30.4.09

Da ciência pastel



Produz-se ciência. Às coisas, a sua muito relativa importância. Em todos os lugares, com toda a subjectividade que das muito diferentes pensantes cabeças emerge. Na impossibilidade da objectividade, por recusa de imposições totalitárias (haveria de alguém fixar o que era ciência e o que ficava proscrito), predomina um código de conduta: tudo é ciência; e tudo, mesmo tudo, tem merecimento de investigação científica, com mordomias inerentes – subsídios acima de tudo.


O código de conduta banaliza a ciência. Tomo o juízo à vontade. Também faço ciência – ou acho que produzo ciência, a crer nos parâmetros dominantes. Mas muitas vezes questiono a utilidade da ciência que vou legando ao conhecimento. Se tudo o que enriquecer o conhecimento tiver o merecimento de ser ciência, somos todos produtivos (em doses variáveis). Não está em causa sermos prolixos na ciência que se produz. Não interessam as resmas de papel que ninguém, ou muito poucos numa perspectiva optimista, lê. Devia a utilidade vingar como critério. Mas é tudo ao contrário. Fervilha um espírito inventivo na ciência. Hoje, tudo é ciência. Todos os dias se inventa ciência. Abandalhada a ciência, talvez ela tenha perdido o seu significado.


O tal código de conduta é terrível. Há uma espécie de pudor nos pronunciamentos sobre a ciência produzida pelos outros. Um acordo tácito sobre a elevada respeitabilidade das investigações que enchem copos vazios de utilidade. No mar da ciência desagua uma abominável solidariedade corporativa, a casta que se protege às escuras e, se preciso for, assina por baixo como caução da ciência da qual desconhece sequer os rudimentos. Quando há questiúnculas, elas servem-se em ódios de estimação que consomem excessivo tempo em lutas de galos, quase tão inúteis como alguma dessa ciência.


Tenho a impressão que faz parte da factura da democracia. A democracia, diz-se, há-de chegar a todo o lado. Já o ensino superior foi democratizado, agora que a licenciatura é um mero apêndice quantas vezes sem utilidade para o mercado de trabalho. Na investigação científica, a democratização já passou da fase da insinuação. É seu património genético. A fasquia de exigência está ao nível da maré baixa. Talvez sinal da exigência intelectual que por aí abunda. Fora e dentro das universidades, ungindo com seus dedos os laboratórios onde se produz a tão inútil ciência. À falta de estaleca para a ciência que tinha dignidade de assim se chamar, reproduz-se a ciência manga-de-alpaca porque inventam eles próprios a ciência em que depois se notabilizam.


Convém moderar os ímpetos: a ciência, se é prolixa, não pode ser tão inútil quanto se apregoa. Pelo menos mantém ocupada gente que, de outro modo, teria pouco que fazer. Ou gente que, de outro modo, teria outra profissão com menos alcavalas. A subjectividade da ciência é um bálsamo para as estatísticas do desemprego. Mas isto chama-se ciência onanista. São os próprios, e apenas eles, que se excitam com a ciência que produzem e reproduzem. Causa-me espécie a impressão da enraizada ciência: os seus actores não andarão longe de parasita gente, coberta pela superioridade do trabalho intelectual, apontando a sua produção como incalculável contributo para o "avanço da sociedade" (outra falácia). E o que interessa, afinal? Uns subsídios daqui e dali, para uma vida faustosa com algum turismo pelo meio a pretexto do trabalho que exige uma viagem, aqui e ali. Sobejam muitas páginas que só serão lidas por quem as escreveu, ou um longo bocejo da ciência em círculo fechado, a sua utilidade em desmaio. E um cortejo de vaidades pessoais, o somatório de poder que alimenta produções irrisórias quando o nepotismo passa a critério relevante. E alguma desonestidade intelectual de permeio.


Repito o obrigatório registo de interesses: amiúde interrogo a utilidade da ciência que ando a produzir. Não chamo ao meu castelo a superioridade do saber por contraponto ao que muitos andam a produzir. Se tanto, um pungente auto-retrato, com fatal derivação por patamares por onde andam muitos outros. Se a "a ciência" é isto, não me apetece ser "cientista" de ciência alguma.

29.4.09

Da sobranceria


Somos titulares do juízo dos outros. Quantas vezes para açambarcar a superioridade quando asseguramos que os outros, os que passam pela crua pena do nosso juízo, são de fraca têmpera ou reprovam no teste da competência.


O mal está na frequência com que somos o crivo por onde passam os que se põem a jeito do nosso critério. É um exercício que se repete, dias a fio, meses e anos sem cessar. Um escrutínio irrecusável. Para os cépticos o ajuizamento dos dias correntes vem pintado com cores sombrias. Sobressai a inépcia, o calibre defeituoso dos que passam pelo filtro da crítica impiedosa. É um exercício pungente. As mais das vezes, o diagnóstico é a mediocridade rasteira. Aos desenganados do mundo e das suas coisas, o tempo das ilusões ficou retido nas memórias onde havia vestígios de ingenuidade, um lirismo próprio da tenra idade e da inexperiência.


Pesar qualidades e defeitos alheios é um cadafalso. O juízo é exterior a si. São sempre outros que passam pela exigente lupa que decifra um diagnóstico. Raras vezes os próprios julgadores se submetem ao exercício. Nuns casos, porventura por se saberem feitos da mesma massa dos que usaram para destilar a azeda crítica. Noutros casos, convencem-se que pairam acima de todas as suspeitas, adejando com a sua superior aura sobre os demais. Estariam, por assim dizer, à margem dos demais. Ungidos por dotes só ao alcance dos escolhidos.


Arremetem com a sobranceria que os distingue, a sobranceria que carrega o lastro da sua intelectual superioridade. Escapam de espelhos, não vão acusar imagem desagradável do que são, desapossando-os da íntegra capacidade de serem julgadores dos demais. Quando se diz "fulano é de uma mediocridade atroz", estaremos numa espessura diferente dessa mediocridade? Ou quando se atesta que "sicrano é de uma incompetência singular", por que nos convencemos que essa incompetência não é nosso atributo também? Com que autoridade nos elevamos aos píncaros sabe-se lá do quê e peroramos acerca dos atributos, ou da falta deles, dos que se prestam à figura de actores diante da plateia onde o lápis afiado se ensaia para a cruel crítica?


O pior dos males é a irrecusável atracção pelo julgamento dos outros, de preferência dos que passeiam a sua lamentável existência. Uma deriva de soberba vaidade; quem aponta o dedo às criaturas lamentáveis é porque se acha possuído por uma têmpera diferente. Todavia, quem o certifica? Talvez não passe de auto-convencimento. O que desfaz a autoridade intelectual em pedaços. Andamos todos nisto. A desautorização dos outros, pela pena do julgamento da nossa autoria, é a confissão da nossa própria desautorização, do pequenino lugar onde estamos acantonados.


Há o lado contrário da sanha crítica. O silêncio depurativo, pois quem se refugia no julgamento dos outros terá temor de olhar para dentro de si, incapaz de usar consigo a indulgência que recusa nos outros. Uns dizem, cansados do excessivo tom crítico que desagua nos outros: se não teimássemos em selar com supostos juízos superiores o que são, o que dizem, o que fazem os outros, estaríamos no rasto da maioridade. Por mais atraente que seja a pedagogia da anti-crítica compulsiva, ela esbarra numa prioridade maior: pode-se reprimir a livre expressão, que umas vezes desemboca em crítica, só porque estamos na mesma nau onde navegam os que criticamos?


Caímos, com frequência, na crítica fácil e, em ocasiões, feroz. Quando olhamos por detrás do ombro e relemos o julgamento dos outros, às vezes sobra o ressentimento pessoal que aduba a seguinte interrogação: somos diferentes da têmpera dos que criticamos? Oxalá pudéssemos sair do interior de nós e apreciar, do exterior, o que nos consome. Seríamos mais criteriosos nos alvos? Seríamos congruentes com a essencialidade do que somos: a desautorização de nós é flagrante quando apontamos a artilharia contra alguém quando pelo nosso interior corre o mesmo tipo de seiva de que não gostamos nos que passam pelo nosso crivo.


Seja como for, alinhavam-se irrecusáveis perguntas: o indivíduo é mesmo de fraca jaez? Imerso na sua profunda ignorância, a ignorância sublime dos que se julgam de inteligência superior aos demais? De maus fígados? Todas as palavras que diz, uma colecção de mentiras? Um hino à mediocridade, à imagem do resto? A quem me refiro?

28.4.09

Manual das decisões que erram


Os passos em falso. Os passos trocados. As convicções de um instante que esbarram em dúvidas logo no instante seguinte. Fermentam-se, imersos em dúvidas, até que ao cabo de todas as interrogações sobeja uma certeza: foi uma errada decisão. Os lamentos servem-se em doses generosas. Como se a levitação dos arrependimentos servisse, ao menos, para compensar as dores das erradas decisões.


Às vezes, parece que o cortejo infindável de erros cometidos é propositado. Se não propositado – quem acredita na impiedosa estocada em si mesmo? –, pelo menos de uma dilacerante espontaneidade que traz outras intenções. Quando o corpo arrasta os seus lamentos pede a comiseração dos outros. Talvez a misericórdia venha apagar do registo os equívocos idos. Como se a piedade vertida pela compaixão alheia tivesse o condão de apascentar as dores dos erros de outrora, fosse o túmulo que vira a página do erro cometido. Os outros, na sua comiseração, como bombeiros que extinguem o fogo ateado pela errada decisão.


Só que logo a seguir vem uma e mais outra decisão ferida pelas dolorosas consequências. Queixam-se: naquele instante, tão fugaz, em que uma palavra sentencia a decisão tomada, o que assoma à superfície é o dilema – fazer ou não fazer, dizer ou silenciar, optar ou omitir, estar presente ou estar ausente, ser ou ensaiar um esboço do ser. E quando um impulso final inclina a decisão, é como se logo a seguir fossem invadidos por uma terrível sensação de equívoco. Logo a seguir, as veias fervem com a convicção de ter sido errada a decisão. Nessa altura, o relógio já se adiantou às opções possíveis. A decisão, encerrada e sem retrocesso, deixa para o tempo vindouro as fatais consequências.


