29.4.11

Dia de S. Casamento


In http://weddingringsite.net/wp-content/uploads/2010/06/wedding-rings.jpg
Caminho pela rua enquanto o sol primaveril resfolega temperatura estival. Ao cimo da rua, a passo de caracol, desce um carro velho, a pintura desbotada pelas muitas horas de sol e correspondente falta de garagem. Transporta um casal de velhinhos (diria septuagenários) que gesticulam com abundância. Como o estio antecipado convidava às janelas desembaraçadas para receberem o frescor, notei que os velhinhos iam numa refrega acalorada. Deu para entender o chorrilho de impropérios que ela disparava, ao que ele ripostava com vozearia e esbracejar que perigava a segurança da condução.
Hoje o mundo amanhece com uma excitação colectiva por o herdeiro da coroa britânica esposar uma plebeia. Gostava de compreender o que leva tanta boa gente a deitar os olhos a um casamento que não seja o próprio. Descontando as fantasias febris de umas adolescentes com rosto embebido em acne e as fantasias inofensivas de trintonas, quarentonas e cinquentonas que parecem resgatar os tempos áureos de matrimónios exauridos, ainda estou à espera que me expliquem a algazarra que por aí vai. Ou pondo a interrogação em tom menos coloquial: qual é o contributo desta boda real para o avanço do mundo?
Que os súbditos da coroa britânica (os que ainda ajuramentam fidelidade canina à monarquia) andem extasiados com a boda, é coisa natural. Que os de fora percam minutos e horas e dias inteiros a desenovelar os detalhes mais ínfimos da festança, é algo que transcende o meu entendimento. Qual é a serventia desta boda? As dondocas militantes – as solteironas que não conseguem soltar âncora do celibato e as tias vaporosas que se entretêm com bodas luminescentes dos outros para compensar as decepções do matrimónio próprio – entram numa torre de marfim que é um mundo repleto de ilusões.
Dizem-me que as quatro televisões generalistas vão transmitir a boda. Não há alternativa para os comuns dos mortais sem televisão por cabo. É casamento real, ou casamento real. Ou televisão apagada. Lá pelo meio da função, quando todas e todos estiverem no auge do encantamento com as imagens que fazem lembrar fadas que distribuem regalias pelas desaventuradas, talvez haja muitas cabeças na lua. Muitas cabeças a sonharem acordadas. Não estou a insinuar que os sonhos sejam coisa ruim. Mas tanto sonho em uníssono é falta de imaginação.
As monarquias, essa coisa arcaica, mostram serviço de actualização à contemporaneidade. Dantes, os príncipes e as princesas só podiam casar entre si. Era uma coutada fechada à ralé. Agora as monarquias desembestaram a poeira dos sótãos mentais e admitem que os seus percam aquela apetência para o quase incesto e troquem fluidos com gente plebeia. O povo encanta-se com o modernismo. As regalias sanguíneas (como é sabido, a nobreza distingue-se por trazer nas veias sangue azulado) já não servem para excluir. Os mais jovens membros das realezas também querem experimentar as delícias plebeias. É a inflação das fantasias de muita gente enamorada pela tremenda abertura mental das realezas. As monarquias também se democratizam!
Um salto em frente no tempo, até a um dia daqui a quarenta anos. Só para um mirone, testemunha de uma desavença conjugal entre o casal do momento, vir do futuro até ao dia presente para narrar o episódio. Descontando a grosseria do casal de velhinhos que discutia com fúria dentro do velhinho Renault 5, haverá outras diferenças?

28.4.11

As criancinhas têm que saber as entrelinhas


In http://www.sepleu.pt/images/literatura-infantil1.jpg
Um livro infantil. Os protagonistas: quatro personagens que retratam diferentes formas de imundície. Fogem a sete pés do asseio. Os quatro protagonistas não são – não se pense – os maus da fita. São mercenários da rebeldia, os dois olhos sempre atentos às brigadas que vasculham todos os lugares na repressão da sujidade que semeia doenças e espalha a desagradável anti-estética.
Travei conhecimento com o livro numa recensão na Rádio Universitária do Minho. Por desatenção inicial, não fixei o nome do autor e do título da obra (e as mãos ocupadas no volante não deixaram registar os dados do livro numa mnemónica). Nem memorizei os nomes infantilizados dos arremedos de porquidão que eram os heróis da historieta. Fiquei a saber – porque o especialista em literatura que desfolhava a recensão o ensinou – que os petizes depressa vão entender que a mensagem está no oposto do que se supõe ao reter a literalidade do livro. As criancinhas, tão lúcidas quanto a maturidade já admite, vão ler a narrativa e depressa tiram as conclusões como deve ser. É tudo no seu contrário: os maus da fita é que vêm coroados com a sacra aura e os bonzinhos são diabretes da sujidade que os pequenos leitores combatem no quotidiano.
Agora há, no género da literatura infantil, histórias que encerram segundos sentidos. Pior: que cogitam uma “lição de moral” (que as histórias infantis adoram pregar “lições de moral”) nos antípodas das revelações da narrativa. Compete aos pequenos leitores perceberem que a história não é para ser seguida à letra. Admita-se que os petizes nascem com especiais dons, desconhecidos das gerações anteriores. Admita-se a sua proficiência – vá lá – pela informática, a destreza com que mexem em computadores e consolas de jogo e afins. Daí a fazer de cada criancinha uma sobredotada vai uma diferença abismal. Se os petizes ainda estão no tirocínio da leitura, como são capazes de descobrir as entrelinhas do texto?
Dirão que é para isso que serve a leitura acompanhada. Os pais, avós, ou irmãos e primos mais velhos estão ao lado de uma criancinha quando ela se aventura em leitura infantil elaborada. As leituras orientadas têm essa serventia: o narrador não se limita a reproduzir as palavras escritas no livro; é o condutor da narração, com as exclamações devidamente enfatizadas, pausas que expliquem o que merece contextualização, um intervalo quando aparecem palavras dispendiosas que só na cabeça dos autores de literatura infantil são vocabulário comum dos leitores de tenra idade.
Desconfio que muitas vezes nem com leituras acompanhadas a coisa lá vai. Há tanta iliteracia funcional por aí, tantos doutores e engenheiros incapazes de tirar o sentido de um texto, que até os que se prestam a serem guias de leitura em histórias infantis mergulham em tristes figuras. O mal é que, convencidos da lhaneza da história e que o seu sentido só pode ser o que se subtrai da literalidade da narrativa, nem dão conta das tristes figuras por que passam.
Assim como assim, nota-se (agora que a Primavera trouxe as primeiras temperaturas com sabor a Verão) que a higiene pessoal não é predicado farto, sobretudo quando frequentamos locais apinhados de gente. Como pode o especialista em literatura abonar que até os progenitores dos petizes sabem aclarar a mensagem daquela narrativa sobre hábitos de higiene? Às duas por três, teríamos muitos adultos (em pose de guias de leitura) a ensinarem às criancinhas que aquela historieta destrói o mito urbano da higiene e da salubridade. 

