNHQ
Heart and soul, one will burn.
Joy Division, “Heart and Soul”
O autor manda dizer que não tenham pressa. Protesta, a seu favor, a câmara lenta. A reinvenção do tempo, se assim preferirem. Pois não colhe a ideia de que a sofreguidão é a astuciosa solução para deixar em banho-maria o tempo sequaz. Não interessa galgar as margens do tempo se ele se volta contra nós. O que interessa apressar as empreitadas se uma reviravolta inesperada pode estilhaçar o esforço, reduzido a escombros?
Mais vale deixar a câmara lenta tomar o lugar centrípeto. E embaciar as cores das ilusões desembainhadas pela promitente ventura do porvir. Se deixarmos assentar o noturno deleite do tempo, esvaziando os relógios que o tutelam; e se formos timoneiros de um leve passar pelo dia, esconjurando a azáfama que venha a eito: talvez recuperemos uma alma entretanto errante. Saibamos arrematar os leilões onde se colhem os gramas da alma perdidos algures (e magicamente reivindicados em onírica função). Não tem serventia puxar os galões à vaidade que se sublima no vazio: ela é vazia como o vazio que a alberga; vazia, como sempre é a vaidade. Equivocam-se os que se empenham nas virtudes do trabalho e se ufanam que não sobra tempo para nada. Oxalá – diriam, se pudessem ser os donos da medida do tempo – oxalá houvesse mister de fazer com que mais de vinte e quatro horas fosse a medida do tempo e do sono não houvesse carestia se não de dois pares de horas. Cumprir-se-lhes-ia o tremendo sonho de dedicarem tudo à jornada de trabalho. Não se importam que lá fora não haja nada que reúna o seu interesse. Acabam por não perceber que são cartas fora do baralho.
O prazo é a prisão torcionária que sobre nós se abate. Os mais urgentes clamam que é para ontem (o prazo), exibindo a desmedida da sua desonestidade – nem em metáfora de mau gosto se aceite que o tempo pode ser repristinado. Por dentro da metáfora, ajusta-se à cintura o talião do prazo, a prisão do tempo acenando contra a serenidade que devia ser dos principais direitos humanos. Pois a cada um devia pertencer, e em exclusiva prerrogativa, a pauta por onde canta o tempo. Aceitando que a câmara lenta é o periscópio que emerge, insinuando um novo postulado do comportamento perante o tempo. Seremos penhores da qualidade, o estalão em permuta da quantidade. 
O tempo deixará de ser a evasiva ilusão, perdendo-se entre a transparência do vento. Desprezando os totalitários calendários e as juras que se entrelaçam com a medida vindoura. Desmentindo o medo de o tempo ser escasso, ou de ficarmos dele devedores. No refúgio da câmara lenta, conseguimos a anestesia contra os malefícios do tempo.

