31.8.05

Ai as promessas eleitorais…


O prometido socialista à câmara municipal do Porto anda numa azáfama, desmultiplicado por cartazes mil pelos recantos da cidade. Valha a verdade que os retoques de imagem dos conselheiros de marketing político não atingem o ridículo daquele que foi o seu antecessor na corrida camarária. Soube-se, na ocasião, que até numa peruca crescem cabelos brancos, imagem de marca que se impõe pela respeitabilidade que exara. Ao actual candidato apenas foi feito um face lifting: uma cara esburacada por bichas apanhadas algures na infância surge agora lisa como rabinho de bebé. Pudesse o comum mortal descontente com a sua imagem recorrer a estes magos que fazem desaparecer os traços que menos gosta de ver ao espelho…

Não é a imagem que interessa. Mais o discurso, que nestas alturas passa pelas promessas, pelas vãs promessas que embrulham as campanhas eleitorais num manto de demagogia. Os políticos como os vendedores de banha da cobra, sucedâneo de feirantes sem escrúpulos que prometem vender mercadoria de primeira água quando sabem tratar-se de bugiganga. Não é novidade, quando somos assaltados pela poluição visual que enxameia a cidade em tempos de campanha eleitoral. Promete-se muito. Muito mais fica por cumprir, quando chega o momento do deve e haver final.

Assis tenta captar as simpatias dos eleitores com promessas sintetizadas em locais estratégicos. Ao povinho, que se quer seguidor que nem um rebanho acéfalo, interessa puxar o lustro com a profusão de projectos e obras. O candidato cor-de-rosa não foge à regra. No cartaz onde expõe as promessas no sector da economia, três pontos. Gostava que me elucidasse o que é um "media (sic) parque". Talvez seja uma pedrada no charco, lançada pela cabeça brilhante deste político.

Antes disso promete um "polo (sic outra vez) empresarial de novas tecnologias". Por enquanto vou deixar de lado a questão do financiamento, de quanto nos custariam brincadeiras como esta se o senhor fosse eleito (coisa que parece ter poucas probabilidades). Registo que Assis quer construir algo para colocar o Porto no mapa das indústrias de ponta, ao estilo Silicon Valley. Chama-se a isto pôr o carro à frente dos bois. Pois se na cidade há uma desertificação de unidades fabris, por hoje exigirem espaços de grandes dimensões que não se encontram na exiguidade da cidade, como pode meter o Rossio na Betesga? E se a zona não é conhecida por possuir indústrias que se distinguem pela tecnologia avançada, para quê criar este pólo? A resposta é simples. Das duas uma: ou para ficar deserto, como aconteceu com o incrível edifício transparente; ou é uma daquelas promessas para enganar o patego que, em massa, elege quem nos governa. Para inglês ver, em suma.

O pretendente a edil promete ainda um centro de congressos que se pode transmutar em pavilhão multiusos. Não há quem lhe sussurre ao ouvido que este é um país à míngua de dinheiros? E que o escasso dinheiro não pode ser desbaratado em projectos faraónicos? O Porto está entre Leça da Palmeira e Santa Maria da Feira, onde já existem dois centros de congressos. Para quê construir outro no Porto? Pela mania das grandezas? Para depois este - ou um dos outros centros de congressos - ficar deserto na maior parte do tempo? E depois há a funcionalidade alternativa: um pavilhão multiusos. Se temos o Pavilhão Rosa Mota, onde se continuam a organizar competições internacionais (campeonato da Europa de hóquei em patins; importantes jogos de voleibol), para quê criar de raiz esta infra-estrutura? São perguntas que só têm uma resposta: a demagogia que veste os políticos em tempo de campanha. Uns mais do que outros, em alguns raiando o limite do absurdo. Como é o caso do senhor que se propõe liderar o Porto.

E depois há o risível da incoerência em que mergulha. Não são estes os lídimos representantes das "preocupações sociais"? Não são eles que se desdobram em vácuas declarações de apoio aos pobrezinhos, que prometem mundos e fundos para combater a miséria que campeia por aí? São os mesmos que depois prometem, sejam eles eleitos, enterrar estupidamente dinheiro em obras megalómanas, numa ostentação incompreensível. Desviassem essas verbas para as tais "preocupações sociais" e evitavam cair na tentação da incoerência - e seriam mesmo pessoas com preocupações sociais, não apenas no doce remanso da retórica.

30.8.05

O vaidoso leitão que se passeia, deitado na bandeja, à frente dos comensais que espumam água da boca


Em menos de um mês, por duas vezes assisti ao espectáculo macabro. Primeiro na Festa da Cerveja, depois na Feira de Artesanato, sempre no Passeio Alegre – onde o Douro vem repousar nos braços tormentosos do Atlântico. Dizem-me que é estratégia de marketing da reputada casa que confecciona os bacorinhos. A espaços, os recos, que mal chegam a ter uma impressão da vida, desfilam esticados e prontos a degustar, rua fora, perante a exaltação das papilas gustativas dos comensais.

Dizem-me que se trata de uma inteligente estratégia de marketing. O empresário que se especializou nos leitões sabe que temos mais olhos que barriga. A melhor maneira de atrair a clientela é organizar o desfile dos porquinhos, com a sua pele bronzeada pelo tórrido forno. Eles passam, deitados numa travessa de madeira, numa lentidão bem estudada, mesmo à frente dos olhos de quem se passeia para afagar o estômago. Inteligente estratégia de marketing, repetem-me. Ou concorrência desleal; ou falta de rasgo dos outros restaurantes, por não terem a sagacidade de encontrar um chamariz deste calibre.

Não adiro à tentação. A “estratégia” não me é destinada, pois leitão é carne que não entra pela minha boca. Sempre me custou saber que os pobres leitões nascem para, pouco tempo de vida depois, estarem fadados para embelezar uma travessa, enfeitados com gomos de laranja. Para delícia de quem se amesenda na lúgubre expectativa de lambuzar o sentido gustativo com a iguaria. Na repetitiva covardia de quem se mantém, a custo, carnívoro, sempre vi o consumo dos bacorinhos como manobra de horrendo infanticídio.

A descoberta do empresário da restauração assenta que nem uma luva à nossa feição animalesca. A gula vence todos os demais predicados dos sentidos, derrota mesmo as barreiras que a racionalidade pudesse erigir, fustigando-nos pelo dó de alma que é comer um inocente, infante animal. A gula pode com tudo isto. É o império do sentido gustativo, apadrinhar o paladar com o apetitoso bacorinho que se revolve entre os dentes, a língua e as gengivas, para prazer das células que captam o gosto. Não importa que haja algo de macabro na ceifa de vida de um infante animal. Outra vez: é a cadeia alimentar, um fruto da natureza. Há animais que existem para servir os prazeres (ou as necessidades) humanos.

Nem a voraz gula é obliterada pelo deplorável desfile dos leitões rua fora, como se tratasse de uma passagem de modelos. O povo celebra a sua imbecilidade, respondendo ao chamamento de um dos seus pares que teve a “inteligência” (esperteza saloia) de organizar o desfile. Tudo cuidado ao pormenor: as iguarias podiam entrar no recinto de forma mais discreta, directamente para o estaminé em causa. Não, a “estratégia de marketing” foi muito bem pensada: os bácoros entram pelo lado oposto da rua, atravessando todo o recinto em pose triunfante. Quando, no fundo, o que aqui triunfa é a esperteza saloia do empresário e a bestialidade humana, que não se coíbe de aplaudir de pé enquanto os olhos antecipam os prazeres do paladar. Não sem antes a horda se deslocar, em hipnose colectiva, à barraquinha dos leitões.

É a sede consumista, bem nutrida pela fobia capitalista que nos cerca por todos os poros, dirão os arautos da desgraça. Em réplica, direi que é a simples natureza humana a funcionar, por cima de quaisquer divergências de ideologia, que para aqui não é coisa que deva ser chamada. E se o espectáculo a que assisti por duas vezes num espaço de um mês é, para mim, degradante, tenho que aceitar que seja uma visão tentadora para uma larga fatia da população habituada a este expoente da gastronomia tradicional.

Tenho bom remédio: ou deixo de frequentar festas de cerveja, feiras de artesanato e coisas do género (evitando um contacto próximo de mais com o povinho que vota PS), ou viro a cara para o lado, num ensaio de hipocrisia, fazendo de conta que não vejo o que agride a vista. Assim como assim, não consigo escapar de uma incoerência pessoal: quando ingiro vitela, incorro no mesmo “pecado” do infanticídio carnal.

29.8.05

Cartografia dos sonhos

Há dias que começam com a incógnita do sonho visitado durante a noite. Sonho intrigante, que faz pensar. Muitas vezes sonhos estranhos, conversas absurdas, personagens impensáveis. Por vezes, nos sonhos, uma vida dentro doutra vida – ou uma vida que se desprende da vida inteligível, nem sei bem qual das hipóteses retrata com fidelidade o que se passa.

Há uma dimensão fantástica na matéria onírica. O poder de um subconsciente que se liberta dos espartilhos da razão, manietada pelos sentidos alertas nos seus postos de sentinelas, vigilantes com a luz do dia. Quando a cabeça repousa na almofada, libertam-se as amarras para o subconsciente asfixiado, torturado pela ditadura da razão que acompanha os sentidos, os olhos bem abertos. Pela calada da noite, assim que os olhos se cerram sobre si mesmos, a voz de comando para um outro eu escondido. É a hora da visita dos sonhos bizarros, de pesadelos indesejados, de sonhos que acompanham angústias pontuais.

Nos sonhos, levado por caminhos insondáveis, caminhos não escolhidos na sementeira dos sentidos. Por isso digo: possuídos pelos sonhos somos matéria incandescente, cinzas que flutuam ao sabor das conveniências de uma força que só se revela nos sonhos, mas que também habita em nós. Será uma vida agrilhoada pelo eu que dizemos conhecer? Ou uma vida que se desprende do desconhecido para algures, como um braço de ria que a certo ponto diverge num sentido diferente da maré dominante?

Haverá especialistas oníricos. Haverá a famosa “sabedoria popular” que, célere e penhora das suas certezas, assevera um simbolismo que interpreta cada sonho. Na complexidade da mente humana; na complexidade da própria espécie humana, com a diversidade que separa cada pessoa; esses ensaios, apenas manifestações de padronização condenadas à futilidade. Os meus sonhos serão diferentes dos sonhos de todas as outras pessoas, como os sonhos da pessoa ao lado diferentes serão dos demais. Acredito que haja um mapa genético dos sonhos de cada indivíduo, trilhado pelas referências do passado, pelas experiências marcantes – as traumáticas e as que mostram felicidade. O código genético dos sonhos será como o ADN, um roteiro individualizado, irrepetível.

