30.11.20

Exílio apocalíptico

Ólafur Arnalds, “Ekki Mugsa”, in https://www.youtube.com/watch?v=eZ4B13ngUrY

Deixava os sonhos no formol que reiterava no constante lugar. O constante lugar: seu era o lugar, seu como pórtico de identidade. E, todavia, queria despojá-lo de conteúdo, torná-lo um não-lugar, erradicado dos mapas relevantes. Lembrava-se: é preciso coragem para alguém deixar a terra e lançar âncora num lugar desconhecido, com um idioma ininteligível, sem garantias a não ser um temível abismo de incerteza. Será como perder o chão sob os pés. O que dizer, então, dos exilados?

Em sonhos por si comandados, prometera um exílio com toda a pompa. Como se fosse acossado e a vida estivesse no frágil fio da prescrição, dissidente dos comandos imperativos do sistema. Talvez fosse o pretexto para emalar a vida para um lugar estranho e, uma vez forasteiro, arrimasse ao exílio disputado. Ou apenas pretexto para varrer as aragens rotineiras que o importunavam. Era um estranho sentimento que se apoderava: sabia onde hastear as raízes, mas nada o identificava com aquele lugar. 

E o que seria este exílio? Os sonhos, por mais que os industriasse, não deslaçavam a incógnita. Era o lado da equação que não conseguia resolver. Podia ser um exílio condoído, amesquinhando a resolução que tomara de deixar a terra mátria. Antes de haver um precipitado juízo, não seria má ideia demorar no diagnóstico. E se o lugar escolhido fosse um equívoco, não haveria lugar a um remédio, à demanda de outro lugar como mapa do exílio?

Nunca o saberia. Nem na ficção elaborada por intermédio dos sonhos que albardava no ócio especulativo. Deu conta de um luxo subavaliado. A oposição ao lugar enraizado é uma dor de crescimento, um punhal subcutâneo. Uma excrescência dos luxos de quem desconhece provações que marginalizam de um módico de direitos e comodidades. São as dores próprias de uma extenuação imprópria, ou apenas a condição insubmissa de quem desarmadilha o povoado da criatividade e não se contenta com a afluência e a paz limítrofe. 

Um exílio destes, não fosse motivado por um súbito acesso de nomadismo, seria um exílio apocalíptico. Um espancamento autoinfligido, selando uma autofagia só reconhecida a destempo. Como são todos os suicídios involuntários.

27.11.20

Um estorcegão, se faz favor

The Limiñaras feat. Nuria, “Calentita”, in https://www.youtube.com/watch?v=pPdOo2E5zOc

O corsário impertinente sentou-se no banco dos réus. A audiência estava vazia, mas ele sentou-se no banco dos réus, voluntariamente. Descalçou uma botifarra, tão gasta como (veio-se a saber logo a seguir) a peúga rota que deixava o dedo grande do pé à mostra. Se a audiência não estivesse deserta, duvida-se que o corsário se entregasse voluntariamente a juízo. Assim sendo, foi ao julgamento que não tinha juízes. Assim é fácil e o destemor não chega a franquear o limiar da intrepidez.

O corsário montou a encenação. Por sua conta e risco. Fazia de réu, de testemunha – ora abonatória, ora acusatória –, de advogado seu e do que se lhe opunha e até fez lúcidas perguntas no papel dos juízes. Mudava a voz consoante as personagens. Inventava o enredo. Ia seguindo um fio condutor improvável, a consumação de um improviso de que o corsário não sabia ser credor.

Fez questão de assumir a posição de réu. Esta era a maior coragem de todas: não é qualquer um que se entrega ao juízo alheio, sobretudo se estiver convencido da culpa num desarranjo de leis que lhe é atribuído. De outro modo, se houvesse audiência e um pleito reunido num daqueles calhamaços que os tribunais continuam arcaicamente a exibir, talvez o corsário fizesse as vezes de figura contumaz.

Disso seria ele capaz. Saber-se-ia dos dotes que à mitomania se entregava como capataz. Mas a ardósia estava vazia. As figuras tutelares da justiça, noutros preparos, àquela hora decerto saindo da higiene matinal que é preparação para o resto do dia. Não seria o caso do corsário, que não estava em lua-de-mel com a higiene. Os andrajos ajudavam a descompor a figura bestunta. Não se importava de ter sido senhor de um certo donaire num passado que a memória hesitava em codificar. O vinho descompunha o resto.

O corsário foi expulso do tribunal pelos seguranças que faziam a ronda noturna. Foi sendo arrastado em braços, que os derradeiros goles do vinho barato o deixaram quase sem sentidos. Era o que fazia mais sentido, a abolição dos sentidos. Um dos seguranças reconheceu-o de outras andanças. “Olha, é o Amílcar!”, disse, perante a indiferença do outro segurança que limpava os restos de sujidade da sua egrégia farda. “Quem é o Amílcar?”, enquanto continuava na higiene do fardamento. “É um indivíduo que conheci na tropa. Era de boas famílias. Os maus hábitos foram a sua perdição. Agora, não passa de um belisário.”

Amílcar ouvia o diálogo em pano de fundo, como se estivesse num corredor que dava acesso a um comprido labirinto e as vozes figurassem no lado contrário. Balbuciou qualquer coisa e os seguranças chegaram-se a ele. A voz entaramelada debitava umas sílabas desorganizadas. A esforço, conseguiu emitir o pedido: “por favor, quero um estorcegão. Um estorcegão, para saber se consigo sentir.” 

Os dois homens não entendiam a súplica. Logo agora, que o melhor estado acessível era a hibernação, o Amílcar queria um estorcegão.

26.11.20

“Salvo o devido respeito”

Ty Segall & the Muggers, “Breakfast Eggs” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=-9XDzL9ml5M

Muitas vezes, manda o código de conduta (já que devemos ser todos cavalheiros...) que a discordância seja precedida pela expressão cautelar “salvo o devido respeito”. Dizem ser uma fórmula de cortesia, o prelúdio ao catártico direito de discordar da ideia de quem se constituiu oponente. Como quem diz: “descontada a elevada consideração que vossa excelência infunde, venho por este meio informar o humilde direito à discordância, que, em todo o caso, não causa dano à elevada estatura intelectual nem ao respeito de que continuará a ser imensamente credor.”

É uma perda de tempo. Não temos de parecer cavalheiros para o sermos. Não temos de pedir desculpa (a fórmula de cortesia tem essa ressonância) por não convergirmos. Mal andaríamos se a divergência fosse entendida como sinal de desrespeito. Isso sim, seria o mais ultrajante desrespeito: que em nome do respeito capitalizado por um estatuto dionisíaco, o interlocutor considerasse um topete o parto de ideias diferentes das suas. 

