31.7.15

O país previsível

The Stranglers, “Get a Grip (on Yourself)”, in https://www.youtube.com/watch?v=O0q3ZUNh9lI
O progresso era a sintaxe da previsibilidade. Os líderes tinham um pacto de não agressão por cima das diferenças entre eles, eram o esteio da previsibilidade. Tudo tinha de ser previsível. Se não, as pessoas ficavam inquietadas pelo imprevisto.
O imprevisto era como um quarto escuro, um território nunca dantes caminhado, cheio de perigos a adejar sobre os pescoços inocentes dos que para lá fossem atirados. Era função dos líderes arranjar soluções que liquidassem os quartos escuros. As luzes tinham de estar todas acesas, sempre acesas. O resto ficava por conta do sortilégio da máquina feita de engrenagens que se encaixavam milimetricamente umas nas outras. Os mandantes instruíam operários bem adestrados para manterem as engrenagens devidamente oleadas. E para haver um inventário suficiente de peças sobressalentes em armazém, para nunca faltar dinâmica à máquina. Ela funcionava como um autómato. A páginas tantas, a máquina como que ganhou vida própria. Mexia-se sozinha, com os hábitos instalados pelos comandos enviados ao longo do tempo, os comandos que davam corpo ao sagrado princípio da previsibilidade.
Se havia dissidentes que pretendiam destruir a previsibilidade, as autoridades lançavam caça ao homem. Se preciso fosse, era atirar a matar. Porque a maioria dos cidadãos – a esmagadora maioria dos cidadãos, era repetidamente argumentado – queria que o país continuasse a vogar nas águas previsíveis. Não interessava que o produto da previsibilidade tivesse fracas credenciais. Que houvesse muitos problemas por resolver, talvez alguns causados pela inércia que se instalou, estruturalmente, por causa do previsível instalado. Quem ousasse sair três passos ao lado do protocolo estava condenado ao isolamento. Uma palavra em desabono do previsível estado de coisas era julgada em tribunal marcial como se fosse crime de traição.
Talvez a maioria a caucionar a terra do previsível fosse mesmo, em coro com a propaganda oficial, uma maioria esmagadora. Era a dependência instalada a funcionar, o efeito contaminante dos custos de proclamar a necessidade de efeitos inesperados para enriquecer a vida em conjunto. O país previsível era uma modorra. E uma masmorra, sitiando as pessoas numas algemas que não deixavam pensar. A liberdade era uma figura de estilo.

30.7.15

Xeque-mate

Volstad, “É um jogo”, in https://www.youtube.com/watch?v=zBXV7Dr5CPM
Jogue-se o jogo. Os jogadores sabem do risco que tomam – e não há seguro que cubra o risco que vem pelo meio. É o jogo de tudo ou nada. Os intervenientes estudam as jogadas a preceito. Um passo em falso já pode não ter remédio. Estão frente a frente e mexem as peças com a destreza de estrategas. E pergunta-se: quanta da lucidez não se esconde das jogadas preparadas diante de tanta pressão, perante a hipótese de se ser derrotado e, com a derrota, se apresentar o fim sem remissão?
Os jogadores anseiam proclamar a desejada palavra que liquida o adversário: “xeque-mate”. É quando o jogo termina. O adversário encurralado, sem saída possível, ou a saída deste acosso final constituída simples impossibilidade. É o fim deste jogador. No jogo não há contemplações. Os dois intervenientes sabem ao que vão. A cortesia termina quando se cumprimentam na véspera da primeira jogada. Depois não há concessões. Nem misericórdia: nenhum dos jogadores pode esperar semelhante ato piedoso como contrapartida. E como o que está em jogo é questão de sobrevivência, todas as jogadas são sopesadas com prudência. É um jogo de paciência. Não se esperam estocadas finais quando o jogo vai até a metade.
É um jogo imprevisível. As manobras vãs podem ter o condão de iludir o adversário, deixando-o extasiado com a vantagem, distraindo-o com os louros extemporâneos. Mas o outro interveniente também é sabedor dos meandros do jogo, sabe medir o pulso às manobras do oponente. Nisto, podem cair em impasse. Podem ser sensíveis ao risco, sabedores do efeito do xeque-mate caso seja proclamado pelo adversário. O jogo pode-se arrastar em participando dois empatas sem propensão para o risco. O impasse termina em empate. A nenhum é dado dizer “xeque-mate”.
Adiam a contenda. Combinam novo jogo. Pode ser que da próxima um deles acorde com disposição para o risco, apanhando na curva o outro que não contava com a nova personalidade empossada pelo adversário. Para à segunda ser de vez. Até que o vencedor prove o veneno que deu a provar e seja a próxima vítima de um xeque-mate. E assim sucessivamente: dos que vierem ao palco do jogo, a nenhum é dado escapar ao fatalismo do xeque-mate. O xeque-mate não deixa nada de pé. E, mesmo assim, os jogadores inebriam-se com a hipótese de à sua boca subir a palavra “xeque-mate”.