27.4.11

Com punhos de renda, a boçalidade


In http://barbaranonato.files.wordpress.com/2011/02/garcon1.jpg
(Para ser lido com a entoação que Mário Viegas emprestava às declamações de poemas)
Naquele fim de tarde, um pipi emproado aterrou na mesa do lado. O nariz virado ao alto, as golas da camisa em pose negligente, já sem a gravata vistosa que anelara aquelas golas, a farpela toda ela donairosa. Até trazia botões de punho na camisa de cerimónia. Amesendou. Em estando o estaminé a meia casa, o distinto exemplar de uma elevada casta incomodou-se com a demora no serviço. “Homessa!” – pensou com os seus doirados pergaminhos – “estou aqui sentado há quase dois minutos e nenhum empregado se dignou perguntar pelo serviço que queria encomendar”.
Contrariado, uns sopros de azia soltando-se entrementes, o pipi garboso estendeu a mão ao alto e com um gesto intempestivo chamou o imediatamente acabrunhado garçon enquanto os olhos percorriam os passos de uma loura vaporosa que passeava uma negra e curta minissaia. Interpelado pelo empregado de mesa, o pipi dos punhos de renda disfarçou indiferença. O rapaz ficou inerte, sem esboçar uma reacção, não fosse atraiçoar o segundo mandamento das relações públicas da casa (“não incomodarás o cliente”). O distinto homem de meia idade disparou com voz seca, sem olhar para o servente: “traz-me um fino e tremoços”.
A mãezinha ensinara que os tratos de polé de uma educação refinada, que exigem a expressão “por favor” quando se pede um favor a alguém, só têm serventia quando são destinados a gente da mesma igualha. Os de condição inferior, como decerto o são os que servem à mesa, não merecem tamanha regalia. Os serventuários foram feitos para trazerem os pedidos dos clientes à cozinha e regressarem com as encomendas na sua diligência.
Não passaram três minutos e a personagem toda empertigada, enquanto lambuzava os dedos depois de enfiar no bucho os primeiros tremoços, chamou o empregado de mesa com distinta arrogância. Outro gesto autoritário, a mão farsante a arquear o humilde servente até à mesa. Outra vez a voz afirmativa em tom despótico: “estes tremoços estão insossos. Traz-me sal.” Nem o terceiro fino demoveu a pesporrência. E o empregado de mesa afundando-se na pequenez a que era acantonado pela nobreza resplandecente do ilustre de alpaca.
No fim da função, ergueu a mão com o desdém rotineiro e requisitar a conta. Antes de pegar no dinheiro, inspeccionou a factura com minúcia – como se uma malga de tremoços e três finos equivocassem as contas. Como tinha que terminar a tarde incomodando alguém que estivesse na base da pirâmide da religiosa hierarquia social que tanto prezava, esperou que o rapaz viesse recolher o dinheiro – o dinheiro bem contado, sem um cêntimo para amostra de gorjeta. Só para o altaneiro representante de uma superior casta deixar a derradeira impressão digital, enxovalhando o pobre rapaz que já não sabia onde se meter de cada vez que era chamado à aziaga mesa. Os nós dos impacientes dedos batiam na mesa enquanto o rapaz arrastava, a medo, os sapatos. Para ouvir estas palavras troarem da boca encolerizada da donairosa personagem:
- Diz ao patrão que os tremoços têm que ser salgados. E a cerveja que me serviste estava choca e tépida. Diz ao patrão: que o estabelecimento já teve os seus melhores dias.
No dia seguinte, sensivelmente à mesma hora, lá compareceu o idiota da superior casta para afogar as angústias de um dia de trabalho enfadonho. E as angústias da sua vidinha, da miserável vidinha que levava.

26.4.11

O cadastro do ADN canino através da merda expelida


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Um naco de escatologia. Canina. Numa localidade do País Basco (Hernani), os donos de cães apanhados em contravenção – os que se esquecerem dos dejectos dos animais na rua – serão identificados, perseguidos e multados. As proezas da nova engenharia social são imparáveis. O que se segue é uma forma romanceada de narrar o episódio.
Um crânio terá sussurrado aos ouvidos da autarca que os cagalhões de cão espalhados pela rua são um terrível desconforto público. O poder alvitrou uma campanha de educação dos proprietários de cães. Que não terá corrido bem. Um belo dia soalheiro da autarca foi perturbado por uma momentânea distracção que fez a senhora colocar o dispendioso sapato em cima de um dejecto canino, deformando-o. Em saltando raios e coriscos da enfurecida senhora, a decisão tomada ali mesmo: a educação dos donos dos cães não tinha sido conseguida com profusamente ilustradas campanhas e pontos de recolha de sacos de plástico para subtrair a merda canina ao chão público. A educação requeria meios estrepitosos. A ordenança foi esboçada em duas penadas a caminho do automóvel, enquanto um zeloso lacaio escorria a mistela viscosa e acastanhada do delicado sapato da poderosa senhora.
Esta sequência inventou uma leva de empregos. Decerto bem remunerados, tendo em conta a especialidade da função e a relevância social da tarefa – quem alguma vez já pisou em cheio um pedaço de bosta canina sabe do incómodo.
Foram abertos concursos públicos para habilitar a ordenança. A começar (na base da pirâmide) por agentes apenas incumbidos de passarem a pente fino as ruas da cidade à cata de dejectos esquecidos numa visita higiénica do cãozinho. Munidos de armamento especial (sacos de plástico higienizados, uma pá de precisão e vestuário protector incluindo máscara contra as inalações indevidas), estes agentes recolhem os cocós deixados ao deus-dará por donos esquecidos ou distraídos (ou desconhecedores da implacável ordenança).
Nas instalações da autarquia, uma ala reservada para o tratamento científico dos restos bolçados pelos intestinos caninos. Uma brigada de especialistas (analistas clínicos com conhecimentos de zootécnica) deita na lente do microscópio um vestígio laminado do dejecto trazido pela brigada de recolectores. Vão em demanda do ADN correspondente. Três passos atrás no calendário: nos primeiros seis meses da vigência da ordenança, os donos de todos os cães foram intimados a levar os animais para cadastramento. Amostras de sangue recolhidas para sequenciação do ADN. A ordenança mandava que todos os cães nascidos entretanto fossem ao cadastramento na primeira vacina. Estava feita a base de dados ADN dos cães da edilidade. É contra esse cadastro que os dejectos caninos são comparados. A identificação dos prevaricadores (os donos, que os animais têm que soltar as excrescências algures, à falta da invenção de sanitários específicos) é imediata.
A última fase deste CSI canino decorre noutro gabinete. Jovens advogados contratados apenas para a contravenção da merda canina instruem os processos que desaguam em multas que enchem os cofres da autarquia. Foram treinados para uma abordagem agressiva em tribunal, caso os teimosos donos enxovalhados pelo CSI canino recorram da multa.
Como é idílica a nova engenharia social! Que educa à força os boçais que ainda não perceberam que as sobras intestinais dos cãezinhos de estimação não devem emporcalhar as ruas da cidade. Só é pena que, com o tempo, a educação forçada mostre resultados. À mingua de cagalhões caninos espalhados pelas ruas, toda aquela brigada de especialistas começa a ser perfumada pela inutilidade. 

