19.3.24

Dicionário da invisibilidade

The Chemical Brothers, “Get Yourself High”, in https://www.youtube.com/watch?v=cYXI344Siew

O que se abotoa na indiferença é a melhor dádiva. Ao contrário dos sequazes que ambicionam palcos cheios de olhares ávidos, o anonimato é uma bênção que dispensa deuses. 

A boca cristalina toma o poder das palavras restritas. Poucos são os que as ouvem, os que as leem. O desapego ajusta a madurez que dispensa o aval dos outros. Se muitas vezes nem o aval interior é conseguido, o aval dos outros é uma procuração indesejável. É como os aspirantes a deixarem o nome na toponímia: conforta-os a ideia de o nome ficar imortalizado numa rua, mas já não estão entre as testemunhas da proeza. 

As homenagens servidas depois da morte são marcadas a destempo. Já as homenagens feitas em vida parecem um epitáfio contumaz, como se o homenageado (ou alguém que funciona como comissário da homenagem em seu nome) precisasse de atestar a homenagem em vida. Se não fosse a ambição sem medida, se um módico de invisibilidade fosse o mapa das intenções, não seriam atraiçoados por homenagens risíveis, próprias dos que já não figuram entre os vivos. Se em vez da vaidade interior fossem colonizados por uma humildade redentora, estes profetas de si mesmos não ocupavam o tempo a alargar os domínios da sua visibilidade. Precisam de palco como se fosse oxigénio. Desamadurecem. Encolhem-se numa concha que é proporcionalmente inversa à dimensão a que aspiram. Pisam o chão lodoso da angústia de cada vez que esbarram na frustração da invisibilidade. 

O incentivo de ser invisível é saber que o chamamento da visibilidade ateia a angústia. Deixam-se os palcos intrínsecos da angústia atuar por si mesmos, sem juntar outros, gratuitos, palcos escusados. Andar pela rua a esbarrar em rostos que se nos dirigem denunciando o não anonimato ocupa a liberdade. 

É melhor trazer o dicionário da invisibilidade à distância da mão, só para o caso de ser preciso exorcizar demónios que acenam com holofotes todavia párias. Para, na posse do dicionário da invisibilidade, tomar conta da bússola que confere o norte da mirífica irrelevância.

18.3.24

Hereges ofícios

Cocteau Twins, “Lorelei” (live OGWT), in https://www.youtube.com/watch?v=zV_nrTH5jOc

        Dir-se-á dos ofícios hereges que contestam os costumes, atirando sobre eles um manto de indiferença, ou condenando-os à indigência da hipocrisia: assassinos, ladrões sistemáticos, exploradores do próximo, prostitutas (que “destroem lares”), mitómanos sem remédio, barões que sumptuosamente acumulam lixo nos interstícios dos dedos morais, praticantes da maldade, espíritos controvertidos que se alistam na polémica gratuita só para incomodar o próximo, políticos exímios na arte da imperícia e que continuam a habitar o poder, bestas (sem precisarem de ser quadradas), adestradores das almas alheias (os que nessa condição se autopromovem), militares de carreira entretidos a brincar aos cenários de guerra, militares profissionais na desarte da guerra mais os mercenários a tiracolo, porcos capitalistas (versão marxista), sindicalistas que não trabalham há muitos lustres (versão neoliberal), apóstatas (versão clerical), sacerdotes metidos em pecadilhos carnais contrariando as leis canónicas e merecendo a cumplicidade da cúpula por tempo de mais, claques de futebol, professores amadores, amantes clandestinos (que, se forem descobertos, “destroem lares”) farsantes intencionais (versão casta), baluartes da corrupção, relógios que se adiantam, bestas que não respeitam animais, abusadores da sorte que se lamentam do azar, as maldições de gente inescrupulosa, aspirantes ao húmus do estrelato, gente a querer ser gente outra por serem os primeiros a admitir que são gente que não merece recomendação, gente convencida que não cabe dentro de si mesma, mecenas de aleivosias variegadas, procuradores da negação das ciências, narcisistas incorrigíveis, deuses distraídos, ateus (versão religiosa), patronos das falas mansas que praticam a impiedade às escondidas, invejosos (em geral), advogados da desonestidade intelectual, algozes encartados, jovens embebidos numa ambição sem quartel, eruditos que tropeçam na gramática, ascetas das fronteiras, fascistas (versão à esquerda), esquerdalhos (versão à direita), intolerantes de diversa cepa, a teatralidade sem palco, revoluções que pedem sangue, aspirantes a uma sinecura que estão capazes de matar, estroinas que acreditam que são heróis, heróis (em geral), a morte e os seus tutores.  

15.3.24

O mal, disfarçado de azul celeste

Massive Attack, “Karmacoma” (live from Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=_b9y13tObEw

Asas quebradas implicam anjos abortados na tarefa de travar o arrojo do mal. Os estrovos avulsos apareceram sem agenda e os anjos não vingaram. Deixaram atrás dos seus cadáveres um número assustador de vítimas.

As cores deixadas em legado não conspiravam entre si. Dizia-se delas que eram sinais que podiam ser traduzidos, deixando à parte as metáforas insondáveis. Dizia-se: que a maldade era abainhada a preto, como se um luto iníquo se abatesse sobre as presas preferidas do mal. As presas preferidas: era quem viesse ao acaso, o mal era das coisas mais democráticas.

Mas o mal também vestia o fingimento. Também orquestrava ardis para se disfarçar de outra coisa qualquer. As pessoas estavam habituadas ao mal. Quase todas já tinham sido apanhadas nas malhas do mal e só depois é que perceberam. Tinham feito o tirocínio para não serem reféns. E para deixarem um pé atrás, à cautela. Pressentiam o mal assim que ele sussurrava por cima das fronteiras. Descobriram um código que inventariava o mal nas imediações. O mal, sabendo do princípio geral da precaução que se levantava contra ele, jogava outros trunfos. Tinha de fingir que não era mal.  

As pessoas não podiam prescindir de um módico de ingenuidade. Por mais que cavalgassem na desconfiança para deixarem o mal desarmado, não podiam travá-lo quando se dissimulava. Se o mal aparecia transfigurado de azul celeste, as pessoas associavam o azul celeste ao céu. Congeminavam outras metáforas e a correspondência ao azul celeste dirimia a desconfiança. 

Mas o mal tornou-se o rosto do azul celeste e todas as coisas que aparecessem tingidas por esta cor tornaram-se reflexos da maldade. Ninguém contava. O mal apanhou todas as pessoas que deitaram a mão ao azul celeste, convencidas que era uma brisa marítima que ornamentava as suas vidas. Em vez de aromas, o azul celeste, disfarçado de maldade, semeou a devastação interior.

As pessoas aprenderam a desconfiar de todas as cores. Em vez de se emprestarem às versões líricas dos que recusavam o mal como princípio de muitas coisas, passaram a usar todos os pés para estarem de atalaia. 

O mal, daí em diante, só apanhou empreitadas difíceis. 

14.3.24

Bem-vindos ao contexto

Nick Cave & the Bad Seeds, “Wild God”, in https://www.youtube.com/watch?v=uAgsn7la3jg  

Que sabes das sílabas que preenchem os minutos? Que sabes dos jardins extáticos que se escondem nas muradas das casas burguesas? Que sabes do sangue que corre nas veias da noite? Que sabes do labirinto em que se enreda o porvir?

As avenidas podem estar repletas e soarem a decrepitude, como se estivesses num lugar ermo que ninguém quer habitar. Tomas por certas as palavras beatas que disfarçam a sumptuosidade de uma agressão moral. És cúmplice. Não desatas os nós que levitam sobre a pele que endurece com o tempo dos contratempos. Não é o vento que conspira; é o tempo, que murcha. E tu, rimas.