29.7.15

Errata

This Mortal Coil, “Fyt”, in https://www.youtube.com/watch?v=WV6cn1Fo8UM
Não uses óculos escuros. Não ocultam o que vês, já se sabe. Nem que os uses à noite, pretendendo embaciar o que te é exterior, como se houvesse um milagre que limpasse os vestígios que deixaste atrás de ti.
Sobressalta-te, esse legado. Sobressalta porque, olhes para onde olhares, não recolhes pecúlio que te agrade ao orgulho. E, todavia, manténs recusa (que julgas inadiável) em sondar as causas de todas as inquietações. Dividido entre um eu que se projeta para fora de si. E as profundezas do ser, onde tentas asfixiar o que julgas fantasmas, mas que são apenas os aprendizes de ti à espera da primeira oportunidade para virem à superfície. O outro eu, o que devolves de ti ao exterior, vive em negação. Esse eu sabe que, olhes por onde olhares, não encontras semente nenhuma de onde nasça um módico de orgulho. Mas achas que não. Convences-te de uma existência paralela, como se vivesses na verticalidade de ti mesmo. Não percebes que é nessa paralaxe que nidificam as inquietações que te consomem, sem saberes dar conta dessas consumições. Pois insistes em mandar para o olhar dos outros um eu que não é tua identidade.
Ocasionalmente, um sussurro vindo não sabes de onde vocifera contra a tua ilusão. Protesta contra o teu instinto, por ser um instinto suicidário, pois ninguém te faz mal maior do que tu mesmo nessa negação que te faz contumaz. Esse sussurro convida à humildade de uma retratação. Pode ser um exercício doloroso, olhando ao que ficou ditou para trás. A impenitência que se confunde com uma cega teimosia não te dispõe ao desafio servido pelo sussurro. E a voz que sussurra é presença mais assídua, até dos sonhos se faz intrusa.
A tua divisão interior é mortificação de que não dás conta. Insistes no que julgas ser, sem reconhecimento da necessária redenção. Mas não te assustes: a redenção não é de ti para o exterior, és tu que precisas de achar os rudimentos da redenção de ti mesmo. Enquanto teimares em recusar o que te sussurra a voz sem rosto, não saberás quão necessária é a errata vinda de dentro de ti. Até lá, vais sendo apenas uma procrastinação do que és potencial.