25.4.11

Tréguas


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As inquietações que ferviam as palpitações ao rubro tinham um freio à medida. Já não sobejavam os sobressaltos em coreografias selvagens com punhais a adejarem. Já não havia o tempo tomado pelas angústias assolapadas que desviavam os sentidos para desvarios inconsequentes. Era como se uma tempestade medonha dissolvesse as nuvens plúmbeas num céu luminoso.
As mortificações, inúteis como são todas as mortificações, tinham o seu próprio ocaso. E se todos os lugares pareciam salas frias onde se compunham paredes estéreis, os dias curvavam a aridez que povoava os pensamentos. As paredes ganhavam uma espessura colorida, as tonalidades irrompendo com a timidez esperada. Deixavam de ser lugares gélidos onde não pareciam medrar os sentimentos sem serventia. Lá por dentro, um intenso processo depurativo. Tudo se decantava após a longa digressão pela aridez atormentada. Às voltas com os fundilhos do ser, como se a escassez de forças buscasse na profundidade mais remota uma réstia, uma réstia que fosse, para reacender uma chama.
E a candeia sobressaiu. Vingou a chama que a certa altura parecia apenas uma longínqua promessa. Os olhos despertaram para a beleza das coisas, para a exiguidade das palavras que contudo soçobravam diante da grandeza de quem as proferia. Os olhos, diletantes, partiam incessantemente em demanda do desconhecido. Não é que o vocabulário dos prazeres fosse reaprendido, os prazeres de outrora remetidos a uma remota lembrança que deixara de importar. Não: a esses juntavam-se outros tantos, outros mais, numa vertigem imparável. Era como se cada dia dobrado contasse por três dias de uma era anterior.
Todos os detalhes continham a preciosidade do ouro. O voo de um pássaro que arremetia contra a nortada furiosa. Os meninos a cirandarem à volta do areal, descompondo as areias alisadas pelo vento agreste. Ou um castiço estrangeiro na mesa ao lado, chapéu e botas de cowboy, uma camisa florida e um colar de flores a fazer lembrar o hula hula havaiano, enquanto degustava cada gole do enregelado vinho branco e falava sonoramente em inglês americanado ao telemóvel. Ao longe, como miniaturas mar adentro, a miudagem desafiava o sol que se ausentara e a água habitualmente própria para refrescar garrafas de vinho branco. A gente profusa na avenida junto ao mar, irradiando alegria pela primavera que depôs a vagarosa invernia. E os olhos que se demoram nas observações do tudo em redor, enquanto ao longe nuvens carrancudas, pressagiando trovoada, espreitavam o descerro de nova tempestade.
Os contornos dos dias passaram a ser embelezados pelas cores que emprestavam a sua radiosa feição. A depuração anunciava-se completa. E nem a trovoada que se acercava parecia desatar os nós dos sobressaltos que teimavam em errar (emudecidos todavia) pelo córtex. Os temores pareciam entregues no rescaldo da história. Que demência podia refulgir outra vez se havia panos novos, alvos panos novos, preparados para receber um aluvião de cores garridas deposto pela sucessão dos dias inteiros?
Os dias não se perdiam nas demoras em ininteligíveis vigílias interiores. Os dias presentes (os que contam) sabiam que essas demoras estavam fadadas à sorte bastarda. 

22.4.11

O pudor e os palavrões


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Li, já não sei onde, que uns cientistas descobriram que proclamar palavrões solta a tensão acumulada. É uma terapêutica. E uma cilada: se não estamos tensos, por que proferimos turpilóquios?
Ao reler a notícia, lembrei-me do último filme que vi no cinema (Tropa de elite 2), um filme brasileiro que retrata a luta contra o narcotráfico nas favelas do Rio de Janeiro. Não se passa um minuto sem que um dos actores não dispare um palavrão dos feios. Vem isto a propósito dos tratos de polé que a língua merece do lado de cá do oceano. Como é por demais sabido – porque o ouvimos na rua e em certos meios mais reservados onde se pratica a desenvoltura do calão – os palavrões são correntes. Todavia, não passam para as artes com a mesma frequência que me foi dado a ver naquele filme brasileiro (e noutros de que fui espectador). Serão os bons costumes a falar mais alto? Ou apenas um pudor entaramelado em hipocrisia? É que reservamos a linguagem de caserna para certos meios, para as circunstâncias adequadas. Quando envergamos traje de gala coramos de vergonha se escutamos vernáculo de tasca.
A literatura sempre teve menos pudor. Há páginas a eito carregadas de calão, personagens – ora populares, ora das elites – que não se ensaiam para debitar o vocabulário indecoroso. Mas no trato pessoal, manda a educação que a linguagem não escorregue para o chinelo. Deve ser outro trauma das sotainas que habitaram tempo de mais na educação dos petizes, quando havia aquela confusão entre igreja e educação oficial (que ainda a há, por sinal – e em escolas públicas).
Se a comparação se fizesse com outras línguas, os exemplos de que me recordo (em inglês, francês, espanhol e italiano) atiram-nos para as catacumbas do puritanismo. Tive aulas em Inglaterra em que os professores escorregavam com facilidade para o “fuck” ou para o “shit”. E ninguém corava, nenhum de nós ficava boquiaberto a olhar para o lado. Talvez o problema seja nosso, que nos duplos standards que aplicámos à língua (à que se fala na coloquialidade que a circunstância exige e à que se liberta de freios num ambiente descontraído) nos prendamos ao sentido literal do calão. Em solenidades, ou quando o recato o impõe, palavras proibidas. Senão solta-se o estigma da calúnia.
Ai de quem mande f***r outrem, que é tido como ofensa que desqualifica. O que só será o caso das frígidas ou dos que se incomodam com a prática do acto sugerido pelo palavrão em causa. Mas se estivéssemos a toda a hora a captar o sentido literal da linguagem obscena, coitadas das mães dos árbitros de futebol – as maiores meretrizes de que haveria conhecimento, pelo menos na boca dos monos embebidos na excitação desportiva que abusam da verborreia calaceira. Não sei se algum sociólogo, ou antropólogo, ou mesmo filólogo, alguma vez estudou a correlação entre palavrões e sexo. É desprestigiante para o sexo que o calão que apouca alguém remeta para uma certa dimensão violenta, ou pelo menos ofensiva, do sexo. Talvez isto tudo explique porque lidamos tão mal com as palavras malditas que cozinham a linguagem grosseira que envergonha os bem-educados (e denuncia os que o não são).
Mas agora que a minha mãe é internauta, tenho que ter cuidado com a linguagem. Não se dê o caso de ser deserdado.