É quando o futuro acontece com voracidade. Nas avenidas onde desfilam os erros cometidos, o tempo ultrapassa-se a si mesmo e o futuro põe-se à frente do presente. Não se demora, a amargura das opções desvalidas. Convoca-se todo o arrependimento que se pode compulsar. Lá por dentro, uma irreprimível angústia encena uma coreografia. Os arrependidos disto e daquilo, de todas as decisões que perecem maculadas pelo odor fastidioso dos equívocos, as piores pessoas do mundo. Envergonham-se, se diante deles se hasteia um espelho. Mal do menos quando sobeja algum pudor e chamam a si, e só a si, a responsabilidade pelos actos que se transviam.


São peregrinos numa interminável procissão de lamentos. Há os que resguardam em si as dores lancinantes dos erros que se sucedem a cada dia que dobra o calendário. Mas há os que impõem a partilha das dores de si com quem lhes apareça pela frente. Endossar um quinhão das mágoas interiores serve para domar a melancolia em que se afundam depois de outra decisão ditada pela bússola avariada. É como se acreditassem que as decisões que erram se servem num manjar de socialização do erro. É a pior forma de demissão de si. A recusa em tomar entre mãos a responsabilidade pelos actos cometidos. Não anda longe das piores desvergonhas de que há conhecimento.


A certa altura, a densa experiência com os erros que vêm de trás de nada serve. Uns atrás dos outros. Dir-se-ia que a experiência acumulada, se tem alguma serventia é a de viciar os que erram numa interminável sequência de enganos. Entranhada a inclinação para os equívocos. Sabem-no, os peregrinos das auto-lamentações. Quando estão à beira de mais uma decisão e os assalta o temor de ser o passo com o travo amargo a saborear mais tarde, é por aí que seguem. Uma indomável atracção pelo abismo, a adrenalina de uma queda livre no precipício. Sem darem conta das tremendas dores quando o corpo se estatela, com fragor, no fim do precipício.


No rosário sem fim de erradas decisões, serviriam como professores das não decisões.

27.4.09

A deificação dos “capitães de Abril”


Obrigado, que nos sacudiram da vetusta ditadura. Prestaram o seu serviço. Daí a fazer-se crer que temos uma eterna dívida de gratidão (ou uma dívida de gratidão eterna?) é exagerado. Lembro-me, ainda adolescente, de ter salvado uma criança do afogamento numa piscina. É a primeira vez que o revelo. Não fiz o que se esperava que fizesse? Para quê eternizar proezas, transformá-las em dívidas de gratidão e não recusar aos heróis perenes mordomias e intermináveis homenagens? Assim se fabricam deuses com pés de barro.


Todos os anos, a celebração da revolução de Abril transforma-se numa ladainha. Já lá vão trinta e cinco anos e parece que os fantasmas da ditadura permanecem vivos, como se fossem diabos traiçoeiros à espera da primeira oportunidade para asfixiarem as liberdades que o 25 de Abril trouxe. Percebe-se: o imaginário colectivo precisa de algo que cimente a lealdade das gentes ao regime. Afinal de contas, é o regime vigente.


Não estou a discutir a qualidade do regime (e podê-lo-ia fazer sem apanhar com uma crucificação devida aos hereges?). Não tenho dúvidas que este regime, com as suas numerosas imperfeições, é preferível à ditadura do Estado Novo. A qualquer ditadura. Se mais não fosse, pelas liberdades. À distância de trinta e cinco anos, e sem ameaças sérias vindas da extrema-direita, são superiores ao meu entendimento as celebrações muito sérias e os indestrutíveis receios de derivas totalitárias de direita. Pois que da esquerda não são temidas as mesmas derivas totalitárias, num viés incompreensível.


A iconoclastia típica das celebrações de "Abril" recupera do armário os militares que foram seus autores. A esta distância, e com a atracção pelo totalitarismo de extrema-esquerda que vários desses militares mostraram entretanto, tenho-os como a nova brigada do reumático do regime. Estão numa paradoxal posição. O regime não se cansa de os elogiar, de lhes consagrar tratos de polé, todos os anos desmultiplicando-se em mil e um agradecimentos. Só que esses militares, muitos deles, desgostosos por a democracia não ter descambado para uma ditadura do proletariado ou coisa parecida, não se cansam de mostrar a sua decepção e protestam contra o regime. Dizem, muitos deles, que "Abril" foi atraiçoado.


Pelo meio desta relação de amor-ódio, os que habitualmente se desfazem em encómios não aprendem com a ingratidão e a pose arrogante dos capitães de Abril e renovam as homenagens. Os capitães repetem a desilusão, mas agradecem as genuflexões anuais sempre que o calendário pára no vigésimo quinto dia de Abril. É quando aparecem naquela pose muito importante, de quem é penhor dos eternos agradecimentos de toda uma população que os deve elevar aos píncaros por lhe ter devolvido as liberdades reprimidas pela ditadura. Dir-se-ia que gostariam que o tempo tivesse parado por alturas da revolução de Abril. Só para enquistarem os feitos, emoldurando-se a si mesmos na galeria dos imprescindíveis a quem são devidas perenes homenagens.


As proezas são efémeras. Mesmo quando vêm debruadas a ouro nos anais da história, quando os seus feitores insistem no fausto da pose e exigem respeito, dedicação e, caso necessário, diárias homenagens. Querem-se ultrapassar à história e pôr-se a jeito de uma canonização qualquer. Já é lugar-comum convencionar-se que todos devemos eterno agradecimento aos capitães de Abril. Tenho o problema dos imperativos categóricos definidos por uma qualquer voz colectiva sussurrada pelos porta-vozes que assim se destacam da turba. Por outro lado, há perguntas inevitáveis: até quando seremos obrigados a prestar-lhes faustosa homenagem? Por quantas gerações? Até ao fim da história?


Da mesma forma que estamos estruturalmente presos a uma salazarenta maneira de ser, o regime não se desprende das fraldas enquanto se mantiverem os fantasmas do passado que alimentam os louvores aos capitães de Abril. É sinal de infantilidade do regime. Ou uma tentativa desesperada, de certos sectores mais radicais, de manter no regime os traços anacrónicos que o enfeitaram no período do fervor revolucionário. A devoção aos capitães de Abril, apenas um sucedâneo de canonização. Se as proezas têm o traço da efemeridade, já não devo nada aos capitães de Abril. Tal como a criança que salvei do afogamento na piscina não me deve nada: limitámo-nos a cumprir um dever.

24.4.09

A transcendência das coisas banais


Quando alguém se leva sempre muito a sério, e muito a sério todas as incumbências entre mãos, há o risco de tratar com digna solenidade coisas que não passam de banalidades. É quando se misturam os azimutes e tudo, tudo até na sua insignificância, vem possuído de uma circunspecção que não se compadece com tratamentos levianos. São os que confundem a seriedade da função com o despropósito do engrandecimento das coisas banais.


Tudo se levita numa espuma só ao alcance das muito importantes coisas. Será por defeito de feitio, pois perfumam a existência com a irritante aura de perfeccionismo que os parece elevar ao altar onde só entidades divinas têm lugar. Ou, apenas, porque não se desprendem da mesquinhez em que vivem mergulhadas, sempre fazendo de si uma imagem de importância acima do contexto.


Por acaso não ando pelos antípodas deste comportamento. A desorganização mental deixa-me incomodado. Todavia, tanto me irritam os militantes das distracções, das genuínas e das que se soerguem com o rótulo do oportunismo, como os que esbofeteiam nos demais putativa aura perfeccionista. Fazem as coisas todas bem, muito bem. Tresanda, de tanto alindarem os seus actos com pinceladas que ostentam uma fortaleza inexpugnável ao erro. Eu diria: extra-terrestres, alijados da contestável natureza humana dos que erram, nem que seja por grosseiro erro de perspectiva, ou por banal negligência, e acabam a trautear a melodia da essência humana. Da imperfeita natureza humana.


Esta gente deve fazer da vida um festim, todos os dias consagrados à bestial solenidade de uma qualquer irrelevância. Nisso os invejo, que conseguem descobri um móbil qualquer, por mais impensável que se assemelhe, só para darem guarida à sumptuosidade de uns nadas. E sinto comiseração. Pelo tanto tempo desperdiçado a organizarem mentalmente a agenda onde anotam o infindável rol de tarefas para que tudo, sem falhas ou gralhas de comportamento, venha à luz do dia colorido com uma paleta de garridas cores onde apenas cabem as cambiantes da perfeição.


Não deixa de ser risível. O esforço para adulterar a insignificância das coisas insignificantes, fazendo delas o seu contraste, como se fossem feitos notáveis que a humanidade aplaude em uníssono. Nas sinecuras que trazem o nobilitante lastro da responsabilidade pelos demais, a gravidade dos actos enfatua-se. Agiganta-se, que de decidirem em nome de muitos alimenta-se a esponjosa espessura da tremenda importância dos actos menores.


Divertem-me, estes personagens que se projectam no espelho e conseguem ver um retrato que é toda uma estaleca admirável. O espelho é o mestre das ilusões todas, na imagem projectada que amplifica toda uma pequenez que irradia, ou apenas esconde, inconfessáveis frustrações, ou ambições que nunca conseguiram passar do onírico. Fico, embevecido, a contemplar a pose envaidecida, e a grave pose que o momento reclama, ao laborarem num tremendo equívoco. A melodia entra em desacerto, pois não é preciso grande discernimento para notar que o cerimonial, cheio dos salamaleques e tratos de polé que a seita gosta de a si chamar, é uma fátua fogueira. Uma fogueira onde se consomem as vaidadezinhas pessoais, daquela gente que reclama para si uma importância que não encontra eco do outro lado, onde não há ninguém para os escutar ou sequer darem conta da sua existência.