E pouco me interessa saber se há um significado especial para este ou aquele sonho que me visita com mais frequência. Os especialistas encontram aí terreno para divagar, discordar, fermentar a subjectividade. Não são eles que vivem por dentro os meus sonhos. Não são eles que sentem na pele um sono mal dormido se, pela enésima vez, sonho que fui testemunha da queda de um avião. Nem são eles que acordam sobressaltados com os traços vivos de um sonho em que fui atacado por serpentes venenosas. Nem sequer pelas imagens reais guardadas na memória, que semeiam a confusão nos instantes que se seguem ao despertar – parece, nesses breves momentos, que o sonho o não foi, antes realidade; só depois, ao calibrar os sentidos, assentar que realidade não foi, antes um mero sonho.

Certos sonhos são roteiros pelo terreno do surrealismo. Se houvesse tempo para passar à escrita – e de forma fidedigna, para além dos esparsos aspectos que a memória acordada consegue resgatar – abundante material para literatura surrealista ficaria em minha posse. Para além das angústias que consomem, e que transitam para os sonhos; para além das pessoas que vêm de longe, numa revisitação desejada, ou não; para além dos sonhos que estendem a vida acordada para o tempo do sono (querendo selar o absurdo que é dormir, o tempo perdido com o sono, o tempo que se perde em viver enquanto os olhos estão cerrados no tal “sono retemperador”); para além de tudo isto, o mapa surrealista traz a nota intrigante ao tempo da vida diferente enquanto repouso na quietude do sono.

Ao tactear o percurso dos sonhos surrealistas, naquilo que a memória consegue resgatar, há algo que me perturba: sonhos estranhos, sem sentido, absurdos, sinalizando o absurdo da vida; ou traços de uma vida que existe para além do sensorial, entrando no domínio do especulativo, irrompendo pelos limites do fantástico. Para concluir: uma vida escondida dentro da vida que sabemos ter, revelada pelo olhar onírico?

26.8.05

Os farejadores de droga

Em dois dias seguidos repetiu-se a cena cómica na estação de comboios de Brighton. Enquanto esperava pela chegada do comboio, reparei que alguns polícias deambulavam pelo átrio da estação acompanhados de cães.

Ao início não percebi a razão da presença dos canídeos. Só quando os vi em acção desfiz as dúvidas. Ao chegar um comboio, as pessoas encaminhavam-se para a porta da saída, onde tinham que validar o bilhete numa cancela própria. Formava-se um funil onde os passageiros abrandavam a marcha. Depois de passada a cancela, estava a brigada policial com os cães atentos, de faro emproado. Depois era vê-los em acção, com uma diligência impressionante, em busca de viajantes que transportassem estupefacientes. Quase sempre miúdos, adivinho que na posse de drogas leves, tal a idade imberbe que não deixa supor a dependência de drogas pesadas.

Os cães estavam imóveis, mas atentos. Num ápice, punham as orelhas no ar e desatavam a perseguir a vítima que ousara trazer substâncias ilegais. É de perseguição em sentido estrito a que me refiro. Percebe-se então quão apurado é o faro dos cães. E como os destas brigadas são treinados para detectar a posse de estupefacientes. Mal sentiam o mínimo odor a droga, os cães despertavam da aparente indolência e saltavam, que nem uma mola, em busca do miúdo que escondia a substância proibida. Quando o miúdo era detectado pelo cão, logo alguns polícias o cercavam para a imobilização necessária. O cão, ilustrando o significado da fidelidade canina, ajoelhava-se aos pés do miúdo e dali já não saía mais. Mostrando à divertida audiência que tinha cumprido a sua missão. O miúdo, envergonhado por todos os olhares estarem concentrados em si, exibia surpresa pelo método. Depois era encaminhado para uma esquadra, provavelmente para uma rotineira operação de identificação e registo de cadastro.

Aos pobres cães, treinados na detecção de estupefacientes, resta a frustração de lhes ter sido lançada água na boca sem provarem o pitéu. Que é como quem diz, foram teleguiados pela dependência crónica destas substâncias, descobrem o infractor e não têm direito ao seu quinhão. Ficam com a água na boca, numa violência inusitada – por terem sido educados na dependência da droga, e por lhes estar destinado o nada depois de farejarem à distância as tais substâncias de que tanto gostam.

Mais um mostruário da instrumentalização dos animais. Só a questão de saber se é legítimo viciar estes cães na droga levanta dúvidas. Podem alguns dizer que é um mal necessário, e que a sociedade deve ter o pragmatismo de admitir que os animais irracionais se encontram ao serviço da espécie humana. Não há problema em formar brigadas caninas para detecção de estupefacientes, porque esta “chaga” atingiu proporções tão preocupantes que todos os meios são legítimos para a combater. Não sou da opinião que todos os sacrifícios impostos aos animais sirvam para validar a suposta superioridade humana. Esta é uma visão umbiguista, que expõe o humano a uma eticidade duvidosa. No fundo, educam-se caninos toxicodependentes para denunciar toxicodependentes humanos, para combater o que se convencionou chamar “tráfico de estupefacientes”.

O lado escondido desta história não é agradável. Os cães treinados na detecção de drogas ficam frustrados quando descobrem um viciado. A imagem do cão que se ajoelha aos pés do miúdo que traz consigo umas pedras de haxixe é sintomática. O cão desempenhou a sua tarefa e sabe que ali, aos pés do miúdo, está o material em que o viciaram. Sem que, naquele momento, o cão possa ser premiado pelos seus serviços diligentes. Só mais tarde, no canil da polícia, às escuras da sociedade, os canídeos terão direito à dose que os mantêm no deplorável estado de viciação.

Descubro, agora, o destino das drogas capturadas após as espectaculares operações policiais. Aquela droga, exposta num orgulhoso escaparate para comunicação social ver e difundir, será utilizada para manter as brigadas caninas agarradas ao vício crónico. (Nem toda é incinerada, portanto; e será que a aritmética é linear ao ponto de nos dizer que a soma da parte incinerada com a parte destinada aos canídeos representa a totalidade das apreensões?) Estes cães vivem no mesmo sofrimento dos toxicodependentes quando atravessam a fase da ressaca e se prolonga o período de secura de consumo. Eis como as autoridades recorrem a substâncias ilegais para capturar os humanos que violam a lei por transportarem ou traficarem essas mesmas substâncias. Que raio de moralidade, a que se associa a esta forma de fazer cumprir a lei…

25.8.05

Bono, condecorações presidenciais e Manuel João Vieira



Quando os vetustos U2 vieram a Lisboa dar um concerto, o impagável presidente desta república presenteou-os com comendas com que a república distingue quem merece ser distinguido. No consulado de Sampaio, as condecorações do género banalizaram-se. Em jeito de caricatura, quase podemos contar pelos dedos os portugueses que ainda não foram agraciados. Agora que Sampaio (felizmente) entrou na recta final, ainda foi a tempo de inaugurar um novo ciclo. Condecorar gente do rock que esteja em Portugal para dar concertos. Pena que Sampaio só tenha descoberto o filão a poucos meses de passar o testemunho a outro!

Os U2 foram premiados, mas quem se destaca pelo protagonismo é Bono, o vocalista. Já alguém lhe chamou, em tom jocoso, o secretário-geral das Nações Unidas, tamanho o activismo pela “causa justa” do combate à pobreza, pela denúncia do pouco que os países ricos fazem para retirar os países pobres do subdesenvolvimento. Sampaio quis mostrar que está de acordo com a visão dominante: a pobreza dos povos é iníqua, os ricos são apontados a dedo pelo laxismo e pela insensibilidade perante a pobreza. Sampaio quis ficar bem no retrato – especialmente junto de uma camada da população pouco politizada, os jovens ingénuos que aplaudem com entusiasmo iniciativas do género.

Na vacuidade geral, as emoções alojam-se à flor da pele quando se escutam palavras feitas que são belas na forma mas ocas no conteúdo. Bono é um digno representante da classe. Continua a pensar que os problemas da miséria, da fome, da pobreza se resolvem com um maior empenhamento dos países ricos e das malditas multinacionais. Contextualizando: empresas e países ricos devem transferir mais e mais dinheiro para os países pobres. Quem defende esta ideia passa uma esponja pelo passado da ajuda ao desenvolvimento. Há quem se tenha esforçado por provar que a simples doação de dinheiro não é virtuosa, como o pensamento dominante e demagógico ensina. Tem-se tentado provar que grande parte desse dinheiro apenas enriquece uma reduzida casta de privilegiados nos países de destino, que não hesitam em fazer da corrupção o esteio de cleptocracias hediondas. Uns poucos (muitos escassos) ostentam riqueza, contas bancárias na Suiça, um património incalculável; a larga maioria da população, mergulhada na miséria, a padecer de fome, estigmatizada pela pobreza.

Nunca tive em boa conta Sampaio. A tibieza é a sua principal característica. Personagem de lágrima fácil ao canto do olho, estranhei que na cerimónia de condecoração não tenha puxado ao drama e a sua voz não se tenha embargado, ao descrever o terrível drama que afecta os povos asfixiados pela pobreza. Talvez as comendas ao grupo irlandês não tenham sido manifestação espontânea do sentir sampaiês. Apenas um esforço retórico para se colar à grande vaga de fundo que percorre a juventude consumidora de Live Aid e quejandos. Se Sampaio não percebe da poda, que algum conselheiro, da vasta corte que o rodeia, lhe tivesse dito que estes movimentos são muito eficazes como meio de perpetuar o sucesso comercial dos artistas que contribuem para os espectáculos que num dia – num escasso dia – relembram que a pobreza existe. No dia seguinte volta tudo a ser como antes: pobres ainda e sempre pobres.

Durante a performance em Alvalade, Bono terá pedido ao primeiro-ministro português para se empenhar na luta contra a pobreza. A multidão exultou, numa espécie de promessa de eterna fidelidade à noiva. Aposto que a fidelidade findou quando deixaram Alvalade. Aposto que Sócrates, se tivesse ouvido, teria imediatamente correspondido ao repto do cantor. Para, logo no dia seguinte, tudo cair em saco roto. Entretanto, as massas excitadas acenavam pavloviamente a cabeça às mensagens dramáticas do tal sucedâneo de secretário-geral das Nações Unidas. Como se estivessem hipnotizadas, sem terem bem a noção que o verdadeiro remédio para a pobreza está num velho ditado chinês, de Confúcio: “não lhes dês peixe, ensina-os a pescar”.

Regresso às comendas presidências, ao ridículo em que estão embrulhadas. Ninguém melhor do que o grande Manuel João Vieira para retratar esse ridículo. No DVD duplo que comemora vinte anos de carreira artística deste ícone da cultura portuguesa, o homem aparece retratado em poses que são a caricatura dos agraciados: fatinho bem posto, faixa à lapela simbolizando a comenda, os sapatos esquecidos desnudam os pés, com as calças arregaçadas para impedir que a muita água que por aí se mete venha molhar a fatiota.

Se este Vieira levasse por diante a brincadeira da sua candidatura presidencial, abria uma excepção no meu abstencionismo metódico. E ainda bem que não houve nenhum Sampaio que se lembrou de Manuel João Vieira para as comendas da república. Este esquecimento é a melhor homenagem que se pode prestar ao grande artista.