21.4.11

E se a esquerda fracturante abraçasse uma causa da direita conservadora? (Repto às feministas assanhadas)


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Mais polémica fabricada na Hungria: o partido do governo quer distribuir dois votos pelas mulheres que já passaram pelas aflições da maternidade. A direita conservadora explica ao que vai: é preciso precaver as gerações futuras, as que penam os efeitos (financeiros) das decisões das gerações actuais. Sendo menores de idade e sem suficiente educação política (nem lucidez), é-lhes vedada a voz nas mesas de votos. Problema resolvido: pronunciam-se as mamãs pelos petizes.
A notícia manda dizer que a ideia não é insólita. Em 1986, um demógrafo norte-americano (Paul Demeny) assumiu a paternidade da ideia. Anos mais tarde, ela foi atirada para a discussão pública na Alemanha, mas acabou por abortar. E nós, educados no preceito herdado da revolução francesa (uma pessoa, um voto), esmagados por este abalo telúrico que redesenha os fundamentos da teoria política democrática. As progenitoras embolsam dois votos por o terem sido. Falando, através do voto, por si e pela prole.
Confesso uma curiosidade, direi, mórbida: que alguém auscultasse feministas assanhadas. As senhoras, sempre muito vanguardistas, têm por hábito residir na extrema-esquerda fracturante. Que diriam se lhes dissessem que os conservadores húngaros (que elas, em duas penadas, alcunhariam “extrema-direita”) propõem que as mulheres que são mães tenham mais votos que o sexo masculino? Era o nirvana para as feministas exaltadas. O sonho há tanto ambicionado.
Adorava vê-las em conciliábulo com a execranda (para elas) direita conservadora húngara, festejando o apogeu da discriminação positiva. Tilintando os cálices, o champanhe borbulhando à medida que se desfraldavam os sorrisos faustosos nelas e neles (e nelas, as da direita). Só que os motivos da empanturrada celebração diferiam para os parceiros. Desde direita conservadora, um odor a beatice dos valores da família (como se fosse imperativo fabricarmos muitos meninos para evitar a invasão dos bárbaros que repõem o equilíbrio demográfico). O argumento da justiça entre gerações encerra um mérito. As que não tem voz pelo voto são desprezadas pela demência dos governos que se atiram para a frente e agigantam os desequilíbrios das contas públicas. Mas duvido que as gerações silenciadas sejam protegidas dando mais votos às mamãs.
Primeiro, pode dar-se o caso de os infantes que teriam voz através do voto da progenitora não se reverem, assim que ganhassem lucidez política, nas opções da mãe. Depositar na mãe a confiança e as escolhas dela e dos filhos pode ser uma medida grosseira de justiça intergeracional. Segundo, se a ideia se espalhasse pelos quatro cantos onde há eleições periódicas, adivinhava-se uma corrida desenfreada à maternidade sobretudo pelas mulheres mais politizadas. E, talvez a surpresa maior, algumas feministas de rolo da massa na mão apressar-se-iam a fazer filhos só para cumprirem a quimera de dois votos na ponta da sua baioneta (perdão, caneta). Terceiro, esta medida é um embuste: por que não distribuir tantos votos quantas as vezes que as mulheres singraram na maternidade? E quarto: às malvas os homens, que também deram o seu contributo para as gestações. Teriam um singelo voto, sem se poderem opor às mães dos seus filhos caso elas teimassem em votar em alguém que não coincidisse com a opção do quinhão masculino da parelha.
Tudo isto deve ser em homenagem à sacrossanta discriminação positiva. E as feministas de papo cheio. Imagino, contudo, os tumultos fermentados pelo lobby LGBT. Não se pode contentar toda a gente. O mais delicioso seria ver as feministas assanhadas aplaudirem com entusiasmo uma medida de um governo da direita conservadora. Uma pérola de fina ironia.

20.4.11

Radicalismo


In http://helionunes.files.wordpress.com/2007/04/ruinas.jpg
Os despojos tomaram conta do soalho. Caóticos, eram o mostruário dos escombros que já não tinham serventia. As lágrimas podiam ser o enxovalho das ilusões. As lágrimas, as vertidas e em esboço, embaciavam a curvatura dos olhos por onde se decanta a lucidez.
Era o pano de fundo para a devastação que se predizia. Há alturas em que a coragem dos sentidos não pode embotar. Nem capitular diante das mãos trémulas que requestam o refúgio das decisões. Das que se impõem quando já nenhum relógio aceita os adiamentos que perfumam a hipocrisia. Podem doer. Podem revolver tudo desde as entranhas à epiderme, em forma de monstruoso vendaval que tudo descompõe. Mas são uma necessidade sem adiamento.
Jogavam-se as palmas das mãos contra as paredes frias. As paredes onde soçobraram os últimos vestígios do que quer que fosse. As paredes pareciam feitas de um viscoso material, as mãos fundindo-se nelas, marejando os devaneios repletos de inutilidade. Nas paredes frias, dantes incolores, recresciam as gotas de sangue derramadas pelas cicatrizes que voltaram a mostrar o carmim da carne viva. Havia mãos desencontradas, olhares que não se emproavam em uníssono, cores desgarradas a trinarem as melodias desacertadas. Já não era água, nem a pureza de um ar embolsado num unânime arquejar. Já não era nada. Era a agonia de tudo.
Diante dos nadas, ou nos mantemos respeitosamente cabisbaixos na negação de nós mesmos, um esboço de gente, apenas. Ou levita-se a grandeza de fitar o horizonte com a cor dos olhos que em nós anda, sem temor quando o pano do cenário for levantado e desvelar o palco inteiro. A constância dos elementos fertiliza a monotonia onde se dilui o sal da presença. Às dissimulações, o papel de perfunctória sepultura onde todas as frivolidades decaem. Ser refém da solidez que era um embuste, era a traição ao amplexo de sensações amotinadas em asfixiante remoinho. Seria uma traição interior. Uma indesculpável traição.
Quanto mais os dentes rangiam a raiva interior pela admissão do estrépito, mais se levantavam fantasmas que aliciavam a quietude. Numa convulsão tempestuosa, as ondas erguiam-se na ferocidade dos adamastores que ufanavam a barba hirsuta que não ocultava a tremenda ira fervente. O sangue em ebulição caldeava a combustão das veias, quase em ponto de incineração. E a cabeça no limiar de uma implosão, a cabeça que não cerceava o seu latejante pensar, desembainhou as arestas de uma resolução.
Pecaminosos diabretes adejavam nos arredores do pensamento, esbracejando os milhares de arrependimentos que podiam sobejar. A sangue frio, só podia ser a sangue frio. As palavras entoadas em toda a sua violência. Porventura implacáveis, mas imperativas. As palavras que ciciavam a carência das ausências interiores. O que se insinuava por diante eram ruínas, a imagem perfeita da decadência. Os pecaminosos diabretes jazendo, um após o outro, na putrefacção que se juntava aos escombros empoeirados. Derrotados pela frugalidade dos ímpios sentidos que não se comprazem com as muitas léguas de distância até se sentir o odor, por longínquo que seja, da plenitude.
Há quem lhe chame radicalismo. Outros, porventura mais assisados, usam lente diferente e emparelham outro atributo: destemor. E lucidez. 

19.4.11

Éramos dementes?