Os roteiros estão escondidos no avesso das mãos. Dizes: não queres saber dos destinos, sem penderes para a vulgata do “o-que-interessa-não-é-o-destino-mas-a-jornada”, ou lá o que é. À tua frente, o mar inteiro. As pessoas todavia desinteiras, estrofes encenadas da dissimulação incarnada. Tu próprio, uma farsa. Pretendes indigência ao convocares em tua defesa o efeito de contágio; pois é: farsa, tu, mas só porque não resistes à maré imparável alimentada por todos os farsantes à tua volta. 

Ah, se as ideias fossem um caudal a inundar as margens e colhesses nas águas foragidas os rudimentos da desencenação, talvez tudo fosse fácil (e não tens a certeza se isso é pretensioso). Seríamos inteiros se navegássemos nesta doca seca, à prova das aguaças que transbordam da exiguidade das pessoas disfarçadas por dentro das suas farsas. Que máscara deixarias de usar – já pensaste nisso, ou nem sequer to ocorre reconhecer o disfarce com que ornamentas os dias que te conhecem?

Não são as voltas insanas da mota que avança destemidamente pelo poço da morte que te galvanizam. Todos são heróis depois de encurvarem o arnês. Todos são heróis depois do tempo se ter convertido em passado. Os bolsos puídos, já esburacados, não guardam memórias. Fazes de propósito (admites). Corres contra o espaço vazio que te separa de um corpo alheio. Passas pelo corpo com a indiferença de não ser o corpo teu. O cansaço, é o cansaço que te pede a água de que a boca precisa. 

Depois de amanhã, quando souberes do teu paradeiro, tratas das pendências. Não serás tu a terçar uma beligerância insensata. Darás ao futuro as cores de um contexto. Se não te esqueceres delas até lá.

13.3.24

Bandeira amarela

Yves Tumor, “Kerosene!”, in https://www.youtube.com/watch?v=YnZLqtNXbAM

O vento heterodoxo descompôs o mar e ele subiu à linhagem de mar alterado. Como se estivesse embriagado e, sem juízo, pusesse em causa a segurança das pessoas que estavam na sua orla. O mar estava a pedir a bandeira amarela. Era preciso avisar as pessoas: andava um perigo a marear a água e as pessoas podiam ser vítimas do mar tumultuoso.

A bandeira amarela subiu pelo mastro e ficou a ostentar a pose grave perante o mar desassossegado. Não se sabia das intenções do mar – não se sabia se o mar queria tomar alguém como refém, se queria apenas mostrar as credenciais de quem assusta os que não se atemorizam e podem perder a vida às mãos do mar. A bandeira amarela estava equidistante entre as pessoas no areal e o mar. Firmou um cordão sanitário e as pessoas que receiam o mar e respeitam as instruções dos cuidadores do mar sabiam que não podiam faltar ao respeito ao mar. O mar estacionou as ondas iracundas à mercê do vento apressado. À sua maneira, respeitava a bandeira amarela. 

Alguém murmurou que a bandeira devia ser a vermelha: “ainda há pouco um senhor idoso ia sendo levado por uma onda anárquica.” Os presentes não concordaram. Não era preciso mostrar a musculatura, o mar era capaz de arrefecer os ímpetos ao notar o serpentear inacabado da bandeira amarela constantemente percutida pelo vento extemporâneo. Alguém contrapôs: “estamos todos no areal, já não há turistas a entrar no mar. A bandeira vermelha não é precisa.”

Os peixes não precisavam da bandeira amarela. Estão habituados ao mar iracundo e as profundezas são menos agitadas, os peixes não naufragam nem são depostos por um golpe de mar. Do lugar onde se encontram, os peixes não vêm a bandeira amarela. 

À noite, a bandeira amarela emudeceu. A ausência de luar ajudou. O mar também ficou temperado e desobrigou a bandeira amarela, que podia ser destronada do lugar centrípeto. Mas a bandeira amarela continuou a advertir os perigos que tinham deixado de existir. À noite, os cuidadores do mar deram lugar ao ócio e depois ao descanso. A bandeira amarela pôde repousar, agora que o vento tinha sido desinvestido.

12.3.24

Perfeito o pretérito (logro)

Eels, “Time”, in https://www.youtube.com/watch?v=-ILgcm5c8oc

Um salva-vidas erra sozinho no mar à vista. Não se sabe se o mar deitou o tripulante borda-fora, ou se o salva-vidas se emancipou do navio.

A trupe percorre as ruas com algazarra. Berra e dança e importuna os passeantes. Não é por mal. Não levem a mal. É para ver se contagiam os passeantes.

A bailarina, tão frágil que até parece de porcelana, foge da chuva com medo de tropeçar. Não tem medo da chuva. Tem medo de não poder dançar.

A criança gatafunha uma folha. As cores sobrepõem-se, apesar da tempestade que se esmaga contra a janela.

O homem arrepende-se das palavras ditas num momento de loucura. Desculpa-se. Não quer indulgência da mulher ofendida. Apenas a quitação da consciência. 

O relógio da igreja deixou de dar horas. Há muita gente que perdeu a noção do tempo.

Os socalcos sussurram uma matemática diletante. Inventariam verbos improváveis que  compõem a paisagem.

Dizem que os aeroportos são impessoais. Conheci um realizador de cinema que se recusa a viajar de avião porque odeia aeroportos.

Sempre que chegava a uma rotunda, circundava-a três vezes. Opunha-se aos que dissessem que era por superstição.

Um dia ouviu dizer que era melhor nem tentarmos saber o que se passa na cozinha de um restaurante (até dos mais estrelados). Concorreu à autoridade de segurança alimentar, para o tira-teimas.

Nunca quis saber da noite, a não ser para paradeiro do sono.

A água do mar era tão fria que era como se um punhal cortasse fundo até aos ossos. Ou era uma ideia feita. 

A argamassa estava puída. As paredes tremiam com o uivar do vento. O mal era do vento, que ninguém lhe pediu para uivar.

Sentia o luar como uma gramática sem métrica. Interrompia o sono só para saudar a lua generosa.

Os matinhos colonizavam os baldios, com o seu consentimento. Os baldios não eram baldios sem uma amostra de matinhos.

As coisas nunca foram grandes. A ambição coalha na impossibilidade. As pessoas começaram-se a habituar à  humildade.

O passado não tinha de ir a julgamento. E esse era o melhor julgamento que se podia destinar ao passado.

11.3.24

Toda esta beleza avassaladoramente desaproveitada

The B-52’s, “The Love Shack”, in https://www.youtube.com/watch?v=9SOryJvTAGs

Os bebés são todos bonitos, não há um único que esteja na fímbria da fealdade. Já os adultos tresandam a feiura. Há de haver um prémio Nobel da matemática que vai descobrir a fórmula que ata as pontas entre envelhecimento e gradual enfeiamento. Podiam, ao menos, descobrir a fórmula para a velhice não quadrar com fealdade.

Os habituais gurus das almas, moralistas amadores que ensinam banalidades e adestram os seguidores numa filosofia de algibeira, apressar-se-ão a devolver os pontos aos i: a beleza é subjetiva; e mesmo que não fosse, esgota-se numa frivolidade a que não devemos dar asilo. Estes pastores das almas combinam o óbvio com o sacramental e talvez eles próprios tenham graves problemas com o espelho que devolve a silhueta.

Se for confirmada a coincidência entre envelhecimento e feiura, é mais um golpe de misericórdia dos deuses. Fica confirmado que os deuses não são entidades boas. Se não quisessem encomendar uma turba inquieta aos consultórios de psiquiatria, os deuses não deixavam que quase todos sejam obrigados a conviver com a sua própria fealdade enquanto não se conseguem desembaraçar da angústia do envelhecimento. Ao cuidado dos procuradores de teorias da conspiração: os deuses mantêm uma bizarra cumplicidade com os psiquiatras.