28.7.15

A valsa dos pés descalço

Gary Clark Jr., “Numb”, in https://www.youtube.com/watch?v=NNH6PX-2euM
A ira desagua num pântano. Podem os seus fundamentos ter fundamento. Podem os olhares contristados lamentar os atos que pertencem à mais pura injustiça. Todavia, não podemos nada contra as arbitrariedades dos outros. Não podemos domar a sua indigência. Muito menos quando somos tomados por vítimas dessa indigência.
Às vezes, as águas de um rio separam-se. Formam um delta, espalhando-se por múltiplos braços de água antes de encontrarem o leito do mar onde se extinguem. Talvez um acidente da natureza tenha forçado a separação das águas, incompatíveis a partir de certa altura. Ou porque uma das metades cavalga vertiginosamente enquanto a outra deseja águas calmas que precedem a ancoragem na foz. Ou porque uma das metades não se satisfaz com a ideia de vogar num caudal em forma de planície, arroteando um curso entre curvas sinuosas, enquanto a outra se contenta com a planura da paisagem. Ou porque a primeira das metades discorda do olhar dominante da outra metade que deixaria de ser sua parceira. E nem importa julgar os imponderáveis que fermentaram a separação dos braços do rio. A certa altura, cada um está nas mãos do destino que quis perfilhar. Se um dos braços encontrou a indigência, a frivolidade, a errância, a inconsequência, ao outro restava a resignação. Ao início, uma certa impotência que medrava em raiva.
E se observamos como dançam os pés descalço, os que se ensaboam numa indigência que nos agride o olhar na sua insolência; e se julgamos, talvez acertadamente, que somos porventura as vítimas de uma soez injustiça; é natural a raiva que toma conta dos sentimentos, numa convulsão interna que parece quase tudo destruir em seus alicerces. O tempo que passar será o ajudante que precisamos. Para aplacar a ira, para perceber que a valsa dos pés descalço, num espetáculo degradante de indigência, é o palco digno para os que não sabem ser dignos se si mesmos.
Saberemos, então, que a raiva é um desperdício. Uma distração da grandeza que somos dentro de um império nosso.

27.7.15

Para que servem as rugas?

Xinobi, “Real Fake”, in https://www.youtube.com/watch?v=3kcxdgA90Hk
O mais novo: Li há dias uma frase de Heraclito que me pôs a pensar: “nunca cruzarás o mesmo rio duas vezes, porque outras são as águas que correm nele.”
O mais velho: E por que ficaste a pensar no assunto?
O mais novo: É que já ouvi tanta gente, mais experimentada, a elogiar a nossa capacidade para aprender com os erros.
O mais velho: E então, o que escapa à tua compreensão?
O mais novo: Se o filósofo observa que as águas são sempre diferentes, quando chegamos ao rio o rio já não o mesmo. A não ser no nome.
O mais velho: Não estou a perceber a contradição.
O mais novo: Se Heraclito está certo, desfaz-se a ideia, tão popularizada, de que ninguém comete o mesmo erro duas vezes.
O mais velho: As circunstâncias não se repetem, apesar de o homem voltar ao mesmo lugar e julgar que se depara com as mesmas circunstâncias.
O mais novo: Não percebi.
O mais velho: Heraclito explicou o sentido da frase. O que tem a aparência de ser uma repetição do erro não o é, pois nem são as mesmas as águas que correm no rio, nem a pessoa que estaciona diante do rio é a mesma.
O mais novo: Eu não continuo a ser eu hoje e daqui a trinta anos?
O mais velho: És a mesma identidade. Vais notar que já não és a mesma pessoa. O tempo tem esse sacrilégio. Muda-nos por dentro, por mais que queiramos ser os mesmos por fora.
O mais novo: Voltamos à experiência como capital das pessoas...
O mais velho: Podes chamar o que quiseres. Experiência, madurez, aprendizagem. Ou até personalidade que se transfigura à medida que o tempo corre.
O mais novo: É impossível cometer o mesmo erro duas vezes?
O mais velho: Sim. Porque houve mudanças, entretanto. Mesmo que aches que a decisão que tomas é igual à que te levou ao erro anterior. As águas do rio são diferentes. O rio, naquele lugar, pode ter adquirido outra morfologia. O homem que se confronta com o rio pode ter o mesmo nome, pode-se julgar estruturalmente o mesmo, mas não pode continuar a teimar no erro de diagnóstico. Esse homem já não é o mesmo de outrora.
O mais novo: E isso serve-me de conforto? De todo o tempo que avisto no horizonte, fico respaldado pela ideia de que não vou reiterar os erros que olhar por detrás do ombro?
O mais velho: Talvez nada disso interesse. Os equívocos fazem parte da nossa espécie. Mesmo que se esconda uma intencionalidade (porque no bom juízo não admitimos que erramos de propósito), o erro é genético.
O mais novo: Tenho de aprender a conviver com decisões erradas. Não é isso que faz as rugas?