13.7.18

Um cavalo no telhado


Band of Horses, “The Funeral”, in https://www.youtube.com/watch?v=q90-yWkMW2w
No cachaço da improvisação, há umas telhas procrastinadas (por não terem chegado a sair do armazém) que contam histórias em seus escondidos milímetros. É como se aprendêssemos a apneia e fôssemos capazes de resistir largos minutos sem respirar quando mergulhamos nas águas pouco recomendáveis do jardim centrípeto. Dizem os cisnes nas imediações que, à noite, umas ninfas hipnotizadas se despojam do vestuário e entram nuas nas águas, simulando um êxtase respeitável. Mal se soube do rumor, brigadas de ativistas de voyeurismoficaram de atalaia pela noite fora. Não puderam espumar pelos cantos da boca o desejo tribal, pois as ninfas não responderam à chamada. 
Do outro lado da cidade, ainda é cedo para abrir a galeria de arte. O curador, ensonado como é costume, profere impropérios contra a manhã. Nem o café duplo o traz das trevas soporíferas onde a mente se sequestrou. Faz conversa de circunstância com a dona do café, uma mulher polaca que fugiu da democracia e tem saudades dos tempos da omnipresença soviética. Têm algo em comum: o curador da galeria de arte transitou pelas hostes comunistas nos seus áureos tempos de conquistador de corações femininos. Evitam falar de política. Houve um dia, a proprietária do café tomou conhecimento que o curador da galeria de arte era dissidente da causa pelos direitos dos trabalhadores contra a opressão dos detentores do pornográfico capital. (Para um comunista, um ex-comunista é perenemente dissidente.) A mulher ficou possuída e atirou o aquário à cabeça do curador da galeria de arte. Pobres dos peixes, despejados do seu habitat, nunca mais se recompuseram. Reagem ao contrário dos touros, quando dão de caras com o vermelho: ficam anestesiados, rezando (se é que os peixes se podem considerar criaturas tementes) para a proprietária do café não ter um ataque de fúria.
Do outro lado do mundo, um canguru fugiu por um triz do atropelamento por um autocarro carregado de turistas ávidos de neófitas paisagens e de um cosmos singular. Safou-o uma cambalhota no último momento. O condutor da carrinha não deu conta: vinha distraído, a olhar de esguelha para os comentários a uma fotografia que publicou numa rede social (em total contravenção do código da estrada). Os turistas exultaram. Acreditaram que o acontecido fora uma encenação para turista ver. Aplaudiram o motorista, para seu espanto (ainda não percebera o que se tinha passado). Com tanta algazarra, o motorista estacionou o autocarro. Alguns turistas saíram ainda antes do autocarro ter parado. Queriam aplaudir o canguru. O animal ainda estava a recuperar da imagem da morte que passou à frente do olhar. Antes de fugir do local, esticou o dedo do meio na direção dos turistas.
Do outro lado da televisão, um cavalo refugiou-se no telhado. Não é uma metáfora surrealista; o cavalo fugiu da enxurrada algures no Japão, que trouxe água quase ao nível dos telhados das casas.

12.7.18

A morte é que está um negócio que se recomenda

Interpol, “The Rover”, in https://www.youtube.com/watch?v=cKDq5dc4wO8
Fazendo fé nas estatísticas mais recentes, morreram mais dezoito pessoas por dia do que no ano passado. Os analistas confirmam que se deve ao envelhecimento. Como somos geralmente mais velhos, morremos mais. Dores de parto dos avanços da civilização: se não fosse pelos desenvolvimentos da tecnologia e dos cuidados de saúde, não teríamos tão elevada esperança de vida. Quanto mais idosos houver, maior é a probabilidade de se sucederem os óbitos. É a lei da vida (se assim se pode dizer, sem correr o risco de cinismo). É a lei das probabilidades: os idosos morrem mais.
Os gurus do empreendedorismo devem andar desatentos. Ainda não deram conta da morte – e aqui “dar conta” tem o significado da identificação de uma oportunidade de negócio (pois não é essa a cartola de onde os gurus do empreendedorismo tiram uns proveitosos coelhos?). Se há mais gente a morrer e é preciso dar-lhes funeral a condizer, devia soar um alerta de negócio. É o que eles chamam, na sua peculiar linguagem, uma “oportunidade de negócio”.
Admito que seja de mau gosto tratar a morte como uma oportunidade de negócio. Todavia, o pragmatismo assim ordena. Da última vez que ouvi falar, fez-se constar que a morte está pela hora da morte; um funeral não é coisa de meia-dúzia de tostões. E se forem mais os funerais em carteira, mercê do aumento do número de óbitos – por sua vez, mercê do aumento de pessoas idosas – é só uma questão de cálculos e de apreciar a possibilidade de os réditos associados às cerimónias fúnebres crescerem com a exponencialidade dos féretros que se apresentam ao cuidado dos cangalheiros.
Também admito que não seja profissão agradável e negócio com credenciais. Assim como assim, diz-se que todos fugimos da morte (pelo menos enquanto pudermos). Os cangalheiros não têm ordem profissional – e ele agora há tantas ordens profissionais, para toda e qualquer profissão, que a ausência de uma ordem dos cangalheiros é sintomática de um certo desprestígio social da função. Pudera! Ninguém se abeira de uma empresa de prestação de serviços fúnebres de ânimo leve. 
Se a pessoa que considera a possível recomendação de um guru do empreendedorismo (se não for o próprio guru a agarrar-se à oportunidade com as duas mãos), não pode ficar refém destas considerações morais sobre o tratamento da morte. Como ensinam aqueles gurus, nos negócios impera o pragmatismo. Com tudo se faz dinheiro, se a oportunidade for identificada e o negócio devidamente estudado, preparado e montado. Se ainda por aí tanto morto, e tanto candidato a morto, e se todos têm se ser enterrados (e uns quantos incinerados), o pudor em tratar a morte como ramo de negócio é inconsequente. Como diz o povo, se a morte é das poucas garantias que temos, o negócio dos cerimoniais fúnebres merece o devido tratamento como garantia de negócio. 
A morte, essa coisa irremediável e em intensificação, é o úbere do ramo de negócio que trata da morte.