Dizer “salvo o devido respeito” é um avatar de mesquinhez. Primeiro: a proclamação começa com o advérbio “salvo”, como se o respeito imperativo ao interlocutor tivesse de estar a coberto de qualquer golpe espúrio desferido pela ambição, aparentemente descabida, de postular uma ideia contrária. Segundo: diz-se “o devido respeito”, o selo da sanha hierárquica a que é imputada a letargia que trava o rastilho de qualquer tempestade intelectual, mantendo férreas amarras que castram a criatividade (ou o simples direito de ter as ideias próprias, por absurdas que sejam). O “devido respeito” é o compêndio de uma sociedade estratificada em que as castas superiores não podem ser incomodadas apenas porque são castas superiores. Ou: apenas porque sim, todo um programa de persuasão inane. É o império do respeitinho que é muito bonito que serve para hastear um servilismo que mantém elites que, de outro modo, há muito teriam deixado de o ser.

A reinvenção semântica pode conferir um novo sentido à expressão idiomática. Já que somos todos atores e andamos todos a fingir de conta que fingimos, que o método seja levado aos limites. Diga-se, em pleno pleito, “salvo o devido respeito” sem corar nem adulterar o tom, evitando que este escorregue para timbres irónicos (sob pena de a intenção ser desvendada). Diga-se: “salvo o devido respeito” como a negação do proclamado, como quem firma os pés no chão e, categórico, ostenta-se ao interlocutor, orgulhosamente disparando nas entrelinhas: “estou-me nas tintas para o que pensas, porque sei que, antes de mim, já tinhas devolvido a cortesia.”

25.11.20

O sol inteiro (short stories #282)

Andrew Bird, “Fake Palindromes”, in https://www.youtube.com/watch?v=UF1ZUJbd9nI&pbjreload=101

          Resumia as janelas ao estremecimento da manhã. Consegui. Lá fora ecoava o rumor da cidade, o rumor que a tornava anónima. Contra os rostos fadados, reservava ao silêncio uma torrente em combustão. Dizia, convencido: “sou o sol inteiro”. E ficava quieto, a observar a cor do céu, esse sol que já se notava emaciado, como era próprio de um outono que se entreabria ao inverno. Voltei ao lugar de onde não devia ter saído. (A empreitada estava à espera e eu, hesitante, não a lograva completar.) Fiz repousar a cabeça entre as mãos, os cotovelos como alavanca para uma emulsão lisérgica. Não dava conta de o tempo passar. Era bom que assim fosse, quase sempre. Uma mota de grande alcavala fez o seu grito banal sobrepor-se ao rumorejo da cidade. Ah, se ao menos as janelas tivessem sido calafetadas, se outra fosse a casa e a insonorização viesse com o selo da modernidade, podia fingir que não havia um lá fora. O sol esgueirou-se pela arcada da praça, entrando pela janela. Antecipou-se ao meu pedido. O dia estava inusualmente frio para esta altura do ano. Talvez o sangue precisasse de um pouco de combustão e o sol de mim fizesse a inspiração inteira de que precisava para arrematar a empreitada. (Estava provado que tivera razão antes do tempo, quando aceitei, contrariado, a incumbência.) Podia ser que eu fosse o sol inteiro, ou pelo menos como ele. E depois percebi que era isso que queria ser. As pessoas não ligam ao sol quando ele urde a sua presença por dias a fio. Nem que seja nas vésperas do inverno, quando o sol vai rareando. O ecrã do computador era uma mancha indistinta de caracteres. Os olhos embaciados pelo longor do pensamento não atribuíam inteligibilidade ao amontoado de palavras. Oxalá o sol inteiro de mim fizesse um sol inteiro.

24.11.20

A coreografia dos nómadas sem remédio

Jon Hopkins, “Emerald Rush”, in https://www.youtube.com/watch?v=4sk0uDbM5lc

De exílio em exílio: nem as pedras se enquistavam num lugar. Os lados angulares eram furtivas sombras transfiguradas por dentro. Não havia palavras anódinas. Tinham rostos, e rostos sempre limítrofes, as costuras cuidadosamente desenhadas. Aos rostos vinham coladas palavras destronadas. Não se sabia se as folhas do calendário eram apenas retas tangentes a um modo reconciliado com o devir em fila de espera.

Um rottweiler atrelado ao corrimão da padaria esperava pelo tutor. Eram mais as pessoas que se intimidavam com a sua presença que o cão a dar conta delas. É a mnemónica da vida. Um corpo que se enxerta numa vindima sem geografia enquanto as cepas vagarosamente amadurecem. Ao mesmo tempo, os elementos parecem conspirar sem razão aparente. Se ao menos se soubesse que especialidade poderia cuidar de almas assim inquietas, o resto do mundo ficaria mais perto de um calibre aceitável. Enquanto a utopia não afeia a existência, pode-se convocar o reduto onde o resto do mundo não tem cabimento.

Os perenemente exilados não se dão a um lugar. Consideram-no abusivo. Ou consideram-se indignos de continuarem a pertencer ao inventário desse lugar, se quiserem empregar uma fórmula diplomática. A vegetação desordenada torna-se exangue. Os exilados deixam de a regar meticulosamente e ela cede à indiferença. Amarelecida, apodera-se dos nómadas à força. Emalam os pertences e fazem-se à estrada. Dizem sempre que não têm rota à partida. Desconfia-se que mentem. Um nómada não se exila sob a usura do acaso.

No vocabulário dos nómadas não se inclui a palavra “bandeira”. Ou “identidade” – se a identidade for uma imperativa interiorização de um grupo. Ou sequer “paradeiro”. Porque eles não pertencem a lugares. Quando abandonam um lugar, não lhes ficam embebidos os sinais de memória. É quase como se o lugar não tivesse feito parte do seu inventário. Insurgem-se quando deles se diz “fulano, de lugar sicrano”. A partícula “de” representa o contrabando das almas. Eles não são “de” lugar algum. Nem os lugares ficam com uma sua sequer modesta tatuagem.

Se fosse feita a cartografia da dança furtiva e errante, a coreografia era um emaranhado de pontos e retas unindo pontos. Seria um mapa em cheio. Um mapa cheio. 

23.11.20

A liturgia do filho da puta

Keep Razors Sharp, “Always and Forever” (live at Vodafone FM), in https://www.youtube.com/watch?v=DhJ4HWuzuzM

No meio de uma querela, alguém insulta outrem. Acusa-o de ser filho (de uma) puta. O ofensor não percebe que a ofensa não se abate sobre o ofendido, mas sobre a mãe deste. Conceda-se: ao ouvir o ultraje dirigido à sua mãe, o ofendido tem legitimidade para se sentir ofendido. Mas só em medida indireta, por ser filho de uma putativa meretriz.

