31.10.11

As olheiras do ministro das finanças


In http://imagens.publico.pt/imagens.aspx/359620?tp=UH&db=IMAGENS&w=350&ts=1319726065,03874
Era sobre o perfil do ministro das finanças. Uma fotografia de grande plano. As olheiras bem carregadas. Não é para menos. Quem gosta de ser odiado pela populaça e, em especial, pela poderosa corporação dos funcionários públicos? (Tão poderosa a corporação, que até distintos funcionários públicos que são do partido que apoiam o governo do ministro das finanças destilam inflamados protestos contra a austeridade seletiva que poupou os funcionários do sector privado – até ver – aos sacrifícios.)
Eu vejo as olheiras do ministro, mas a ausência de cabelos brancos podia querer significar que o homem vai passando bem entre a chuva ácida das críticas que caem quase de todos os quadrantes. Lembro-me de um par de exemplos de gente que depressa ficou grisalha quando amesendou no opíparo e, todavia, tormentoso caudal do poder. O ministro das finanças limita os traços exteriores da árdua função às olheiras bem vincadas.
Pode ser porque estes são os piores tempos possíveis para uma alma aceitar a sinecura em que ele foi empossado. É um ato de coragem, emprestar a cara aos anúncios mais impopulares de que há memória desde que o FMI cá aterrou há quase trinta anos. Ou pode ser por causa dos pessoais sapos que o ministro tem engolido ao assinar certas decisões. E não é por elas serem impopulares, que aposto que o ministro, em não sendo político profissional mas apenas “técnico” (como foi depreciativamente cunhado pelo senador-mor da república, Soares), está-se nas tintas para o ódio destilado e para a impopularidade junto dos concidadãos.
Quais são os pessoais sapos? Num excerto do perfil, é lá dito que o ministro é adepto de Milton Friedman. Ora Friedman talvez não desse boa nota ao discípulo que, com a pasta das finanças na mão, desatasse a subir impostos a torto e a direito. Dirão os circunspectos: manda a emergência, tamanha a pré-insolvência em que os anteriores amadores deixaram as finanças públicas, que o contribuinte seja assaltado desta maneira. Friedman diria que a tesoura devia ser mais expedita nas despesas do monstruoso Estado.
Estão explicadas as olheiras do ministro das finanças: adivinha a desaprovação do seu mestre, às voltas no túmulo onde foi sepultado.

28.10.11

O marialva intrépido (um epitáfio)


In http://www.imotion.com.br/imagens/data/media/32/158rosavermelha.jpg
Sabia-a toda, tanta a lábia em que donzelas a fio caíam, embalsamadas pelo deslumbramento que ele irradiava. Orgulhava-se das conquistas que registava com a precisão de um relojoeiro. Também sabia que era o orgulho de varões entradotes que se empanturravam (decerto apenas intelectualmente) com as suas façanhas. Ouviam-no, embevecidos. E nem sequer por um instante duvidavam das narrativas que pareciam retiradas de contos fantásticos.
E sabia como era. Sabia que não conseguia resistir a um rabo de saias (ou ao que elas escondiam e ele não tardava a desvelar). Era honesto consigo e com as demais que outrora pretenderam ter aspirações ao laço conjugal: ele desfazia as esperanças a zero. Ora porque as desenganava com palavras. Ora porque tratava de desenganar as esperanças hasteando bandeira em novas terras, para deceção das prévias moçoilas entregues em seus prantos.
Os anos faziam o seu percurso e a idade já se fazia notar. Um dia, acordou e descobriu que era hora de mudar de vida. Devia assentar de uma vez por todas – prometera-se tal vocação algumas vezes, quase sempre inundado pelos vapores etílicos (que retiravam discernimento). Se toda a gente constituía família (fartava-se de sentir a expressão burocrática a ecoar mentalmente), também se lhe impunha o dever. De repente, encheu-se de brios e chamou a si os mesmos predicados da responsabilidade comum pastoreados pela gente decente. Estava cansado de ser olhado de soslaio por mais velhos e mais novos, tamanha a fama que o precedia. Não queria mais sobressaltos com os consortes vilipendiados pelo adultério de que ele era involuntário fautor. As carnes cansadas já não estavam a jeito do pugilato, se preciso fosse. Difícil não era arranjar quem estivesse interessada em acompanhá-lo na cessação do celibato. E assim foi.
Três anos mais tarde, como se esses três anos tivessem passado num ápice, acordou sentado no banco dos réus de um tribunal qualquer. E só ouvia a juíza a perguntar, com ar inquisitorial: “então o senhor, com essa fama de conquistador, matou a mulher porque lhe descobriu adultério?

