29.12.17

Casa da partida (agora, que o ano diz adeus)

Indignu, “Chovem Pedras de Fogo do Céu”, in https://www.youtube.com/watch?v=RO0tVrAsTAA  
Um shaker de não convicções. É assim o ano que diz adeus e a tendência (anémica, contudo) de meter os trezentos e sessenta e cinco dias dentro do shaker, agitando a solução aquosa para auferir o sumo que é sua extração.
É tarefa inglória, improcedente. É como se um manto de irresponsabilidade tivesse coberto os dias antecedentes do ano (todos os demais), ou se tivesse provimento deitar o olhar para trás do ombro e, num assomo de lucidez (que se julgará ausente no resto do ano), congeminar um célere inventário do ano que está para dizer adeus. Desconfio dessas inventariações. Primeiro, por serem apressadas. Segundo, porque transmitem a impressão de que durante os anteriores trezentos e sessenta e quatro dias a hibernação tomou conta de tudo e o olhar adormecido não era capaz de se sentar sobre o acontecido e dele tirar as ilações competentes. Terceiro, é habitual que os inventários do ano terminado sejam o matrimónio perfeito com promessas de resoluções para o ano vindouro.
Estas juras são a maior falácia a que um mortal pode soçobrar. A menos que nada se aprenda do passado e a sucessão de anos seja uma monótona rotina em que se olha de esguelha para o ano que diz adeus e o ano vindouro seja promitente das coisas diferentes que, por diferentes serem, dão a entender que a imperfeição do observador continua a ser um imponderável que estorva o sono. Ora as imperfeições não são motivo de sobressalto. São nosso património genético. Aproveitar a transição entre anos para prometer que o ano nascituro é a equação em falta para a dobra das imperfeições, atirando para cima do ano nascituro a responsabilidade de que ele se alija com legitimidade. Às pessoas que assim se comportam escapa-se-lhes a noção do seu arbítrio; pelo contrário, as coisas emalhadas em sua rede são, invariavelmente, fruto de circunstâncias exteriores.
A dobra do ano é uma oportunidade que se põe a jeito. E as pessoas, em vez de julgarem que a casa da partida coincide com o ano nascituro, deviam ter a ousadia de a considerar sinónimo do ano que diz adeus. Provavelmente, dissipavam muitas angústias e pesares que locupletam o sono.

28.12.17

Oito minutos para o futuro

Massive Attack, “Pray for Rain”, in https://www.youtube.com/watch?v=pvu2iQXJ30s    
Espadas embainhadas. Estaria a capitular? Uma voz sem rosto murmurava: “faltam oito minutos para o futuro.” Mas ele não sabia o que era o futuro. Não queria saber. Não se intimidava com os planos que (diziam alguns, certos do seu credo) o futuro tinha para si. Não acreditava.
Ao mesmo tempo, uma parte oculta de si era tomada de assalto por dúvidas: e se o futuro fosse medonho? Era legítima, a suspeita; a voz sem rosto repetia, cansativamente, “faltam oito minutos para o futuro” – e isso era dito como se pesasse como uma ameaça. De repente, tomou as medidas ao medo. Ao mesmo tempo, as partes maioritárias de si (dir-se-ia, as racionais) nem sequer conseguiram racionalizar o estigma do tempo não respeitado pela voz sem rosto que não parava de murmurar “faltam oito minutos para o futuro. Faltam oito minutos para o futuro. Faltam oito minutos para o futuro. Faltam oito minutos para o futuro”. Não era possível que o tempo estivesse suspenso para a voz sem rosto repetir à exaustão que faltavam “oito minutos para o futuro”. Se tal fosse possível, era como se o futuro estivesse parado na medida do tempo, à espera de uma reação sua às solenes e ameaçadoras proclamações da voz sem rosto, ou que um plutocrata do tempo fizesse descer a espada do futuro sobre a sua cabeça.
Deixou de ouvir o murmúrio a percutir no pensamento. A voz acantonara-se no silêncio. Se calhar, o relógio, em contagem descendente, tinha sido posto a correr. Já não faltariam oito minutos para o futuro. Talvez uns sete, ou uns seis se, entretanto, o tempo correu mais depressa do que a sua temporária anestesia. Sentia-se a caminhar para o rebordo de um precipício. Se os augúrios da voz silenciada estivessem certos, o percurso para onde fora empurrado afigurava-se sem remissão. Supôs que não adiantava tomar diligências para contrariar o relógio em contagem descendente. Era como uma cabeça de gado a caminhar para o golpe fatal no matadouro – e foi então que indagou se o futuro que estava em contagem decrescente não era metáfora disso representativa. “Não, não quero morrer. Ainda não” – vociferou com a voz tingida pelo pânico, enquanto continuava a sentir os pés maquinalmente a dirigirem-se para o precipício sem saída.
Foi quando ouviu do outro lado, escondida atrás de uma montanha, outra voz, não em murmúrio, a informar: “são vinte e três horas e cinquenta e dois minutos.

27.12.17

O segundo rosto

Julia Holter, “Night Song”, in https://www.youtube.com/watch?v=DBHohBg5xRQ    
Se é dado o caso de o rosto ser uma máscara, encerra-se, sob o rasto fingido, um segundo rosto? Podia dizer-se que não; que se trata apenas de um refúgio necessário contra as intermitências do mundo, não se sabendo, a um determinado momento, se o mundo está numa maré a favor ou se cuidou de conspirar contra a pessoa. O segundo rosto é a cara imperativa que se defende dos contratempos, das agulhas inesperadas, dos arbustos estéreis, dos vultos transfigurados que assombram os sonhos, das facas que esvoaçam, dos mares tumultuosos. Uma máscara, necessária contra as amaldiçoadas convulsões que apanham a pessoa desprovida de armas de defesa.
E se a ordem dos fatores estiver invertida? Se o segundo rosto for o rosto principal, o rosto não tomado pelo fingimento, o rosto que descerra o autêntico eu? Porque não convém dar o flanco e mostrar de mais a autenticidade do indivíduo. O rosto, o rosto que se vê, não pode ser a montra das emoções que se soerguem à flor da pele. Esse rosto tem de ser um artifício. Porque a pessoa desconfia que todos os demais rostos, descontando os dos ingénuos, são rostos disfarçados. Não contemplam a essencialidade do indivíduo. São rostos teatrais. Fingidos. Como fingida é a imensa teia composta no tear das convivências. O rosto que se põe à mostra do olhar outro é uma urdidura.
Lá atrás, bem escondido, acessível depois de se raspar a teimosa camada de verniz que o encobre, o segundo rosto. A personificação do eu tangível. Um rosto raro. Um rosto necessariamente escondido. Sem ser falsário: na escala dos imperativos, e nos interstícios do amplexo de fingimentos tecidos entre todos (com exceção dos ingénuos), não é reprovável o segundo rosto escondido sob a dura camada que está à mostra – o rosto que se vê; todavia, o rosto fingido.
A meio de um sono sobressaltado, uma interrogação impertinente: não terá valimento maior ser ingénuo, decapar o rosto primário, deixá-lo caiado com as curvas e poros de que o rosto é autenticamente feito? Ou seja: transfigurar o segundo rosto, dando-lhe a cepa do rosto primeiro e fazendo-o coincidir um com o outro. Talvez a ingenuidade não seja mal pensada. Na complexidade da teia que se entretece nas convivências, quase nunca somos o rosto que se dá a ver. A páginas tantas, é insegura a fronteira entre o rosto autêntico, o primeiro rosto e o segundo rosto. É volátil aquilo que somos – e apanhamos o comboio irrecusável das existenciais dúvidas.