Porventura, a transcendência de tudo é a caução da irrelevância do mesmo. Que transcendência, a das coisas banais! Tão transcendentes que, a certo passo, já nem sequer as coisas sérias, as que mesmo importam, têm espessura para entrarem no Olimpo da transcendência. Sobra uma fumarola que expele vestígios, a refracção do nada a que tudo é reduzido pelos que urgem em dar transcendência a todas as insignificâncias.

23.4.09

Os senhores polícias estão dispensados de cumprir as leis como nós?


A autoridade faz jus ao nome quando faz tábua rasa das regras que quer que nós, os que não somos autoridade, cumpramos? Ou, só por ser autoridade, desliga-se por predicados divinos do respeito das leis que nós, os que não somos polícias nem temos o poder nas mãos, devemos respeitar para não vermos o inclemente braço punitivo cair sobre nós?


Há tempos, reparei como um mediático inspector da polícia judiciária (que entretanto deixou de o ser) saiu de tribunal, entrou no seu desportivo veículo e arrancou a toda a velocidade. Esquecendo-se de apertar o cinto de segurança. Só pode ter sido isso, esquecimento. Que dos agentes da autoridade não se esperam escorregadelas tão ostensivas. Naquela altura, uma pergunta tomou conta do meu pensamento: e se fosse interpelado por uma brigada de trânsito e me tivesse esquecido de colocar o cinto de segurança, qual seria o valor da multa? E esta outra: as imagens da televisão mostrando o ostensivo atropelo ao código da estrada seriam suficientes para levar o senhor inspector a sentar o cóccix no banco dos réus?


Depois, na semana passada, passei numa movimentada rua da cidade onde está situado o sindicato dos polícias. Devia haver uma reunião, uma muito importante reunião, a atestar pela nunca dantes vista aglomeração de automóveis estacionados nas imediações. Notei que quase todos estavam estacionados com as duas rodas do lado direito em cima do passeio. Alguns estavam, pareceu-me, a invadir o espaço reservado a uma paragem de autocarro. E alguns estavam parados num sítio que tinha uma linha amarela pintada no chão – ao que me lembro, sinal indicativo de proibição de estacionamento. Os que pararam com duas rodas a invadir o espaço dos transeuntes não podem ser acusados de insensibilidade: fizeram-no para não prejudicar o trânsito automóvel. É desta consciência que eu gosto, nem que ela faça vista grossa às regras que os senhores agentes fiscalizam com tanto zelo.


Deitei-me a adivinhar: se calhar, a força policial estava toda reunida no sindicato, pois pela amostra de rebaldaria ao código da estrada não havia polícias disponíveis para aplicar as multas por estacionamento proibido. Se a teoria colhesse, a gatunagem potencial tinha naquele dia uma ocasião ideal para a função. Mas o cenário não podia ser assim tão tenebroso. Podiam lá os senhores polícias, só por causa de uma tão crucial reunião no sindicato, hipotecar a segurança pública? Lá como há serviços mínimos a cumprir nas greves que afectam serviços essenciais para a população, com certeza que aquela reunião sindical não fora frequentada pela força policial em massa.


Sobra uma hipótese pouco simpática. Na concorrida artéria terão passado polícias, daqueles que andam em trio em patrulhas transportadas de automóvel, ou das patrulhas solitárias em motociclos nada potentes. E ninguém terá parado para distribuir multas. A hipótese que vinga é esta: os polícias dispensados da reunião do sindicato mostraram uma notável solidariedade corporativa. Podiam lá eles multar os seus colegas destacados para tão importante conciliábulo? É desta solidariedade que se devia ensinar nas escolas.


Mas também sobra outra lição. Desenganem-se os cândidos crentes da sacrossanta igualdade. É uma miragem. Há quem seja mais igual do que os demais. Os polícias, sobretudo se estiverem em valiosa missão de defesa da classe, têm a passadeira estendida para fazerem aquilo que não deixam, aos que não envergamos a farda da autoridade, fazer. Não consegui resistir à imagem de umas dezenas de polícias que perseguem ferozmente os ensandecidos ou apenas negligentes automobilistas que pisam os limites do código da estrada. Como eles adoram passar multas, com a pose inflexível de quem não pode, nem deve, sucumbir às ladainhas dos infractores que clamam por piedade. Esses mesmos que, para não chegarem atrasados à urgente reunião do sindicato, ou apenas porque não quiseram ter o incómodo de dar às pernas umas duas centenas de metros, espalharam os seus automóveis num prolongado cortejo de infracções ao código da estrada.


E depois imaginei um quadro sublime: pela calada, sem que nenhum dos sindicalizados desse conta, espalharia multas de fancaria nos pára-brisas daqueles automóveis todos mal estacionados. Simbólicas multas. Não as tinham que pagar. Lá vem um adágio: "no melhor pano cai a nódoa". Neste caso, tenho que corrigir o adágio. A "fazenda" não é assim de tão elevado calibre como se supõe.

22.4.09

O que mais estará reservado para um dia destes?


Dizem que a esquerda radical, a muito chique e caviar extrema-esquerda, não tem vocação para ser governo. Dizem que nas suas veias corre sangue contestatário, anti-sistema. Talvez estejam errados no diagnóstico. E, talvez quem sabe, a extrema-esquerda que reúne tantas simpatias entre uma certa burguesia urbana bem pensante já tenha começado a governar mesmo sem ser governo. Dessa sublime tentação já não se consegue safar, o Bloco de Esquerda (BE).


A profunda crise pôs a conjuntura mesmo a jeito para a consumação do poder, ainda que efémero, da esquerda caviar. Depois da ladainha insistente que denunciava os apóstolos da crise, ou seja, os capitalistas da pior espécie, lá levaram a água ao seu moinho. Conseguiram seduzir os socialistas que, por uns instantes, emprestaram o leme do poder. Interlúdio: porventura não estarão capacitados para perceber que foram os idiotas úteis a cair no regaço dos socialistas liderados pelo "engenheiro", que assim se cola, com esperteza saloia, a uma causa fracturante que sempre foi património genético da esquerda chique, canibalizando-a. Veremos, quando for o momento dos cálculos eleitorais, se a ingenuidade da extrema-esquerda caviar não é a morte do artista. Veremos se o BE não caiu na esparrela e, anestesiado pelo néon do poder, assinou por baixo a renovação da maioria absoluta dos que lá estão.


A revolução fiscal anunciada é isso mesmo, uma revolução. Sob o pretexto da corrupção, do enriquecimento ilícito e do modismo do momento (a perseguição aos ricos), por fim vingou a diluição do sigilo bancário (ou, parafraseando sua excelência o presidente da república, "sigílio"). As nossas contas podem ser espiolhadas por um qualquer funcionário do fisco que esteja para aí virado. Não me consolo, como se parecem consolar os que aplaudiram a medida, com a inocência como pressuposto para o não incómodo com a possibilidade de alguém vasculhar as minhas contas bancárias. Dizem esses, ingénuos a meu ver, que a melhor garantia da nossa inocência é permitir que os que alinham na ilegalidade sejam perseguidos desta forma.


Agradeço a condescendência, mas prescindo dela quando a consequência é um sistema de permanente vigilância. E de permanente suspeição. Sim, que daqui em diante todos, e sem excepção, somos potenciais alvos da fúria inspectiva do fisco. Andaremos a desconfiar todos uns dos outros, mesmo se quase todos não passamos de pelintras. A vida está, definitivamente, mais difícil para os ricos. Já nem falo dos que enriquecem por portas travessas, que esses terão poucas hipóteses de passar no apertado crivo do fisco, com os bancos coercivamente forçados a serem colaboracionistas. Não sendo inédita a defesa dos ricos por aqui, já não surpreendo se afirmar a preocupação pelos que enriquecem por meios legítimos. (Tenho uma dúvida, contudo: para a esquerda caviar haverá semelhante conceito – "enriquecimento lícito"?)


Apesar do Avô Cantigas, servindo-se da aura de senador jurídico do mais fino recorte que por aqui temos, sentenciar que esta absurda e intrusiva legislação (sou eu que o digo) não é um entorse ao Estado de direito, teremos a certeza disso se o Estado, ao abrir um processo que exige o levantamento do sigilo bancário, quase retira os direitos de defesa às pessoas acusadas? Nem vale a pena mencionar o ónus de prova a recair nos ombros do contribuinte acusado, que isso já é prática corrente no fisco e quase toda a gente o considera natural (a começar pelo presidente da república, o tal que, supostamente, é de "direita"). Se subitamente enriquecer e o fisco suspeitar da origem do enriquecimento, eu é que tenho que provar como enriqueci se eu é que sou acusado? Não me digam que isto é digno de um Estado de direito.


O Nanny state em que vivemos tem um comparsa a preceito: o Big Brother state. Todas as coisas más têm, contudo, o seu lado positivo. Eu proponho que se abra um concurso de ideias para a próxima intrusão legislativa assinada por quem nos monitoriza com tanto afecto. Assim como assim, já vigia os impostos que nos rouba, o dinheiro que depositamos nos bancos, o que podemos comer e beber, se e onde podemos fumar, o exercício físico que devemos fazer (na esteira do grande líder e dos seus espampanantes jogging de ocasião no estrangeiro) e sabe-se lá mais o quê. O que mais virá por aí? Quantas horas podemos ter os candeeiros acesos; o que podemos comprar no supermercado; por onde podemos, e a que horas, levar o muito poluente automóvel; quantas vezes, e em que posições (e, já agora, como quem) podemos ter sexo? E o mais que se possa imaginar. O mundo, então, será perfeito, imaculado, asséptico. Mas um lugar perigoso para se viver, um lugar perfeitamente irrespirável.