11.7.18

Falhar é um sucesso


Conan Osiris, “Titanique” in https://www.youtube.com/watch?v=MitlVLt6RO0
Dizem que não é fácil conjugar o verbo “falhar”. A impressão do malogro é – dizem – o interior embaraço de uma incapacidade. Às vezes, mascara-se a incapacidade, substituindo-a pelo infortúnio; e como o infortúnio é um jogo de acasos, intui-se que o mal acaba por ser exterior e o insucesso é apenas uma vírgula das circunstâncias. Outros há, empenhados em apurarem uma diligência excessiva, que se consideram falhados incorrigíveis. Tudo o que fazem é um erro, termina com um final não intencionado e com efeitos inesperados que, se pudessem ser desenhados, não eram benquistos. 
Eu digo: falhar é um sucesso. Implica um ato. Em pior condição estão aqueles que, timoratos, se enovelam em hesitações e capitulam no altar da inércia. Alguns, por lhes ser inata a indecisão. Outros, por temerem os resultados não esperados e porventura apocalípticos do que fazem. Ajuízam o nada como preferível a algo que pode desaguar num fiasco. Têm um medo estrutural. Devem sentir-se constantemente acossados. Imersos no pânico da terrível indecisão: se fizerem de um modo, temem os seus maus efeitos; se alinharem pelo seu contrário, sopesam meticulosamente a plêiade de falhanços que se congemina como possível efeito. A catástrofe está sempre à espreita sob o ombro de qualquer ação.
Eu digo: temos de convocar a responsabilidade da ação. Por mais catastróficos que sejam os efeitos. Pois a capitulação perante o nada é domínio da mais recusável têmpera em que pode nidificar alguém. Não somos amibas. Somos seres empenhados ao império da vontade. Temos em nós os mecanismos necessários para ajuizar os possíveis efeitos das ações que nos sejam cometidas. Temos lucidez para as distinguir no lado favorável e no lado ermo do malogro. E temos capacidade para juntar todas estas peças num todo que catalisa a ação num determinado sentido. Com a consciência da responsabilidade que se junta aos efeitos desenhados como possibilidades. E se houver um acaso que nos atira contra a parede dura do falhanço, a única resposta que não podemos dar é um lamento e o consequente arrependimento. O lamento e o arrependimento nada resolvem. Nem apagam do tempo pretérito as ações conduzidas a um falhanço e não restituem às possíveis vítimas (intencionais ou apenas colaterais) a posição anterior ao ato que as atingiu.
Falhar é um sucesso. Na exata medida da aprendizagem que cultiva. Não será lugar-comum dizer que aprendemos com os erros. Por mais que se repitam, pois não se pode banir o lugar ao erro. Falhar é um sucesso nessa medida, e também porque quadra com a recusa da inércia, que não é coerente com a soberania da vontade. 