O zeloso guardador dos bons costumes – pois de outro modo encontraria outro vitupério para desqualificar o adversário – emaranha-se na especulação para atingir a mãe de quem quer ofender. Faltar-lhe-ia saber se a dita cuja senhora é, ou foi (para o caso de o ter sido e agora, devido à vetusta idade, ou por constar entre quem já foi sujeito a certidão de óbito, estar retirada da função), aquilo a que na linguagem corrente se convencionou apostrofar como “mulher fácil”.

(Num tremendo erro de diagnóstico, pois que as ditas senhoras só entregam o corpo aos prazeres dos fregueses contra um pagamento, o que serve para desmentir o qualificativo de “mulher fácil”.)

O ofensor deita-se a adivinhar, caso não conheça a progenitora do oponente. Comete uma injustiça: se é o oponente que pretende menoscabar, por que dirige o insulto à sua mãe? Na hipótese de ter travado conhecimento com a mãe do ofendido, e caso se confirme que ela transitou (ou transita) pela vulgarmente considerada “profissão mais velha do mundo”, menos é entendível o agravo: nem a ofensa é dirigida ao destinatário certo, nem chega a ser uma ofensa, pois limita-se a exercer uma constatação.

Não se confirmando nenhuma das anteriores hipóteses, acusar alguém de ser um filho da puta é uma filhadaputice (se me é permitido o vernáculo). Um ato de covardia. Seria caso para dizer que maior filho da puta é o que ofende outrem dele dizendo ser filho de uma puta, não fosse dar-se o caso de ninguém ter a certeza se o filho da puta que a outro chama filho da puta é de uma puta filho.

20.11.20

Poeira que não ganha morada

Ólafur Arnalds, “Oceans”, in https://www.youtube.com/watch?v=oKUxUWY2vLk

Ninguém sabe do cabresto e a miúfa trepa pelas veias sem precisar de rastilho. Reconhece-se a instalação da miséria que empobrece as almas. As almas anestesiam-se diante do medo. Experimentam o diagnóstico dos dias. Trazem um pouco do ar diurno à boca. São escanções do ar limítrofe. Atestam que está fora de prazo. E, todavia, é este ar empestado que combina com o calendário irrenunciável.

Amadrinha-se a esperança, atrelando-a aos dias vindouros de que nada se sabe. Há juras do estiolar do palco misantropo desenhado em apocalípticos pesares, do palco servido como armadilha. Advogados do futuro devolvido desfilam com seu sorriso descompassado, cuidam de nos convencer que estamos dentro de um parêntesis e que amanhã as palavras voltam a adejar, irrestritas, em portadas radiosas. Seremos, então, de novo tutores dos parágrafos, sem estarmos à mercê de mastins sem paradeiro que semeiam o sobressalto contínuo e adulteram a gramática do ser.

Em jeito de paráfrase, emulsionam-se as memórias. Pode ser uma emboscada. Na outra barricada albergam-se os militantemente desconfiados. Não são os de outra igualha, uma recusável igualha, dos que medram num tumular estado de negação. Os que militam na desconfiança metódica peticionam provas. Não aceitam insinuações ou estados de alma ou meras quimeras sem alicerces que apenas têm o condão de virar os espíritos do avesso. Falta o demais. A substância. Para derrotar a ilustração vagarosamente acabada, com a poeira a adejar como se fosse uma espada perene a hipotecar o que tínhamos por hábito ser. Protestam, só para que conste, que já só somos aparentados como o código genético que supúnhamos ser um dado.

Pese embora o receio, a incerteza que se fez casa comum e que se sente como um punhal constantemente engastado na jugular, olha-se para a poeira que se desenha no ar à espera que se canse. Se nos cansamos de nós, se é um cansaço imorredoiro, por que não se há de cansar de nós essa poeira conspirativa? Não se deseja que coabite com a pele exposta, que a fadiga começa a tomar pulso à impaciência. 

Por enquanto somos reclusos, encerrados em nós mesmos, desconfiados de todos os outros. Já não descemos à ágora onde nos fazíamos espécie. Recusamos, até, as palavras ditas. O outrora silêncio pedagógico é agora uma metamorfose de uma cortina de vozes ensurdecedoramente demenciais. À espera que a poeira que empesta os corpos seja exilada.

19.11.20

Um homem bom

Slove, “My Pop”, in https://www.youtube.com/watch?v=I2YfsUC7-FQ

1.    Querela

A bem da paz interior, disparadas as munições contra o cais onde a consciência procurava esconderijo. Debatia-se. As dores interiores, excruciantes, pelejavam contra o sono. A matéria infecunda povoava o pensamento, tornando os sonhos um plúmbeo peso arqueado sobre a ossatura. Não sabia por onde começar: não era um homem bom. E havia dias sucessivos que, nos interstícios do tempo, uma janela fulgurante se entreabria e bolçava um sobressalto: não era um homem bom. O padecimento não era bom augúrio. Já não sabia que verbo mobilizar para não se amotinar pelo avesso de si.

2.    Petição

Estava exaurido. O pouco sono não dizia nada. Era como se estivesse hipotecado a uma toga sem corpo, um rosto sem limites debitando sucessivas sentenças, libelo condenatório permanente. Pouco avistava da luz que se insinuava entre o gradeamento que separava o poço do resto do mundo. Não podia continuar a ser um homem mau. Não medrava no arrependimento, contudo. Sabia que ao ser um homem mau arrastara vítimas na sua premonição. Alguns danos eram irreparáveis. Se ponderava deixar de ser um homem mau, não era por respeito às possíveis presas que estivessem por ser açambarcadas se continuasse a ser um homem mau. Era por si, pela exaustão que era ser todos os dias um homem mau.

3.    Distrate

Para ser um homem bom, tinha de se demitir da condição de homem mau. A abrogação do que queria deixar de ser. Tinha de se constituir a maior vítima de si mesmo. Não era um beneplácito endereçado aos outros, que a transfiguração não requeria o consentimento alheio. Na ascese determinista, polvilhou a alma com uma prece invisível, silenciosa. Daquele corpo haveria de ser retirada a alma malquista. Nem que fosse à força.

4.    Intenção

Não sobravam teatros hibernados para o enxerto. Só contava uma vontade, a dele. O mundo nunca fora tão exterior, tão distante. Não precisava de erudição nem de um retiro confessional para lobrigar o procedimento da transfiguração. Era de um querer, um querer avalizado pela convicção, que se falava. O corpo seria a provação. A intenção, um esboço que não esbarra em esquinas nem se submete à contrafação. Mas pode não ser viável. A intenção tem de ficar selada numa jura que não o seja, formalmente. Encerra-se o mundo, se preciso for, para fingir que está sozinho e ninguém o perturba na empreitada.