Sobra a interrogação final: terá sabido bem, à extrema-esquerda caviar, o lauto manjar do poder? Será que se vão habituar, ao poder?

21.4.09

“O cartão do cidadão é um autêntico certificado de cidadania”


Chamar-lhes-ia pedagogos do fatalismo. Gente que se tem a si mesma em elevada consideração. Acredito sinceramente que estes engenheiros sociais, diria, estes autênticos arquitectos que desenham a nova esquadria do homem aconselhável, se extasiam mais com os feitos que esboçam nas suas muito iluminadas cabeças do que com as putativas vantagens para as pessoas em que mandam.


A citação que dá corpo ao título deste texto foi retirada do auto-panegírico que consta da informação sobre o cartão único. Aquele milagroso cartão que agrupa os dados de identificação pessoal, de contribuinte, da segurança social, da carta de condução, de saúde e – pasme-se – até convida os utentes a arquivarem no chip informações sobre contas bancárias. Porventura para tornar mais ágil a diluição do sigilo bancário que veio com uma improvável chancela que uniu, num coro contemplativo, os socialistas do governo, a extrema-esquerda caviar e o presidente da república. Ora dizer-se que isto constitui um "certificado de cidadania", e ainda por cima leva com o adjectivo "autêntico", é de quem faz de si uma imagem bem maior do que a real.


Para começar, gostava de perguntar aos tais notáveis engenheiros sociais se conhecem certificados de cidadania. Andamos habituados, na arenga política, a que os agentes esbofeteiem uns nos outros as suas superiores credenciais democráticas. Como se a discussão política se resumisse a saber quem é mais democrata, ou quem fica diminuído no debate por causa das menores credenciais democráticas. Parece que a moda se enraizou de tal maneira que até a cidadania carece de certificados. E quem os passa? As diligentes autoridades. Tudo indica que sem os atestados garantidos pelo zeloso Estado andaríamos arredados da cidadania. Mal da cidadania quando há gente que assim pensa. O pior de tudo é que esta retórica se insinua e ganha raízes. A populaça, desconhecedora da verdadeira essência da cidadania, vai na conversa. Satisfeitos, empunham o cartão único, orgulhosos por serem cidadãos "autênticos".


Segunda interrogação: por acaso há certificados de cidadania mais autênticos e outros despojados dessa autenticidade? Devíamos ficar preocupados com o passado, isto é, o a.C. – que aqui seria "antes do cartão" –, pois os notáveis pensadores que idealizaram o cartão do cidadão admitem que dantes não éramos "autênticos" cidadãos. Não sei se interessa pedir responsabilidades ao passado, ou apurar os danos que suportámos por nos dizerem que já tínhamos cidadania plena quando afinal agora se descobre que só através do miraculoso cartão único é que passamos a gozar de uma cidadania "autêntica".


Se isto fosse uma interpelação aos pensadores do cartão único, pediria desculpa pelo incómodo de uma terceira interrogação, que seria a seguinte: por que nos asseguram que a tal "cidadania autêntica" vem ungida através dos bons serviços do cartão único? Podem adoçar a boca das massas com um cartão que condensa a informação que, dantes, exigia a apresentação de cinco cartões diferentes. A populaça pode ir no engodo, pois se têm à sua disposição um meio para cortar na burocracia devia agradecer, e demoradamente, a estes notáveis engenheiros sociais que tanto lhe facilitam a vida.


Só que há um porém a tornar a estrada sinuosa e traiçoeira. A possibilidade de cruzamento de dados informáticos aumenta as probabilidades de termos a privacidade devassada por um qualquer funcionário público. A simples possibilidade de isso ocorrer é tão grave que se sobrepõe a todas as maravilhosas vantagens do cartão único. Isto já bastava para suspeitar das intenções de quem concebeu o cartão único, até porque estes socialistas esmeram-se em medidas que inventariam mil e um controlos sobre a vida pessoal. Pode ser desconfiança metódica, mas ela vem alimentada por quem produz tantas medidas que são uma lança intrusiva na privacidade das pessoas.


O mais incompreensível é terem o desplante de entender o cartão único como um "autêntico certificado de cidadania". É lamentável que esta gente não tenha noções mínimas de cidadania. Da cidadania como é teorizada, a cidadania moderna que ultrapassa o espartilho do Estado. Ao assegurarem que a cidadania depende de cartões com a chancela das autoridades, têm uma visão paroquial de cidadania. O pior é que os cidadãos convencidos do mérito desta cidadania acabam, sem o perceberem, por nidificar numa cidadania diminuída. Proponho: uma reciclagem dos mentores destas coisas. Frequentem numa universidade qualquer uma disciplina, e só esta, que trate do contemporâneo entendimento de cidadania. No fim do curso perceberiam que a cidadania, a cidadania plena, ultrapassa, e em muito, as garantias dadas pelo Estado.


A bazófia tem destas armadilhas. A auto-contemplação tolda o discernimento.

20.4.09

Há uma arma para matar as saudades?


Alquimistas do passado, ansiais por uma salvífica arma que vos devolva o tempo arquivado. Debatam-se, esgotando o único tempo que têm para saborear, testando fórmulas todas gastas até que descubram que dos tempos idos não há regresso possível. Quando alguém vos diz que ouviu falar numa arma que liquida as saudades do tempo que se ausentou, contristados refugiam-se nas masmorras onde preparam a alquimia dos saberes que mantêm a chama viva das saudades.


Eu, que tenho é saudades do tempo que ainda hei-de descobrir, do que me refugio é dos laivos de saudades que irrompem à flor da pele. Posso estar enganado, mas acho que as saudades são um disfarce do presente. É minha alquimia outra tarefa, distinta da dos feiticeiros que se embrulham no manto das saudades: descobrir a prometida arma que mata as saudades. Não no sentido corrente da expressão, pois ficou convencionado que "matar saudades" é fazer uma incursão nas memórias que apascentam a nostalgia do passado, só para compensar o presente onde campeiam as amarguras. Matar as saudades, literalmente, trajar as armas que disparam os projécteis que ferem de morte as saudades.


No império do livre arbítrio, só resta respeitar as alquimias do passado por onde muitos vegetam. Como disse, as únicas saudades que noto em mim são as do tempo futuro. Não renego o tempo por que já passei, nem as recordações que estalam, dolorosas, no quarto do pensamento. Nem menos as recordações que são quadros onde repousam adoráveis paisagens. Nem estou interessado em fazer a contabilidade da existência, só para saber se nos pratos da balança pesam mais as recordações que interessam reter ou as que são remetidas ao precipício do esquecimento. O que alimentam as saudades, senão uma miragem? Pelos dedos das saudades, somos esboços de nós mesmos, retemperados pela ilusão do que ficou emoldurado lá atrás. E que já não tem regresso.


Não, não são as saudades a alquimia que ansiais. Não é pelo adocicado travo das saudades que trazem do já empoeirado tempo os episódios, as pessoas, as palavras que apenas dão sentido a um lastro de vida. O mergulho nas saudades vem tisnado com a nostalgia. As suas águas não passam de uma miragem. Por mais adocicada que a boca fique ao cabo do exercício das saudades, no fim do trajecto sobra apenas o tempo presente. O contraste gritante, deixando nas saudades um fio de amargura, indelével.


É por isso que devia haver uma arma para matar as saudades. Não para matar saudades; a sublime diferença está no "as" que intercala "matar" e "saudades". É que as saudades fazem toda uma diferença. Entre a duradoura prisão num tempo ausente, do qual a única certeza que há é a da sua irrepetível textura. E a ilusão do tempo que existe, e do que ainda está por conhecer, pelo durável e espesso manto das saudades que são um desperdício do tempo, do único tempo pelo qual as mãos hão-de passar. É por isso que as saudades são uma traição do tempo que haveremos de conhecer. Pois elas são uma faca que se insinua nesse tempo, de cada vez que revolvem nos tempos idos e subtraem consistência ao tempo presente, ao tempo vindouro.


A arma, se existisse, matava à partida qualquer arremedo nostálgico. Seria como um alarme a soar de cada vez que as saudades ecoassem, covardes do tempo com consistência. Nem que fosse uma cósmica arma, ou ela também produto de uma alquimia em contramão com a alquimia dos saberes que esmeram a inútil saudade. Só haveria, então, lugar a uma forma de saudade: a do tempo ainda por conhecer. Por ser imperativa a elegia do tempo, de sempre escasso tempo que a existência tem pela frente até que a morte, de uma vez por todas, liquide vida e saudades de um golpe só.

17.4.09

A sacerdotisa


Faltam-lhe os paramentos. Falta-lhe o sexo certo para poder ser o cura das almas tresmalhadas que o deixariam de ser se se deixassem guiar pela sua presciente sabedoria. É toda uma aparência de bondade. De uma simplicidade desarmante. Aquela candura que alicia. Tudo à primeira vista. Incansável a destilar lições de moral, que a sacerdotisa está bem lá em cima, num inacessível pedestal.


Discorre certezas. Daquelas que vêm com o perfume dos imperativos categóricos. Fica perplexa quando nota a ousadia dos que são dissidentes das verdades acertadas. Ai de quem perfure a tranquila moralidade sancionada pela sacerdotisa. É quando as falinhas mansas se transfiguram e deixam à mostra a perfídia, bem nutrida por uma inteligência que procura cercar os que trovejam inconveniências, sitiando-os na sua insignificância.


É então que cai a máscara e a sacerdotisa mostra do que é feita. É então que destila um cinismo impiedoso – tão impiedoso quanto contraditório com a sinecura sacerdotal que chama a si. A bondade esboroa-se na insidiosa desconfiança. É como se nela houvesse dois hemisférios em constante luta. Aquele que corresponde à imagem propalada por vezes sucumbe perante o hemisfério dos instintos, onde afinal reside a sua verdadeira essência. O outro hemisfério é só uma encenação onde orquestra a falaz imagem de si.