27.10.11

Propedêutico


In http://3.bp.blogspot.com/-XFLWysP2_x0/TWftFlN7VxI/AAAAAAAAAWA/5cqHXDdAnHY/s1600/arrependimento+3.jpg
Dizia-lhe: “a penumbra do tempo anuncia um porvir qualquer. Deves estar preparado para o amanhã que vier ao teu encontro.” Com o olhar perdido no firmamento, parecia que as palavras entoadas se tinham perdido entre as almofadas da desatenção. Mas o firmamento era o lugar onde projetava as incertezas dos porvires que estivessem por entrar na sua janela. Jogava as oportunidades umas contra as outras e golpeava os arrependimentos, os fartos arrependimentos, que eram imparáveis tirocínios.
Depois dos minutos necessários para decantar aquelas palavras, atirou-lhe: “mas como sei as preparações que se impõem se nem sei as cores com que vão chegar os amanhãs?” Outro compasso de silêncio emproou-se entre o odor a maresia e o ruído de fundo da cidade em exercício quotidiano.
Olhavam para lados diferentes do mar imenso que atapetava o cenário diante dos seus olhos. Havia gente a passar, ora apressada, ora na contemplação da paisagem retemperadora. “O cruzamento de todas aquelas existências daria quantas peças de teatro?”, verteu a interrogação em silêncio antes de contrapor a pergunta que adejava sobre a conversa: “só sabes que o porvir é uma incerteza aberta. Essa é a tua única certeza. Deixa uma portinhola sempre aberta para deitares o dorso sobre as pontiagudas pedras que o porvir te preparar. Aprende este método: a propedêutica dos cenários cheios de sombras e melífluas personagens é a precaução exigível. Depois não dirás que tropeçaste em ciladas.
Desta vez o destinatário não sopesou as palavras que embrulhavam o conselho. Tirou a esquadria às suas próprias conclusões, imediatas conclusões: “devo estar com os dois pés atrás. Precatar-me é a cura antes de tempo. Agora que me abres os olhos, percebi que neste lugar há querubins que, despidos da fraudulenta auréola, são diabretes.
Despediram-se com um abraço que soou a frieza. Sentindo a frieza do abraço, tirou as medidas a outra interrogação, uma silenciosa interrogação que não deu a conhecer de viva voz: “ensinas-me a propedêutica da desconfiança. E por que hei de confiar em ti?

26.10.11

Toca e foge


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Espalhava a confusão. Gostava de ver os confundidos parecendo baratas tontas, esperneando desorientação. Um provocador. De emoções e reações. Deixava-os entregues no regaço das pessoais apoplexias semeadas por ele na continuidade da perfídia que era causa de ser.
Arrebanhava um punhado de palavras que, sabia-o, haveriam de ser abalos telúricos nas vítimas selecionadas com precisão cirúrgica. Portava-se como guerreiro medieval que, uma vez desembainhada a espada, só se apaziguava ao verter sangue de alguém. Contudo era de uma estirpe diferente. Desembainhava a espada e aplicava golpes certeiros que deixavam as vítimas em consumição com as golfadas de sangue vertidas como rios de lava incandescente. Enquanto as vítimas se debatiam na sua plangência, já ele metera pés ao caminho. Não havia lugar à réplica de quem fora algoz. Batia em retirada, apressado, em sincera confissão de covardia.
A coragem ficava-se pela metade. Assegurava que as vítimas não o esperavam ser. Pela calada, desferia os golpes certeiros que as deixavam no estertor doloroso. Tudo bem congeminado. Não fossem os golpes certeiros, se a espada das aleivosias (fossem palavras, fossem atos) cortasse a carne um punhado ao lado do sítio preciso, e as vítimas não caiam inanimadas. Podiam ripostar. A bravura haveria de se consumir na sua própria traição. A triagem dos atos precisos era imperativa. Ou sucumbia às mãos das vítimas ensanguentadas e todavia céleres na compostura.
Tinha a sagacidade do toca e foge. Era um pulsão indomável: precisava de provocar como precisava do necessário oxigénio. Não punha de lado as tremuras que sentia quando desembainhava a espada das provocações e de seguida alavancava as pernas para umas milhas fora do campo de visão de quem tinha sido assestado pelos golpes certeiros. E nem ao deitar, quando o travesseiro servia de depositário das possíveis dores de consciência, as sentia. Era patológico. Empanturrava-se com a malvadez deixada em forma de cicatriz nas vítimas escolhidas a dedo. 

25.10.11

Filigrana


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Porcelana fina. Uma sensibilidade que se coalha com um singelo sussurro ao ouvido. Casquinha de noz deitada aos ferozes apetites do mar encapelado. Frágil. Acossada nas noites imperturbáveis e que, todavia, se refastela nos odiosos corredores estreitos por onde se esgueiram as assombrações. Tudo nasce e quase tudo fenece na sua labiríntica cabeça – um mastodonte que se empresta às balas, triunfal na sua valentia, ó profana valentia que desagua em nada.
Às interrogações devolve respostas em forma de interrogação. Um simples passo, nem interessa se em falso, e logo se ajoelha diante da apoplexia que julga frígia, esperneando como se não houvesse amanhã em espasmos que a vomitam para fora de si. Ou talvez seja apenas encenação, uma terrível vontade de ser protagonista de atenção. Dos que gravitam na sua órbita, acostumados à filigrana de seda sem importunação. E dos outros, dos que passam e são vítimas da baioneta imaginária terçada em demanda de afagos.
Um dia deu de caras com um distraído. Em litania, meteu conversa e desnovelou as contrariedades que a convenciam da existência compungida. E ele, absorto num mundo particular, olhava com indiferença (“outra demente”, diagnosticou). Fazia de conta que se embebia no prolixo monólogo e coçava a cabeça em desdém de perplexidade. “Que raio”, calçava o pensamento sem verbalização, “não conheço a mulher de nenhum lugar. Por que não me deixa sossegado?” E ela persistia na narração dos pessoais contratempos, acentuados com o dramatismo que manejava com destreza.
Dez minutos depois, muitas palavras salivadas sem serem retidas por ele, ela disparou um repto para testar a sua atenção: “então diz-me lá como me chamo”. Só à terceira tentativa, já a voz dela crescia, audível, nas imediações e as demais pessoas na estação do metro desviaram o olhar em sua direção, reparou na interpelação. Não se incomodou com a interrogação em jeito de desafio, nem se atemorizou com o olhar irado que, se pudesse, arrancava as córneas pela raiz. Ele disse: “não me lembro” e virou as costas.
A menina esteve três dias sem sair da cama, tamanha a desfeita ao ego tão inflamado, o ego carregado com as cintilações da filigrana que a levavam ao convencimento de que era alteza no meio dos súbditos.