29.7.16

O lugar possível

This Mortal Coil, “Acid, Bitter and Sad”, in https://www.youtube.com/watch?v=it_izN8FE7I
Visto do miradouro das árvores tropicais, era o lugar possível. Uma janela sem vidros, uma janela até sem a moldura que a definisse como janela – ou, então, ele era maior do que a janela diante de si. O lugar possível nos contrafortes das impossibilidades.
Depois de ir a jogo, depois de recolhidas as sobras do pleito, juntou as visíveis facas do tempo junto ao copo da solidão. Já não tinha medo. Um frémito fervido por dentro, fazendo referver as veias pulsantes, convenceu-o que as coisas tinham mudado. Dantes, julgava ser possível a perfeição. Não contemplava a ideia de haver dias empenhados por sombras, o tempo mortiço, dias – por assim dizer – equívocos na ordem do tempo. O distanciamento traduz o arrefecimento de tudo que se supõe necessário para validar as medidas que se tiram de novo. É como se a vida inteira fosse metida dentro de uma máquina de lavar roupa: não para emendar excrescências (que, existindo, são irremediáveis), mas com o propósito de lhe emprestar uma sucessão de movimentos telúricos, no propósito final de usar um sextante novo para ver se havia novas medidas a tirar. A meditação demorada faria o resto em falta para coroar a empreitada.
Talvez a sucessão do tempo, e a madurez que ela corporiza, fossem a chaminé precisa por onde um qualquer fumo branco haveria de sair. Os lugares – entendeu, por fim – são sempre um ideal de imperfeição. O bastão que carregam sobre o dorso, por neles vir embebida toda a carga da humana imperfeição. Julgar que há lugares perfeitos é como medrar num ardil onírico. Podia ter os sonhos, mas eles são matéria sem corpo que não encontram tradução no mapa dos sentidos. A promessa do lugar perfeito é o adiamento do tempo, o adiamento de si, o adiamento de tudo. A contínua hibernação, no inculto desgaste do tempo que se abrevia.
O lugar era o possível. O lugar possível. Com a altivez de quem assumia assim ser e, ato contínuo, proclamava ser perfeito o lugar possível na exata medida de ele ser possível. Na perfeição, também ela possível, de quem investe a honestidade no encanto que o rodeia mercê do lugar em que se encontra.

28.7.16

Madrugada

Sonic Youth, “Sunday”, in https://www.youtube.com/watch?v=2CXD8PK6Djc
Uma sirene avulsa interrompe o silêncio. Um carro estouvado rompe o asfalto da avenida deserta, contrastando com o vagaroso tempo que se compõe na madrugada. A luz escondida no que resta da penumbra tardia procura o seu alvor. As árvores estão sitiadas pela ausência de vento. Ocasionalmente, um avião interrompe o silêncio no silvo aflitivo da descida para a pista de aterragem.
A cidade está quase a desentorpecer. Parece o motor de combustão de um automóvel que precisa de tempo para debitar em pleno. Há um curto espaço de tempo, a mediação entre a noite perlongada e a alvorada, em que tudo parece suspenso no tempo, como se nada estivesse inscrito no mapa dos acontecimentos. Se estivesse a chover, dir-se-ia que as gotas vinham ao chão em câmara lenta, que seria possível ver uma particular gota despenhando-se no chão, a partir-se em múltiplas partículas de água rociando as imediações do lugar atingido pela gota de chuva. O voo dos pássaros parece uma levitação. E até o rio exterioriza águas paradas, sem ondas, sem se notar a fluência do caudal para a foz. Um gato espreguiça-se no beiral da janela que foi aberta para refrescar a casa dos exagerados efeitos estivais que não desarmam por dias consecutivos.
Em desuso da maré, dois rapazes cambaleiam pela avenida fora vociferando coisas ininteligíveis, à mercê do álcool excessivo e da boémia incorrigível. Uma senhora de meia-idade, sentada na paragem do autocarro, ao início olha com desconfiança para os estroinas tardios, mas depressa os mete no desolhar da irrelevância. Contrariando a impressão de que o tempo estava interrompido, o dia clareia ainda antes de o sol começar a tomar conta do seu lugar.
Não tarda, o sortilégio da madrugada extingue-se: os carros invadem a avenida, as árvores agitam-se provavelmente com a agitação da cidade (pois o vento continua nulo), os aviões sucedem-se numa desenfreada correria para a pista de aterragem, se estivesse a chover a chuva cairia célere, os pássaros terçam voos rasantes, o rio ri-se da cidade enfim viva, o gato sacia a fome, os estroinas recolhem-se aos aposentos e a senhora de meia-idade, já de esfregona na mão, faz a limpeza dos escritórios da empresa multinacional.
E a madrugada, breve interrupção do tempo em sua forma maravilhosamente madraça, deixou de o ser. Devolveu a normalidade à cidade usual.

27.7.16

Direito de resposta

Nick Cave, Kylie Minogue, Shane MacGowan, Blixa Bargeld and Mick Harvey, “Death Is Not the End”, in https://www.youtube.com/watch?v=Ao0lyPjYQw0
Não vai sem resposta: uma estocada afivelada no dorso não pode merecer silêncio. Se o dorso fica a sangrar e o sono se encolhe com a honra enquistada, o silêncio não pode medrar na inconsequência da infâmia. A infâmia não é inconsequente; vem atrelada a corolários. O imperativo do direito de resposta é o primeiro, e mais fervente, deles.
Às vezes, é só pela usura da polémica. Um pingue-pongue de argumentos esgrimidos. Recompensa, se houver respeito mútuo e se for prestado tributo à livre e tolerante troca de argumentos, sem que um dos antagonistas esteja movido pela obrigação de levar de vencida a polémica. A discussão fermentada pelo estímulo intelectual da discussão. É quando o direito de resposta se repete pelo tempo fora, num rol de argumentos e contraposições e novos argumentos e, se preciso for, desvios laterais à conversa para a enriquecer.
Às vezes, o direito de resposta é uma defesa de honra. As circunstâncias opõem-se ao direito de resposta que se exige na intensidade de uma improfícua discussão: há um ultraje que a pessoal sensibilidade não admite deixar sem contestação, ou a invocação do nome pessoal sem a coragem de escrever o nome com as letras todas. Não é linear o direito de resposta aos mesquinhos que fazem juras a pessoais impaciências. Depende dos humores atados a um determinado tempo. Às vezes, o melhor é deixar os injuriadores a falarem sozinhos – é a resposta que mais os agasta. Outras vezes, quando a bonomia está em baixa e o mau humor pede meças a um litígio aceso, o direito de resposta não pode ficar sitiado na indiferença.
O mal é que, às vezes, o pleito traz a palco atores de baixa igualha, covardes que disparam a artilharia nas costas do oponente, canhestros motivados por recalcamentos pessoais exteriorizados para outro na impossibilidade de conviverem com esses recalcamentos. Num primeiro instante, apetece dar troco aos putrefactos que jogam no tabuleiro da covardia, da manipulação, da baixeza de métodos. Quando, a certa altura, a troca de argumentos se mete na penumbra dos primatas, o direito de resposta tem de ser sacrificado.
Melhor seja que impere o silêncio. A páginas tantas, já não passa de dar pérolas a porcos balofos. A estrumeira fica para os porcos. E as pérolas, guardadas sejam para quem delas seja merecedor.