5.    Memória futura

Ele será, depois de féretro em cinzas ao mar despojado, o testamento de si mesmo. Já não estará entre os vivos para saber se foi a tempo de ser um homem bom. Nessa altura, já não importará. 

18.11.20

O desconhecido conhecido

Jessie Baylin, “Supermoon”, in https://www.youtube.com/watch?v=Jth571nuZRU

Joga-se à cabra cega, dentro do labirinto tomado por um eclipse. Por mais que suba a voz e por socorro ela chame, ninguém ouve. Os passos avançam por errância. Tentativa e erro, na sua mais pura forma. E de cada passo em avanço, não se sabe se o chão se dissolve e da fratura exposta sobra o abismo. 

A nitidez já só pertence ao vocabulário. Como se não passasse de uma miragem semântica, a palavra apenas uma sentença arqueológica. Uma passagem sob as portadas do quimérico, onde se fundem os sentidos com pesadelos acabados de ciciar ao ouvido. É o aval do desconhecido. Não há lugares familiares. Nomes sabidos. As palavras parecem despojadas de sentido, como se tivessem sido despedaçadas e depois reinventadas de significado. Os alicerces foram arrombados por anónimos servidores do caos, submetendo a teste a nossa capacidade para inventariar uma fuga de regresso ao lugar conhecido. Há sempre uma opção, por mais que nos queiram convencer do contrário. 

No alvor do desconhecido, esse parece constar do nosso dicionário como o novo conhecimento. Não se hipoteque a lucidez à barbárie dos que bebem na fonte de onde verte o veneno da desorganização. Talvez estivéssemos a precisar de desorganização. Talvez estivéssemos cansados da rotina e não considerámos a hipótese – ou, covardes submetidos à fulguração dos medos, fingimos que a hipótese não tinha estacionado à nossa porta. Compulsávamos as memórias inebriantes e as outras, as que podiam ter sido esquecidas no avesso do tempo, mas teimam em sua feição imorredoira. Às vezes, é preciso caiar as paredes que nos dão ao mundo para ver se o mundo nos aprecia em nosso diferente modo. É preciso sermos desconhecidos para todos, até um pouco para nós.

O conhecimento restringe-se ao desconhecimento. O resto foi penhorado nas águas volumosas que tudo erradicaram do mapa habitual. Sermos um arremedo do que fôramos não constava do frontispício onde, prometidos, habitavam os remédios para a paz interior. Temíamos o estremecimento tumular insinuado pelo labirinto avaramente colonizado pelo eclipse total. Temíamos que o simples tatear não chegasse para extrair o corpo da tirania do medo. 

Quando fomos convencidos pelo desmedo, tudo havia sido transfigurado, por dentro e por fora, nas formas e nas cores, na gramática dos sentidos. Enfim, ficámos convencidos que os termos se ditavam pelo equinócio do desconhecido conhecido.

17.11.20

A confirmação do sol posto

Anohni, “I Will Survive”, in https://www.youtube.com/watch?v=J4okxtKqL7s

A alfândega desce sobre o céu que empalidece. As pessoas recolhem-se a casa, aproveitam a invernia que é convocatória para a lareira. Não se sabe que é feito do sol, declarado contumaz há vários dias seguidos. Parece um tempo britânico, este que tomou conta do tempo outro. Perante o anoitecer antes de tempo, os corpos exangues capitulam. São a expressão visível da convenção que definiu o significado de “mau tempo”.

E, todavia, as pessoas não aceleram o passo. Falta saber se é por estarem cansadas, ou se a mordaça do paradoxo as consome – o “mau tempo” é o salvo-conduto até casa, mas hesitam, como se a casa não fosse o refúgio que precisam. É como se estivessem amotinadas no avesso da vontade e fossem industriadas ao que não querem. Muitos não dão conta da falhada sublevação da vontade, incapaz de derrotar os instintos que se lhe opõem. 

Por alturas da noite, já ninguém tem estes pensamentos. A noite foi um penso rápido que trouxe a cicatriz à ferida. Confirmando o pensamento efémero, os olhares já se deitam noutro povoado que reclama a atenção, numa frase dita por um notável e captada pela floresta de microfones (e, supõe-se, de câmaras de televisão), num jantar à pressa apenas para aldrabar o estômago, nas horas que se contam até ser hora da insónia. O ocaso já foi há um par de horas e ainda há quem siga o fuso horário do sol que porfia noutro lugar. O testamento não serve se não para confirmar que o sol se põe em todos os lugares. Ainda que esteja embaciado pelas nuvens acasteladas que impedem a sua inventariação. 

Ao atravessar a rua, do lado contrário veem mãe e filha. Esta protesta algo e só tenho tempo para perceber a resposta contrariada da mãe: “não tenhas medo, o sol não foi para outro lugar. Continua no céu. São as nuvens que não o deixam ver.” O apaziguamento confirma na petiz o que açambarca muitas almas que já vão mais adiantadas na idade: o exílio do sol é uma estocada na paz interior de muita gente. Até os mais novos, não suficientemente adestrados nas convenções que hão de subtrair à liberdade o que lhes darão em “socialização”, intuíram que um céu coalhado pelas nuvens é sinónimo de mau tempo.

O sol não o confirma. Ele está sempre acima das nuvens, em qualquer lugar. Confirma que se deita em todos os lugares, apesar do “mau tempo” que possa fazer. Para o sol, está sempre bom tempo. A dialética extingue-se no palco onde diferentes olhares têm aval. O sol deita-se num lugar, mas nunca se deita em todos os lugares. É um boémio, o sol. E garante que há sempre bom tempo, mesmo quando está mau tempo. É um desafio às convenções estabelecidas, das quais o sol, ele próprio, é um esteio.