Os cuidadores de almas ainda vêm a tempo de esclarecer que a feiura pode não ser feiura e, mesmo que seja (duvidando metodicamente que o seja), a beleza subcutânea é a que interessa. Não vá ser acusado de leviandade, daqui protesto credenciais: não me apoquenta a feiura como não me encanto pela beleza; já os cuidadores de almas incomodam-me sobremaneira. 

A diurese de quem se contempla ao espelho, fazendo poses que exageram os ângulos de apreciação, é a prova de como a exposição aos holofotes produz efeitos secundários ao longo do tempo. Quando os holofotes deixam de estar virados para o jovem, e quando ele mal participa no seu envelhecimento, descuidando-se em sinal de resignação, não é de beleza que se fala.

Aproveito a boleia dos gurus das almas: que sejam lavrados os códigos de conduta que nos habilitam a fundir o envelhecimento com uma necessária dose de feiura. Os tempos áureos já foram gastos e desses tempos não há resgate possível. Aprende-se a admitir a velhice sem ser sinónimo de feiura. A velhice é um atestado. A fealdade é uma representação do ser perante o seu exterior, sendo reverberada pela reação dos outros. 

A feiura é um conceito inventado pelos que fogem do seu autojulgamento para apreciarem a fealdade dos outros. 

8.3.24

Contra a “pázição” de tudo

Killing Joke, “Love Like Blood”, in https://www.youtube.com/watch?v=TnpwuRlXbhk

Lá por não sermos a favor das solenidades não quer dizer que sejamos partidários da desformalização de tudo. Por este andar, um dia andávamos despidos dos cuidados no trato e decretava-se o indiscriminado tratamento por tu, para provar à força que somos todos iguais (se afinal não somos). 

Antes que sejam dedicadas umas valentes pazadas a todos os que nos apareçam pela frente, estacionemos o pensamento num miradouro: que tratemos os amigos por “pá”, como movimento pavloviano denotativo da proximidade e, por aí, de uma certa medida carinhosa do tratamento, é aceitável; que estendamos a “pázição” a outros, que não devíamos tratar por tu, é excessivo. Acabar uma alocução dirigida a outro com “pá” tem o mesmo efeito de o tratar por tu. Não temos toda essa confiança com quem não a depositou em nós ao ponto de o tratarmos por um afetuoso “pá”. Uma coisa que não pertence ao seu lugar deve ser resgatado do seu estatuto de paradeiro tresmalhado.

Destinar um “pá” a alguém é um refrão que só se usa na manifestação de um afeto. Não se for dito com a entoação marcial dos militares, que deixam cair um “pá” no final da frase como quem exibe garbosa e tóxica masculinidade (ou um arroto a meia da função, na tasca do lado). O “pá” é o amigo, o ente querido, ou, se a analogia não for interiormente custosa, um conhecido com alguma presença. A banalização do “pá” pode ser desconfortável para aquele a que o “pá” se destina. Na ótica de quem o utiliza, a sua repetição transforma-se num vício expressivo, como se fosse uma vírgula a destempo precedendo o ponto final da alocução.

A generalização do “pá” (ou a “pázição” de tudo) é uma trivialidade. Desmonta a familiaridade quando se usa o “pá” no seu entendimento original. A “pázição” soa a facilidades oficializadas pelo enraizamento da expressão. Não queremos ser todos doutores e engenheiros, que o nome que temos não foi registado com o doutor ou o engenheiro a precedê-lo. Mas também não queremos estar todos ao mesmo nível do tratamento que os outros nos dispensam. 

Dispensamos essa igualdade que não passa de um fingimento. 

7.3.24

Biblioteca

Interpol, “Not Even Jail” (Ghost Session), in https://www.youtube.com/watch?v=8LSttYNMY8Q

As bibliotecas guardam o espólio que soma todas as horas que os autores usaram para alimentar as bibliotecas. Devia haver um matemático a somar todas essas horas: teríamos um número que ultrapassa o número de dias que o mundo teve até hoje. A seguir, deviam-se erguer estátuas às bibliotecas e a autores, escolhidos à sorte, cujos nomes estão entre os inventários das bibliotecas. 

As bibliotecas guardam o mais precioso bem que define o património da humanidade. Era bom saber quantos quilómetros de chão dava para atapetar se as páginas dos livros arquivados fossem convertidas numa métrica do espaço. Devia-se encomendar a outro matemático a empreitada de converter as páginas em quilómetros, para se concluir que as bibliotecas são maiores que o tamanho do mundo.

As bibliotecas não deviam estar fechadas à noite e nos feriados. Deviam ser de acesso livre. Não devia haver tempo máximo de presença numa biblioteca. Deviam ensinar aos menos habituados com a leitura a saberem usufruir do tempo que os habilita a leitura de um livro. Talvez devesse haver tutores dentro das bibliotecas, para as pessoas serem aconselhadas nas suas leituras. 

Os que recorrem à indexação de livros numa biblioteca deviam proibir os censores de proibirem certos livros que ofendem os seus cânones. As bibliotecas são espaços de liberdade, onde devemos encontrar livros malditos, livros adorados, livros indiferentes, livros odiados, livros recompensa, livros antítese, livros paradoxais, livros-livro, livros anónimos, livros heurísticos, livros incompreensíveis, livros bagatela, até livros que nem mereciam ser livros. Sem rótulos que sejam cicerones do utente, que nos utentes seja entronizada a empreitada de atribuir categorias aos livros habilitados.

As bibliotecas não deviam pagar impostos. A compra de livros devia estar isenta de impostos. Devia haver matemáticos para calcular o tempo que os leitores dedicam à leitura e depois somá-lo, para concluírem que esse tempo também ultrapassa o tempo sabido do mundo. As bibliotecas podem ser lugares de fingimento ou de demanda de conhecimento. Podem ser um esteio da cultura, e ainda ninguém se lembrou de invocar para elas o estatuto de património da humanidade. As bibliotecas são profanadas quando há gente que não pega num livro como se o livro tivesse a peçonha de que não querem contágio. Os que andam arredios de um livro deviam-se importunar com a ideia de estarem a ser usados para a banalização da vida.

As bibliotecas deviam ser lugares que desmentem a frivolidade coetânea.  Deviam ser procuradoras das palavras que ganharam moldura perene. Devia ser possível fazer perguntas às bibliotecas, para serem o fundamento da inteligência natural.

6.3.24

7:15, ou a bandeira do fogo (short stories #448)

The Cure, “Plainsong”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZkJwpYrcAko

           Nem todos os relógios avançam ao mesmo tempo. É como as pessoas. O rapaz estremunhado carrega às costas uma mochila com o peso digno de um halterofilista. Arrasta-se vagarosamente. Aproveita a prioridade da passadeira, para desespero do taxista apressado que dispara uns impropérios que arrebanham preguiça e gerações novas. A caminho da estação ferroviária, uma maré de gente desordenada. Nem todos vão para o mesmo lugar. Ainda bem, o pluralismo tem andado em baixa na bolsa dos valores. Um migrante está ajoelhado à entrada do cais, de mão estendida, silenciosamente à espera da caridade. A crer pelo chapéu no chão, o pecúlio foi modesto. A mãe jovem carrega o bebé. Parece que o rosto da criança vai esmagado contra o peito da mãe. O cansaço começa logo pela manhã tumultuosa. Se metade dos servos soubesse das ideias de Agostinho da Silva, sublevavam-se contra o dever do trabalho e a posse do capital. Seria uma rebelião mais eficaz do que alguma vez os marxistas sonharam. As pessoas não gostam de filosofia, um objeto esotérico que se limita a especular sem cuidar das coisas práticas da vida. Os capitalistas e os embaixadores da estabilidade agradecem o estatuto anónimo da filosofia. Preferem incutir os vícios do consumo: eis a bandeira do progresso, o estalão do bem-estar das massas pouco instruídas (também se aplica aos graduados que foram hipotecados pela inércia), um ópio garridamente colorido, o motor dos privilégios de poucos à custa dos tributos arrancados à pele dos que não podem fugir. Ao fundo, no arranha-céus, uma bandeira a meia-haste. Alguém morreu e a maioria não sabe quem foi. Não dão conta que a bandeira está a meia-haste. O que conta é a bandeira. Continuam o seu caminho, melancolicamente anestesiados, jurando fidelidade a uma bandeira que não quer saber deles.