24.8.05

Prémio "comediante do ano" (candidato 1)

Vítor Ramalho, "figura incontornável" (no linguajar sampaiês), comentador de méritos excelsos, que a TSF ausculta com uma dedicação canina, apoiante número zero (porque antecede o número um) da geriátrica candidatura presidencial de Soares. Quando abre a boca, uma risada de fazer ir às lágrimas. A última pérola:

"candidatura de Jerónimo de Sousa é forte".

Sim, sobretudo se for para (mais uma vez) não levar até ao final. E se for para desistir em favor do grande pai desta podre democracia.

"Liga Betandwin.com" e as virgens ofendidas

A última peça da tríade do futebol, com que a semana de escritos foi começada. O pessoal do futebol profissional teve o rasgo de encontrar um patrocinador para os próximos quatro anos. Um contrato que vale dez milhões de euros. O patrocinador é uma empresa de apostas através da Internet – conceito difundido além fronteiras, acompanhando as oportunidades franqueadas pelo avanço da tecnologia.

Custa a admiti-lo, mas o Major que comanda os destinos da liga portuguesa de futebol teve olho para o negócio. E provocou um forte abalo telúrico nos interesses instalados. Assim acontece quando os monopolistas sentem que alguém vai entrar no mercado, terminado com o privilégio da exclusividade. A Santa Casa da Misericórdia e os casinos, por motivos diferentes, fizeram um ruído ensurdecedor, esgrimindo argumentos contra o contrato de patrocínio que dizem ilegal. A Santa Casa da Misericórdia escuda-se no monopólio que a lei lhe garante para as apostas em eventos desportivos. Os casinos sentem-se ofendidos porque não podem fazer publicidade em meios de comunicação social, lutando contra a desigualdade de estatuto que há-de favorecer a Betandwin.com através da visibilidade oferecida pelo patrocínio ao campeonato português de futebol.

É natural que quem beneficia de um monopólio se insurja contra a diminuição das suas regalias. É natural que se mobilizem corporativismos espúrios, redes de contactos tentaculares que procuram garantir a permanência do monopólio. Tudo isto é natural, mas ao mesmo tempo encerra o seu quê de patético. A Santa Casa da Misericórdia parece andar a dormir no ponto. Tudo indica que não sabe o que é a Internet, e que há empresas dedicadas às apostas em acontecimentos desportivos que operam exclusivamente on-line.

Basta visitar o site www.Betandwin.com. E ver que as possibilidades de desbaratar dinheiro em apostas desportivas se desdobram por mil e uma modalidades; e que são inúmeros os campeonatos de futebol, por esse mundo fora, nos quais é possível realizar apostas. O campeonato português também é oferecido. A Santa Casa da Misericórdia tem que processar a Betandwin.com, por violar a regalia de exclusividade deste tipo de jogo no território nacional. Tarefa impossível: no reino da Internet, o exclusivo da territorialidade nacional passou a ser um anacronismo. Querer perseguir a Betandwin.com por incluir apostas a jogos do campeonato português terá o mesmo sucesso que procurar uma agulha num imenso palheiro.

Os casinos também mostraram uma reacção absurda. Alegam que não podem fazer publicidade às suas actividades. Ora aqui há um equívoco de todo o tamanho, que se desmultiplica em dois aspectos. Por um lado, os casinos estão autorizados a fazer publicidade. Eles patrocinam manifestações desportivas (com destaque para o automobilismo); e os nomes de casinos aparecem nas camisolas de algumas equipas de futebol. Por outro lado, os casinos enganam-se ao escolher a Betandwin.com como alvo: operam em áreas de negócio diferentes. O domínio de actividade da Betandwin.com não interfere com os tradicionais jogos de azar dos casinos, nem estes fazem apostas sobre resultados de eventos desportivos. O que se disse em relação à queda do mito da territorialidade estende-se aos casinos: proliferam sites onde se pode perder a cabeça em jogos de azar. Julgam os casinos que podem vedar o acesso a esses sites, impedindo os portugueses de aí jogar?

A reacção é patética. Dá a impressão que casinos e Santa Casa estão de cabeça perdida, ao serem apanhados de surpresa pelo golpe de asa da liga portuguesa de futebol. Quem perde o tino, perde a razão. E quando se agarram à tábua de salvação da lei, feita para proteger os seus monopólios, esquecem-se que vivemos numa era em que a lei nada pode contra os meios (como a Internet) que galgam as fronteiras com toda a facilidade. Faz lembrar as mentes pudicas que censuram a prostituição, achando-se no império da razão devido à lei que cauciona a sua razão. E, no entanto, as casas de alterne estão por aí, espalhadas de norte a sul, mesmo nas barbas das autoridades. Expondo a sua incapacidade para cumprir a lei, revelando uma lei desfasada por não ser possível fazê-la respeitar. Os tais pudicos, esses, continuam agarrados aos seus dogmas, assobiando para o lado, fazendo de conta que não se passa nada.

23.8.05

Liga? E porque não campeonato?

Vamos sendo habituados a ouvir e a ler a expressão “liga” como designação do campeonato que junta as equipas que querem singrar no pestilento panorama do futebol. A ideia de chamar “liga” a um campeonato mete-me espécie. Socorro-me do dicionário. Que esclarece as minhas dúvidas – aliás, adensa-as, semeando mais incompreensão pela escolha da palavra “liga” como substituto de “campeonato”:

Substantivo feminino; 1. acto ou efeito de ligar; união; ligação; 2. sociedade ou associação com qualquer objectivo; 3. aliança entre Estados com o objectivo de defender interesses comuns; 4. mistura de substâncias heterogéneas resultando num produto final uniforme; 5. fita elástica para cingir a meia à perna; 6. obra de meia, feita com agulhas próprias; 7. Metalurgia: material que resulta da fusão conjunta de dois ou mais metais, dando um corpo macroscopicamente homogéneo; 8. Regionalismo: borras; de faca na liga: irascível; de má pinta”.

Há dois significados que se encaixam no que imediatamente entendo ser uma liga: os que constam dos números 5 e 7. Quando se fala de liga, lembro-me da liga que ornamenta a lingerie de senhoras mais ousadas, despertando a libido saltitante de homens que se arrebatam com estes pequenos artefactos cheios de significado erótico. Quando ouço a palavra liga, a mente também se direcciona para as ligas metálicas que por aí abundam, na construção, nos automóveis. Daí que, olhando aos oito significados possíveis do termo, há dois que se excluem quando se procura uma justificação para que o campeonato de futebol se intitule “liga”.

Se continuarmos por exclusão de partes, outros significados carecem de identificação com o campeonato que se faz passar por “liga”. Significado número 1: acto ou efeito de ligar; união; ligação”. Poderá haver alguma associação, se se entender que o que está unido, ligado, são os clubes de futebol que criaram uma entidade (a Liga Portuguesa de Futebol Profissional) que organiza o campeonato. Será uma liga no sentido institucional. A liga, neste contexto, é apenas o aparelho que organiza o campeonato. Não vejo razões para que o campeonato, o torneio que coloca as equipas em competição directa, deixe de se chamar campeonato para assumir as vestes de liga. É confundir a competição com o organizador.

Esta confusão vem ao encontro do significado número 2: “sociedade ou associação com qualquer objectivo”. Percebe-se que se chame “liga” à entidade que congrega os clubes de futebol profissional. Todos têm o mesmo objectivo: entrar numa competição, necessitando de uma entidade que a organize com credibilidade (ou sem ela…). A partir do momento em que os clubes entram no campeonato, cessam os “objectivos comuns”. Passam a ter objectivos antagónicos, quando entram em competição directa. Ganhar é o objectivo que depende da derrota dos adversários.

Os significados números 3, 4, 6 e 8 têm entendimentos específicos, situados num contexto que escapa ao mundo do futebol. Há uma aproximação quando o dicionário esclarece o sentido da expressão idiomática “de faca na liga”. A expressão tanto pode querer dizer “irascível”, como referir-se à “má pinta” de alguém. No mundo competitivo em que vivemos, o futebol destaca-se pela impressão de que não olha a meios para atingir os fins. Quantas histórias de corrupção que ficam por deslindar, ao não passarem dos vestígios que levam à suspeição? Quantas paixões exacerbadas, fermentadas pela clubite descontrolada? Quantos exageros de análise, que levam ao sobredimensionamento do fenómeno do futebol, estendendo a mão a iras gratuitas? Sem esquecer que no futebol abundam as personagens que se encaixam no estereótipo da “má pinta” – jogadores com penteados de gosto, no mínimo, duvidoso, corpos carregados de tatuagens que vão deixando cada vez menos pele à mostra, o mau carácter de levas sucessivas de dirigentes que aparecem para a vida mediática no tirocínio que fazem no mundo do futebol.

Ao chamar-se “liga” ao campeonato, alguém laborou num equívoco. O de fazer uma tradução literal (diria melhor, retroversão) do inglês para o português. É verdade que temos a “liga inglesa” (que agora tem, como designação oficial, “premiership” – fugindo da conotação “liguesca”), temos a “liga dos campeões”, e uma moda que se espalhou por vários campeonatos nacionais pela Europa fora, agora intitulados “liga”. Só que as traduções literais encerram alçapões que ferem a coerência do que se traduz. É o caso: o que faz sentido na língua inglesa perde coerência ao ser literalmente retrovertido para a língua portuguesa. Modismos…

22.8.05

Futebol caloteiro

Mais uma edição do campeonato nacional de futebol. Antes que comecem as polémicas com dirigentes e as corruptas arbitragens que falseiam a verdade desportiva, o aquecimento faz-se com a dívida de 24 milhões de euros dos clubes ao fisco. Não há dinheiro para saldar estas dívidas, mas há verbas para fazer contratações caras (já não as contratações milionárias, porque o apertar do cinto chegou ao futebol) e para pagar salários que são uma miragem para o comum dos trabalhadores.

O futebol é o paradigma da mania das grandezas. Arvorou-se de privilégios incontáveis e de regimes de excepção. Quem não se lembra do lamentável “totonegócio”, artimanha saída do conluio recorrente entre política e futebol (ou os seus protagonistas não se confundissem tantas vezes), que deu aos clubes a flexibilidade para ir pagando as dívidas ao fisco e à segurança social? Os tais clubes, habitados a viver à grande e à francesa, mas que se iam esquecendo de pagar impostos e contribuições para a segurança social, numa desigualdade face a empresas normais e outros cidadãos.

O corporativismo dos agentes do futebol foi pródigo em argumentos falaciosos. As agremiações de futebol deviam ter um regime de excepção porque dão um contributo para a educação de jovens. Logo, cumprem uma “função social” de inegável importância. Puxando ao melodrama, houve quem atirasse poeira para os olhos do público, dizendo: enquanto os jovens estão a praticar desporto fogem da tenebrosa droga. Como se a maioria dos jovens cultivasse hábitos de prática de desporto, e esses hábitos dependessem da utilização das instalações desportivas dos clubes de futebol…

O corporativismo puxou lustro aos galões da nacionalidade: na competitiva indústria do futebol, não podíamos ficar para trás na competição com outros países. A grandeza nacional em muito dependia dos feitos além-fronteiras, das derrotas infligidas aos colossos do futebol europeu. Daí às loucuras financeiras um singelo passo, com contratações caras de craques de craveira mundial, salários com cifras impensáveis para o comum dos mortais – as mesmas pessoas que continuam a pagar preços elevados para assistir a jogos de futebol, caucionando o desequilíbrio de rendimentos. Por efeito de contágio, a lógica dos gastos sumptuários estendeu-se a todos os clubes nacionais. Se os mais poderosos elevaram a fasquia para terem ambições nas competições europeias, os mais pequenos não podiam aceitar que o fosso se agravasse.