Eu tenho uma desconfiança metódica daquela gente que se acha detentora de monopólios do que quer que seja. Quando toca aos monopólios da ética, há uma imagem que povoa o pensamento: a da gente que exala "olhem para o que digo, não para o que eu faço". A sacerdotisa acha-se arauto da moral, penhora da ética, juíza suprema dos comportamentos alheios. Não lhe passa pela cabeça ser sujeita aos juízos dos outros, pois os outros estão todos e sempre um degrau abaixo da sua incomensurável sabedoria, nutriente da sobranceria e da erudição que se ostenta. Por sinal, o paredão da sua barragem intelectual abre brechas de vez em quando. Por onde se escapam vestígios de incoerência, por onde escorrem as metódicas insuficiências que denunciam a falácia da sua elevada erudição. Então a desorientada sacerdotisa socorre-se da arrogância como esteio da sabedoria e dos pergaminhos que ostenta.


Este injusto e muito imperfeito mundo não tem capacidade para lhe prestar justiça. O império da masculinidade é o preceito para uma religiosidade assimétrica, penalizadora das mulheres. O que porventura explica outro sacerdócio que persegue: o feminismo militante. Aliás, andam atrelados os dois sacerdócios. O da religiosidade progressista, pelas convenções estabelecidas que se alimentam de um arcaico conservadorismo. E o sacerdócio do feminismo persistente, pois se vingassem as teses das militantes do feminismo exacerbado (e já não vão impondo a sua vontade?) um dia teríamos sacerdotisas a celebrar eucaristias. O sonho supremo da sacerdotisa?


Por fim, poderia envergar sotaina. Engano-me: a base da pirâmide eclesiástica seria depreciativa de personagem de tão distinto calibre. De bispo para cima. Até para premiar a persistência das militâncias, o vanguardismo acima de qualquer suspeita. Não está ao alcance de qualquer um. Aos que andam três passos à frente do tempo corrente, o merecimento das comendas. A da sacerdotisa seria um bispado qualquer, com direito às genuflexões obrigatórias da coorte em redor. A caução necessária para ensinar a moral acertada, ajuizar sem contemplações os atrevidos em contramão do manual de ética com a sua chancela. Enfim, o mundo deixaria de ser uma injusta e imperfeita construção. É para isso que servem os cientistas sociais que chamam a si uma quixotesca missão: serem os arquitectos do novo mundo novo, mudado a preceito pelo traço fino esboçado a régua e esquadro lá nos seus alcantilados estiradores.


Ó sacerdotisa loquaz: por onde andas é de onde eu me quero ausentar. Mas uma coisa te agradeço: és uma referência do alto do teu dogmatismo. Uma referência por antítese.

16.4.09

Adenda: nem que fosse um só euro

"Entre-os-Rios: tribunal diz que custas a cobrar às famílias são de 57 mil euros e não meio milhão".

Esta justiça obscena


Quando a justiça é a sua própria negação, já pouco sobra em que acreditar. Quando a justiça aparece presa aos tentáculos do formalismo, ela é cega – no que de pior a metáfora pode conter. É quando se dá conta que os magistrados e os juristas são prisioneiros de quadros mentais muito rígidos. Os últimos, quando fazem leis que não se conseguem flexibilizar sob pena de lavrarem resultados obnóxios. Os primeiros porque, enquanto responsáveis pela aplicação da lei, fogem da latitude que o papel de aplicadores da lei lhes garante e assinam sentenças absurdas.


Vem isto a propósito do desfecho do processo da queda da ponte de Entre-os-Rios. Os familiares das vítimas queriam apurar responsabilidades. Estão no seu direito. Houve vidas ceifadas por incúria de alguém, que devia andar atento ao estado da ponte e, em vez disso, massajou a negligência. É o problema da responsabilidade do Estado. É demasiado abstracta. Aprendemos nos bancos da escola que "o Estado somos todos nós", mas na hora H nós todos não somos ninguém, ninguém identificável.


É a soberba do Estado. Ao fim de anos de idas a tribunal, ninguém é responsável pela queda da ponte de Entre-os-Rios. Nem sequer o Estado, que afinal não é tão salvífico e generoso como os seus aduladores consagram. Chega ao fim o processo e os familiares das vítimas são convidados a suportar dupla penalização: nem há responsáveis pela morte dos entes queridos e, para cúmulo do disparate, ainda são obrigados a pagar as custas judiciais. Meio milhão de euros, uma bagatela.


Eis os sinais enviados por este maravilhoso tribunal. Quem mandou àquelas pessoas serem familiares das outras que, naquela funesta noite, caíram às águas lamacentas do Douro? Até se pode ser mais cruel: por que andavam aquelas pessoas a passear naquele funesto dia, que estava um dia tão invernoso? Quem as mandou estar naquele dia e àquela hora em cima da ponte que estava por pinças? Foi um terrível golpe de azar. Parece que a manutenção da ponte em condições (um encargo do Estado) é um detalhe irrelevante. Acaba o processo e há três juízes que conseguiram perceber que não há gente que deva ser chamada à pedra pela catástrofe que se abateu sobre as pessoas vitimadas e pela dor suportada pelos seus familiares. Não é adorável a justiça com esta venda nos olhos?


Nunca fez tanto sentido dizer que a justiça é cega, como é simbolizado pela deusa Themis a segurar na balança onde se pesam as decisões justas. Aqui foi a cegueira que impediu de se fazer justiça. Não discuto os pormenores da ilibação do Estado, porque não li a sentença. Ainda assim, é-me difícil entender como pode uma catástrofe destas saldar-se pela inexistência de responsáveis – sejam eles de carne e osso, seja a responsabilidade endossada ao Estado. O que acho insuportável são os mesquinhos caminhos da justiça que apresenta a factura de meio milhão de euros aos familiares das vítimas, pois não conseguiram vencer o processo que tinham movido.


Às pessoas que viram partir de maneira trágica os seus familiares, engolidos pelas águas tumultuosas do Douro, saiu o tiro pela culatra. Numa terra decente, este patético Estado nem se devia defender do processo movido contra si. Limitava-se a reconhecer a culpa e a pagar a indemnização aos familiares. Mas esta não é uma terra decente. Não é um Estado decente, nem é, como se propala, "uma pessoa de bem". Esta é uma justiça que envergonha. É nauseabundo pensar que houve uma qualquer criatura que deu instruções a um advogado para apresentar defesa contra o processo movido pelos familiares das vítimas.


O pior estava reservado para muito tempo depois – pois, como é habitual, a justiça anda a passo de caracol. Mandam as regras: os derrotados em tribunal suportam as custas judiciais. Que são sempre muito elevadas, talvez em proporção da elevada qualidade da justiça que se pratica nos tribunais. Num ápice, em vez da indemnização a que teriam direito, os familiares das vítimas vão ter que desembolsar meio milhão de euros para os cofres do Estado. Tudo isto é de uma obscenidade que nem merece adjectivo qualificativo. É grotesco. Sinto vergonha por ter nascido nesta terra. E por causa do direito que, às mãos destes juízes, se faz torto.

15.4.09

Pena que não haja eleições todos os anos…


Ninguém inventa a pólvora nisto da gestão cuidadosa do ciclo eleitoral. Ninguém descobre a pólvora ao reparar na orgia de medidas que mais parecem rebuçadinhos atirados para a boca dos eleitores em véspera de importantes eleições. Não foram os incompetentes que nos governam que descobriram essa pólvora, decerto. Há-a por todo o lado onde haja eleições. É quando eleitoralismo e demagogia andam de braço dado.


Só nas últimas semanas, entre a bebedeira de medidas de última hora só para que os eleitores se encantem com a elevada proficiência do governo do "engenheiro", o meu bolso foi agraciado com duas: a devolução do IRS só vai demorar um mês; e a isenção do imposto municipal de imóveis (IMI) foi prolongada por dois anos.


Qual é a primeira reacção do eleitor desatento? Que governo tão generoso! Ainda por cima, nestes tenebrosos tempos de crise em que o dinheiro escasseia (já lá vou), sabem bem estes rebuçadinhos! Já não é preciso esperar meses a fio para que o fisco devolva o dinheiro do IRS que ficou retido do lado de lá. A malta dos impostos deve andar a fazer horas extraordinárias para a devolução do IRS ir parar às contas bancárias um mês após a entrega da declaração de rendimentos. Isso, ou contrataram um génio da informática que agilizou o processo de liquidação dos impostos de tal maneira que chega um mês para fazer o acerto de contas com os contribuintes. Que agradecem, penhoradamente.


O outro exemplo: em vez de seis anos, os loucos que se empenharam até ao tutano e por uma vida inteira para serem proprietários de uma modesta casa tiveram a boa nova de saberem que só ao fim de oito anos serão obrigados a pagar IMI. A boa notícia seria evaporar este imposto que é uma abjecção. O IMI significa isto: para sermos proprietários de uma casa temos que pagar uma verba anual à autarquia onde a casa está localizada. Ter casa é crime tão hediondo assim? Sempre dirão os da habitual condescendência com o socialismo em acção: quem não quer ser proprietário, só para não pagar este imposto, que seja arrendatário. Sim; se ao menos houvesse mercado de arrendamento decente.


Aos efeitos práticos destas medidas carregadas de fanfarra eleitoralista. Primeiro, é notável a coincidência de, em ano de eleições, se descobrir maneira de tornar expedita a devolução do IRS. Apetece tanto perguntar: e por que não era possível, em anos anteriores, devolver o IRS logo ao fim de um mês? São as notáveis coincidências, cirurgicamente agendadas para ano de eleições, como se estes esboços de governantes fossem encantadores de serpentes no uso da mágica flauta que hipnotiza o réptil. Segundo, o prolongamento da isenção do IMI apenas favorece aqueles que neste ano já teriam que abrir os cordões à bolsa. Para os demais, é apenas um mirífico balão de oxigénio. Não é boa notícia nenhuma, pois se não é mais cedo é mais tarde que vão abrir os cordões à bolsa. A boa notícia seria a extinção deste absurdo imposto – mas isto sou só eu a sonhar utopias impossíveis num chão que transpira a socialismo.