5.3.24

A paragem do autocarro que era um esconderijo do drogado

Mutu, “A Corda”, in https://www.youtube.com/watch?v=FfNkkEXFGic 

A chuva estava mesmo a pedir que as pessoas se refugiassem na paragem do autocarro. Mas as pessoas, enquanto esperavam pelo autocarro, estavam alinhadas fora da paragem. Preferiam estar à chuva, logo nesta terra em que as pessoas ofendem o Inverno e oferecem o labéu de “mau tempo” quando a chuva toma a vez do sol.

Um drogado ocupou um canto da paragem do autocarro enquanto dormia. Do mais, nada se sabia. Se era mulher ou homem, velho ou novo, nada se diria sobre os andrajos possivelmente puídos. O drogado enfiou-se num cobertor velho, tal era o paradeiro do seu sono e o refúgio do frio que se fazia sentir em comandita com a chuva insistente. As pessoas não comentavam a colonização da paragem do autocarro pelo drogado. O silêncio cominava o enfado de terem de partilhar espaço com o drogado. Preferiam estar à chuva, como se o drogado preso à letargia fosse uma ameaça. As pessoas pareciam ter combinado o silêncio e a distância.

Uma velhinha chegou mais tarde e não percebeu por que a fila para o autocarro estava à chuva. Hesitou, acenou em jeito de pergunta, só para confirmar se era a fila para apanhar o autocarro. O gesto em resposta não foi significativo e a velhinha passou à frente da fila – a chuva emudecia os ossos – até perceber que um drogado estendeu os efémeros pertences num canto da paragem. Ela também recuou, enquanto abanava a cabeça em tom de desaprovação. Dava para traduzir a linguagem corporal: a velhinha desaprovou a desgraçada condição do drogado.

Para aquelas pessoas, era como se o vício dos estupefacientes se contagiasse por simples aproximação ao drogado. Ou não queriam ser testemunhas do acordar estremunhado e ressacado do drogado; para desgraças, aturam as que são visitação assídua e das quais não se podem demitir. 

As pessoas foram às suas vidinhas, embarcadas no autocarro que passou antes de o drogado acordar. Nenhuma voltou a pensar na miséria que fingiram que não viram. Nenhuma se queixou da chuva insistente que sobre elas caiu nos minutos que esperaram pelo autocarro e como preferiram estar à chuva a estarem perto do drogado. Nenhuma perguntou, numa distração do dia, se o drogado já tinha acordado e se amanhã iria acordar. Estavam mais confortáveis se o drogado apanhasse um autocarro para a sua vida e não voltasse a colonizar a paragem.

Ao drogado, ninguém fez perguntas. Ninguém foi à frente no tempo para saber do seu paradeiro. Nem queriam saber do seu nome – era, apenas, o drogado. O drogado tinha cartão de cidadão e número de identificação fiscal?

4.3.24

Seríamos ninguém sem o atrevimento (solilóquio anti conservador)

Yard Act, “An Illusion”, in https://www.youtube.com/watch?v=szSI6KXP2eo

I

Os lobos não têm medo de uivar. São tremores de terra que remexem as serranias, de colina em colina, atravessam a claridade com a exuberância de uma voz funda. O uivo é o idioma das serranias, um fantasma que desce até aos povoados. Os lobos foram feitos para serem predadores. Não devem ser perjurados se essa é a sua natureza. Errados estão os que não transcendem as fronteiras mentais e os julgam como se fossem pessoas.

II

Os ambiciosos são o mote para os que militam na desconfiança. Querem participar de outra condição, superior à casa da partida. Quando chegam à meta, depressa avançam para outra casa da partida. Parecem eternamente insatisfeitos, subindo a exigência de cada vez que alcançam um feito. Há quem desconfie da ambição sem medida. Julgam que os ambiciosos não olham a meios para chegarem aos fins. Confundem ambição com falta de escrúpulos. A generalização é o fardo que pesa sobre os que tresleem os ambiciosos. 

III

 Os bardos querem ser parte do hino. A fecundidade da sua obra é (acreditam) o salvo-conduto para um lugar num panteão. Não sejam ajuizados pelas genuflexões que pedem sem cessar, ou pelas honras (de preferência em vida, que depois de a morte os visitar já não constam entre os vivos para as testemunharem). O pecúlio que deixam é imaterial. É esse que deve subir à balança para ser catalogado.

IV

Os que olham para o futuro com o desassombro de o mudar esbarram no sindicato dos situacionistas. O pendor conservador não sabe lidar com a contingência. Teme a incerteza que não se desamarra do porvir. E mesmo que admitam as fragilidades do presente, e que saibam das privações de muitos que não conhecem a dignidade, mantêm a ancora descida sobre a situação existente. Têm medo da sublevação do futuro.

V

Acorrentados à inércia, o numeroso contingente de gente apática desfalece por dentro. São reféns da sua indiferença. Cúmplices dos que se arrastam pelo tempo sem serem procuradores da dignidade. Não se importam de medrar no limiar da miséria. Continuam a ser o programa cautelar de um conservadorismo de castas. Os apáticos são os piores inimigos de si mesmos.

1.3.24

A insónia das caricaturas

The Sisterhood, “Rain From Heaven”, in https://www.youtube.com/watch?v=5fRPjCs1HJo

Era o cardápio que havia: narizes aduncos propositadamente exagerados, dentes tortos que pareciam saídos de um museu de aberrações, magreza e obesidade extravagantes, as palavras que deviam ter sido ciciadas a bem de quem as proferiu, mas tinham entrado no domínio público para escárnio dos demais, e outras excentricidades que tais.

Uns ficavam abespinhados. Não admitiam a caricatura nesses termos. Se apanhassem o desenhador exigiam uma correção para tornar a caricatura mais condizente com o rosto retratado. Ainda bem que a morada do desenhador era desconhecida. Ainda bem que o desenhador desaparece de circulação por uma temporada depois de uma caricatura que esporeia a ira do caricaturado. Os que se assanhavam com as suas caricaturas não percebiam o que é uma caricatura. Tinham sido dispensados do tirocínio da ironia. Os que sabiam um módico sobre ironia desconheciam que também se abate sobre eles (e menos ainda sabiam da possibilidade da autoironia).

Outros continuavam imperturbáveis, exibindo a fleuma ou um olímpico fair play nórdico. Se pudessem encontrar o desenhador, iriam ter com ele para o felicitar. Sabem que o mundo é uma coutada de exageros. Reconhecem os efeitos terapêuticos da ironia, mesmo na sua modalidade mais difícil de praticar: a autoironia. Os que mais se riam da sua própria caricatura chegavam a confessar aos mais próximos que se tivessem dotes para o desenho exageravam ainda mais na sua própria caricatura. Levavam muito a sério o não se levarem a sério.

As caricaturas não são o bodo que patrocina o fingimento. Não tutelam disfarces que erradicam angústias interiores. Pelo contrário: chamam-nas a palco para se olharem cuidadosamente e perceberem que não são o paradigma que os devaneios narcisistas cozinham em lume brando. Uma caricatura oferece um espelho por onde o próprio se espreita, no advento de um vulto deformado. Somos a nossa própria imperfeição, em hipérbole.

As caricaturas não dormem. Atravessam o nosso sono e o tempo em que temos consciência de nós e dos outros. Sobrepõem-se ao tempo que nos é entregue. Os levantamentos contra as caricaturas deviam ser proibidos. A arte não tolera que a tentam domesticar. A liberdade de expressão, também não.