Em defesa dos privilégios da casta, os seus fautores prosseguiram na senda do ilusionismo. Como desporto de massas, que arrebata as emoções, faz parar um país, domina noticiários de televisão pelos pormenores mais comezinhos, aos poderes instituídos só restava não afrontarem a tribo do futebol. Se não se começasse a pôr um travão à indignidade dos privilégios, a escalada não teria fim: em nome do poder da maioria (a maioria que se aliena com o futebol, que se deixa mergulhar no estúpido fervor clubista), qualquer dia teríamos o futebol a mandar no país. Pouco faltaria para esboçar a lógica dos números na sua associação democrática: seria anti-democrático afrontar os privilégios de um desporto que faz as preferências de uma imensa maioria.

Havia nascido um país dentro do país – um país futebolístico, cheio de privilégios, ostentando uma grandeza fátua, como se começou a verificar há poucos anos com o downsizing orçamental, os salários em atraso, as dívidas acumuladas. O panorama começou a mudar. Haja a coragem que apareceu nas palavras do secretário de Estado dos assuntos fiscais (que prometeu: ou pagam os clubes, ou pagam os seus dirigentes), e o futebol vai entrar nos eixos da normalidade. Regressará a um estatuto de igualdade com as demais indústrias, sem a falsa complacência de uma aparente missão de “serviço público” que não passa de oportunismo destilado pelos figurões do futebol.

Houvesse ainda mais coragem, e as contas dos clubes de futebol seriam saneadas com um passe de magia. A solução: proibir a inscrição de jogadores aos clubes que teimassem em manter dívidas à segurança social e ao fisco. Como as transferências mexem com muitos interesses – são elas que movem rios de dinheiro, para gáudio de uma trupe que faz fortuna à custa do sucesso alheio (dirigentes e esses proxenetas modernos chamados “empresários” dos jogadores) – todos teriam a ganhar com a redução das dívidas a zero. Seriam eles os primeiros a pressionar para o pagamento do que está em dívida.

21.8.05

Cultura geral

Na mesa do lado, conversavam sobre um concurso de televisão que testa a cultura geral dos candidatos. Que era incrível como oito concorrentes erraram naquela pergunta. "Toda a gente sabe que o grande escultor alentejano é o Gargaleiro", dizia, senhor das suas certezas, o sexagenário.

19.8.05

Saudades do primeiro-ministro



Agora que o primeiro-ministro regressou das merecidas férias africanas, já posso falar sobre o assunto. Manda a decência que não se fala dos ausentes.

Deram brado, estas férias. Para uns, Sócrates ousou fazer umas férias de luxo enquanto impõe aos governados um aperto de cinto que é a única solução para lidar com a crise que nunca mais termina. Pura inveja. Estes moralistas de serviço, numa exibição de inveja alheia, destilam a frustração de não poderem fazer umas férias de sonho como as que o primeiro-ministro acabou de gozar. Houvesse dinheiro, e estas luminárias da decência alheia (que não da sua própria) não hesitavam em embarcar rumo a um destino exótico.

Para outros, o primeiro-ministro foi irresponsável por ter abandonado o barco durante quinze dias, logo numa altura em que o país que (se diz) governar estava mergulhado num imenso braseiro. Sócrates é acusado de insensibilidade. Manteve-se no remanso do safari queniano, sem querer saber da desgraça que atingia as pessoas afectadas pelos incêndios. Nem sequer quando a morte bateu à porta de corajosos bombeiros, nem aí Sócrates deu notícias. Desaparecido algures na savana, à cata de bicharada diversa, eis o desígnio do primeiro-ministro que votou o país que governa (é o que se diz) ao abandono.

Estas acusações não fazem sentido. De forma alguma aquelas que ilustram a dor de cotovelo pelas férias sumptuosas que o primeiro-ministro passou. A inveja é coisa feia. Que tem o inconveniente adicional de reforçar a posição de quem é alvo dessa inveja. Tão pouco faz sentido a acusação de abandono do país, como se na sua ausência ficássemos órfãos de uma referência que se quer sempre presente. O homem tem direito às suas férias. E tem direito a gozá-las quando o comum dos mortais entra de férias, no mês de Agosto. Sócrates não tem a varinha mágica para apagar fogos. Lá faria algum sentido que, ao menos, enviasse do longínquo Quénia uma mensagem de condolências quando os bombeiros tombaram em combate, ou quando tantas pessoas perderam os seus haveres na loucura das chamas. Vendo bem as coisas, nem tal se exigia, pois o primeiro-ministro passou temporariamente o testemunho ao delfim, Costa de seu nome.

A oposição indignou-se com a indiferença e a ausência do primeiro-ministro. Compreende-se o protesto da oposição. O seu estatuto de oposição supõe a existência, e a presença, do leitmotiv da oposição. Quando essa personagem se ausenta, a arte da oposição perde razão de ser. Esvazia-se de significado. Aqui aplica-se o velho adágio popular: “preso por ter cão, preso por não ter”. O primeiro-ministro estava ausente, foi criticado pela ausência; se estivesse presente, seria certamente criticado por algo que tivesse dito (o que, no caso do Santana Lopes do PS, nem é difícil acontecer, perante a vacuidade retórica de quem ainda acredita estar em campanha eleitoral).

Quem acusa Sócrates de ter ido de férias e se ter desligado do país que (pensa que) governa, enreda-se numa hipocrisia lastimável. Pela parte que me toca, tive duas semanas em que a sanidade mental se refrescou um pouco, mercê da ausência do primeiro-ministro. Notou-se a sua falta? Nem por sombras. Benditas férias africanas. Provaram que temos uma capacidade de auto-governo que dispensa estas figuras socialistas que, quando actuam, pioram o que já está mau.

Sócrates fez bem em ter passado duas semanas de férias na observação da fauna da savana queniana. Só lamento que não tenha prolongado as férias – mais duas semanas, dois meses, dois anos, quem sabe? Aliás, serve de pretexto para uma proposta inovadora: já que pagamos tantos impostos sem que se veja compensação à altura, porque não criar um fundo com parte desses impostos para garantir férias vitalícias a certas personagens da política que deviam ter vergonha na cara para perceber que estão a mais, que o tempo de serem protagonistas já ficou enterrado algures no passado?

18.8.05

Bombas atómicas virtuosas?

Há sessenta anos, Nagasaqui e Hiroxima presenciaram o horror das deflagrações atómicas. Pela primeira vez com vítimas humanas, as bombas lançadas pelos Estados Unidos espalharam a morte naquelas cidades japonesas. Ao passarem sessenta anos (ia escrever “nas comemorações dos sessenta anos…” quando dei conta que não há nada para celebrar; antes, expiar a bestialidade humana), a análise destilou-se por entre as conveniências ideológicas dos analistas.

Por cá, nas páginas dos jornais, duas teses opostas. De um lado, os habituais falcões da paz, tingidos de vermelho, que não se cansam de apontar o dedo às diabólicas maquinações dos Estados Unidos. Por entre a razão que lhes assiste – condenar o uso de armas nucleares em cidadãos inocentes – o oportunismo e a desonestidade intelectual. Descobriram, sessenta anos mais tarde, que as bombas despejadas em Nagasaqui e Hiroxima foram percursoras do terrorismo de Estado. Como se este fenómeno já não viesse de tempos ancestrais, de todas as guerras patrocinadas por Estados em nome das causas mais estúpidas. Do outro lado, esforços malabaristas para justificar o acto tresloucado dos Estados Unidos. Distinguiram-se o director do Público, José Manuel Fernandes, e Vasco Pulido Valente, nas páginas do mesmo jornal.

A tese é simples: depois do covarde ataque kamikase dos japoneses a Pearl Harbour, e já com os alemães vergados ao peso da derrota, fazia sentido encontrar um meio que colocasse um ponto final numa guerra que já durava há tempo demais. Se esse meio tivesse que ser uma bomba atómica, nunca antes utilizada em conflitos bélicos, que fosse. Os meios justificam os fins (mais uma vez). A machadada final para impedir que a guerra sangrenta se perpetuasse, para que mais vidas não fossem levadas pela sua mão traiçoeira. Que importa se as duas bombas atómicas guilhotinaram, em escassos segundos, centenas de milhar de vidas? Seria o preço necessário para a civilização se livrar da guerra prolongada que parecia não querer findar. Vasco Pulido Valente foi ao extremo de asseverar que (cito de cor) para as vítimas das bombas atómicas foi indiferente o meio e a forma como morreram. Apetece dizer: “importa-se de repetir?”

Não tenho conhecimento que Pulido Valente seja um neo-conservador, enfileirando com aqueles que encontram as justificações para legitimar actos de agressão externa e as incongruências diplomáticas dos Estados Unidos. Já José Manuel Fernandes é um lídimo embaixador da corrente neo-conservadora. Perturbam-me os malabarismos intelectuais dos neo-conservadores para justificar os actos das autoridades norte-americanas, como luva protectora do intervencionismo externo que consolida a posição de única super-potência no xadrez mundial. Essa sinuosa retórica é ofensiva à inteligência humana. Os passes de magia conheceram novo episódio com os sessenta anos das deflagrações nucleares em Nagasaqui e Hiroxima: um estulto revisionismo histórico em que os neo-conservadores puxam lustro à imaginação para provar a bondade dessas bombas atómicas. A cartilha de Estaline serviu-lhes!

Sou daqueles que pensa que tudo é discutível. Mesmo quando as evidências sugerem que pouco há a discutir, tenho abertura para compreender as vozes dissonantes. Mas agora os limites foram ultrapassados. Que se diga que os Estados Unidos foram feridos no seu orgulho pelo acto covarde da aviação japonesa e que quiseram retaliar, ainda se compreende. É injustificável que se tente legitimar a acção desproporcionada dos Estados Unidos, quando tiraram do paiol duas bombas atómicas com os efeitos devastadores que se adivinhavam.

É nestas ocasiões que levo por diante o pessimismo metódico sobre a natureza humana. A estupidificação que nos cobre, numa assomo auto-fágico que há-de levar a humanidade ao descalabro final. A racionalidade que nos distingue dos animais irracionais é o mote para a vergonha que enxameia a história da humanidade. Uma história de viciosa dependência de abstracções colectivas que levam o indivíduo a sacrificar-se por causas que lhe são vendidas como causas de todos, e portanto dele também. Quando, no final, ele é apenas a anónima carne para canhão de vaidades alheias.