Tinha ficado em promessa lá atrás: dizem-nos que estes rebuçadinhos em véspera eleitoral se justificam por causa da crise e da escassez de dinheiro nos bolsos das famílias. Em que ficamos? Um moço de recados, o governador do Banco de Portugal, anda para aí a repetir que a crise terá o milagroso efeito de espalhar mais dinheiro nos bolsos dos cidadãos. Depois a prédica do governo do "engenheiro" afina por um diapasão diferente: falta dinheiro, venham daí alívios fiscais para o desafogo das famílias. Portanto: alguém anda a mentir.


O povo desatento terá a tentação de dizer, enquanto se desfaz em agradecimentos ao generoso "engenheiro", que é pena que não haja eleições todos os anos só para esta generosidade se repetir amiúde. Eu, mergulhado num tremendo mau feitio, porventura até preso a uma ingratidão que não se recomenda, nem assim darei o meu voto ao "engenheiro" e sua seita. Prova de que o eleitoralismo em comandita com a demagogia não consegue enfeitiçar toda a gente. Só cai quem anda distraído. Ou quem quer cair na esparrela.

14.4.09

Na cidade, as pessoas desconfiavam-se


Já não sabiam o que era simpatia. Não havia lugar à afabilidade. Só rostos fechados, as mandíbulas bem cerradas como se fossem o garrote que ampara a raiva incontida. Irrompia a frieza no relacionamento, até com quem era conhecido, até com as pessoas algo queridas – e quanto mais com o numeroso exército de desconhecidos. Dir-se-ia que as pessoas se gelificavam, imersas numa insensibilidade que era refúgio contra os sobressaltos vindos dos outros.


Cultivava-se a desconfiança. Havia sempre um olhar de soslaio para o que os outros diziam ou faziam. Era o temor das traições alheias que nutria uma maré cheia de desconfiança. O trato era agreste, as palavras desagradáveis quando dirigidas a desconhecidos, ou a conhecidos que ainda não tinham entrado nos umbrais do reconhecimento necessário. Era como se os outros fossem espinhos cravados na garganta de onde espumavam as rudes palavras, os gestos desabridos, o comportamento tão gélido como toda a vastidão antárctica. Parecia que as pessoas tinham desprendido de sorrir. De resto, sorrir era um verbo esquecido.


O solstício da grande cidade vinha tingido com a plúmbea tonalidade da antipatia. Por mais que uma certa pedagogia oficial semeasse os puros instintos, os sentimentos emproados à nobre condição, era como se as pessoas andassem sintonizadas por bússola diferente. Um coro que ecoava, persistente, mas que esbarrava na irredutível surdez das pessoas. Os incansáveis peregrinos dos nobres sentimentos, na sua vã esperança de trazer de regresso à humana condição o numeroso exército de gente descortês, começavam a debater-se com o seu próprio cansaço. Uma travessia num árido deserto, incapazes de dobrarem a indiferença das pessoas. A insensibilidade que as trazia para um patamar diferente de humanidade – ou a humanidade a reinventar-se sob a batuta do tempo que se fazia diferente. Esses peregrinos, a demitirem-se da condição que a si chamaram, exaustos.


E mesmo quando havia simpatia, mesmo quando diante estava alguém a exalar uma lhaneza contagiante, desconfiava-se. Haveria segundas intenções. Ou uma falsa simpatia, apenas uma afabilidade oportunista, a intenção de mercar coisas a embalsamar a artificial simpatia, a artificial cordialidade. Já ninguém acreditava que houvesse os supostos nobres sentimentos em estado puro. Quando irrompiam, irrompiam adulterados. As pessoas já não contavam pela essência que eram, só pelo interesse que delas adejava.


Alguma crítica nisto? Não. Apenas o desassombro de atestar o que desfilava diante dos olhos. Os tempos que mudam são a simetria dos diferentes zénites que marcam o compasso das vidas. Somos piores agora do éramos dantes? Somos piores, na grande cidade onde tudo se consome nas empedernidas almas, do que são os aldeãos? Não. Somos o que somos, pautados pelas vicissitudes, porventura tisnados pelas amarguras de outrora, pelos vários cadafalsos onde tombámos, sem vontade para mais inquietações. Será a ausente cortesia um alcantilado castelo onde se encontra o refúgio da amargura.


Ou será tudo isto um vasto campo onde floresce apenas a amargura. O perfume que exala desses campos é um perfume inodoro, a inspiração para a asséptica forma de ser onde as pessoas não passam de autómatos. De novo: só uma verificação do que os olhos vêem. As melodias que acompanham o troar dos tempos modernos são um lancinante grito, como se apenas houvesse rudes guitarras a berrarem um som industrial, o desapiedado testemunho das almas que foram ao congelador e se recusam a sair do congelado estado. Já foi tempo para os líricos cantos, as idílicas paisagens pontuadas por rostos cansativamente sorridentes, gente militantemente confiável, a cortesia no trato, a miragem da bondade quando os desconhecidos se relacionam. Já foi, esse tempo.


São as cores que mudaram, as melodias em mutação, a frieza da grande cidade como caução para novos estados de alma. Para novas condutas pessoais. Reescreve-se a moldura onde existe gente. Sem arrependimento.

13.4.09

A polícia de costumes da indumentária das funcionárias públicas


Será falta de originalidade, pois o tema foi tão exaustivamente tratado nos últimos dias. Mas não resisto a umas alfinetadas, tão risível a "determinação" de um punhado de superiores funcionários públicos muito preocupados com a moral e os bons costumes dos seus subordinados – em rigor, das suas subordinadas, em mais uma intolerável manifestação de desigualdade de sexos. E o que se passou, afinal? As funcionárias da loja do cidadão de Faro estão proibidas de usar minissaias, decotes excessivos, saltos altos, lingerie escura e perfumes agressivos – pelo menos enquanto estiverem ao serviço.


Como diz o outro, nem sei se hei-de chorar ou apenas soltar uma sonora gargalhada. Não fossem estes tempos de irrespirável restrição das liberdades com o cunho de formidáveis engenheiros sociais com socialista doutrinação, e limitava-me a rir. O pior é que até o Avô Cantigas que encabeça a lista da seita socialista ao Parlamento Europeu já sentenciou que não há nada de mal no dressing code imposto por regimento interno às funcionárias da loja do cidadão de Faro (mesmo que se tenha lembrado de uns exemplos que não lembram ao diabo, mas a autoridade académica serve para obnubilar as patéticas comparações, decerto).


Quando o episódio foi explorado a fundo, a comunicação social chegou à fala com uma senhora, dona de importante sinecura ("vogal do conselho directivo da agência para a modernização administrativa"), com um improvável nome: Maria Pulquéria Lúcio. À senhora apenas faltaria a farda militar para, lá do alto do seu importante púlpito, lavrar oficial justificação para que as funcionárias da loja do cidadão de Faro tenham as noticiadas limitações à indumentária. Disse que "[e]sta acção incide sobre várias matérias e, em particular, sobre o que deve constituir um atendimento de qualidade, que ajuda ou prejudica o relacionamento com os cidadãos", rematando que (e note-se como os atropelos à sintaxe continuam a fazer escola entre os fiéis seguidores do grande líder – o destaque é da minha autoria) "aspectos de postura pessoal foram abordados como importantes para uma imagem cuidada".


E por que razão estas restrições ao vestuário apenas se aplicam na loja de Faro? Desconfio que a D. Pulquéria é a consorte do comandante da capitania de Faro que nos idos do Verão proibiu o negócio das massagens em plena praia, ficando famoso pela tirada "sabe-se como começa uma massagem, só não se sabe como termina". Só podem ser casados um com o outro e devem ter imensos problemas com a sexualidade para tanto meterem o bedelho na dos outros. A D. Pulquéria podia perorar: "sabe-se como começa um atendimento quando a funcionária ostenta um excessivo decote, ou quando se insinua num entrecruzar das roliças coxas à mostra pela minissaia que traja, só não se sabe como esse atendimento termina".


Ora, não consigo compreender a fobia regulamentadora que não hesita em entrar pela esfera íntima de pessoas que só querem andar pela vida sossegadas. De que tem medo a D. Pulquéria? Terá descoberto que na loja do cidadão de Faro, e só na de Faro, estavam acoitadas doidivanas ninfomaníacas funcionárias? Tenho cá para mim que a D. Pulquéria vive atormentada com a possibilidade de as meninas e já não tão meninas funcionárias do atendimento se esquivarem com utentes a torto e a direito para as casas de banho do edifício, numa fornicação interminável que não só hipoteca a moral e os bons costumes como prejudica a produtividade dessa iconografia socialista que são as lojas do cidadão. Ou então a D. Pulquéria suspeita que a homenzarrada algarvia, e porventura a alentejana também, desataria a perder documentos só para poder regalar a vista diante do desfile de funcionárias lubricamente vestidas. Já percebi: a prudente e visionária D. Pulquéria quer impedir uma revisitação do episódio das "mães de Bragança".


Só não percebo isto: se as exigências de indumentária se explicam em razão de um atendimento, como dizer, "decente", de que tem medo a D. Pulquéria se as lojas do cidadão têm o monopólio do que por lá se faz? Estes fazedores de homens e de mulheres não param de surpreender. Hoje já se metem com a forma de vestir das funcionárias públicas. E ficámos a saber que é preferível as funcionárias cheirarem a cavalo do que aplicarem umas gotas de um, cito, "perfume agressivo". Que mais surpresas nos reservam para os amanhãs que faltam?

10.4.09

Os prantos


De que química são feitas as lágrimas? Quantos quilos de tristeza carregam singelas lágrimas que se desprendem dos olhos e aparam os poros do rosto? São as lágrimas um testemunho silencioso das penitências indesejadas? Haverá um dia, um dia só, em que não haja lágrimas derramadas neste mundo?