16.11.20

Código de barras (short stories #281)

Hot Chip ft. Jarvis Cocker, “Straight to the Morning”, in https://www.youtube.com/watch?v=xbb2voPsJkI

          O que não sei de cor? Os algarismos amontoados numa escotilha por onde procuram entrar os fantasmas invasores dos sonhos. A elegia dos passados é inútil, uma mealha por onde se evadem os feixes de luz que podiam ser fruídos depois. Desencantam-se os lobos perdidos da alcateia – alguém propõe. Mas ninguém pergunta porque se tresmalharam. Ninguém quer saber das avulsas medidas que algemam a identidade; é como se fosse proibido ser dissidente, pela ternurenta vilania de forjar um estar comum, ao qual é impossível fugir. Contudo, não sabemos de nós se não soubermos ser o sangue que nos manda ser. Daí os lobos tresmalhados, errando a seu gosto, leais à subcutânea erupção dos sentidos que os conduz sem mapa. Os outros, obedientes peões ao serviço dos ortodoxos compêndios com milimétricas regras e desregras, têm tatuado um código de barras. Podem não o encontrar ao fazerem uma diligente cartografia da pele, mas o código de barras está-lhes tatuado. Os tatuadores não têm rosto. Não têm nome. Somos todos nós, por interposta pessoa, no rosto e nome sem rosto e sem nome do intermediário. Vamos ao fundo do baú e retiramos as credenciais que nos habilitam a ser. Sem elas, não somos reconhecidos. Não somos. Ou somos párias atirados para caves imundas frequentáveis pelos desterrados. Sem a consagração do sistemático sopesar dos dias – dizem – o mundo é um tribunal aberrante, sem código de conduta, sem código de barras para inventariar quem o habita. Não há estradas de dois sentidos. Não há vastas planícies douradas pelo entardecer e perfumadas por flores plúrimas; apenas uma paisagem falsamente colorida, o êxtase do fingimento que se desabraça em múltiplos fingimentos até os vestígios serem nada. Eu não sei de cor os números do meu código de barras. (Sei de cor os números do cartão de cidadão e de contribuinte, mas sob protesto.) Serei como um lobo sem alcateia? 

13.11.20

O palácio do faz de conta (tbc)

The Jesus and Mary Chain, “Darklands”, in https://www.youtube.com/watch?v=_w9sCTtZ9EA

Mandavam-nos copular, com aquele tom de quem considera que copular é um ultraje para quem, outrossim, devia gravitar no arrebatamento próprio da ocasião. Especulávamos: quem assim se mantém, desmerecendo a cópula, admite, nas entrelinhas, as suas pessoais tribulações com o processo – que é como quem diz, gente de falo curto e lasso e outra gente sitiada pela frigidez, como se fossem humanos glaciares. 

Mandavam-nos copular; e nós, que a esse propósito não gostamos de ser abjurados por desobediência, cumpríamos a sua profecia. Não lamentávamos que o deleite ficasse por nossa conta e a frustração irremediável por conta dos que nos apostrofavam. Talvez houvesse lugar a uma redenção, se os implacáveis sentenciadores do prazer forasteiro soubessem da poda, ou tivessem sido, em devido tempo, instruídos como seria de esperar para uma pose consentânea com essa tremenda fragilidade da espécie que é a fortaleza da transação dos corpos. 

Havia, a cada esquina, os devotos sacerdotes da moral castradora que se incomodam com os filmes havidos nas casas alheias. Opinavam com abundância. Sobre os hábitos e as práticas e a frequência do ato de cujo intitulamento fugiam como quem tem medo do próprio idioma, ou do próprio corpo. Um dia – lembrei-me, subitamente – um casal de divulgadores de um credo minoritário bateu à porta de casa. Estando em dia de boa disposição, prestei-me a escutar um módico da preleção. A páginas tantas, a personagem masculina esbugalhou os olhos e, de dedo em riste, eu diria: em pose de quem estava possuído pelo demónio, exorcizou os fantasmas dos que se perdem no antro da “fornicação” (cito). Antes de o interromper confessando-me ateu incorrigível (para matar a conversa que já se tornara enfadonha), apeteceu-me perguntar ao patusco divulgador da “palavra do senhor” como é que veio ao mundo.

Dizíamos: estas pessoas que se intrometem na seara alheia são responsáveis por uma paradoxal orgia. (Ia a escrever “coletiva” a seguir a “orgia”, mas uma orgia é coletiva por definição.) Bem-entendido, para que a bomba não lhes estale na boca enquanto permanecem boquiabertos: orgia, sim, porque são eles que trazem para a praça pública um assunto que devia ficar reservado à intimidade dos amantes (na aceção de quem se ama – e estenda-se o contexto ao sexo em si). São eles os maiores voyeurs de que há conta. Se fossemos da mesma igualha (hipótese definitivamente rejeitada, por todos os motivos e mais algum), teríamos a curiosidade, porventura mórbida ou apenas maçadora, de intuir, ao menos intuir, o subterrâneo dos seus lençóis.

Mas não é o caso, como sabemos.

12.11.20

O logro da democracia invasiva

Patrick Watson, “Lost With You”, in https://www.youtube.com/watch?v=EwqNIMlmkzs
 

Podemos transformar a democracia num valor?

Contra os sequestros de que a democracia é vítima, podemos proclamar a sua salutar adulteração semântica, aceitando-a no mercado dos valores. Contra as ameaças que embaciam a democracia – as que nunca esconderam ao que veem e as que, disfarçadas de propostas democratas, não passam de conspirações para a corroer por dentro –, que sejam instruídos os valores em que se alicerça a democracia e que a democracia seja, ela própria, representada como valor. 

Não chega exaltar direitos (e deveres) como património genético da democracia. Não chega emancipar os valores axiais da democracia, vertê-los em compêndios que instruem os mais novos para o significado da democracia (e reeducam os mais velhos, carentes da mnemónica). Nunca é tarde para participar dos que patrocinam entorses a esses direitos e se esquecem do valor em si que é a democracia. Sirva-se-lhes um naco de História, com legendas, se preciso for. Chega de fruir as sementes onde medram os que da democracia dirão, numa astuciosa elegia póstuma, que se exauria em todas as suas imensas fragilidades.

Não chegam, tão pouco, os que se dizem arautos da democracia e fazem tábua-rasa dos valores em que ela se sedimenta. Não se transija com os adeptos de uma democracia que eleva a báscula da exigência e impõe, arbitrariamente, comportamentos aos seus cidadãos. Não se aceite uma democracia que sujeite os sujeitos a comportamentos legitimados pela retórica do “bem comum”, quando a evocação do “bem comum” é apenas uma remota retórica de autojustificação. Uma democracia com este calibre é uma democracia invasiva. Um arremedo de tutela paternalista que esmaece os direitos de que se diz garantia primeira. Adultera-se a democracia quando, sob pretexto de outros pretextos, se convocam argumentos para a tornar musculada. Nessa altura, não se distingue a fronteira entre democracia e autoritarismo. 

 Concedo: muitas vezes as pessoas infantilizam-se quando exercitam a sua autonomia. Não percebem que existe uma linha ténue entre o exercício das liberdades e o manifesto abuso que emerge da ostentação de egoísmo e de indiferença aos demais. Transbordam as margens. Se estivessem na posse da lucidez não seriam transgressores da sua própria liberdade, se discernissem que o abuso da liberdade individual se paga mais tarde com a restrição das liberdades (incluindo da sua própria). Não se intui que as autoridades maximizem um papel pedagógico, pois depressa as advertências, se treslidas pela população desavisada, se transfiguram em ação musculada, impositiva. Em última instância, são os cidadãos desavisados que contribuem para a abrogação das liberdades, oferecendo o pretexto para a atividade invasiva das autoridades.