Por mais voltas que dê, não consigo descobrir uma nesga de razão que seja na reinterpretação histórica dos neo-conservadores. Branquear a história, procurando passar lixívia nas duas bombas atómicas que caíram em solo japonês, é o mostruário da vergonha que cai sobre a humanidade. É aqui que fujo da abertura de espírito para compreender teses minoritárias: a atitude dos Estados Unidos é um episódio que envergonha a humanidade.

17.8.05

Censura, versão democrática

Uns ventos, soprados do Atlântico, de mansinho fazem penetrar uma brisa que tresanda a censura. Podemos surgir como democratas; podemos jogar o jogo, meramente eleitoral, da democracia; mas quando chegamos ao poder, exercemo-lo com o jugo do absolutismo, numa espécie de democracia ditatorial (ou ditadura formalmente democrática) onde apenas vale a vontade dos iluminados governantes. Mais ainda quando, por artes da vontade popular manifestada no voto, existe maioria absoluta. Já tivemos uma experiência, no consulado cavaquista. Temia que a maioria socrática descambasse para desarranjos de autoritarismo pouco consentâneos com a retórica de “diálogo” e “tolerância” de que os socialistas se dizem tributários.

Vem isto a propósito de uma diatribe do Costa. (Um parênteses necessário. Sei que este tratamento, em que o artigo definido “o” aparece antes do nome, é usado por Louçãs personagens e camaradas saudosos da União Soviética. É a manifestação de desrespeito pela pessoa a quem eles aglutinam o artigo definido ao nome. Aliás, uma redundância: para quê juntar “o” antes do nome – “o Cavaco”, “o Portas”, etc. – se sabemos que Cavaco, Portas, etc. são masculinos, logo não carecem do tal artigo definido? Sei da táctica, usada como sofisticado meio de achincalhamento de adversários. Acho-a lamentável. Arriscando mais uma incoerência, vou lançar mão do tratamento para António Costa, o primeiro-ministro em exercício que herdámos nas férias africanas de Sócrates. Porque “o Costa” ilustra a tacanhez da ascensão a expensas do aparelho partidário, é imagem do caciquismo partidário, da mediocridade política, por tudo isto só merece ser tratado por “o Costa”).

Regresso ao tema: a diatribe do Costa. Escaldado por uma temporada catastrófica de incêndios, o Costa anda aflito. Nos dois anos anteriores, em que também houve recordes de área ardida, o Costa e camaradas não se cansaram de apontar a dedo à incompetência dos governos PSD. Agora a tempestade desabou em cima da cabeça do Costa. Bem feito! Já teve tempo para notar que a opinião pública cai em cima dos ministros que lidam de perto com incêndios – é o caso do Costa – porque não podem escapar à responsabilidade política. No caso do Costa, irresponsabilidade: ao querer justificar as “ignições” (termo em que ele foi pioneiro) se explicam por motivos que não estão sob o controlo do governo: ele é a seca extrema, a irresponsabilidade das populações que não se previnem com a limpeza do mato, o desordenadamento florestal que é herança do passado, a descoordenação no combate aos fogos que também é herança do passado. O Costa, esse, com uma aura de inocência.

Como o clima tem sido inclemente com os socialistas que se abarbataram com o poder, e como os incêndios regressam uma e outra vez, o Costa anda aflito. Daí que tenha tirado uma jogada magistral da cartola: “sugeriu” (e aqui as aspas têm toda a propriedade…) que as televisões tivessem o pudor de não passar imagens dos fogos. Se o Costa negociasse com os canais de televisão um código de conduta para que eles não difundissem imagens do pânico dos populares que sentem o fogo mesmo à porta, prestes a tragar os seus bens, compreendia-se. Até se aplaudia. Não foi isso que o Costa “sugeriu”. Ele quer que os incêndios desapareçam da agenda noticiosa. Menos uma preocupação a chamuscar a agenda mediática do governo. Menos um motivo para que o governo continue a sua escalada rumo aos píncaros da impopularidade.

Os governantes têm um poder de persuasão diferente do comum dos mortais. A “sugestão” do Costa soa a censura encapotada. Estamos num Estado de direito, com garantias de liberdade de expressão. E são intoleráveis as intromissões do poder político nos órgãos de comunicação social. Mas, contudo, elas existem a toda a hora, umas mais subtis, outras nem tanto. O Costa não ordenou nada, não fez censura directa. Mas esta “sugestão” é um aviso para os canais televisivos. Se não corresponderem à “sugestão” do Costa, podem mais tarde sofrer retaliações de outro tipo. Quem sabe se as imagens pungentes da floresta a arder não vão começar a desaparecer dos ecrãs, fazendo de conta que as chamas não reduzem a cinza hectares de floresta? Para contentamento do Costa, e fingimento de um país que ficará anestesiado perante o controlo, feito censura subtil, do Costa e capangas de serviço.

Há formas diferentes de fazer censura. Há a modalidade brutal, dos regimes ditatoriais. E há as censuras subtis, cujos autores se recusam sempre a chamar censura, mas que do estigma não se livram. A censura em ditadura é rejeitada, e bem, com todas as energias. Já a censura democrática, com toda a sua subtileza, é tolerada. É nestes momentos que me recordo que Hitler, quando assumiu o poder pela força dos votos, também se dizia socialista, nacional-socialista. De génese socialista, há que não o esquecer. Estar-lhes-á nos genes, esta propensão para a censura?

16.8.05

Da incoerência

Dá-me um imenso prazer denunciar as incoerências dos outros. Sobretudo as que partem de sectores que desfilam com a proeza das certezas inquebrantáveis. Acontece muito com certas esquerdas que por aí andam. Já por algumas vezes escrevi textos que desmontavam incongruências que só o meu pretenso iluminismo teve o condão de detectar.

Há momentos em que se deita o olhar para trás, em jeito de balanço. Neste caso, para reconhecer como é fácil desmontar o pensamento alheio com as brechas que ele abre, sem que os seus defensores sejam capazes de nelas reparar. É fácil, muito fácil, apontar o dedo às incoerências alheias. Mais difícil é admitir as nossas próprias incoerências. E, no entanto, deve ser ainda mais fácil encontrá-las no pensamento que esboçamos. É um problema recorrente: olhamos para fora de nós, quando primeiro devíamos ter o cuidado de varrer a casa por dentro, soltar os esqueletos guardados em armários fechados a sete chaves.

E será importante ter a percepção das falhas que rompem a “solidez” das nossas ideias? É um acto de humildade intelectual. Mesmo quando aqui escrevo coisas que parecem encobrir certezas inabaláveis, reparo que elas são um exercício de desconstrução de ideias alheias, ideias com as quais não me identifico. Mais do que expor um pensamento próprio, tento denunciar as falhas que desmontam a coerência de ideias que estão nos antípodas do meu posicionamento. Só através deste exercício de desconstrução é que acabo, indirectamente, por revelar as minhas próprias posições. Expondo-me. Às contradições que, mais tarde ou mais cedo, questionam a consistência do meu pensamento.

Tudo isto seria importante se houvesse a pretensão de doutrinar. Como ela não existe, como parto de um princípio de tentar destruir pela base ideias a que me oponho, satisfaço-me com o exercício. É nesta altura que os críticos, exibindo algum incómodo (com razão), contrapõem que me limito a destruir, sem querer gizar a alternativa. Terão razão. É uma coisa feia que confesso, mas que me traz um prazer incomensurável: quando detecto as tais manifestações de incoerência que desmantelam a razão suprema com que esses sectores se apresentam.

Incontáveis incoerências que um dedicado crítico que passasse a pente fino os meus escritos conseguiria encontrar. Acontece que, passados alguns dias após a escrita de um texto, sou o primeiro a observar as falhas. Já foi tempo em que isto era motivo de tormento interior. Ficava incomodado ao descobrir que, inadvertidamente, hoje defendia algo que era a contradição de ideia exposta dias antes. Entretanto, passa o tempo e acumulam-se os anos, crescem alguns cabelos brancos, e abeira-se a maturidade que remete para os fundilhos os tempos da adolescência vivida a grande velocidade. Com uma deliciosa consequência: aprender a não me levar muito a sério…

Se estes textos aspiram a alguma coisa é apenas ao efémero. Consomem-se no instante – no instante da sua escrita, da sua leitura. Como tanto gosto de fazer as vezes do detective que encontra as ranhuras na parede do pensamento alheio, prestes a desmoronar-se, aceito que o mesmo se faça quando alguém lê o que por aqui escrevo. Com o salutar efeito de suscitar a controvérsia, a troca de ideias – reconheço, nem sempre com espírito desportivo, porque é mais fácil pregar a tolerância do que praticá-la.

O niilismo é levado ao limite: para chegar a uma dimensão em que nem o próprio eu é encarado com grande seriedade. Num registo confessional, para dizer que sou, talvez, o maior crítico dos meus textos. Tantas são as vezes, quando os acabo de escrever de uma penada só, e os releio para corrigir erros que escaparam à primeira revisão, que chego ao final descontente com o ensaio. No diagnóstico que se repete: ser incapaz de me levar a sério!

15.8.05

Meter água

As autoridades andam numa azáfama em busca de prevaricadores, dos que ousam fazer “furos ilegais” em busca da água que escasseia. Andam, que nem abutres, farejando os vestígios de furos que escapam à alçada da lei. Talvez desconheçam que este é um ano excepcional em termos de secura. Talvez desconheçam que quem, em desespero, procura água através destes furos o faz não por capricho, mas por necessidade.

“Furos ilegais” dão direito a multa que pode ir até 10.000 euros. Ponho-me a reflectir na expressão “furos ilegais”. Quem ouvisse a notícia podia pensar que os transgressores tentam encontrar água em terreno alheio. Nada disso se passa. São agricultores alentejanos em desespero de causa que têm sido apanhados nas malhas da lei. Á míngua de água, com o cutelo fantasmagórico da morte a pesar sobre as rezes, lançam-se na busca de água. Fazem-no nos seus terrenos, não em terrenos públicos ou pertencentes a outras pessoas. Nos seus próprios terrenos. Como se esquecem de pedir a devida autorização, ou não querem comunicar intencionalmente a fonte descoberta, apanham com a desagradável multa que vem piorar mais ainda a sua situação que não anda longe da falência.

“Furos ilegais” são aqueles que fazemos na nossa propriedade. No Estado colectivizante em que vivemos, convencionou-se que a água é um “bem público” – mesmo que haja uma nascente ou um lençol freático no subsolo do meu terreno. É daqueles dados adquiridos que fomos educados a não contestar. A água é um bem público, só a colectividade é que dele pode dispor. Quem fizer tábua rasa deste sagrado princípio fica exposto à mão pesada das autoridades que, zelosas, não se cansam de defender o património público.