10.7.18

E no fim colocas o título


Radiohead, “All I Need” (live from the Basement), in https://www.youtube.com/watch?v=Z9IODJdi3GA
Estás à frente da folha em branco. Não sabes ao que vens. Não sabes que título vais somar ao ensaio que ainda nem tem baias por onde se mover. Fruto desta escravidão (que ainda consideras salutar), a folha continua em branco, à espera de uma módica ideia. (Está visto que hoje o aluvião de ideias ficou para memória futura.) Julgas que uma combinação de frutos pode desencravar o verbo e o substantivo. 
(Hoje prometeste ser frugal nos advérbios, admitindo que quase sempre apenas servem para encher a mancha do texto; também prometeste evitar adjetivação, que é a gordura má que retira simplicidade aos textos.)
Uma combinação de frutos: escolhida de acordo com um critério avulso, ou selecionados os frutos com critério? Não será através dos frutos que o mote terá aval. Podias olhar para a atualidade – e a atualidade é tão pródiga em acontecimentos, numa mistura de acontecimentos risíveis e de acontecimentos que contam a sério. Recusas. Não estás seguro de um critério fino para distinguir os acontecimentos risíveis dos acontecimentos que contam a sério. Por outro lado, na fase dominante, viras o rosto à atualidade. Deixas para o comentário dos entendidos, dos que se presumem entendidos e dos outros, que não abdicam da pose séria e se consideram legítimos para perorar sobre a atualidade. Não fazes falta à atualidade, nem ao comício constante que ela provoca.
Com isto não reconheces que tens de olhar para as outras dimensões do tempo – ou para um qualquer tempo alternativo que esteja escondido do olhar comum. Já sabes, e tens admitido a eito, que a escravidão que te consome é o tempo – a tua dependência em relação a ele. Nestes termos, deixas de lado as clepsidras, as diferentes camadas do tempo, ignoras o tempo pretérito (porque as recriminações ou as recordações cheias de húmus são irrelevantes para o porvir) e também deixas que o futuro se transfigure no presente que depressa se liquefaz na efemeridade.
Continuas de mãos atadas. Pensativo. Recorres à música: pode resultar num súbito fogacho de inspiração, uma qualquer combinação de palavras evocativa de um espelho onde se refletem as margens de um texto, ou apenas uma palavra simples, poderosa ao ponto de se transformar no mote que o texto (até então órfão) estava à espera. A música, em escolha aleatória, não foi grande ajuda. Continuas a ver a folha em branco à frente dos olhos. E os olhos sitiados pelo silêncio das ideias, que continuam sem sussurrar a inspiração que o texto convoca. 
Depois de alguns esboços, depressa os abjuras. Não gostas do início e não queres saber por que avenida poderia seguir um texto mal nascido. A páginas tantas, a página deixou o seu estado virginal. Um amontoado de palavras desfila página abaixo. Não é bem uma ideia, ou um argumento solidamente ancorado num esteio. Não é nada tangível. É apenas uma coleção estilística que admite a deslealdade dos corredores do pensamento, hoje autênticos opositores das ideias, deixando-as desertas. Não admira que nem sequer saibas o título a encimar o texto, se nem do texto consegues retirar um fio condutor.
Ninguém disse, contudo, que a coerência era um imperativo quotidiano. Amanhã é outro dia.