Este amplexo entre cidadãos infantilizados (ou, em visão mais crua, tomados pela indiferença dos outros) e sede de poder ávida de o exibir adultera a democracia. As culpas são repartidas, possivelmente em proporções desiguais. Uma democracia que trespassa a esfera dos cidadãos e encena a pose tutelar que se unge a si própria na condição salvífica do cidadão, é uma democracia invasiva. É uma democracia que habitua os cidadãos a serem tutelados por uma entidade que os protege e os convence que, por vezes, a suspensão de direitos e garantias (quantas vezes não revertidos à sua feição prévia à intervenção das autoridades?) é um meio para alcançar um fim. Quando, amiúde, esse estado de exceção se torna uma mal disfarçada finalidade. Uma democracia que reduz o cidadão a uma condição passiva, a antítese dos direitos fundamentais e da posição centrípeta da pessoa. 

Esta democracia é um logro. Com outra agravante: uma democracia musculada deixa de se distinguir de adulterações democráticas que convivem, paredes-meias, com poses autoritárias que podem descair para a subversão da democracia. Devemos temê-las, quase tanto como os lobos mansos que se dizem nossos protetores e nos invadem, quase sem darmos conta.

11.11.20

Babugem

Rhye, “Black Rain”, in https://www.youtube.com/watch?v=0fizVDRsvOI

- Um ano raro.

- Deveras.

- É a surda vingança de termos pressa de apressar o tempo. Ela vira-se contra nós por sentir que queremos chegar a ele antes de ele chegar a ser tempo.

- Materializam-se as angústias no ir e vir das ondas que chegam à praia. O restolho, aquela “rosa de espuma” que parece respirar em rima com o rumorejar das ondas, já não conta para o inventário.

- Faz-me espécie que ninguém se insubordine contra os mastins disfarçados de generosos cordeiros.

- O que queres dizer com isso?

-  As pessoas parecem anestesiadas.

- Às vezes, a confiança traz esse preço a tiracolo. As pessoas, por confiarem, não chegam a intuir como os que são depositários da sua confiança não são confiáveis.

- O olhar embotado por uma venda. A venda onde se merca a confiança. É a História da humanidade.

- Um dia jurei que deixava de ler jornais.

- Desconfias que os jornais são testas-de-ferro dos que não são dignos de confiança?

- Isso não importa. Só não queria receber no pensamento a enxurrada de notícias que bolçam um paradoxo: somos instruídos a ser mais uma peça na monstruosa engrenagem a que podemos chamar sistema; mas as novas que nos traz a imprensa são pútridas, um pré-apocalipse, como se o sistema estivesse viciado e sem remédio.

- Eu tenho uma teoria: a crise é imorredoira. De outro modo, como podias convencer o cidadão que ele tem de ser governado?

- Isso é um contrassenso democrático! Por que escolhem os governantes se se insinua aos governados que a crise é imorredoira? Votarias tu num inepto?

Não estás a perceber: a mensagem é outra: no auge da imperfeição humana, votem em nós, já conhecem as nossas fragilidades, mas as alternativas são um pasto de incerteza. Não corram esse risco. Nós somos o mal menor.

- E quem se contenta com um mal?

Se for menor, o mal converte-se num bem imediato.

- Precisamos de ser apascentados, é a súmula?

Diz-me tu que não.

- Digo não a esse não. Não concebo um escol de medíocres. A menos que seja este o lugar onde campeia o princípio geral da mediocridade e os medíocres que se entronizam sejam tidos como capazes. Não podemos excluir a hipótese da adulteração de juízos, um viés cognitivo, como qualquer outro.

Diz-me tu: e quem participa o princípio geral da mediocridade? Quem assume esse lugar centrípeto, quem se investe no papel sobranceiro?

- Não me compete sabê-lo. Eu estou na extremidade do sistema, sou um agente passivo do mesmo, mas em mim não se pratica a lobotomia que exclui o juízo crítico.

És de uma severidade excruciante. A principal vítima da tua severidade.

- Podemos fazer um jogo de eufemismos, ou apenas discordar do diagnóstico. Tu consideras severidade. Eu ofereço a hipótese da indisponibilidade para ser um manso peão à mercê dos humores dos poderosos.

Sabes que não consegues mudar o curso dos acontecimentos?

- Não é esse o meu propósito. 

E se te fosse dado um lugar no escol de quem decide: o que farias para mudar os acontecimentos? Se te fosse dada a possibilidade de transfigurar o sistema que te desapraz?

- Não foi esse o fado que me foi atribuído. Tão-pouco o desenvolvi com a madurez. Há os que nascem para mandarem. Há os que obedecem, acriticamente, mansos seguidores das provisões do sistema, e agradecem, ainda por cima. E há os que não renunciam à exigência sem terem de ser arregimentados para o escol dos mandantes. Essa não é a sua função. O exercício da crítica não os atira para o mar das exigíveis alternativas.

- Não te incomodam os passos em falso? Saberes que podias, de braço dado com outros, corrigir esses passos em falso?

- Não. Não é nesse tabuleiro que me movo.

- Não é incongruente?

- Não. É o meu contributo para denunciar a anorexia geral.

10.11.20

O poço dos diamantes

Ólafurs Arnalds & Josin, “The Bottom Line”, in https://www.youtube.com/watch?v=2uPnDp-O6pI

Discutíamos se no teu país há petróleo que esconde uma riqueza escondida. Discutíamos se, no caminho da serra, mais ou menos quando a estrada começa a empinar, há diamantes no fundo do poço abandonado pelos outrora mineiros. Discutíamos se é sensato esperar que a abundância venha das entranhas da terra.

É que, às vezes, o que emerge das profundezas da terra é a convulsão do magma, a sua voz que protesta a lava que coabita nos antípodas da abundância. Nem sempre podemos esperar que as entranhas da terra sejam generosas. Elas estão escondidas e, por mais que a ciência ajude a sondar os estreitos corredores onde estão as entranhas da terra, não temos a certeza do que nos será legado.

Falávamos do poço dos diamantes. Especulávamos. Dizias que devia ser dura a jornada dos outrora mineiros. Um lugar-comum. Não há grande mal nos lugares-comuns – acrescentei, num tom insuportavelmente paternalista (de que deste conta, e eu também). Eu disse: ouvi dizer que era no poço dos diamantes que os mineiros se lavavam da fuligem que traziam agarrada ao corpo depois de saírem das entranhas da mina. E ouvi dizer que de tanto negrume vertido nas profundezas do poço, a água – porventura quimérica, naquele poço – cristalizava toda a sujidade em pequenos, mas valiosos, diamantes.