Falta a ousadia para questionar os dogmas que nos meteram na cabeça. A água é um bem precioso. Daí a concluir que é um bem público vai uma longa distância. Que os rios sejam bens públicos, que as águas de lagos e albufeiras estejam nesta categoria, dou de barato. Inaceitável é a limitação espacial do direito de propriedade à fina camada de terra onde repousa o terreno de que somos proprietários. Se no subsolo encontramos água, ela só nos é garantida depois de pedirmos as devidas autorizações para os furos que partem na sua peugada. Não andamos longe das soluções soviéticas que atropelam a propriedade privada. Com a chancela que remonta aos tempos do salazarismo, num estranho conluio que ensaca os extremos na mesma categoria.

No Alentejo ferido de morte pela seca assassina, agricultores são multados por terem buscado fios de água que resgatem da morte os seus animais; em Trás-os-Montes um deputado obrigatoriamente socialista (Adão qualquer-coisa) foi protagonista de um atentado à decência, de um recalcamento à inditosa igualdade que é bandeira da retórica destes socialistas bafientos. Na sua santa terrinha, lá para os lados de Bragança, o deputado construiu uma mansão. Com piscina e tudo. Imagem larvar de reminiscências feudalistas: é a maneira destes senhores serem vistos como os todo-poderosos da aldeia, com a vistosa mansão que mete na algibeira as modestas condições de vida dos aldeões que por lá se quedaram. Quis o parlamentar encher a piscina. A solução não podia ser mais óbvia: esvaziar o depósito que serve a aldeia!

A retórica da igualdade apregoada por estes malditos socialistas não passa disso mesmo, de retórica. Falam uma coisa, praticam outra bem diferente. Enquanto no Alentejo há agricultores que vivem com a corda bem apertada à garganta e que são multados por tentarem encontrar uma solução em desespero de causa, em Trás-os-Montes um homem de uma casta elevada exaure a água que serve a aldeia para se dar ao luxo de encher a sua piscina.

Gostava de viver naquela aldeia transmontana. Gostava de ficar, umas horas que fosse, sem água devido ao requinte do deputado. Garanto que não pedia licença ao deputado e ia-me banhar na sua piscina. A caminho do local, convidava todos os habitantes da aldeia para me seguirem. Havia de ser uma imagem cheia de encanto: uma aldeia inteira acampada na piscina do deputado, desfrutando da água que ele desviara dos aldeões! Afinal ele meteu água: desviou-a do consumo público para satisfazer um capricho pessoal. Meteu água, na deplorável tentação da casta política para se auto-colocar acima dos comuns mortais que os elegem e que ela supostamente serve.

Faltará coragem às zelosas autoridades para, aqui sim, actuarem como devem?

12.8.05

A hipnose da publicidade

A minha filha pára quando a publicidade invade o ecrã. Fica estática, como se estivesse hipnotizada pelos spots que se sucedem a um ritmo infernal, durando longos minutos. Consta que é comportamento habitual entre as crianças. Os especialistas saberão dar explicações elaboradas, com base científica incontestável. Há traços na publicidade que permitem perceber o alheamento provocado nas crianças. As cores berrantes, os ritmos musicais frenéticos, a sucessão de imagens que imprime dinamismo às mensagens publicitárias. Quando a vejo aturdida e absorta por causa de um spot publicitário, pergunto-me se não será verdade que eles contêm mensagens codificadas que apenas o subconsciente consegue captar.

Não vale a pena alimentar a teoria da conspiração sustentada por aqueles que acreditam que há mesmo linguagem cifrada por detrás de um anúncio publicitário. Fico pelas evidências que os sentidos conseguem captar. E pela persuasão da publicidade. É uma arte requintada, não fosse a publicidade um instrumento crucial para a estratégia empresarial. As empresas investem rios de dinheiro em publicidade. Se o fazem é porque o retorno é compensador. Sem a publicidade, as vendas seriam menores. É um investimento que se justifica em cada cêntimo gasto.

Sendo um veículo de comunicação, a publicidade supõe a existência de alguém que envia a mensagem e o destinatário. A ciência está em embelezar a mensagem, torná-la atractiva, pescando potenciais consumidores que ficam encantados pelo pacote publicitário que embrulha o produto. Quantas vezes é o consumidor atraído por um bem ou serviço devido à dinâmica publicitária, e não tanto pelos predicados do bem ou do serviço? O consumidor deixa-se atraiçoar pelo acessório, perdendo o rasto ao essencial. A publicidade sobrepõe-se ao bem publicitado, numa estranha inversão de prioridades – o instrumento, mais importante que o objecto.

Para isto também contribui a sede consumista que nos domina. Sinal do bem-estar material que tem vindo a aumentar, quem sabe, também, se sinal da materialização que supõe a desvinculação de valores humanos, a fobia do consumo motivou a sobrevalorização da publicidade. Daí que os bons publicitários sejam dos profissionais melhor remunerados (se exceptuarmos os futebolistas de elite e os que se alambazam com dinheiro farto debaixo da mesa). São pagos a peso de ouro, porque o produto da sua criação intelectual faz a diferença entre o sucesso e a mediania de um produto no circuito comercial.

A imaginação passou a ser o atributo mais valorizado na publicidade. Há anúncios geniais, que nos põem a pensar que a imaginação é um campo fértil, tão fértil que parece não ter limites. Há outros que se afirmam pela sua originalidade, por conterem uma mensagem subliminar que não é compreendida ao primeiro contacto. Põe os destinatários a reflectir, mantendo o produto em mente por mais tempo do que a simples observação do spot. E há a publicidade ridícula, por norma os anúncios a detergentes e outros produtos destinados a um público pouco “intelectual”.

O requinte da mensagem publicitária tem levado os profissionais do ramo por caminhos pouco aconselháveis, por pisarem o risco do “politicamente correcto”. Por sorte (para eles), têm passado incólumes, não sei se pela desatenção dos guardiães do tal politicamente correcto. Um exemplo de escola: um anúncio dos desodorizantes Axe, onde se vê um jovem a perfumar-se abundantemente com o dito desodorizante, fazendo um percurso que começa nos pulsos, prossegue nos braços até ao pescoço, e depois desce pelo tronco. A imagem que se segue é a de um encontro entre o jovem e a sua namorada (ou engate de ocasião, para o caso não interessa). Testemunhamos o efeito hipnótico do desodorizante: a rapariga, inebriada pelo odor, percorre o corpo do seu companheiro obedecendo à mesma sequência – pulsos, braço acima, pescoço, dorso abaixo, quando a imagem é interrompida por sugerir que ela se aproxima de zonas ainda mais erógenas.

E ninguém se insurge contra a instrumentalização da mulher? Ninguém levanta a sua voz de protesto contra a ignominiosa desigualdade de sexos, que trata a mulher – neste como em tantos anúncios – como um objecto ao serviço dos prazeres carnais masculinos? Andam desatentas, as seráficas, sibilinas protectoras dos direitos das mulheres. Deviam prestar mais atenção a esta publicidade vergonhosa, e denunciá-la, lutar pela sua proibição. Já que tanta coisa se proíbe e regulamenta…

11.8.05

Bailinho da bandeira

Mais uma vez o estigma da bandeira nacional, que acorrenta fidelidades e deprecia a individualidade que habita em cada um. Os símbolos têm significado variável. Para uns a linguagem simbólica é empolada, como se os símbolos fossem o lenitivo da vida. Para outros os símbolos não passam disso mesmo – de símbolos, o arrebatamento retórico que mobiliza pessoas em torno da causa sinalizada pelo símbolo. E há os desprendidos, os que se alheiam da ilusão dos símbolos, desvalorizando-os.

Quando há competições desportivas que cativam a atenção de meio mundo, uma imagem recorrente prende a minha atenção. Com o sabor da vitória a bater à porta de um atleta de um país do terceiro mundo, na volta de honra o atleta carrega às costas a respectiva bandeira nacional. É um ritual que se repete, nos jogos olímpicos, nos campeonatos do mundo de atletismo, em competições onde os países do terceiro mundo formam atletas que se distinguem dos demais e tocam a sineta da vitória. É a forma que encontram de mostrar ao mundo que também existem. Para consumo interno, quantas vezes a maneira fácil de sedimentar regimes ditatoriais, enaltecendo a grandeza pátria através da façanha do desportista de eleição.

Ontem reparei num pormenor interessante, no final de uma corrida disputada no campeonato do mundo de atletismo, em Helsínquia. O primeiro lugar coube a um atleta do Bahrein. O segundo a um marroquino. O terceiro a Rui Silva, o que serviu para interromper o telejornal, mostrando um dos raros momentos de exaltação nacional, em que se afirma a grandiosidade pátria que nos irmana num grande destino perdido algures na bruma do passado. Não vi Rui Silva a passear a bandeira com o escudo armilar pelo tartan do estádio. Reparei que o marroquino e o atleta do Bahrein fizeram um desvio e pegaram nas suas bandeiras, que ali jaziam na esperança de servirem para um episódio de êxtase pátrio dos seus compatriotas.

Será que as bandeiras de países do terceiro mundo estão estrategicamente colocadas após a meta, à espera de passearem os louros da vitória? Pena que tantas fiquem adormecidas na frieza do tartan, à falta de sucessos. Os que saldam a sua participação com uma subida ao pódio recolhem a bandeira que o comissário político que os acompanha colocou, com a sua diligência profissional, uns metros depois de cruzada a meta.

Se o ritual é exclusivo dos atletas do terceiro mundo, é coisa compreensível. São países que se libertam do anonimato mundial à custa dos feitos desportivos. Uma espécie de Brasil, que aparece no mapa mundi por ser o país mais versado na “arte” do futebol. E os brasileiros sentem-se interiormente recompensados pela grandeza das vitórias futebolísticas, como se elas fossem a coisa mais importante do mundo, como se elas varressem a miséria que enxameia favelas sem conta. Políticos oportunistas vão à boleia. Colam-se ao fervor popular, e poluem a imagem com a subtil mensagem que a vitória dos desportistas é também a sua vitória enquanto grandes líderes da pátria exultante.

Fenómeno curioso, que liberta o odor da alienação a que somos convidados a aderir. A alienação colectiva: convocação para nos despirmos da nossa individualidade, esposando o fervor colectivo de pertencermos a um país que se engrandece com conquistas desportivas. Os atletas, ingénuos, carregam às costas um país inteiro, com a bandeira que abraçam na volta de honra que os glorifica – e ao país. Sabem que, nesse momento, são os estandartes de um país que sai episodicamente do anonimato. Esquecem-se que não foi o país a conquistar a vitória. Foi ele, ou ela, atleta que passou os sacrifícios de um treino intenso, da persistência de lutar contra si mesmo.

São vitórias pessoais. Misturá-las com conquistas de uma nação é ultrajar o feito do atleta. E sobrevalorizar o que não merece ser enaltecido. Não nos equivoquemos: ao festejar o feito de um compatriota desportista, ainda que os parabéns sejam para ele, no nosso íntimo sentimos o contentamento do vitorioso ser “um dos nossos”. Bem lá no fundo, é uma vitória que se divide por “todos nós” – mesmo que “todos nós” estivéssemos encaixados na indolência de um sofá enquanto o desportista se desunhava para levar de vencida os rivais.