In http://mjfs.files.wordpress.com/2007/09/pav-rosa-mota.jpg
Nas irrupções da adolescência, quando a rebeldia latejava o seu musgo por dentro das veias, era como se enlouquecêssemos. Queríamos provar a destreza, ou a bravura, que com frequência se confundiam com temeridade  sem medida. Os passos eram dados sem olhar à bitola da perna. O sangue fervente que vinha à cabeça comandava os furores de cada momento.
Lembro que uma noite não nos apeteceu pagar o preço simbólico da entrada no Palácio de Cristal. Íamos aos matraquilhos, aos flippers, aos carrinhos de choque e terminávamos a função com o cachorro acompanhado por umas cervejas que bebíamos com sofreguidão. Nessa noite, quisera um de nós experimentar a entrada pela porta do cavalo, o lado oposto da entrada por onde iam ao recinto as pessoas de bem. Naquela noite, julgáramos que não éramos pessoas de bem. A rebeldia em apoteose era a barreira, a artificial barreira, que se impunha. Um de nós sugeriu que entrássemos com manha, trepando a íngreme escarpa que divide a Rua da Restauração do recinto amuralhado do Palácio.
E nós, que nada sabíamos de alpinismo, metemos as mãos entre os pedregulhos acintosos e o musgo traiçoeiro escondido entre os recantos do muro de pedra tão íngreme. Naquela altura, a iluminação pública era de uma timidez tal que quem passasse na rua não notava o bando de pelintras fazendo o caminho até à ilegal entrada no Palácio. Havia alturas em que parecia que tínhamos que recuar. O passo que se seguia até à próxima reentrância das rochas era maior que o corpo adolescente que trazíamos. Esticávamos o corpo, mas as mãos eram pequenas para a próxima reentrância. A batida em retirada não era alternativa. Haveria o orgulho imprudente de ficar ferido. O mais que não fosse, um dilema acelerava as palpitações: retroceder era mais árduo que a parte da ascensão que faltava.
Estudávamos as hipóteses. Um de nós, que seguia mais atrás, deu três passos laterais e descobriu outro sendeiro que ia mais a direito pela parede de pedra que se empinava de modo temerário. Às vezes assustávamo-nos com as pedras que se desprendiam quando as mãos beijavam solo sem firmeza. Os que estavam em baixo levavam com os calhaus que iam aos solavancos pela ribanceira.
Quando chegámos ao topo e, um a um, subimos o degrau sobrante até saciarmos o gosto da ilegal entrada no Palácio, olhámos para baixo. Por fim, um a um, a coragem de desviar os olhos para o que vinha atrás de nós. Nunca passou pela ideia se um passo fosse em falso e o corpo, e os corpos dos que viessem atrás, fossem aos trambolhões pela escarpa abaixo. Ninguém, na pose triunfante da adolescência garbosa, teceu as entrelinhas do colapso. Depois da contemplação ufana do feito, um de nós atirou em jeito de desafio: “isto deu mais pica que atravessar a pé o arco da Ponte da Arrábida”.
Agora que é presente, quando passo e olho de esguelha para o precipício que assaltámos, sou acometido por um arrepio que atravessa as costas de um lado ao outro. Um arrepio acompanhado de uma interrogação: como foi possível? Podia deixar vociferar a sensatez toda. Podia renegar a proeza. Um dia destes, parei o carro diante da escarpa que acolheu uma aventura. E, depois de afastar os panos negros da sensatez toda, intuí: tinha sido proeza.

18.4.11

Os Estados Unidos da Europa, um mito


In http://fotos.sapo.pt/hk8Vz6bkmUHuKdBs3bGK/340x255
Não sei se este texto transpira derrotismo. Ou apenas a resignação que se depõe diante da realidade dilacerante. Este texto podia ser um hino a um idealismo. Uma partitura cheia de arabescos, as claves enfeitadas por uma quimera de europeísmo de vanguarda. Todavia, a utopia esbarra nas histórias que lacram a sua impossibilidade.
A Europa já leva quase sessenta anos. Cresceu. No número de países que quiseram abraçar a experiência e no projecto, à medida de pequenos passos, até dezassete países partilharem a mesma moeda. Os especialistas divergem acerca da natureza da Europa. Ficou famosa a metáfora do elefante e do cego para descrever o impasse em que caíram. Só sabem que é um corpo enorme e inamovível; desprovidos de visão, não são capazes de lhe tirar as medidas, não podendo saber qual é a natureza do animal.
Esta Europa que já leva quase sessenta anos ainda não cresceu ao ponto de, nos momentos críticos, trazer à superfície valores e interesses comuns que se  sobreponham aos egoísmos dos países? Se a Europa for uma Europa das nações, os interesses nacionais sobrepujam um suposto interesse europeu. Mas se a Europa for mais que o somatório dos países talvez faça sentido procurar um devir europeu, genuinamente europeu, e que os interesses do todo se sobreponham aos interesses nacionais.
Os acontecimentos recentes – a reacção à crise económica que se transformou em crise da dívida pública dos pobretanas – ensinam que na hora do acerto de contas os países é que se fazem ouvir. O interesse europeu é letra morta. Sucumbe perante egoísmos nacionais. E não se diga, como é costume, que cede diante dos interesses de “certos países” – tomando por junto os que conduzem a Europa, os mais poderosos. Os apaixonados do europeísmo apressaram-se a lançar a ira sobre a Alemanha. Argumentam: não soube estar à altura da dimensão europeia que não casa com os (ausentes) pergaminhos europeístas da respectiva liderança. Mas afinal, os pequenos também podem fazer mossa. Na semana passada, fez alarido a possibilidade de a Finlândia (depois das eleições de ontem) não pagar o seu quinhão no resgate de Portugal.
Compreendo as críticas dos europeístas apaixonados. Admito que, no plano das ideias (quando as pinceladas da realidade são ofuscadas por lampejos de teoria), também sou um apaixonado pelo europeísmo. O passado repleto de sangue derramado em guerras estultas é a caução deste idealismo. Todavia, é esse passado que, admito, impede que o idealismo se funda com a realidade. À falta de líderes nacionais com visão europeia descomprometida, a imensa nau que é a Europa continuará a ter um rumo errante, ao sabor dos jogos de interesses dos países. Continuarão a mandar os que podem (e quem paga).
A complicação do momento podia ser a oportunidade para um passo em frente, para os Estados Unidos da Europa? Só no papel. No tabuleiro de xadrez apenas se têm jogado os interesses dos países que contam (e de outros que, em fugazes episódios, esticam a cabeça). Não é que um oráculo destape as tonalidades do porvir, mas com a paleta de cores que vemos diante dos olhos sobressai uma Europa vetusta: a Europa em que sobrepesam os egoísmos dos países.
É a Europa que temos. Não é a Europa que quadra com o tempo dos idealismos. Eis a revelação maior destes tempos excruciantes: o idealismo europeu não consegue medrar.