29.2.24

Prólogo

Radiohead, “Lotus Flower” (live from the Basement), in https://www.youtube.com/watch?v=JAhywJkalUE

Da terra feita de fogo, o gelo em moldura para ser narcótico – ou apenas uma vidraça que disfarça as dores de quem é por ser refém dos sobressaltos. Há um sortilégio na passagem do tempo, como se tudo fosse uma frágil construção à mercê de conspirações obscuras que confirmam a negatividade de tudo.

A matéria fina não transige com as tergiversações: é preciso inventar a determinação para se sobrepor à tibieza de quem anda à boleia de interrogações sucessivas (ouvia dizer amiúde). Por mais que os filósofos ensinassem que não são as respostas que importam, mas ter o dom de saber formular as perguntas, à medida que as perguntas se empilhavam parecia sentir a sua tonelagem a esmagar o ar. 

Era preciso voltar às origens. Parar no tempo e arranjar um lugar para apreciar o espaço, pedindo ajuda ao espaço na interior peregrinação que abonasse um calibre a preceito. Tinha de se convencer que o inventário de interrogações sem resposta não é uma maldição. Ao contrário de outros, que muito se prezam e veneram a sua incomensurável sapiência, firmava as mãos na olímpica humildade de quem recorre ao velho, mas sempre novo, aforismo de que só sabe que nada sabe. As interrogações são o cabo de atalaia sobre a imensa enseada que parecia consumida nos prantos da sua orfandade.

A prodigiosa paisagem é como um sinal sem linguagem catalogada. As interrogações herdadas do passado não têm o peso da ausência das respostas. As pedras sob os pés impedem a fulgurante anestesia dos sentidos; são elas que ateiam a ininterrupta atalaia, como se fosse preciso ser testemunha a tempo inteiro das demandas do mundo, das demandas que traziam os sentidos em perene combustão. O corpo paira sobre o vazio de um fiorde, como se os braços conseguissem alcançar as margens que distavam entre o precipício. As metáforas alinham-se para o concurso de ideias. Somos inteiros quando preenchemos o glossário com os sentidos irrequietos das palavras. Devíamos arranjar metáforas como alternativa às respostas.

Podemos ser apenas prólogo; ninguém diga que é obra acabada, ninguém jure que não houve perguntas órfãs de respostas, que só o consentimento da sepultura o atesta. Nessa altura, a voz emudecida já não alinha interrogações.  

28.2.24

Dá-me a tua maré

Beck, St. Vincent, Liars e Mutantes, “Never Tear Us Apart”, in https://www.youtube.com/watch?v=rJtP-kGBzIw

A partitura não precisa de pauta. Basta o luar, um lampejo de luz que emudece as trevas enquanto os medos estagiam à boca da noite. Os fantasmas fogem como podem, vão de mãos vazias, eles também mudos. As mentiras extintas (espera-se – a menos que seja outra, e maior, mentira) convocam as memórias do futuro. Os navios não se intimidam com a maré volumosa pressentida por um marégrafo itinerante.

As cores conspiraram uma greve, estão suspensas. O filme passa a preto e branco, como se tivéssemos perdido o paladar e a refeição opípara soubesse a nada. Não nos importamos. Arrancamos do magma os poemas bússola. Estão nas nossas mãos, como se perguntassem o que queremos fazer com eles. Não respondemos. Deixamos que sejam eles a responder por nós. A maior medida de liberdade é serem os poemas a falar por nós. Compõem uma maré invisível que segreda ao ouvido as profecias que depressa esquecemos. Não queremos saber da arquitetura do futuro; hoje, dormimos embalados pelas estrofes quiméricas.

A maré agitada desmotiva a prova do mar. Contemplamos as ondas que se emaranham umas nas outras, delas nascendo outras, promissoras, ondas que querem palco, trepando pelas ondas vizinhas. Se houvesse uma descrição do caos seria a tela do mar convulsivo que os olhos apreciam. O mar a pouca distância ecoa a morte (se alguém se aventurasse a ser seu escansão). Se houvesse mercê de o esquecer, depressa regressaríamos ao altar da nossa fragilidade. 

Os mares guardam incontáveis cadáveres. São as suas sepulturas e ao mesmo tempo seus tutores. Os cadáveres que nunca foram resgatados da prisão do mar não querem vingança. Não querem a companhia de outros marinheiros ou aventureiros. À profundidade em que estão, deixaram de ver a claridade. Se pudessem, diriam como se fosse uma advertência: no cozinhado dos paradoxos, a grandeza do mar esconde o pior dos infernos. Diriam: se puderem, escolham outro como o vosso inferno. Do mar, queiram apenas as marés que vos aplaudem. 

E nós, sem podermos estar temporadas ausentes do mar, contemplamo-lo com reverência. Não vamos ao marégrafo itinerante apalavrar juras sobre o mar. Apenas deixamos o olhar viajar no mar, voando sobre as ondas até que o sonho se funda com o horizonte. Esperamos que a maré nos levite até ao avesso do horizonte. Às viagens não dizemos que não, nós que não paramos de crescer à conta do inventário das geografias que não conhecemos.

27.2.24

Todos a bordo

PJ Harvey, “Seem an I”, in https://www.youtube.com/watch?v=IM0Ddro7Dus

“Isto faz-me lembrar uma piada que vi circular na Internet. Dizia que quem fica contente com as vitórias da direita é porque é rico ou então porque é estúpido. Bom, ricos sabemos que não somos.”

Carmo Afonso, in Público, 26.02.24, p. 40

     Os cães que ajudam a apascentar o rebanho cercam as reses e lançam correrias erráticas enquanto despejam latidos. Os cães-pastores são incansáveis e previnem o tresmalhar das reses. Sabem, os cães, que após o recolher do rebanho aos estábulos recebem a recompensa. Então podem saciar a fome e a sede com as vitualhas que o pastor preparou. Depois, é dormir o sono dos justos. Não fosse pela sua diligência, o pastor e a família tinham perdido muitas cabeças de gado. Afinal, deve ser magro o pecúlio avençado ao entardecer. Não é paga proporcional. Os abastados são, sempre, pistoleiros da ingratidão. 

Podia ser apenas uma metáfora. Mas não é.

A direita cabalística despeja o anátema da arrogância sobre a pose moralista de certas personagens de esquerda e das esquerdas radicais. É um trunfo virado do avesso. Depressa os visados contra-atacam com o queixume de que são vítimas da intolerância “da direita”. Depois disso, é um diálogo de surdos. Exacerbado em época de campanha eleitoral, quando a retórica cheia de ardis e o tiro ao alvo ao adversário sobem ao palco e cimentam a mediocridade. 

Não queria alinhar pela bitola dos mercenários da direita belicosa que se abespinham com as provocações dos que militam nas esquerdas. Os das esquerdas só têm de dar o mote. O resto, na pulsão desastrada que lhe é típica, fica por conta desta direita ora antiquada, ora distraidamente apta a cair nas armadilhas espalhadas pelos das esquerdas. O fogo cruzado de acusações será a prova que a razão não pode estacionar em nenhum dos lados da trincheira. Os de direita acusam os de esquerda de pesporrência moral e de serem intolerantes. Os de esquerda fazem suas estas palavras e devolvem a acusação. Os acusadores trocam de lugar com os acusados, dependendo do lugar da trincheira em que se situem.

Dizia há dois parágrafos: não queria tomar partido da direita enfunada, nem queria transmitir a impressão de que estou a distribuir trunfos pelas esquerdas de diferente cepa. Mas há alturas em que o sangue, por ser ateado de fora, fica em ebulição. O silêncio não pode perdurar, sob pena de outra, e pior, impressão ficar a latejar na carótida: o nada dizer sobre aleivosias gratuitamente bolçadas pode traduzir cumplicidade com os que as bolçam (podia considerar a hipótese que os irrelevantes não merecem atenção, aqui deixada de lado).