9.7.18

O escanção dos sentidos


Underworld & Iggy Pop, “Get Your Shirt”, in https://www.youtube.com/watch?v=VrCa_PTu0t0
Naquela altura em que o estuário se alarga e o rio toma conta de terra copiosa, torna-se mais difícil conter o caudal. Torna-se mais difícil saber o paradeiro dos sentidos, agora que têm mais espaço para se albergarem e o estuário abundante processa a sua lenta dissolução no largo rio. É como perder a peugada ao substrato incorpóreo que se julgava incindível: às vezes, o deslumbramento das coisas levianas tem o custo do esvaziamento do que sobra para além das coisas que induzem essa atração. 
Queria estar na posse de uma bússola poderosa que nunca aceitasse a desorientação. Queria saber que nunca estaria perdido em lugar algum. Queria garantias que a matéria involúvel, a substância que dá nome à alma, não seria objeto de desgaste nem de perda. Não seria subsumível à indiferença das moléculas da água transportadas pelo caudal e que, em vez disso, seria um diligente tutor do caudal. Queria sentir-se um pouco como um dique com capacidade para reter um volume de água que achasse necessário ao seu aforro futuro. Para amanhã não se tornar refém da erosão.
O escanção dos sentidos configurava a atração pelo abismo do devir indecifrável. Representava-se a si mesmo como testa-de-ferro das suas convicções. Era um esteio de certezas e um aprumado cuidador do tempo vindouro. Não recusava conselhos nem juízos sobre comportamentos exteriores, fossem pedidos ou não. A vaidade, cimentava-a na ufana condição de si mesmo. Sabia-se exemplar. Não o dizia abertamente (a imodéstia é só aceitável, e com medida, para os que se distinguem e constituem um escol), mas deixava-o subentendido nas entrelinhas. Ao ser escanção dos sentidos – dos seus e, a pedido, dos outros – era credor da sociedade. Aos predestinados (interiorizava, com generosidade), cabe a contemporização dos desalinhados dos sentidos. 
Um dia acordou e sentiu-se estranho. Não sabia porquê. Tinha sido uma boa noite de sono. Não tinha sido assaltado por sonhos medonhos ou por sonhos bizarros (temia mais os segundos que os primeiros). Não sabia onde estava. Teria perdido a bússola requintada. Procurou no quarto, em toda a casa, até nas ruas limítrofes – como se algo imaterial, como a bússola interior de escanção dos sentidos, pudesse revelar-se ao olhar. 
Habituou-se à transfiguração de estatuto (dantes, considerava-o um estatuto). O desprendimento das coisas mundanas era preferível à prisão constante de quem tinha tantas responsabilidades como escanção dos sentidos. Sentiu uma liberdade que não sabia conhecer. Começou a descobrir o doce sabor dos paradoxos: o seu paroxismo era orgulhar-se de já não ser escanção dos sentidos e saber-se sem lugar sua pertença. E deixou de se sentir policiado por si mesmo.

6.7.18

Prova cega


Os Poetas, “Autografia”, in https://www.youtube.com/watch?v=n37ftKtJ75E
(...) Conheço a tua voz como os meus dedos (...)in Mário de Césariny, Autografia.
Não é o medo que transige. Não é a noite que açambarca a luz que perfilha a descoragem. Os vultos adejam e não há nada que os possa demover. Mudança de plano: desestimam-se os vultos sombrios, deixa-se-lhes o luto que vestem nos pastos inférteis que habitam. 
A paisagem faz-se pela espessura dos nossos dedos. Desenhamo-la. Fechamos os olhos, e desenhamos a paisagem. Com as cores que pusermos ao alcance das mãos. Sempre de olhos fechados, na combustão máxima embebida na empreitada. Não cedemos à tentação de abrir os olhos para ver a obra a meia-haste. Estamos decididos: a empreitada prosseguirá até ao fim na ombreira dos olhos em seu véu denso. É uma prova cega que não recusamos. Pode demorar. Podemos interromper e retomar o desenho da paisagem mais tarde. Mas não deixaremos o olhar que se entreabre espreitar na paisagem desenhada enquanto ainda estiver a meia-haste. 
Se for preciso, bebemos a inspiração algures – no excerto de um poema: “quando amo imito o movimento das marés/(...) sou, por fora de mim, a minha gabardina/e eu o pico Evereste.” E depois ascendemos, como se fosse uma provação que não recusamos, desde o copo fundo, e fazemos da vontade a nossa água boreal. Sabemos que somos ascetas do mundo na sua condição irreal, pois do real não cuidamos por ser desamor de que não temos curadoria. Às cegas, como se fosse furtivo o conhecimento e, todavia, na síntese da prova cega se condensasse a sabedoria num espaço exíguo – o espaço onde só cabem os corpos nossos. 
Confia em mim. Podemos seguir todo este caminho às cegas. Os sentidos cuidam de estreitar os limites por onde nos movemos. Sem acidentes de percurso. No leve bater das asas, como se fossemos argonautas largados num voo picado. Como se nesse voo dessemos conta que não levamos paraquedas e, contudo, temos em nós o arnês preciso para a aterragem suave. Tudo por dentro de uma prova cega, num sonho inconfundível, ou então no mar espesso que trazemos às mãos, confundido com um sonho que se transfigurou. 
Confia em mim. Pois “(...) para dizer-te tudo/dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar/estou/em franca ascensão para ti o Magnífico/(...) e que o homem-expedição de que não há notícia nos jornais/nem/lágrimas à porta das famílias/sou eu, meu bem, sou eu/partido de manhã, encontrado perdido entre/lagos de incêndio e o teu retrato grande.