15.4.11

Silhueta

In http://noite.do.sapo.pt/uploaded_images/night26-725923.jpg
Que vulto estonteante, curvilínea, se passeava todos os dias na penumbra matinal que embaciava o jardim? Às mesmas horas, o mesmo corpo adelgaçado num vestido aprumado – até parecia que passava em desfile de moda. A penumbra matinal ofuscava-lhe o rosto. O chapéu, diferente todos os dias, adensava a figura misteriosa que deslizava entre as buganvílias com a suavidade de um cisme.
Habituara-se a olhar para o relógio àquela hora para ele tão madrugadora. Travara conhecimento com a silhueta enigmática por acidente. Um dia o despertar fora extemporâneo, sem saber se a embriaguez da noite anterior já se confundia com a ressaca. Vomitara com o dolo dos foliões. Não lhe apetecera retomar as horas que devia ao sono. Pegou na garrafa de água mineral que prometia sarar as feridas da azia, arrastando os pés até à janela por onde entravam à força os primeiros sinais de sol. Cambaleante, cegou-se com a primeira luz clara da manhã. Deu de caras com o vulto que trajava um extravagante vestido carmim. Jurara que estava no meio de um sonho. Daqueles sonhos em que há pessoas a jeito de um afago e, todavia, uma qualquer algema mental aprisiona a mão.
Encarcerado no torpor matinal, demorou a perceber: não estava mergulhado em sonho nenhum. A mulher escorregava pé ante pé. O olhar parecia fixado no firmamento, desinteressado da vegetação e dos lagos onde os patos ecoavam, em contido alvoroço, a sua alvorada. Os olhos seguiram o percurso da elegante mulher que ao longe mais enigmática silhueta se tornava. No dia seguinte, o corpo acordou por espontânea vontade. Irritou-se. Àquela hora tão matinal não havia serventia alguma na alvorada. Depois do inicial torpor, um flash mental electrizou-o: tomara que o vulto misterioso estivesse outra vez na deambulação que no dia anterior incendiara o desejo.
Saltou da cama, de rompante. Atropelou a roupa desarrumada no chão. Antes, para chegar à embocadura do quarto, atropelou a que fora companhia naquela noite. Olhou para o relógio da sala. A hora era quase a mesma da véspera: dez minutos mais cedo. Precipitou-se para a mesma janela onde o sol não rompia (a aurora antevia a chegada da chuva). O jardim era só o chilrear dos pássaros madrugadores e o coaxar das rãs. Não havia vivalma. Mas não eram as vivalmas que lhe serviam a excitação. Quase desistia, derrotado pelo sono que ainda estava para dobrar, quando notou o vulto ao longe. Desta vez trazia um vestido azul marinho, mais curto, deixando entrever a curvatura dos joelhos. E mais cintado: uma cintura adelgaçada, parecia que meio braço conseguia açambarcar aquela cintura. Seguiu-lhe os movimentos mortiços, até terminar a ronda pelo perímetro do jardim. Depois, como na véspera, evaporou-se.
O resto do dia foi de cabeça aérea. Aquelas imagens fermentavam os olhos em brilho. Nessa noite sonhou com a mulher insondável. Os dias seguintes começavam com uma alvorada prematura, uma rotina que se instalara: a procissão dos pés arrastando-se até à janela, onde os olhos se deliciavam com o vulto que velava os vestígios do rosto. Nem sequer da cor do cabelo havia uma transparência.
Ao décimo primeiro dia, um frémito tomou conta dele. Calçou os primeiros sapatos que encontrou no caminho e desceu atrapalhadamente as escadas. Nem o ar frio desencorajou de atirar o corpo pouco agasalhado para o meio do jardim. Foi de encontro à silhueta. Mal se aproximou, ela soergueu o rosto e, apavorada, inverteu a viagem. Estugou o passo em manifesta fuga do intruso. Que era ele. Na voragem do instante, reparou numa melena de cabelo negro e hirsuto. E na máscara que escondia o rosto.
Voltou à janela nos dias seguintes, sempre à mesma hora. E mais cedo, ora mais tarde, prolongando a vigia. Mas nunca mais os olhos se puseram naquela silhueta enigmática. 

14.4.11

Olha o Teixeira dos Santos na capa do Financial Times


In http://pages.update.ft.com/uk/newsletter/april-2011/ce-default.htm
Há aqueles desgraçados que passam despercebidos entre a populaça. Apenas cativam a atenção quando dão nas vistas pelos piores motivos. Gente baça, irrelevante. Chega um dia em que um desses desgraçados tropeça em merda de cão e, em vez de cair de rabo, a gravidade faz das suas empurrando a queixada vertiginosamente para o chão, a queixada esborrachando-se num cacto com proeminentes picos, enquanto em redor a multidão por fim repara na existência do desafortunado. Só para esboçar um sorriso de troça, que a antropologia explica a maldade genética a escorrer do fácies da gentalha da mesma igualha que vê um dos seus fazer-se às tristes figuras.
Às vezes parece que a gente desta terra ainda não se habituou à pequenez depois de nos desembaraçarmos das colónias. Somos (ou melhor, temos a mania que somos) um gigante obrigado a acantonar-se num corpo minorca. Convivemos mal com esta esquizofrenia. Ficamos ofendidos quando os outros parodiam a idiossincrasia, a pequenez indómita, esta tendência para os outros nos olharem como os maus alunos que devem ser denunciados para não contagiarem a preguiça. E ai de alguém que zombe de nós, que o crime de lesa pátria não passa incólume. Os habituais beatos patrioteiros (numa insólita união nacional que alberga gente de heterogéneos pergaminhos ideológicos) soltam os mastins enraivecidos. Vão, para tremendo susto dos diabretes que ousaram zombar de nós, morder-lhes nas canelas. Somos pequenotes, mas valentões!
Isto e outros pensamentos na tela mental depois de ter dado de caras com o rosto extenuado e de poucos amigos do ministro das finanças na capa do Financial Times. Se fosse por bons motivos, haveriam de se esgotar as capas do jornal para, por fim, aparecer um galo de Barcelos, ou um garrafão de cinco litros de vinho corrente, ou o rancho folclórico em plena função (ou o futebolista da moda em pose publicitária) a emprestar o brio pátrio à capa do jornal. Se não vamos lá por jactanciosos motivos, que seja pelas vergonhas que nos trazem cabisbaixos e perplexos pelo austero porvir que aí vem.
Dá-se o caso de a imprensa estrangeira não cair no logro da máquina de propaganda que se esmera em atirar areia para os olhos. É pena. Os arremedos de déspotas que teimam em não despegar da almofada do poder não conseguem mover as influências (nem por intermédio da poderosa internacional ideológica) que cozinham a linha editorial da imprensa lá fora. É uma injustiça. Agora que vamos a caminho de uma excruciante campanha eleitoral, devia ser proibido dar à estampa rostos acabrunhados de ministros que são mostrados como aberrações enjauladas em jardins zoológicos.
Não há direito. O Financial Times dá cobertura a uma tremenda conspiração mundial que boicota o querido líder mais o seu infalível ministro das finanças. Não há alarme – sosseguem-se os socialistas. Assim como assim, os nativos já lêem poucos periódicos na língua materna, quanto mais jornais em língua que desconhecem. Afinal, ainda há salvação para o querido líder e para o seu meirinho do tesouro.
Bem lá no fundo, onde se perde o rasto às entranhas, sinto comiseração por Teixeira dos Santos. Não é justo que os seus “cinco minutos de fama” em tão reputado jornal venham debruados com letra sombria.