Não adiantava falarmos das prospeções de petróleo no teu país. Diga-se: das sempre falhadas prospeções de petróleo. Os técnicos não capitulavam. Diziam suspeitar – apenas uma suspeita – que havia jazidas de petróleo que, viessem elas à superfície, teriam o préstimo de adulterar o teu país num país afluente. Os técnicos nunca quiseram explicar onde estavam os alicerces dessas suspeitas. Alguns especulavam em cima desta especulação: os peritos estavam a soldo dos interesses dos magnatas do petróleo, com bolsos exuberantemente recheados para pagarem boas maquias debaixo da mesa. Não importava. No teu país, o petróleo devia ser chamado Sebastião.

Eu interessava-me mais pelo poço dos diamantes. Bem-entendido: não queria saber da extração de diamantes. E não era por estar ao corrente das histórias medonhas do que acontecera aos intrépidos avarentos que ousaram descer ao poço. Diziam as vozes populares que foram devorados por uma mítica criatura. Só podia ser mítica a criatura, pois nunca lhe viram as feições. Como nunca mais viram os restos mortais dos intrépidos avarentos. 

Às vezes, um módico de inoperância esconde o segredo da abastança. É isso, ou o produto de um acaso, ao acaso. Pois, assim como assim, dos despojos de um vulcão em erupção sobra um chão de lava que é a caução da fertilidade.

9.11.20

“Não quero ser doutor” (short stories #280)

Django Django, “Spirals”, in https://www.youtube.com/watch?v=ak3PuKKukd8

                (De uma música dos Linda Martini)

          Que haja um dia que doutor não me chamem. Essa é a diuturnidade de uma vida inteira, a sua espada de Dâmocles. Um sacerdócio, virado do avesso. Pois se olhar para o cartão que me identifica não aparece “doutor”. Quero ser cidadão de corpo inteiro, não portador do avantajado estatuto de quem ostenta um pergaminho. Não como os que se ufanam de serem doutores e insistem no trato. A linhagem que excede um título não diz coisa alguma sobre a pessoa. Não quero ser doutor; apenas um nome, e um nome que se deite no caudal onde todos os anónimos são matéria possivelmente infecunda. Não se transige no carrossel onde se brandem afanosamente as credenciais. Esse é um espectro tomado pela estultícia. Não se avalizem as diferenças pela ostentação de tais credenciais. A vanidade derrama-se sobre o risível, altaneiro altar onde se elevam os perfunctórios doutores. Não lhes sobra nada da intendência. A não ser um espelho onde se apreciam por dentro de um narcísico exercício. Deles não exijam atributos distintivos. Pois eles não se distinguem, para além da vacuidade do estatuto que, espremido, não deixa nada de distintivo à mostra. Se doutores são estes vulgares espécimes que desfilam numa procissão de pares, fardados a preceito como soe ser pelos que reclamam pertencer a uma casta superior em pose soberbamente orgulhosa, prefiro ser humilde serventuário da insciência. Um nome, apenas. Um nome. Se os nomes são inteiros e as éclogas onde se pastoreiam doutores são poços fundos drenados, não hesito. Não é no mapa dos vaidosamente eruditos que quero ser inventariado. Não é nos algares onde eles deitam a sua prosápia que quero ser aprisionado. Não quero ser doutor. Quero ser, apenas, um nome inteiro. Um nome com um testemunho para dar.

6.11.20

Em nome dos nomes (short stories #279)

Joy Division, “Atrocity Exhibition”, in https://www.youtube.com/watch?v=LKYibEGtAlg

          Uma exibição de atrocidades é o aval da memória que não se quer esquecida. Sobram nomes, nomes sobrepostos, como se fossem a mesma mercadoria indigna de direitos como foi tratada às mãos dos algozes. Dirão que não. O rosário de nomes não faz deles pessoas anónimas. Podemos não ter travado conhecimento com elas, pois são-nos anteriores. Mas não são anónimos. São uma memória futura. Para prevenir outras exibições de atrocidades, pois parece que a espécie vegeta num episódico caiar do passado com o lustro da ignorância e outros andam sequiosos de atrocidades, só para ficar provada a tese do pessimismo antropológico. Os nomes assim mostrados são a sela para o repouso dos que mais tarde vieram tirar partido da paz firmada, de como tiveram proveito do sossego das regras e da deposição de facínoras que não se cansaram de contaminar a espécie. Em nome dos nomes, de todos os que foram bandeira de um martírio, que esses são nomes doados em prol dos nomes outros seus vindouros. Nomes que têm a compensação do sofrimento com o seu hastear num monumento doado à aprendizagem dos demais. Oxalá não fossem nomes assim expostos. Oxalá pudessem ter vingado, nomes, numa durável existência. São nomes sacrificiais, mostruários vivos do que foi preciso banalizar para que a loucura amedrontasse os lúcidos. Nomes proscritos às mãos dos verdugos numa carnificina insana. Os seus cadáveres lançados em valas comuns e, todavia, medraram como sementeira de uma lição maior imortalizada na memória dos Homens. Nomes que não ficam reféns do esquecimento. Porque nomes outros cuidaram de os resgatar das valas comuns onde estavam condenados a ser a vulgata de crimes sem condenação. Mas não é a vingança sobre os carrascos que importa. É saber que esses nomes tiveram um quinhão no bem que hoje nos é dado a apreciar. E que nomes outros, lamentáveis nomes, parecem querer obnubilar. 

5.11.20

A boca honesta (short stories #278)

Moon Duo, “Lost Heads”, in https://www.youtube.com/watch?v=HlBMsnPi93M

          Não se proteste a indiferença: o magro pecúlio é inventário que não desonra. Quase ninguém se lembra como somos vítimas da tirania da quantificação. Emprestamo-nos à volúpia dos números, à orgia das quantidades, e somos instruídos a tudo medir pela abundância que nos ensina que três é maior do que dois e o quatro suplanta o três. Depois as bocas mentem. Mentem a si mesmas, como se estivessem anestesiadas pelo baço torpor dos dias que se repetem, irrisórios. Na tradução dos nefelibatas, o mundo é uma contradição de termos insanável, um imenso lugar que cabe dentro de uma minúscula mão de um nascituro. Confundimos os planos. Treslemos as nossas próprias palavras. As bocas são catedrais onde se ensaiam mitomanias que passam por pura verdade. Este é o maior logro: objetivamos a verdade, quando as lentes por que os olhos tiram as medidas são diferentes – e diferentes são os olhares e as baias por onde se movem. Não queremos bocas boçais atiçadas a um úbere malnascido que dá de beber até à embriaguez. Queremos uma boca sem embaraços, irrestrita. Uma boca que não hiberne ao ser julgada pelos que apadrinham os números. Uma boca indomada, esteio das marés que enfeitam o mar, deixando as arestas do medo limadas pelas pestanas que não se intimidam. A boca que fala o que pensa e não a boca que fala o que os outros querem que ela pense. Um lampejo de liberdade que tem em tal boca um albergue à prova de sujeições. A boca honesta que não cede à intimação dos demónios. A boca que se enamora dos magros pecúlios que não disfarçam o paradoxo do exíguo que transcende o tamanho do mundo. A boca que fala os silêncios. A boca que não emudece. A boca patrona nas palavras em forma de poema. 