5.7.18

Sorvete de rosmaninho


Ryuichi Sakamoto, “Bibo No Aozora”, in https://www.youtube.com/watch?v=SsKlf_x9zRE
Às cautelas pretorianas: desenganem-se os precatados, os diligentes autores da habitualidade, que há mistérios sem paradeiro que têm o proveito de estilhaçar as vossas cautelas. Depois, órfãos de um plano (pois é sempre preciso ter um plano – asseveram com a mesma certeza com que convocam imperativos categóricos), não sabem como hão de trepar às paredes para saírem do abismo cuja possibilidade não contemplaram. Dirão sempre: se malogra o plano A, há um plano de contingência, vários planos de contingência para o caso de um qualquer plano de contingência não suprir as responsabilidades. Dirão: ele há tantas letras no alfabeto que múltiplos são os planos de contingência. Um deles há irromper com a sua aptidão, retomando a habitualidade consagrada. 
Eles não sabem o que é a improvisação. Ou temem-na. Pois improvisar dispensa o estirador onde milimetricamente se costuram os planos que têm de estar à mão de semear. Nunca hão de saber que os maiores proveitos medram da improvisação. Da improvisação sem ser forjada, pois uma improvisação ardilosa é contrafeita. Um dia pontuado por um acontecimento inesperado, uma música que rompe com o rame-rame da escuta, uma peça de teatro telúrica, um ângulo desconhecido que tempera uma atitude, a gastronomia que caldeia ingredientes improváveis, a ideia de que a morte não é uma sentença, a impressão de que as elegias são uma ofensa ao elogiado e ao tempo consagrado – e o mais que vier no bornal do improvisado, contra as medidas apertadas que delimitam os corredores do habitual e impregnam de rotina a existência assim caída em presságio de decadência.
 Outros exemplos da contrafação das marés: a desmoda que cultiva a provocação, contra as baias do legitimado pela multidão; uma história contada do epílogo para o prolegómeno; um vício depressa desligado da corrente; a voragem do tempo e a sua infecunda intransigência, como se não fosse profícuo ficar estacionado diante do tempo apenas a vê-lo passar pelos olhos, sem mais atuar; um lugar nunca demandado e que entra no mapa das memórias; um autor dantes desdenhado; o peito sem algemas ao que por ele não é conhecido; uma palavra resgatada ao dicionário; o sorvete de rosmaninho.
No auge da memória, o segredo é ter o ouro à mercê – o ouro arrematado pelas próprias mãos, desfazendo o pulcro invólucro que açambarca o jogo da diferença. Arranhando uma guitarra, mesmo de música sendo amador. A música, fiel depositária de uns versos que podem muito significar, ou apenas tutelar a sagacidade das palavras juntas num jogo semântico. Sem perder de vista o sorvete de rosmaninho.