As pessoais consumições insinuam-se tantas vezes na sua torpeza. São o leito onde acamam as angústias que se riem, com cinismo, dos esboços de felicidade que esbarram nas aleatórias esquinas onde mora o desassossego. Calham à sorte – ou, dir-se-ia, em azar –, devastando as mansas planícies onde a existência se arrebatara. São punhais frios no contraste com a carne quente, a carne dilacerada pelos punhais traiçoeiros. Uma dor insuportável que, de tanto doer, deixa de fazer sentido. A certa altura, os adoradores da tristeza intransigente parecem viciados em dor, anestesiados por ela.


Sobram os prantos. São rios, lagos, oceanos – quem sabe? Onde se revolvem todas as lágrimas vertidas, todos os dias, por todas as desassossegadas almas do mundo. Uma torrente caudalosa que passeia a amargura sentida, os passos trocados da vida, os amores desencontrados, as perdas, a morte. Tingida por cores imensas, a pontuar a incomensurabilidade de sentimentos que têm entre si um denominador comum: sofridas vidas que desaguam em prantos imparáveis. As lágrimas incontidas que a couraça interior, por mais opaca que se afigure, não consegue reprimir.


Nas lágrimas derramadas há o sabor da melancolia dos outros. Ou da nossa, quando calha em sorte serem nossas as lágrimas. Estranhamente, há nas lágrimas um consolo interior. Pelas lágrimas destilam as mágoas que oprimem por dentro. É como se desatassem um doloroso espartilho que asfixia por dentro. As lágrimas são balsâmicas. É como se lavassem as amarguras que se levitam em pessoais consumições. Pudessem as lágrimas decantar os vestígios da melancolia; seriam remédios, a cura para o manancial de tristeza que teimasse em irromper, incontrolável. Só que as depurativas lágrimas não ocultam o que as trouxe. As lágrimas não afastam os pesares da existência.


No sal das lágrimas, o anti-gosto da existência. Ou talvez não. Pois não é verdade que precisamos da antítese do que procuramos para termos a certeza que degustamos o seu sabor? As lágrimas são o laboratório onde se prepara a alquimia da fortuna. Atestam o contrário da plácida existência que é ambição pessoal. No seu sacrário, as lágrimas vertidas embotam as angústias que foram seu fermento. A beleza do mundo está na contemplação dos contrastes, a virulenta valsa dos opostos, ir ao sopé da montanha só para deixar cair o corpo numa frenética queda livre precipício abaixo. Como podemos assegurar que gostamos de algo se jamais experimentámos o seu contrário?


Então as lágrimas são o atestado do céu bonançoso que é a ambição maior. São a caução de que houve, e voltará a haver, dias solarengos – se os dias solarengos forem a metáfora para a existência completa. É pelos desvios de outrora, e por aqueles que terão lugar doravante, onde todas as apoquentações tiveram seu trono, que descerra a acalmia dos dias vindouros. Será quando a memória das lágrimas ensina a degustar com toda a intensidade os instantes que merecem ser emoldurados nas recordações com sabor. Os prantos de outrora não o deixam esquecer: que não há perdão pelo desaproveitamento das alegrias. Elas devem ser arrebanhadas, sorvidas com sofreguidão, sem receio que se esgotem na dobra do escasso tempo. Se há lição nas lágrimas já vertidas, é que os arrependimentos apenas nutrem lágrimas quando trovejam, impiedosos, pelo interior do corpo.


Oxalá alguns prantos. Os que nunca neles nadaram nunca saberão o que é nidificar no seu oposto.

9.4.09

Podemos acreditar na justiça quando há juízes que se fazem políticos?


O problema não está só nos advogados. O problema da justiça – que anda com o nome enlameado junto do público – está além dos advogados, atinge a magistratura. Não quero correr o risco de confundir a árvore com a floresta. Às vezes é elevado o preço que se paga quando a mão escorrega, fácil, para as generalizações. Arrisco, ainda assim. O que me inquieta é que haja juízes que amanhã são políticos e depois de amanhã estão de regresso a magistratura.


Os esteios deviam ser intocáveis. Ia a dizer, esteios do sistema político, mas são alicerces que se enraízam mais fundo, bem além do sistema político. Diria, matriz do funcionamento da sociedade. Nos bancos das escolas e das universidades ensina-se que o maior legado da revolução francesa de 1789 foi a separação de poderes. Metaforize-se: cada macaco no seu galho; parlamento, governo e juízes são senhores das leis, da governação e da administração da justiça, respectivamente, sem interferências recíprocas. Por estes dias de crise da democracia representativa, com a espessura adicional da crise de lideranças porque os lugares apetecíveis foram parar às mãos de figuras menores, é mais urgente enfatizar a independência da justiça. À falta de confiança nos políticos, ao menos que sobre, como refúgio, a confiança nos juízes e na sua independência.


O mal é que nem neste esteio se pode confiar. Vêm de trás episódios de cumplicidades mal explicadas entre juízes e políticos, que depois alimentam decisões judiciais duvidosas que favorecem políticos. Recentemente, recrudesceram os relatos de intimidades sombrias entre gente da política e magistrados. É uma procuradora contra a criminalidade económica que tem relações familiares com gente ligada ao partido do governo. Ou um juiz que foi secretário de Estado de um governo do PS e que entretanto encontrou vantajosa sinecura num organismo europeu que coordena as autoridades judiciais dos países da União Europeia (Europol). Nas suas próprias palavras, este juiz terá dado uma "palavrinha" ao magistrado responsável por uma investigação de corrupção que chamusca a imagem de sua excelência o grande líder da ditosa pátria. Estas "palavrinhas" não são uma forma de pressão, ou pelo menos um condicionamento da liberdade do juiz que as escutou?


Não é minha intenção diminuir a cidadania dos juízes. Têm direito às suas preferências políticas, como lhes são legítimos quaisquer credos ideológicos. E também não me repugna a ideia de haver magistrados com ambições políticas, fazendo carreira e abocanhando cargos com responsabilidade política. Negar tudo isto aos juízes seria diminuir a cidadania a que têm direito em paridade com qualquer cidadão. Todavia, deve haver reciprocidade de responsabilidades. Se os juízes são, por estatuto ditado por lei (ou pela Constituição, não tenho a certeza), irresponsáveis, esse estatuto especial tem especiais consequências. São irresponsáveis porque não lhes pode ser imputada responsabilidade por erros de decisão quando assinam sentenças. Só assim têm margem de manobra para ditarem, sem constrangimentos, as sentenças que deles se esperam.


O que me confunde não são os desvios de juízes para a política. É o contrário: magistrados que puseram o pé na política e depois regressam à magistratura. Vêm infectados e a sua independência já não é a de outrora. Merece cabimento o adágio "à mulher de César não basta ser séria, também tem que o parecer". Repito: nada contra as ambições políticas de senhores juízes que se fartam da rotina dos julgamentos e querem contribuir para a governação da nação. Que se decidam: se querem passar a fronteira, não lhes devia ser permitido recuar. De outro modo, é a separação de poderes que fica hipotecada.


O exemplo do director da Europol que andou por aí em conversas de pé de orelha com o seu colega que investiga factos que supostamente envolvem o primeiro-ministro em actos de corrupção é sintomático. Avesso às proibições, até aceitava aqui uma excepção. Se os juízes com ambições políticas não têm a dignidade para não regressar à magistratura quando deixam de ser políticos, que isso lhes fosse vedado por lei. Se já nem a justiça é credível, sobretudo quando há políticos a cair nas malhas da justiça, em quem vamos acreditar? As togas depostas reforçam a sensação de descrédito.

8.4.09

A indecência da decência


Expoentes da moral ensinam à turba: todos temos que ser decentes. É quase um código de conduta "republicano" – como se republicano fosse a única forma decente de ser e de estar, resguardando aqui a rejeição da monarquia por ser anacrónica forma de organização do poder. E o que é a decência? O que é ser decente? Aos costumes, os impecáveis defensores da rectidão dizem nada.


No entanto, o conceito – o indeterminado conceito – está na moda. Por cá foi introduzido por moralistas de pacotilha que, diz-se, navegam à "direita" (José Carlos Espada). Mas quem se distingue a empregar a decência é uma certa esquerda moderada, uma esquerda vital sempre senhora das suas certezas, elas ali tão assertivas e sem possibilidade de interrogações. Clamam pela decência e logo se posicionam como pastores máximos da decência. Os que aparecem a ensinar a decência como código de conduta definem, por inerência, as balizas da decência. Eis o que me deixa desconfiado: não é inocente esta perseguição da decência, pois os que enxameiam discursos com decência são os empertigados mestres da decência. Imediatos juízes de comportamentos alheios. Eles e só eles capazes de determinarem o que é decente e o que arrosta o lamentável rótulo de indecência.


Todavia, falham por se esquecerem de delimitar o conceito. Não se dão ao trabalho de esclarecer o que é a decência. Sem a definição do conceito, como podemos saber se uma acção é decente ou indecente (atendendo aos critérios mantidos pelas luminárias que emprenham os ouvidos com as suas arbitrárias noções de decência, que fique salvaguardada a objecção metódica)? Proponho uma ajuda: porventura, a decência é um conceito indeterminado. Talvez não queiram admitir que a decência entra nos terrenos da subjectividade. Quando há relativismo a rondar à esquina, por mais que haja empenhada gente a esforçar-se por desenhar o mundo com a precisão da régua e do esquadro, os milímetros perdem precisão e a esquadria entorta-se. E logo neste mundo, tão heterogéneo nas ideias, tão variado nas lentes com que é focado.


Estes moralistas em potência dão exemplos de decência? Vão dando, à medida das conveniências e logo que se aprestam a mostrar como a sua ideologia é impecavelmente superior, quase como se fosse um imperativo categórico habitar nas suas alfombras. A decência é para onde sopra o vento. Percebe-se o método: quem se pode recusar a ser decente? E se a decência é um exclusivo da internacional socialista e dos seus ideólogos, é só juntar as peças do puzzle: é indecente não saltar para a barca da internacional socialista.