Carmo Afonso, a cronista trissemanal que ocupa a última página do Público, é daquelas pessoas que passa a impressão de seduzir com facilidade enquanto, ao mesmo tempo, esgrime o florete pelas costas à pessoa que amesendou com ela. (Corro o risco de cometer uma tremenda injustiça, pois não conheço a Carmo em pessoa; só do que escreve). Digo, curto e grosso: ainda bem que sabemos o que escreve, pois ser vítima da sua dissimulação fica ao critério dos néscios ou dos distraídos. O silêncio, ou a indiferença, só se for para não saldar a perigosa intolerância de quem nos pespega lições de tolerância.

Não tenho feito o inventário das conclusões assombrosas, baseadas em preconceitos e em pressupostos que são profecias autorrealizáveis, que industriam um raciocínio moldado ao jeito do lugar ideológico em que a Carmo se encontra. Ontem, a certa altura, fez-nos um desenho para percebermos: “a direita” tem a austeridade ajuramentada (faltou-lhe explicar que a austeridade, no estado em que a economia se encontra, é um contrassenso), porque “a direita” só sabe estar do lado dos endinheirados e das empresas que têm lucros pornográficos. E assim fomos testemunhas de uma notável cartada extraída da cartola em que labora o raciocínio prodigiosamente enviesado de Carmo Afonso.

O pior estava reservado para o final do sermão. É a citação que dá o mote a este texto. Carmo Afonso não consegue perceber como 57% dos que participaram na última sondagem admitem votar em partidos de direita. Carmo Afonso podia abdicar da advocacia e prestar-se ao papel de grande educadora dos cidadãos. Para ensinar “Como deixar de ser estúpido I e II” e “Teoria geral da perniciosidade da direita”. Pelo caminho, podia preparar um projeto de lei a proibir “a direita” – a direita toda – de concorrer a eleições. Os estúpidos, enfim, deixariam de ter em quem votar, o que talvez pudesse contribuir para a sua conversão em gente justa, avisada e penhoradamente racional, depois de começarem a votar na esquerda (comme il faut).

A diferença entre a Carmo Afonso e alguém de direita moderada e moderna é que, ao contrário da Carmo, aqueles de quem discordamos não são excluídos da praça pública. Nem são ofendidos com a insinuação, mal disfarçada, de que não sendo ricos só podem ser beócios. Todos são bem-vindos a bordo. Sobretudo para podermos discordar uns dos outros. A menos que os cinquenta anos da revolução de 25 de abril sejam para restaurar o pensamento único, a intolerância e a exclusão dos que não pensam como deve ser.

Carmo Afonso: a democracia deve ser como a arca de Noé. Ou como a discoteca que está, generosamente, de bar aberto.

26.2.24

Aparentemente (clepsidras e palimpsestos)

The Chemical Brothers, “Sometimes I Feel So Deserted”, in https://www.youtube.com/watch?v=saZVNLMMmmo

Garrafas vazias que enchem o mar: aparentemente, terá sido um marinheiro, entediado com os dias sucessivos de mar, a atirá-las borda fora. Desenganam-se os que as apanharem depois de devolvidas à praia. Estão vazias. 

Mas podiam não estar vazias. Ao abri-las, os curiosos tiravam um papel corroído pela humidade. Aparentemente, uma história contada no papel. As suas rugas e o amarelecido estado impedem conclusões. Aparentemente, a garrafa contém uma mensagem. Mas está ilegível. Para todos os efeitos, a mensagem foi extinta.

Sem capitularem, os argonautas da praia, que a esquadrinham à procura de tesouros (ou de simples seixos que depois não vão ornamentar coisa alguma), examinam meticulosamente as garrafas como fossem cientistas. Como se as estivessem a autopsiar, à procura de outros sinais que possam exteriorizar uma mensagem. Há vestígios que aparentemente podem ter um significado. Mas não são peritos em hieróglifos ou linguagem cifrada. 

Aparentemente, tudo tem de conter mensagem. São as entrelinhas e o subtexto. As figuras de estilo que atiram outros significados para cima da mesa, cultivando a hermenêutica criativa dos exegetas. Parece uma batalha de interpretações. Uns lunáticos juram que decifraram um sentido todavia ininteligível. Vestem de roupagens improváveis os espaços em branco, como se houvesse espaços ocupados (não há). Fazem palavras cruzadas sem terem a grelha de análise. Depois de tão dissecadas, as garrafas extraídas ao areal já não servem nem para despojos. Talvez acabem numa qualquer instalação artística.

A exuberância de significados forjados chegara ao limite. Exaustos, anuem que nem tudo tem de conter uma mensagem. A ausência de mensagem já é uma mensagem: alguém que queria libertar o seu silêncio e que houvesse, milhares de milhas náuticas depois, quem fosse testemunha desse pungente silenciar. 

Às vezes, as palavras não são precisas. Perdem-se na sua contumácia, coabitando com o medo dos que desconfiam que vão ser banidas. Aparentemente, não têm razão. Ninguém tem razão, para bem da razão.

23.2.24

Levamo-nos muito a sério e isso faz mal à tensão arterial (remake)

U2, “Gloria”, in https://www.youtube.com/watch?v=ybYgP48X2DY

Há pertenças que tornam as pessoas intolerantes. Começa a ser insuportável, porque a intolerância de uns ateia a intolerância de outros, numa tremenda bola de neve que avança imparável pela montanha abaixo. Pertenças variegadas que acicatam os que as elas juram fidelidade além-canina. As almas abespinhadas por um motejo ou por uma graçola mandam dizer que não se brinca com coisas sérias – eis a herança tardia de um certo ambiente salazarento que nunca foi exorcizado da sala comum que habitamos.

Os ofendidos usam linguagem dura para se queixarem dos que ultrajaram a inatacável honra da entidade a que juraram fidelidade. Não chegam a perceber que, provavelmente, os que acusam de afronta têm de estar preparados para que lhes dediquem o mesmo tratamento que deu origem a exacerbados pedidos de defesa da honra. Se todos não nos levássemos demasiado a sério, encaixaríamos melhor o escárnio que nos é dedicado. Sem ser necessário procurar vingança, saberíamos que os que usam um veneno para nos atacarem podem ser vítimas desse veneno no dia seguinte. Temos de estar preparados para sermos alvos preferenciais da fina ironia dos outros. Ou vamos colocar uma mordaça na boca deles, só para a nossa honra não ficar ofendida?

O medo que tenho se a resposta a esta interrogação for afirmativa, é que estejamos a caminhar para a inversão de valores. Cada um trata da sua honra conforme lhe apraz. Na escala de valores, a honra de alguém não pode vir antes da liberdade de expressão de todos os outros. Corremos o risco de castrar a liberdade e de, sem darmos conta, à conta das pequeninas idiossincrasias que não admitem desveneração, estarmos no abismo da tirania por outros meios. Proibidos de falar sobre os outros, ensimesmamos. Pode ser a receita perfeita para a misantropia geral.

Não nos podemos levar tão a sério. Não somos perfeitos e haverá quem se irrite connosco por razões que podem ser válidas para o irritadiço. Nem tem validade o preceito que convoca o respeito pelos outros para os outros nos poderem respeitar: não está em causa o respeito, está em causa a ironia com que os outros podem olhar para nós e a nós assistir o poder de encaixe para não sermos algozes da liberdade de expressão dos outros. Se quisermos, podemos usar da mesma moeda, que o cavalheirismo olímpico saiu de moda, e podemos responder: “olha quem fala”, seguido de um rosário de escárnio em resposta ao escárnio. E ninguém fica mal, ninguém deve levar a mal.