4.7.18

Às respostas que recusam o óbvio


Dead Can Dance, “Children of the Sun” (live at KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=gw0I12BHZ6I
O povo insiste: há sempre um testo para uma panela. Da mesma maneira que se albergam, no azulejo kitschdo lugar-comum (onde coabita o “saber popular”), determinadas palavras que vêm mesmo a calhar para coroar uma certa expressão. Hoje de manhã, a letra de uma música evocava “sapos”, deixando o ouvinte adivinhar que na estrofe seguinte viria a palavra “engolir”. 
As improváveis combinações é que merecem crédito. É como perguntar: “a que horas chega a noite?” e responder “pelo desaguar do rio, prevê-se que a lua esteja à espera de autorização para entrar no quarto minguante.” Ou perguntar, com a solenidade vetusta dos que não abdicam de pose séria (como se fossem estadistas, ou aspirantes a sê-lo, pelo menos nos seus sonhos), “qual é a relevância do assunto para os destinos da nação?”, ouvindo um interlocutor asseverar que “a dimensão oculta do labirinto pede meças à arbitrariedade das escolhas, daquelas escolhas que não se sopesam e apenas se costuram na artificial espontaneidade do instante em que são tomadas.
Podem-me perguntar: “que podias dizer de ti que fosse abonável?”. Responderia: “da última vez que olhei para o Borda d’Água, estava lá escrito que é às vinte e uma horas e onze minutos.” Talvez confuso, o interlocutor seria tentado a arranhar outra interrogação: “confias nas tágides estatutárias, na lei de bronze que delas se infere, se os Homens são peritos em desautorizar as leis que eles próprios confecionam?” Ou então, numa reviravolta temática, ouvir a perguntar: “sabes de alguma correlação entre as marés do rio e a fase da lua?
Naquelas hipóteses, as respostas não são inteiramente avulsas e aleatórias. Elas só não correspondem diretamente ao perguntado. Mas encontra-se correspondência desfasada entre cada resposta e cada pergunta. É quase como se o respondente, pessoa conhecida pela sua rebeldia, escolhesse a página do tempo em que desembaraça resposta a uma interrogação que é sempre pretérita. Pense-se numa hipótese original: as respostas a precederem as perguntas. Ou seja: perante a resposta, o interlocutor adivinha a pergunta que nela se encaixa. Algo de parecido com o seguinte exercício:
Resposta #1: “toda a condição humana supõe a inverosimilhança das raças.”
Resposta #2: “perante uma encruzilhada, tomo partido pela estrada que se oferecer estética.”
Resposta #3: “já fui ao hemisfério sul e trouxe um caldo de cultura tropical; logo eu que, dantes, não oferecia um vintém por essas culturas.”
O interlocutor, colocando perante o desafio, teria de esboçar três interrogações, sem à partida as numerar (a correspondência numérica entre interrogações e respostas será o lugar para o exercício seguinte):
“Dos quatro caminhos sobrepostos, pode-se afirmar, em depuração da lente, que a vontade sabe escolher o que lhe é bondoso?”
“A cultura, por mais heterogénea e versátil, é um património único. Adianta terçar argumentos se o húmus é influenciado por considerações relacionadas com o lugar, o clima, a identidade forjada, a densa teia de encadeamentos herdados das gerações anteriores?”
“Acreditas que somos todos párias das pátrias que nos agrilhoam um pedaço importante da identidade individual?”
Os dois interlocutores reunir-se-iam para anuírem na correspondência entre interrogações e respostas. Dando o seguinte por assente: a terceira pergunta corresponde à resposta #1; a primeira pergunta corresponde à resposta #2; e a segunda pergunta encaixa-se na resposta #3.