Indecente – se é que, por um momento, se pode captar alguma objectividade no conceito – é afiançar que existe decência e, caso a caso, assinalar com lápis azul o que é decente e o que escorrega para a indecência. Isto faz parte de uma sanha colectivista que irrompe com vigor, a retórica bem oleada dos imperativos sociais, de como o indivíduo se deve inclinar perante os interesses do grupo. A decência é mais um ingrediente para diminuir a autonomia individual. Curiosamente, há aqui uma analogia com o dogmatismo religioso que empenha a liberdade individual. Tal como na alegoria dos pecaminosos actos que diminuem a autonomia individual, remetendo os pecadores ao desconforto da culpa e às dores da consciência, os meirinhos da decência querem levar os indivíduos a idêntica sensação de culpa quando descobrirem que foram "indecentes" (para os padrões de decência fixados pela arbitrariedade dos meirinhos). Através da decência assim estabelecida, e do convencimento de que todos devemos respeito a essa decência, não passamos de marionetas nas mãos de gente que adora controlar as massas.


Apesar de não saberem definir decência, estes cansativos moralistas vão mostrando, episodicamente, o que é e não é decente. É uma bússola a que dou atenção. Sempre que essa bússola aponta para o norte, eu vou a caminho do sul. Quando os vejo a enaltecer a decência, só me apetece ser terrivelmente indecente. Mas quem são eles para se elevarem ao púlpito e decretarem, com uma autoridade moral que inventam para si mesmos, o que é decente e o que é indecente?

7.4.09

Está-se a tornar desporto favorito, ser processado por um irritadiço primeiro-ministro


Vai por aí uma revoada de processos interpostos pelo senhor primeiro-ministro, só porque dá de caras com opinião publicada que lhe é pouco simpática. O ar está cada vez mais irrespirável. Era o que mais faltava a opinião ser cerceada pelos humores do senhor primeiro-ministro. Não há quem lhe explique (nem o ideólogo do regime, o sabático académico Santos Silva) que esta exasperação remetida para os tribunais não cuida da tão sagrada imagem de sua excelência? Pela parte que me toca, que nunca nutri simpatia pela personagem, e menos ainda a partir do momento em que se convenceu da aura de timoneiro da pátria, estes episódios têm serventia: não me recordo de político de tão fraco calibre, político que me irrite tanto como este senhor que, consta, ainda vou ter que aturar mais cinco anos com o leme nas mãos.


Admito que isto já é cansativo – escrever, uma e outra e ainda uma vez mais, sobre a personagem. Só que a fobia de aparecer, a febre pela imagética impecável, como se governar fosse apenas um exercício muito bem encenado de composição de imagem, assalta os neurónios. Já há algum tempo que exerço a pessoal censura sempre que a personagem aparece na pose e com o discurso de delegado de propaganda médica (sem ofensa para os ditos): corto-lhe o pio, o dedo polegar pressionando o canal mais a jeito só para retirar aquela cara sabe-se lá porquê triunfante do ecrã.


Por estes dias é preciso ter cuidado com o que se escreve acerca do senhor primeiro-ministro. Pelos vistos, ele tem uma equipa numerosa a espiolhar a imprensa, um dia destes até os blogues, a separar o trigo do joio para saber quando há escritos ofensivos à sua integridade, honra e bom nome (não necessariamente por esta ordem). A sua indefectível admiradora, a directora da DREN, fez escola na estalinista espionagem de tudo o que se escrevera sobre a senhora. Já há precedentes. Não fosse este blogue lido apenas por quem o escreve, teria que reservar umas largas horas a rever as muitas palavras nada simpáticas que já aqui foram debitadas sobre o senhor. Ou talvez não. A honra não seria ser processado por um primeiro-ministro – que este o foi por acidente, só poderia ter sido numa terra que, em mediocridade, é fiel à imagem de quem a governa. Seria excitante ser processado pela personagem, não pela figura.


Por exemplo: podia vir aqui pedir emprestada a Mourinha apetência pelo narcisismo e indignar-me com o ranking elaborado por um grupelho de estapafúrdia gente ligada à "moda", pois o ranking colocava o senhor primeiro-ministro em sexto lugar entre os mais elegantes e mais bem vestidos em todo o mundo. Cá vem o narcisismo a rodos: numa pausa para amadurecer os pensamentos, até nem havia razões para indignação; ao invés, seria um pretexto para me envaidecer, pois teria a certeza que estava entre os cinco mais elegantes do mundo. Para logo depois me desligar da torrente narcisista e concluir: como se isso tivesse algum interesse.


A irritação solene que o senhor primeiro-ministro causa chega a ser patológica. Tanto que, já terá sido notado, me recuso a pronunciar o seu nome. E só o faço para não ofender o notável filósofo grego, que não tem culpa de, séculos mais tarde, outra figura pública ter abocanhado o seu nome, não lhe prestando a homenagem que merecia, atendendo à fraca têmpera que traz consigo. Quando chego ao ponto de comparar a sua elegância com a minha, dou conta de como esta personagem é doentia. Tenho que fazer uma promessa a mim mesmo: nada de noticiários na televisão ou no rádio, nada de jornais. A sanidade mental exige que seja uma ilha no conhecimento do mundo. Ou, um dia destes, este blogue ainda se transforma num blogue de fãs do anti-primeiro-ministro.


Não lhe quero dar essa importância, mais do que a que já compulsou em mim. Tanto assim que, dando azo ao voto niilista (isto é: votar num partido qualquer desde que não seja PS), nas eleições legislativas vou quebrar o hábito abstencionista e escolher, simbolicamente, um partido minúsculo qualquer (desde que não seja de esquerda).

6.4.09

Bater nos pequeninos, é tão fácil


Havia aqueles mariolas, todos gabarolas, que espalhavam a sua soberba superioridade entre os demais. Eram maiores que os outros meninos e faziam gala do tamanho para chamarem a si um reino. A brutalidade andava a par com muita ignorância – afinal a ignorância que explicava porque ficavam para trás, juntando-se a uma turma de meninos mais pequenos. Talvez essa ausente inteligência fosse o mote para o terror espalhado entre os pequenotes que, lá do sítio onde se refugiava a sua pequenez, se resignavam aos caprichos do tiranete.


Só que um dia um dos pequenotes, farto dos abusos, trouxe à escola o primo mais velho. Que tinha o dobro do tamanho do gigante, que então deixara de o ser. De repente, a coragem esfumou-se diante da altura do outro, maior que a dele. Expondo toda a sua bravura e coragem física; meteu o rabo entre as pernas diante da altura do outro. Bater nos mais pequenos, lá isso é que era fácil.


Lembrei-me disto ao ver a espectacularidade de uma operação stop montada pela GNR, que interceptou uns autocarros pejados de acnosos adolescentes a caminho de Espanha, excitados com o passeio de finalistas. Por acaso, só mesmo por acaso, naquela altura estavam a passar uns carros da televisão que filmaram tudo. Ai de quem diga que se tratou de uma encenação para inglês ver, pois assim se aprende que vivemos em segurança, resguardados pela diligente guarda republicana; nestes dias de muita sensibilidade à flor da pele entre a gente que governa, nunca se sabe se a dúvida sobre a operação da GNR não é razão de sobra para um processo por difamação.


No rescaldo da operação, a guarda republicana conseguiu apreender um punhado de haxixe que os ganapos tinham emalado para tornar o passeio numa festarola ainda maior. E fez-se gala disto, como se a zelosa GNR houvesse feito uma apreensão de droga daquelas que costumam dar direito à montagem do estamine para saciar os olhos da gente que gosta de tranquilidade e segurança, ali com os montinhos de droga entaramelados com muitas notas de gordo valor e armas e chaves de automóveis de gama alta. Mas não. Foram uns gramas de haxixe, que nem eram para tráfico, só para consumo dos borbulhantes adolescentes em pulgas para montarem a festança assim que desembarcassem na costa espanhola.


Eu vi aquilo, os senhores agentes da guarda republicana em atarefada lida e pose repleta de seriedade, e assentei a poeira das preocupações. A prova da competência estava dada ali, algures numa estrada a caminho da fronteira onde interceptaram os autocarros que transportavam tão perigosos meliantes. E, sinal dos tempos, entalados na reforma os habitualmente patuscos agentes da GNR, barrigudos e de farfalhudo bigode, quando muito ostentando uma quarta classe tirada à martelada. Agora temos agentes mais jovens, sem a face ruborizada pelo bagaço bebido ao pequeno-almoço, que já nem sequer se atropelam (tanto) com a gramática e a sintaxe como os seus antecessores. Gente muito profissional, que nem desvia o olhar das tarefas que lhes competem por estarem diante das câmaras da televisão, tão concentrados se encontram na importantíssima missão de descobrir uns míseros gramas de haxixe. Quem pode o menos decerto é capaz do máximo. O povo que se sossegue. Não há meliantes que resistam à proficiência de uma guarda republicana tão zelosa, tão eficaz, tão espectacular.


Outra vez: não sei se posso, porque isto anda perigoso e o timoneiro da pátria, tão ofendido quando alguém opina em seu desfavor, anda a processar a torto e a direito; não sei se posso especular só para interrogar se não isto não faz parte de uma campanha do bando de ineptos para, comme d'habitude nos ineptos, fazer gala com o acessório e deixar para segundas núpcias o essencial. Desconfio. Por ver as câmaras da televisão por perto. E, já agora que se especula, como terá a eficiente GNR sabido que naqueles autocarros se fazia transportar tão elevada dose de haxixe? Cá vai uma teoria (da conspiração): entre os turistas a caminho da algazarra, um jovem que é filho de um militante da confraria do governo, este último em bicos de pés, ansioso por uma sinecura mais elevada. Esse jovenzinho foi o delator.