Em jeito de (des)exemplo, exibo o muito católico gesto de dar a outra face antes do tempo (pois não li, nem ouvi, retratos cínicos a mim dedicados). De mim podem dizer que tenho escrita gongórica;  que tenho medo da velhice; que fujo de uma imagem que, todavia, é a que transpira para o exterior; que abuso dos valores que devo cultivar; que sou refém da maldita coerência; que tenho pouca paciência para as angústias alheias; que exagero na exigência com os outros (exteriorizando uma certa intolerância); que sou refém da autodisciplina que me amordaça. E outras coisas que tais, que escapam à autoavaliação.

22.2.24

Fato à medida

Roxy Music, “More Than This”, in https://www.youtube.com/watch?v=kOnde5c7OG8

I. Todas as nuvens eram feitas de nada. Vistas do chão, pareciam ter o peso do chumbo quando o mar as empurra para serem pródigos aventais de chuva precipitados sobre a terra. 

II. Aquele era o homem que perdia seis ou sete guarda-chuvas por ano. Não desistia. Haveria de vir o ano em que não seria constantemente derrotado pela distração. Uma coisa é o esquecimento. Outra é a distração. Ao menos, ainda não tinha chegado ao estado mais elevado de decadência. As pessoas estão habituadas a contentar-se com pouco.

III. As crianças fugiam do manicómio. Atravessavam para o outro lado da rua quando saíam da escola, em barda e ruidosos. Os pais avisavam para terem medo do manicómio. Exageravam: ou atravessavam a rua para o outro lado, ou a loucura dos loucos do manicómio atravessava as paredes e apanhava as crianças. Ninguém quer ser louco, de acordo com a pedagogia dos pais.

IV. Mais tarde, algumas crianças, entretanto adultas, conheceram a loucura. Era de gente que não estava emoldurada nas paredes do manicómio.

V. Das pessoas que vão na rua, quantas estão afogadas na depressão? Quantas são reféns de fantasmas que usam o apelido da loucura para as convencerem que ficaram loucas? Devia haver uma ASAE para controlar os gurus das almas que decretam, com a ligeireza de uma folha caduca, depressões e loucuras tratáveis.

VI. E a saúde mental dos gurus das almas, quem trata dela?

VII. As ruas esburacadas pareciam o espólio da instabilidade das pessoas. Era como se andassem precariamente, cambaleando de um lado para o outro. Uma espécie de embriaguez ditada pela miséria social que transborda. Um engenheiro corrigiu o diagnóstico: as ruas estão esburacadas por causa da chuva. Foi desmentido por um geofísico (e pelo cidadão comum atento ao tempo que faz): este foi um Inverno sóbrio.

VIII. Os forasteiros passeavam pela cidade em chinelos e manga curta. Julgaram que o Inverno era meia Primavera a caminho de ser Verão. Devem ter alergia a boletins meteorológicos, ou não os incomoda a chuva que cai com uma temperatura de dez graus (a crer na sua indiferença estoica). 

IX. As nuvens viajaram para outras latitudes. O sol tomou conta do céu. A loucura continua a existir, as crianças com energia transbordante também, os engenheiros seguem desligados do mundo e os forasteiros, alguns deles, compraram casas e mudaram-se para a terra do Inverno envergonhado. 

X. E há um armazém de perdidos e achados para guarda-chuvas.

21.2.24

A absolvição prometida (toque de Midas)

Nell & the Flaming Lips, “Into My Arms”, in https://www.youtube.com/watch?v=J64XlzOROtI

Assustavam-nos com o peso hediondo do pecado. Do pecado que não era apenas um distanciamento dos mandamentos da religião. Pois o pecado reivindica a culpa e muitos não sabem como transportá-la sem terem de suplicar por redenção. Acossados, uns procuravam absolvição na consciência de um padre. Outros, prometiam que não repetiam o pecado, sabendo que apenas o estavam a adiar. Ninguém lhes disse que o pecado não existe. 

Poucos havia a negarem provimento à ideia de pecado. Estes poucos não admitiam que juízes de fora revistassem os interstícios da consciência para encontrarem vestígios de pecados. Não admitiam, depois de participados os pecados, que fossem sujeitos a uma punição. Como se o castigo apagasse o pecado, ou como se fosse a compensação que se impunha para fermentar o arrependimento. A culpa exige desculpa. E se vier ostentada com a arrogância de quem se investe neste poder, espalha os estilhaços da humilhação. 

Os cânones ensinam a indeclinável propensão para vivermos em conjunto. Somos gregários e não podemos recusar essa condição. Não podemos recusar as consequências dessa condição: não vivemos fechados em conchas onde só existe o eu, as nossas ações são motivadas ou condicionadas pelos outros, as nossas ações podem ter repercussões nos outros. Damos constantemente o flanco ao sangue coletivo que ferve o cimento que torna o grupo coeso. Não podemos afastar os olhos que se abatem sobre o eu que atua: ninguém é uma ilha.

Os exames de consciência deviam ser momentos de exclusiva competência da intimidade de cada um. Só devia ser ativada a consciência que, por definição, não sai dos limites do eu. Se não tivéssemos deixado adulterar o estado de coisas, não consentíamos que a consciência se expusesse aos exteriores julgamentos de valor. Não admitíamos que esgrimissem contra nós o capital de pecados que nos situa numa subcondição. Não nos deixaríamos sitiar pelos outros que se exalçam ao direito de julgar as vidas que estão por fora deles. 

O toque de Midas é a interior demanda pela absolvição. Quando o exame de consciência determina que a redenção se impõe para a consciência fazer as pazes interiores. De outro modo, as sombras do “pecado” (e as aspas vêm de propósito) persistem como um vulto que assombra o tempo visível (ou não). Quem apura a linhagem do pecado é o próprio que se sujeita ao autojulgamento. 

É o único julgamento em causa própria com franquia.

20.2.24

As estrelas não entregam avisos de receção

NewDad, “Sickly Sweet”, in https://www.youtube.com/watch?v=vLldYqAcCm4

De provérbio em provérbio, as mãos andavam pegadas como se fossem irmãs siamesas. Olhavam muito para o céu. Acreditavam que o futuro estava escrito nas estrelas, mas tinham azar quando o inverno ocupava o céu com nuvens demoradas. Fosse como fosse, preferiam as mãos na serventia de oráculos.

Viciados no futuro, desaprendiam os outros tempos. Diligenciavam as melhores prosas para nivelar o futuro pelas esperanças fermentadas num otimismo que não admitia correções. Se fossem ao psiquiatra, diria que estavam sintonizados com a matéria futura porque não sabiam dirimir as consumições em que o presente é pródigo. Iam adiando. Iam-se adiando, ficando veteranos à espera de redenção. Se lhes perguntassem de onde vinha a redenção, apenas sabiam dizer que estava apalavrada no futuro. Nunca lhes disseram, em retorque, que não fora essa a pergunta.

Podiam passar noites inteiras à boleia de um miradouro, dissecando as estrelas que compunham o céu. Apanharam alguma estrelas cadentes, mas nunca atribuíram significado, nem que fosse pela metáfora que se insinuava. Eles não eram estrelas, nunca foram e não aspiravam a sê-lo. Se estrelas havia que estavam cadentes, não podiam ser eles. O indomável ânimo no futuro era prova do contrário. Quase metafísico, o penhor do porvir era gramática incompatível com a decadência. A decadência não seria para eles, convencidos que a morte seria generosa e poupá-los-ia desse agravo.

Ao lado, alguém segredou: “as estrelas não entregam avisos de receção”. O que vier no dorso do futuro está apalavrado à contingência. Ninguém devia aprisionar o devir a um fardo de incerteza, tão pesado. É como navegar sem bússola, sem cartas marítimas, sem saber para onde levar o navio. É como tentar falar num idioma sem o ter aprendido.

Também havia quem dissesse, em abono da sua aventura, que as melhoras encomendas são as que não sabem a morada do destino. E assim, descansados pelo aviso favorável, continuavam a pernoitar em cumeadas olhando militantemente para o céu aliviado de nuvens. Podia ser que dali seguisse o avio para alguma literatura. Nem que fosse essa a minimal recompensa.