10.8.05

A ânsia da vitória

Não é inédita a alusão à personagem que tipifica a lógica do “vencer a todo o custo”. É o português com mais sucesso internacional, mas não está nos negócios, nas artes ou na vida universitária, não é cientista, nem muito menos político. É treinador de futebol, trabalha em Londres. Agora dá a cara por uma campanha do BPI, tentando chamar mais clientes, chamariz da batalha concorrencial no mercado bancário. A publicidade que passa na rádio encerra com uma frase que crisma a personagem: “se não fosse para ganhar…eu não estava aqui”.

Ganhar, só conta ganhar. A bebedeira da vitória, em tudo o que fazemos. Nada contra o espírito competitivo. Começa a ser enraizado nos bancos da escola, quando queremos ter as melhores notas, mais popularidade, alcançar sucesso nas competições desportivas. O gene da competição instala-se e toma conta de nós, ensarilha-se nas veias. Quando damos conta, tudo o que fazemos tem a vitória como ponto de mira. É tanta a competição que a bitola cresce. Para muitos, educados a valorizar os fins desprezando os meios, desbrava-se o terreno para a batota, a maquinação, o caciquismo, espezinhando tudo e todos se necessário for.

Alguns, tentados a concordar com o diagnóstico, apontam o dedo acusador aos excessos do capitalismo. Vencer é o cimento da sociedade capitalista, que despreza os sentimentos humanos. Só olhamos à sede de suceder na vida, e como temos que derrotar os que se perfilam como rivais no objectivo, há que os calcar para vergar ao peso da derrota. Porque essa derrota é a nossa vitória. Dizem que a culpa é do capitalismo, numa ladainha que rebenta a bafiento por todos os poros.

O logro há-de ser encontrado algures. Não no capitalismo, na vontade de aumentar o bem-estar material, saciar desejos que se sedimentam no oráculo dos sonhos individuais. O problema vem de outro lado: da natureza humana, não das tendências individualistas que tantos asseveram ser perversão do destino de viver em comunidade. Há um gosto perverso em domar os que estorvam os objectivos projectados. A certa altura, em vez de saborear o gosto da vitória, servido com a derrota do adversário, exultamos com a sua derrota. Sabe melhor a derrota do outro do que a sua consequência – a nossa vitória.

Para lá chegar, tácticas que fariam corar de inveja os estrategos militares de séculos idos. Para diminuir o adversário, vale tudo: iludi-lo, mentir aos demais, dar as doces facadas pelas costas que servem, quente, o seu sangue que sorvemos no cálice que festeja a vitória. Cultivamos a arrogância. Dar o flanco é para os fracos. Por arrasto, outros diademas vêm atrás: a desconfiança de todos, o ensimesmamento, a bebedeira de quem vive deslumbrado pelas suas capacidades que roçam o sobre-humano. É mal do individualismo? Pelo contrário: é fruto da educação para viver em sociedade, que incute a necessidade de singrar às custas do próximo. É o preço da civilização que estimula o colectivo, a penumbra que oculta tantos pecadilhos individuais nos escombros da anónima sociedade.

Os que não escolhem o caminho da vitória são os fracos do novo século. São varridos para o canto, à espera de serem recolhidos pelo cavernoso aspirador que os traga no esquecimento da história. Os outros, os mestres do sucesso, são um escol reduzido. Arrotam a sua superioridade, nem que escondam o caminho ínvio que traçaram até ao estrelato. Cansam-me estas personagens cegadas pelo perfume da vitória. Cansa-me a retórica do sucesso, obliterando façanhas pessoais com o esvaziamento do espírito.

E sei que esta ingenuidade extemporânea a lado nenhum me leva. A não ser ao equinócio de mim mesmo: não sabendo às vezes o que sou, ter a certeza do que não quero ser – um vitorioso compulsivo que atropela quem aparecer pela frente, com a frieza de um carrasco desapossado do seu coração, sempre, sempre, torneado pelos imperativos da vitória. Gratificações fúteis, plenas do efémero que se consome no instante de cada vitória. Ao redor, um séquito de admiradores interessados, lapas incrustadas no sucesso alheio, elas em busca do zénite das pequeninas vitórias que fabricam tantos egos impertinentes.

Desta forma de ser levo nada, quero levar o maior nada que ela possa conter. E refugiar-me nas lapelas do que me abriga, esse local tão repleto das coisas que me fazem dobrar as páginas do amanhã. Não é ganhar que importa: ser, apenas.

9.8.05

Rebeldia fiscal


Espreito na televisão um participante num concurso. Nome, proveniência, profissão, são as perguntas do apresentador. Resposta garbosa, à última pergunta: "trabalho numa repartição de finanças".

Os estereótipos podem ser uma trapaça. Generalizar é uma arte esguia, exposta a mil e uma excepções que derrubam a generalização pela base. Mas no que toca a funcionários que zelosamente tratam de arrecadar os nossos impostos, não consigo resistir à tentação. Até porque o indivíduo que acabava de se sentar no lugar de pretendente a uma pequena fortuna personificava o retrato que construí dos funcionários de repartições de finanças, depois de algumas infelizes e necessárias visitas a estes locais.

Zelosos funcionários que se enchem da importância que, na sua maneira de ver, é a função de tratar dos impostos devidos pelos contribuintes. Entre os funcionários públicos, os das finanças batem os demais em arrogância e no desprezo com que tratam os utentes. É a experiência, do contacto imediato e do testemunho do atendimento a outras pessoas que me antecediam enquanto esperava na longa fila de uma repartição de finanças. Má educação, o ar de quem está a fazer um frete por ser obrigado a atender os contribuintes que ali se dirigem, as soluções que são sempre mais complicadas a partir do momento em que eles são chamados a intervir, enfim, o contribuinte que nunca tem razão, o Estado que nunca pode ser lesado.

Estes fiscais dos impostos são uma autoridade desfardada, que nem por isso se coíbe de exibir o complexo da farda de qualquer agente policial ou militar. Como agentes que exprimem a autoridade do Estado, acham-se investidos de um estatuto de superioridade em relação aos utentes. O que os autoriza a um tratamento despersonalizado, pretensioso, deseducado. Pensam que têm os contribuintes na mão, quando, em estado de necessidade, aos utentes só resta uma desagradável deslocação a uma repartição de finanças. Nem que o desempenho fosse meritório, que o produto do seu trabalho tivesse qualidade, nem assim se aceitaria o desplante e o desinteresse com que nos tratam. Para piorar, os padrões dos serviços não se distinguem pela qualidade. E depois temos os sindicalistas do costume, abraçados ao estigma do corporativismo, sempre prontos a defender estes funcionários medíocres que não se desprendem dos "direitos adquiridos" - como se tudo o que se conquista fosse eterno…

A existência destes funcionários desmazelados é uma das razões que me leva a lamentar os impostos que pago. Sejam os impostos que imediatamente incidem sobre o consumo (o IVA), sejam os impostos que levam parte substancial do rendimento do trabalho, ou outros impostos que episodicamente sou chamado a pagar (quem compra habitação própria sabe do roubo protagonizado pelo Estado). Não é a única razão. Aqui devia valer um princípio que se vai enraizando na educação cívica: os direitos dos consumidores. Havendo uma troca entre o consumidor e quem lhe vende o produto, deve imperar uma contraprestação. Em troca do preço pago, o produto ou serviço devem corresponder às expectativas do consumidor. De contrário, assiste-lhe o direito de devolver o produto ou ser ressarcido da quantia paga.

Porque não estender este princípio aos impostos? É utopia, bem sei. Vai contra a técnica dos impostos, educados que fomos a ver no imposto algo que não dá origem a uma contraprestação específica do Estado. Quando se faz uma retrospectiva da conduta política dos sucessivos governos, quando se avalia o atraso que nos domina e como grande parte dele se deve à incúria dos governantes, o diagnóstico é cruel: os serviços (a governação) não encontram paralelo nos impostos que somos obrigados a pagar. Há um hiato desfavorável aos governantes, que alicerça um crédito em favor dos contribuintes.

Perante este quadro, invejo aqueles que fogem aos impostos. Não vejo nesse comportamento uma posição de irresponsabilidade social. Dir-me-ão que é um imperativo de cada cidadão contribuir, com os seus impostos, para a contínua construção da sociedade em que vivemos. Mas quando se observam as persistentes lesões ao erário público, a forma irresponsável como os detentores do poder usam os impostos que nos são subtraídos, a lógica da "responsabilidade social" é questionada.

Os que conseguem fugir aos impostos são os Robin dos Bosques dos tempos modernos. A comparação não será fiel, se funcionar uma analogia absoluta - afinal Robin dos Bosques tirava aos ricos para dar aos pobres. Os que se evadem da obrigação de pagar impostos desempenham esse papel, com uma adaptação de termos: tiram a um rico que insiste na prodigalidade (o Estado que gasta mal) e ficam com o dinheiro que ia engrossar os cofres do Estado. Do que se trata? De um contribuinte que não empobrece ao fugir aos impostos. São os Robin dos Bosques modernos, alvos da minha salutar inveja!

8.8.05

Lei da selva


A leoa corre, desenfreada, atrás da gazela que se pôs à mão de semear. Uma coreografia que se apresta a acabar num acto macabro, quando a gazela perde o fôlego e escorrega, embrulhando-se nas suas patas. Fica indefesa, perante o olhar esfaimado da leoa. Num salto mortífero, a leoa dá a estocada final. As suas garras afiadas ferem de morte o pequeno animal, que esboça os gritos de dor que lhe arrancam as amarras da vida. As poderosas mandíbulas do felino sabem onde arpoar: os dentes cortantes espetam-se no pescoço da gazela, sangrando-a até à morte.

Revejo as imagens da macabra coreografia. Os segundos infindáveis, na desesperada tentativa de fuga da morte empreendida pela pequena gazela. As imagens passam em câmara lenta, emprestando uma inaudita beleza aos passos harmoniosos da gazela e da sua perseguidora. Na velocidade da câmara lenta, parece que tudo se passa numa agoniante lentidão. A aflição da presa que o está prestes a ser, no desespero dos pinotes que a levam a mudar de trajecto, a tentativa final de despistar a leoa. E a agonia famélica da caçadora, a urgência de abocanhar o pequeno animal que desfila perante os seus olhos ávidos, na antecipação do repasto que as árvores da savana irão testemunhar.

Essas imagens em câmara lenta mostram uma beleza arrepiante. Pudesse esquecer no que culmina o acto da perseguição, e diria que a coreografia dos dois animais não pede meças aos actos de criação artística de bailarinos profissionais. Decerto há um arremedo deste bailado negrume quando coreógrafos profissionais ensaiam bailados modernos que se revêem na linguagem gestual de animais selvagens, na sua selvática luta de morte e sobrevivência por entre o terreno aberto da savana.