4.11.20

Morder na razão, ou morder a razão? (short stories #277)

Mogwai, “Dry Fantasy”, in https://www.youtube.com/watch?v=55wY7XrGFzY

         Não vás até aos promontórios inacessíveis em demanda da noção de razão. Não queiras saber em que pias batismais é crismada a razão. Não te importunem as ruelas ermas onde se levantam os rudimentos da razão, pois quando a ti chegarem se embebem adulterados. E, no entanto, cicias um lamento de cada vez que vês o copo da razão esvaziar-se diante do impotente olhar. Às vezes dizes, em pose contemplativa, que darias tudo por um módico de razão – e não intuis que na posse da razão e sem o resto serias um imenso vazio, irrisório. Não de razão como quem a si chama o vencimento num pleito, mas da razão que informa as veias da lucidez. Só que são tantas as vezes em que interrogas as fronteiras da razão, quando a tua cosmovisão te adverte que a razão se ausentou para territórios limítrofes (na melhor das hipóteses) ou para territórios desconhecidos (na pior das hipóteses). É quando te apetece morder na razão. Não como um mastim enraivecido que, com a dentada, despeja uma dose de saliva e desvia a razão dos bons caminhos. Antes, como alguém que ao morder na razão espera pelo efeito inverso: que os dentes que se assanham na razão dela tragam uma seiva que fermente em ti os seus rudimentos. Outras vezes, desconfiado dos penhores da hora acertada, os zeladores dos costumes enraizados e tidos como sinónimos da razão, só te apetece morder a razão. Esperas que a saliva infecta devolva um contrapeso de loucura que a razão parece precisar. Não se trata de a adulterar. Nem de seres o agente que envenena a razão: a razão, se é que existe, é bom que saibas, supera, e em muito, a tua capacidade de adulteração. Ao menos, sobra-te uma paz interior. A sublevação contra o que se convenciona chamar razão, à escala da tua intrínseca e heurística desrazão. 


3.11.20

Easier said than done (short stories #276)

Friedberg, “Pass Me On”, in https://www.youtube.com/watch?v=sC3xayCmscM

          As pessoas não se cansam de dizer: “para quem está de fora é fácil dizê-lo: mas tens de fazer o contrário do que estás a pensar fazer.” As malditas intenções, oh! que não quadram com os atos que se soerguem. Do outro lado, a réplica é a de sempre: “dizes bem, porque é mais fácil dizê-lo do que fazê-lo.” Este é o abismo que não é fácil situar. A matéria lívida que fica a pairar sobre as consumições que inflacionam a angústia. É que, no estético domínio da teoria, até os sobressaltados reconhecem que não devia existir divórcio entre os atos e as intenções. Mas a teoria coalha-se nos impertinentes contratempos que vêm a destempo, vertendo sal numa matéria que se queria adocicada. Exibem-se as manchas que enodoam as mãos. É o inventário dos arrependimentos, a báscula das memórias que a memória, com rédea solta, não consegue suprimir. E continuamos a recomendar, naquela pose paternalista que seria dispensável: “pensa bem, o que vais fazer é profundamente errado.” Contra as provas larvares que adestram um qualquer imperativo categórico (“não faças isso que não é o que te pedem as intenções”), não sobra espaço. As palavras emudecem na impossível congeminação da perfeição – esse punhal que não deixa de adejar sobre as cabeças aparentemente derrotadas. Se ao menos houvesse um cais onde se buscassem as águas purificadas e tudo ficasse de pose para a alvura inaugural. Dir-se-ia que o pretérito seria irrelevante, mas não seria objeto de um estalinista esquecimento. Dir-se-ia que os olhos se projetam sobre as promessas do porvir, sem saberem do chão que vão pisar e sem se importunarem com a incógnita. Talvez seja a caução dos lúcidos, a frase sensata que repetem na sua paternalista pose. E, paredes-meias com a imprudência, ouçam a resposta de sempre: “easier said than done”.

2.11.20

Balística (short stories #275)

New Order, “Sunrise”, (live at BBC2), in https://www.youtube.com/watch?v=krDVGJacmmY

        Falam os bravos: que se for preciso empenhar a garganta, assim o farão. Pelas causas nobres. Nobres. Num repente, se a retórica não estivesse mergulhada na automaticidade, desprezando as sinapses emudecidas, dariam conta do vocábulo arcaico. Seria como terem revólveres dardejando as munições à velocidade da luz e dos corpos estilhaçados não sobraria testemunho. Os bravos decerto contabilizados entre as vítimas inúteis do acontecimento. Para depois o falatório subir de tom, como o palavreado matraqueado pelos sublevados, protestando contra a oligarquia que passivamente tolera as infâmias contínuas num ataque concertado contra os alicerces da cultura. Faça-se a balística dos crimes de ódio. Dos que militam nas franjas do sistema e dos que, à boca surda, juram vingar a afronta e defender o instituído. Faça-se a balística: para se perceber que a genética das balas que tracejam os corpos não difere, venham elas de onde vierem, sejam elas fabricadas não importa onde. A balística permitirá recolher uma lição: tão obnóxios são os covardes que atacam pela calada, apanhando inocentes na sua mórbida contabilidade, como os que prometem fazer da vingança uma maré mais alta, sobrepondo a sua atrocidade à atrocidade dos que abjuram. A violência não tem adjetivos. É violência. Pretender que há violência boa é um oximoro que disfarça o que se depura sob o verniz. Faça-se, pois, a balística e o juramento do seu contrário. E não digam, em coro com os violentos que se julgam porta-vozes do sistema, que a passividade é uma capitulação perante os violentos que obstruem as credenciais da cultura. Um remoinho de desordem não se mitiga com o silêncio de um lado (dirão, indignados, os que protestam contra a inércia como método). O contrário também é certo: o remoinho da desordem cavalgará, iracundo e exponencial, à medida que a vingança se materializar como vingança dentro da vingança. Até não se saber o que vier depois.