13.4.11

Espírito de contradição


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhIpaEwpsgZL5j26BfIkHY_xc0RTU6h6CPaFjvO-VJLMLr37D3YUlu9hnwoVg_VY4yBHao_6pgPk-oaiwjmQ0E-kzpRfLp9_K-2byuwt8AUUgHmrE4Vm1PnkMqiCcwvrKiB8g/s320/contradição.jpg
Queria ser guru. De uma causa qualquer, mas guru. Queria ter seguidores. E ser adulado. Queria saber que o seu nome não se dissipava ao vento das inumeráveis vezes que escorria pela escrita dos outros, pelas palavras soltas das suas bocas. Queria ter a paternidade de uma teoria, ao início promissora. Depois testada e discutida, com os seus párias e todo um exército de discípulos a crescer todos os dias.
Queria que a teoria fosse um farol inspirador. Da ciência, da cultura, da literatura – não importava do que fosse, desde que fosse uma teoria retumbante, o oratório onde iria buscar reconhecimento planetário. Queria ser requisitado pela imprensa, convidado para palestras, exortado para emprestar o nome como patrocinador intelectual de iniciativas diversas. Queria ter uma agenda tão completa que deixaria de a domar sozinho. Queria viajar à conta da teoria da sua lavra. Queria que as pessoas se acercassem do seu púlpito, com reverência, rogando dois minutos de conversa. Queria conhecer pessoas (umas interessantes, outras não) à custa da ousadia da teoria. Queria aparecer no mapa, ver as luzes dos holofotes apontadas sobre si, ser um radar sintonizado por uma multidão.
Queria tudo isso. Só com um propósito: deixar a poeira tomar conta do chão, deixar cair os tentáculos da autoridade intelectual sobre a teoria (os dissidentes sovados para um canto onde sobrasse a sua irrelevância). Para a renegar com as palavras da renegação soletradas sílaba a sílaba em coloquial evento cheio de personalidades respeitosas, com a voz pausada para que não sobrassem dúvidas. A seguir faria por sua vontade um teste à alcoolemia, só para provar a sobriedade tão solene quanto a ocasião o exigia.
Queria edificar uma teoria que trepasse quase aos píncaros do incontestável. Só para ter o sublime prazer de a abjurar quando já tivesse chegado ao estatuto de suprema autoridade. Para ver os rostos admirados do séquito incondicional. Para os notar, azamboados como se fossem baratas tontas debaixo do fogo inimigo de Sheltox. E depois ter o sublime prazer de se sentir escorraçado pelos outrora discípulos, como se houvesse lugar a uma lapidação por pecado herético (o desvio da teoria da sua lavra).
Queria tratar do tempo a desmontar, um a um, os argumentos que tornavam a teoria numa consistência. Queria provar que os anos dedicados à sua fundamentação foram anos desperdiçados num tremendo equívoco. O maior desafio de todos: mostrar os anos perdidos em convicções a que, enfim, se emprestava a espessura da falsidade. Queria ver o dia da acusação por embuste intelectual. Para ser reduzido a escombros, o prestígio esculhambado às cinzas da insignificância.
E quando já fosse um zé ninguém entre os pares, retomar a criação de outra teoria. Outra qualquer. Desde que estivesse na contraposição da teoria repelida. Só para sentir o prazer de remover as coriáceas barreiras erguidas mal o seu nome fosse entoado como perpetrador de um raciocínio. Queria sentir as dolorosas cicatrizes que se pespegam num apóstata. E queria, outra vez, pegar nas cartas tão harmoniosamente amontoadas para, num safanão seco, as depor a entulho. E escutar as vozes condoídas do séquito, berrando a incompreensão do acto.
Queria. Só para deixar de ser guru.

12.4.11

As teorias são a coisa mais imprestável


In http://www.pedagogia.uema.br/imagem/800px-Colored_pencils_chevre.jpg
Ah, uma teoria toda bonita, atirada para cima da mesa a meias com o ar ufano do seu arquitecto. Uma teoria não é dom de qualquer um. Às duas por três, as teorias são sacos enormes povoados pela fatuidade do ar maçador.
Há teorias para tudo. Temos esta necessidade febril de encaixar tudo em teorias, em categorias, como se só através das teorias as coisas tivessem um sentido. Por vezes, as teorias são uma distorção que se congemina só para os factos irem ao alfaiate e serem metidos num fato à medida. Teorias com o lacre do viés. Outras vezes, antecipam-se cenários e fervem-se hipóteses cerzidas com a linha das assertividades. Pode acontecer em mais tenra idade, por involuntária capitulação diante da ingenuidade sazonal. Quando os aniversários já caucionam a maturidade, é uma demência inexplicável.
E as teorias elevam-se desde o nada, açambarcam os rudimentos do pensamento que se entretecem. Contudo, as teorias são levadas a sério. São o catecismo pessoal, um espartilho que amputa os movimentos mentais. Elas parecem tão à prova de sobressaltos, tão impecáveis, que parece que o dedo divino nelas se pousou.
Vai-se em frente, embebido no convencimento das pessoais certezas seladas pelas teorias à prova de bala, quando um abalo telúrico fragiliza os esteios. É a prova dos nove às teorias, expostas ao dilema fatal: ou passam indissipáveis pelo abalo telúrico, os seus fragmentos ainda cimentados, o orgulho sobejando à lapela dos fautores; ou não sobra nada de pé, as teorias reduzidas aos escombros ainda encimados por uma neblina composta pelas partículas dançantes da poeira que sobeja da devastação.
Desapossada a teoria do seu pedestal, emerge uma desorientação doentia, tanta a angústia em que se consome o destroçado arquitecto da teoria derrubada. Os seus pesares são interiores consumições. Espetam ainda mais fundo o punhal. A teoria, aquela menina dos olhos tão embevecida, era de uma inutilidade pungente. Apenas uma construção interior, como se uns óculos particulares redesenhassem a paisagem que passava diante dos olhos.
Mas, ah!, quem consegue escapar a uma pulcra teoria? Elas são peças de um todo enigmático que dá chão à existência. A não sabermos dos locais por onde nos é dado existir, como sabemos que existimos? Não podem ter a importância dos que as defendem com unhas e dentes. Senão, acabamos hipotecados às teorias. Deixam de ser aquilo para que foram criadas (instrumentais) e canibalizam o criador. Põem-no na sua dependência. A teoria, uma construção humana, liberta-se do seu criador. Ganha vida própria. E abate-se como um anátema sobre o seu criador, agrilhoando a sua vontade às algemas da teoria que ganha espessura totalitária.
As teorias deviam pertencer ao lúdico. Podíamos entrar num concurso de teorias rivais. Mas sem as levarmos a sério. Só para nos rirmos à custa da desmontagem das teorias que desfilassem como aspirantes ao reconhecimento. Por que nos empenhamos tanto às teorias? Porque gostamos do casino onde se terçam as teorias. No fundo, não é um jogo de ideias. É um jogo onde os fautores das teorias esbracejam as asas, procurando elevá-las mais alto que os demais. 