Os passos articulados, em velocidade estonteante, irmanam a caçadora e a presa. No macabro pas-de-deux exprimem a urgência da vida que as leva à parceria. A presa, num esforço aflito para escapar das garras assassinas da caçadora. A fuga da morte certa, que exige a mestria para despistar a leoa. Esboça as súbitas mudanças de direcção, na esperança que a corpulenta leoa não tenha agilidade para adivinhar por onde segue, de surpresa, a gazela de coração palpitante. E a leoa, já enfraquecida pela ausência de alimento por dias consecutivos, ao saber que não pode falhar a investida, não se vá prolongar a fome que a agonia no definhamento das forças. Quanto mais tempo tardar a captura, vai ficando exangue de forças que não a deixam preparada para a arte da caça que lhe traz a sobrevivência.

Os instantes da perseguição encerram uma hedionda beleza. Pela coreografia que leva os dois animais a percorrerem furiosamente os trilhos empoeirados da savana. Pela velocidade alucinante que se solta da sua louca vontade de serem antagonistas. A sórdida beleza perde os atributos do belo, e faz-se apenas hedionda, quando a lei da natureza se consuma. A leoa derruba a pequena gazela, que ainda esboça um derradeiro olhar de piedade. É então que as duas vidas se transformam numa morte para saciar a sobrevivência da caçadora. É a lei da selva, o ciclo da sobrevivência na ordem natural da cadeia alimentar, que culmina. Violentas são as imagens que se seguem. Da violência de uma carcaça ensanguentada, alarvemente despedaçada pelas mandíbulas da leoa entregue à sua fome.

Tudo termina nos despojos indiferenciados da gazela, saciada que está a leoa. A fome animalesca na sua imagem sublime, mas ao mesmo tempo brutal. A leoa satisfeita repousa nas imediações da presa. Os bigodes ensanguentados são a ilustração do troféu conquistado, o troféu acabado de devorar. Arfante, porque tomada pelo pino do calor, descansa ostentando o orgulho da peça de caça que esteve a comer desalmadamente. As gazelas felizardas passam nas imediações. Dir-se-ia que fazem o luto entristecido pela companheira que se entregou às garras da leoa. Passeiam o luto, em passo lento, não longe da leoa. Sabem que o podem fazer, para infelicidade da gazela devorada, porque a leoa se saciou. Ela olha as gazelas curiosas que se abeiram, sempre com uma distância de segurança. Olha-as com a indiferença de quem está refastelada com a iguaria.

É a lei da selva, a cadeia alimentar que serve certos animais indefesos na bandeja dos reis da selva. E uma lição: se há momentos em que me incomoda ser carnívoro, pela violência gratuita sobre os animais que enviamos para o matadouro, interrogo-me se a lição da lei da selva não é um sinal que afasta as dúvidas que me atormentam.

5.8.05

No melhor pano cai a nódoa



Já acompanhava o escândalo do “mensalão” há algum tempo – ainda o caso não tinha a ressonância nacional descoberta há dias, com as suspeitas de envolvimento da Portugal Telecom e do Banco Espírito Santo. Pouco me importa saber se estas duas empresas caíram no engodo. Interessa-me o escândalo da corrupção, os sinais que envia, a queda de um mito que se quis edificar antes do tempo.

Confesso o preconceito: nunca acreditei que Lula da Silva fosse o salvador de um país à deriva. O Brasil que se resume ao Carnaval e às conquistas do futebol, empenhado por sucessivas levas de políticos corruptos e incompetentes, escolheu Lula para a presidência após um punhado de derrotas eleitorais que ele sofreu. A perseverança compensa. Lula é exemplo disso. Em vez de se deixar abater pelas sucessivas derrotas, porfiou e conseguiu chegar à presidência do Brasil.

A sua biografia foi sendo meticulosamente construída para surgir como o novo Messias das esquerdas sempre carentes de figuras emblemáticas. Uma biografia impregnada de romantismo, como convém quando há que mobilizar os fiéis. Um Brasil rendido ao novo Messias não se cansava de tecer loas à esperança que Lula personificava. Por todo o mundo, as esquerdas militantes descobriram o seu Che Guevara do final do século XX. O Brasil estava na rota do sucesso e Lula era a pedrada no charco do pensamento único desafiado pelos activistas da alteridade. E o Brasil era mais uma lança desafiando a hegemonia dos Estados Unidos, juntando-se a Cuba e à Venezuela.

Já o disse, por preconceito nunca acreditei que Lula pudesse resolver um problema chamado Brasil. Não fui às lágrimas com a história comovente do operário que singrou no activismo sindical e chegou à presidência. Não me impressionam os dotes de um quase analfabeto, que consegue (ou alguém por ele) esboçar discursos que cativam as massas catequizadas no arrebatamento da “justiça social”. Apostei que Lula seria um enorme flop. O tempo do seu mandato não o deixa desmentir. As promessas embrulhadas no romantismo do discurso foram caindo, uma a uma, perante a inevitabilidade do mundo em que Lula vive e que ele não consegue mudar. O homem da rebeldia das causas e vestido de forma descomplexada cruzou-se com a ortodoxia da política mundial e com os vistosos fatos com gravata a condizer. Para piorar, Lula e seguidores foram apanhados na mácula do grande mal que empesta o Brasil – a corrupção.

Pelo que tenho lido, os fazedores de imagem de Lula têm-se desdobrado em esforços para mostrar a inocência do presidente brasileiro. A culpa é distribuída por assessores e ministros, que terão engendrado o esquema que distribuía, debaixo da mesa, fartas compensações a deputados de partidos da oposição para anuírem nas propostas dos partidos que sustentam Lula no parlamento. Lula, o ingénuo, aparece nesta história como a mulher traída – foi o último a saber. Mesmo os que querem acreditar na historieta acabam por cair numa esparrela: afinal Lula não manda no Brasil, antes a corte que o rodeia. Lula seria, por este prisma, um verbo-de-encher, uma figura de retórica que embeleza o romantismo que faz as delícias de certas esquerdas.

É um deus com pés de barro que se escaqueira sem remissão. O poder corrompe, seja detido por pessoas de esquerda ou de direita. E confirma-se a máxima que se identifica com a praxis de Mourinho, que tanto furor faz por estes dias: todos os meios valem para atingir os objectivos. A retórica ganhadora leva as pessoas a descompensações de comportamento, porque só interessa ganhar, vingar, vencer, atingir objectivos delineados. Pouco importa saber como lá se chega.

Lula e o seu séquito são apenas mais do mesmo. O que não é surpresa: nisto de ceder à corrupção, a tentação é mais forte para aqueles que vieram do nada e que um belo dia se viram com o poder nas mãos. Deslumbrados, nem sabem o que fazer a tanto poder. Percebem que podem manusear somas astronómicas como em tempos idos nem sonharam. É a diagnose do subdesenvolvimento. O Brasil não escapa, nem a elite que agora detém o poder. Para desconforto das esquerdas que tanta fé depositaram no herói Lula. Não desistam: outros heróis hão-de encontrar, ou fabricar, para se manterem fiéis aos seus ideais. Estranha forma de religiosidade!

4.8.05

Há armas nucleares boas, e há as más…

Não é preciso ser entendido em política internacional para perceber os ilogismos que a caracterizam. As relações internacionais são o domínio da anarquia, na má acepção da palavra. Sobrepõe-se a hipocrisia, vale o “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”. A regra do mais forte brilha com toda a pujança, com o vigor autorizado pela força das armas. A opinião pública mundial é instruída para caucionar os regimes bons e censurar os regimes maus, distinguindo entre os países que zelam pela paz mundial e os párias, que teimam em desestabilizar a ordem instituída. Daí que os primeiros se ofereçam, magnânimos, para acções de policiamento da ordem mundial. Para que a paz persista, nem que seja pela força das armas.

O mundo, chocado, deparou com o ressurgimento do programa nuclear do Irão. Era de prever: com as recentes eleições, o Irão dogmatizou-se ainda mais. Esperava-se um extremar de posições, com prejuízo para a estabilidade regional e sequelas na ordem mundial. Com a recuperação do programa nuclear, logo se fizeram sentir as preocupações e os protestos em muitos países ocidentais. Teme-se que o Irão venha a possuir armas nucleares. Cenário fantasmagórico, porque um Irão mergulhado na ortodoxia islâmica e na posse de armas nucleares é uma séria ameaça à paz mundial.

Não tenho a mínima simpatia pelo regime fundamentalista do Irão. Como não tenho simpatia alguma pelos países que gastam rios de dinheiro no armazenamento de armas nucleares, num esforço de dissuasão alheia. O que me causa espécie é o entendimento dominante: há países que podem (e devem) ter armas nucleares; outros, impedidos de as obter. As armas nucleares só devem estar ao alcance de pessoas de confiança, ou “pessoas de bem”. E essas residem nos países ocidentais, sobretudo nos Estados Unidos. Tendo-se assentido na sua qualidade de polícia do mundial, manda a lógica que só os Estados Unidos se possam dotar de abundante artilharia nuclear. Aos países desalinhados da ordem instituída, há que vedar a utilização deste perigoso armamento.

Que se saiba, uma arma nuclear tem efeitos devastadores independentemente da sua localização, sem importar quem a pode manusear. Haverá pequenas nuances nos efeitos catastróficos: o know-how mais avançado dos Estados Unidos permite que as suas ogivas sejam mais destruidoras que as dos aspirantes à condição nuclear. E, no entanto, só os países que desafiam a ordem mundial devem ser perseguidos, se teimarem em amealhar um arsenal nuclear. Como se as armas dos norte-americanos fossem generosas nos seus efeitos, e só as detidas pelos países párias espalhem os efeitos mortíferos que se conhecem.

Lamentável é a insistência na loucura do arsenal nuclear. As lições do passado ficaram perdidas na memória. Os realistas aceitam a opção nuclear. Resgatam da memória os tempos da guerra-fria, em que a paz podre entre Estados Unidos e União Soviética se alicerçou no medo das armas que ambos armazenaram. Era uma paz podre, uma falsa paz que dependia da existência de armas. O simples facto delas existirem é a revelação da autofágica natureza humana, do limiar do abismo em que nos encontramos. Concedo: será ingenuidade – a descrença na natureza humana – ou mesmo catastrofismo – pelo receio de uma arma ser detonada e dos efeitos em escala que se podem seguir. Mas alguém consegue viver descansado sabendo que as armas nucleares existem, que o erro humano está sempre à espreita e, pior ainda, que há loucos que inscrevem a destruição como projecto de vida (de morte)?

É indigna a ideia de que certos países são locais perigosos para a localização de armas nucleares. Perigosas são as armas nucleares, ponto final. Apesar dos exaustivos mecanismos de segurança, pode alguém garantir que uma ogiva nuclear dos Estados Unidos não seja disparada (inadvertidamente ou não)? E se os Estados Unidos não admitem que se ponha em causa o direito ao armamento como extensão da sua soberania, terá o Irão (ou qualquer outro país) soberania diminuída para lhe ser vedado o mesmo direito?

É a ordem internacional que temos. Apregoa-se a igualdade dos países, mas trata-se apenas de uma ilusão da retórica. Porque há países mais iguais do que outros, soberanias mais dignas e mais fortes, dnfim, direitos desiguais. Passando ao lado do essencial: que a paz só vinga quando as armas nucleares forem todas, sem excepção, banidas.