11.4.11

Governo de salvação nacional, uma ova


In http://blog.comunidades.net/galeria/pide764408474.gif
Custa-me a entender como podem três gatos assanhados conviver dentro do mesmo saco apertado e escuro. É o que propõe um grupo de respeitáveis senadores da pátria, acolitado por uns outros tantos que aspiram a sê-lo quando os primeiros, por geriatria, deixarem de o ser.
Ao contexto: agora que a ajuda externa está por umas semanas (derrotado o estado de negação de quem a este desastre nos trouxe), temos que negociar as contrapartidas para convencer os financiadores. Decifrando a linguagem, vamos ficar de cócoras perante quem nos vai ajudar. Ao contrário do que possam pensar espíritos mais desavisados, não é humilhação. Humilhante foi a espiral demencial que estragou as contas públicas ao ponto de já quase não haver quem nos empreste dinheiro para satisfazer empréstimos anteriores que se estão quase a vencer.
As condições impostas são boa e má notícia ao mesmo tempo. O lado sombrio corresponde aos sacrifícios impostos pela austeridade severa que aí vem. O lado luminoso está na audácia para forçar as medidas que os de cá, os que apenas se preocupam em salvar as suas carreiras políticas e gerir o calendário de eleições, nunca tiveram a coragem de adoptar. Isto apesar de uns adivinhos da desgraça (com o guru do costume, o Prof. Boaventura, a liderar as tropas) pressagiarem o pior dos mundos.
A coisa até pode ficar mais negra, se for ouvido o clamor comovente dos quarenta e sete signatários de uma espécie de pacto de concórdia entre os partidos. Querem uma grande coligação no governo – o tal saco de gatos apertado e pardacento. Supõe-se que a extrema-esquerda (comunistas somados à extrema-esquerda caviar) fica de fora por genética indisponibilidade. Sobram os partidos que sempre estiveram no governo desde que voltou a haver democracia. Que melhores credenciais podem ser oferecidas a quem, desde lá de fora, fareja a nossa credibilidade?
Ora tudo isto me traz à seguinte interrogação: para que nos deitamos ao incómodo das eleições? A dúvida é saber se os três respeitáveis partidos da concórdia nacional obtêm 80 ou 85% dos votos. E, admito, a dúvida também está em saber por que ordem vão aparecer no concurso eleitoral, talvez para escolher o chefe da banda filarmónica. Quanto ao demais, evitavam-se umas eleições desnecessárias. Assim como assim, parece que o resultado está antedito à partida.
Metem-me impressão estes “consensos alargados”, estes comoventes chamamentos à harmonia entre partidos que não se podem ver uns aos outros. Uma hipocrisia dispensável. Dir-me-ão que quem nos vem ajudar fica sossegado ao dar de caras com um governo de ampla coligação. É como se fosse proibido divergir nestes momentos de urgência pátria. Por isso interrogo outra vez: qual a serventia das próximas eleições?
Se me obrigassem a amesendar todos os dias em companhia desagradável, era tanta a indigestão que depressa ganhava uma úlcera gástrica. Deixo de lado as metáforas e vou directo ao assunto: este clamor dos ilustres senadores é uma aleivosia. Uma aleivosia contra a democracia que, como eles devem saber, supõe a divergência e uma praça pública para discutir divergências. Parece que não aprendemos nada com os quarenta e oito anos de salazarismo e da castradora união nacional que nos legou. Até hoje, ao que parece.

8.4.11

O ego pernão


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEggZiD35cm5RWirQW16sdCtGBwt6Z-EyRIOmaw3LQOmTMnY5UIcUfCgbMFApq4lfZAvi4UU_PawNzeXchRhkqJdbhyphenhyphenHD7gwQFYFlS1sNmOVvAbwKDHYLtbb2JUJ703xoPUYtqkP/s1600/sombra.jpg
Diz-me: qual é a serventia de um ego? Um ego desmedido, como o que adeja, qual aura impressionante, quando deixas atrás de ti uma sombra. Para que serve um ego desses?
Dizem que somos ilhas. Que não existe altruísmo. Serão truísmos como os outros: falazes, encenações ludibriosas, um oráculo da incapacidade que nos agita nas areias movediças onde sentimos o solo escapar-se debaixo dos pés. E se nos disserem que há por aí muita gente empenhada à desinteressada generosidade, desconfia, que as missões pertencem aos que se desapossaram de si. Esses, na lonjura de si mesmos, são os perfeitos suicidas da sua individualidade. Covardes.
Mas, em contrapartida, de que vale sermos os nossos maiores admiradores? Será que nos contemplamos ao espelho? Será que passamos pelos lugares em demanda da benevolência dos outros – como se as carências fossem compensadas pela suposta idolatria? Na lotaria dos sentimentos, julgamo-nos taludas gordas. Matéria sumarenta que aos outros é dada a apreciar. Nisso, o altruísmo de que nos embebemos.
É quando tiramos uma estatura maior que a nossa que pisamos o lodaçal egocêntrico. Julgamo-nos majestosas ilhas. À nossa volta, ilhas menores, um séquito em forma de arquipélago. Ou então somos – julgamos ser, deveria ser dito para não trair o rigor – a estrela centrípeta de um qualquer sistema celestial, todos os demais planetas movendo-se em nosso redor. E queremos vassalagem? Pois se isso alumia as centelhas que desdobram os vértices do ego. Nessa altura, o ego inflamado toma conta de tudo. Há ciladas pelo meio, a lucidez transbordando das margens ao ponto de deixar de ser lucidez. A sombra projectada é maior que a nossa estatura.
Um especialista dos comportamentos daria elaborada explicação para os desatinos do ego que sai das suas medidas. Diria, talvez, que sobram assuntos mal resolvidos do tempo pretérito. Feridas ainda assanhadas que fogem do sal que nelas se polvilha, fogem através do refúgio numa torre de marfim onde nidifica o ego maior que a estatura do ser que somos. Uma ilusão, como se a ilha fosse um tesouro na aparência; estando despojada de gente, a ilha vale uma ninharia.
 As medidas são compassos desconjuntados. É como se as lentes dos óculos desfocassem os contornos das coisas que desfilam diante dos olhos. Essas coisas são a projecção, de fora para dentro, do ego que se passeia por fora de nós. Aos outros exigimos adulação. Porque, na mais sentida das confissões que transbordam as margens da lucidez em perdição, somos um tremendo nada se desconfiamos que não há vivalma que goste de nós. Um altruísmo metido do avesso. O centrípeto ego desfaz-se nos seus escombros quando as ilhas em adjacência limam as arestas que separam os territórios da desafeição.
O que interessa, afinal, um ego? Que medidas pungentes reduzem o ser ao ego que é de uma medida maior que a estatura? Seria a vez dos especialistas dos comportamentos lavrarem sentença. Podemos alvitrá-la. Um ego tão centrípeto é uma ilha que vagueia, sozinha e distante, no meio da planura do vasto oceano. Os passos saem todos trocados. E as medidas, traídas pela ausente calibração, desfocam os olhares.
O ego é um ardil fabricado pelos jokers da ilusão que habitam em nós.