19.2.24

O ocidente que o pariu

Paramore, “Burning Down the House”, in https://www.youtube.com/watch?v=I_NKuuQ4Hy0

Denominação de origem protegida, o ocidente fez-se hegemonia. O pensamento nasce de dentro de baias. As palavras obedecem à geografia do contexto. As formatações são impecáveis formas geométricas que não admitem desvios de padrão. A crer na doutrina que nos ocidentaliza, sem pejo. 

As alternativas não ajudam à dissidência. São piores. Não se consagram à liberdade, não admitem discrepâncias, que muitas vezes são pagas com a própria vida extinta, outras vezes endossam a fatura da privação da liberdade sem garantias de tratamento imparcial. As alternativas desconfiam dos valores em que não se reveem, atribuem-nos a conspirações fantasiosas. São hediondas e empurram para a ocidentalização necessária. Por falta de alternativas, que é a pior caução do ocidente.

Há outras alternativas, alinhadas na malha onde se tecem as ideias que não chegaram a ser entronizadas, que não são melhores. Algumas querem desocidentalizar através de uma retórica pós-pós-moderna que prospera desde minorias ativistas, transformando-se em programas de cumprimento obrigatório sob pena de pública humilhação dos que os ousam desafiar. Não conseguem fingir a propensão totalitária que não os distingue das alternativas coetâneas que se opõem à ocidentalização.

A ocidentalização parece irremediável. O que não deve ser um salvo-conduto para transigir com a letargia que se vem impondo à boleia dos pergaminhos não recomendáveis das alternativas existentes e das potenciais. Poder-se-ia falar numa deserção de alternativas. E que essa deserção está na medula da doença existencial que trespassa o ocidente. É a ignição para o adormecimento, o ocidente convencido que o hastear os valores de que se diz curador é a fiança contra as alternativas.

O ocidente anestesiado pode ceder, por demissão, às ameaças que começam a despontar por dentro de si mesmo. A sua letargia ateia a indiferença. As vozes que se rebelam dentro do ocidente berram contra a sua indolência, contra os miasmas que se devotam ao oportunismo e fermentam a desconfiança na aptidão para os condenar e para prevenir futuros párias afins. O ocidente está a capitular, inebriado no autoconvencimento da sua superioridade. A arrogância dos que se julgam superiores sempre foi má conselheira. Costuma ser silenciosamente suicida.

Este ocidente subitamente mal parido parece-se cada vez mais com o agente que promove a sua autodestruição. O ocidente tem de ser mais exigente. Nós temos de ser mais exigentes com o Ocidente.

16.2.24

Príncipe imperfeito

Massive Attack, “Paradise Circus”, in https://www.youtube.com/watch?v=Mfog2LP4oTY

Voltava ao lugar do crime. O crime por pessoa incerta. Mas o crime existira. Voltava. Mas não para confirmar o provérbio – o criminoso volta ao lugar do crime, o raio do estúpido. Entre as muitas dúvidas que, todavia, não o sobressaltavam, podia jurar com o selo do sangue derramado, se preciso fosse, que não tinha sido o autor daquele crime.

E lembrava-se de um atrevimento trivial do povo miúdo: a mórbida propensão para estacionar o automóvel, ou para se desviar da sua função pedestre, espreitando um acidente só para confirmar o mau estado da vítima. Podia-se falar de uma metáfora também ela mórbida: o povo miúdo, que não consegue domesticar a curiosidade pelo sangue alheio, trata-se como o criminoso que volta ao lugar do crime, sem ter havido crime e sem ser, ele próprio, o criminoso.

Às vezes, tinha de saber as sensações que o percorriam nestes lugares emoldurados pela tragédia. Uma estação de comboios que testemunhou uma carnificina, um memorial que eterniza as vidas extintas pela covardia alheia, o mar imenso que engoliu navios e marinheiros indefesos, as alminhas que povoam as estradas nacionais para que ninguém esqueça que pode ser vítima de acidentes de viação – enfim, os cemitérios, que são sempre o sepulcro coletivo que aviva a tragédia que é a morte. Sem que a morbidez contaminasse esta pulsão.

A aspiração da perfeição não é um presente envenenado. A participação não é distintiva da confissão imediata das limitações. Entra-se numa empreitada com o desejo de a arrematar sem arestas vivas, no máximo que a perfeição admite pela constelação de possibilidades. O desfecho pode não se compatível com essa aspiração. Ora por fragilidades dos próprios atores. Ora por erros de julgamento – a errada aferição das circunstâncias, o errado sopesar dos outros, pois deles também depende a arrematação da empreitada, os imprevistos, ou apenas a má escolha dos meios para os fins. 

Os erros integram o sangue que nos corre nas veias. E podemos ser príncipes na mesma: príncipes por dentro dos principados que habitamos, conscientes das muitas fragilidades que arroteiam um mar de imperfeições de que somos curadores. Essas imperfeições são o estado mais próximo da perfeição a que podemos ambicionar. 

15.2.24

Os excluídos (por conta própria)

Perfume Genius, “Nothing at All” (live at the Palace Theatre), in https://www.youtube.com/watch?v=ZtUuMPTbcbc

Contra a parábola da pertença, contra as insinuações de “cimento social” que autorizem a tutela dos engenheiros sociais, contra imperativos categóricos, contra a amálgama a que estamos condenados quando somos ungidos pelo dedo protetor dos que nos pastoreiam, contra as alcáçovas que prometem miragens.

Contra arbitrariedades escondidas no formalismo do regime, contra os vultos que se disfarçam de senadores, contra os meirinhos que aparecem depois na cadeia de comando, contra os plumitivos que reproduzem acriticamente a doutrina oficial (como se estivessem apenas a soldo), contra os que povoam a base da pirâmide e aceitam tudo sem pestanejar (porque aceitar a estabilidade é o seu dever primeiro).

Contra as patranhas disfarçadas de eloquência, contra as tresleituras que avariam o fusível do entendimento, contra as castas disfarçadas de outra coisa qualquer, contra os véus baços que se abatem sobre a inteligibilidade do sistema, contra os farsantes que primam pela apatia, idiotas úteis do sistema, contra os cultores de provérbios, contra os lugares-tenentes que aspiram a subir na escadaria social, contra os mitómanos profissionais que trepam às costas do oportunismo. Contra, e sempre, o que aprouver ser do contra.

A favor da liberdade, contra os que a limitam com pretextos extravagantes que correspondem a falsificações. A favor da não pertença, contra os sacerdotes que empunham bandeiras irrenunciáveis e entoam hinos atávicos. A favor da vontade, sem deferir as algemas disfarçadas que colonizam a dilação. A favor da incoerência, se ela acontecer por acaso ou se for intencional, contra os tribunais supremos que intuem a não linhagem humana do erro. A favor do nomadismo, quando anunciam os bons ventos futuros da pertença habitual; e a favor do sedentarismo, quando os profetas sem assinatura legível aconselham o exercício, tão preocupados, mais do que nós mesmos, que possamos morrer.

A favor da exclusão, da antipatia, da misantropia dedicada, das provocações mal recebidas, da desconfiança dos metodicamente otimistas. A favor do céu obscurecido perante os magnatas do pensamento imprescindível. A favor das páginas ao acaso, das estrofes sem regras. A favor das assinaturas que mudam todos os dias. A favor dos labirintos cheios de palavras cruzadas, contra a indigência dos que dispõem o nivelamento por baixo. A favor da liberdade das artes e das letras, contra os que ditam os modismos. A favor da Liberdade, na suas múltiplas aceções. A bem da liberdade dos que o quiserem ser, sem concessões que a hipotequem, sem transigir com a exigência máxima daqueles que a querem delimitar.

A favor das bandeiras despojadas, dos hinos dilacerados, dos senadores depostos, da inelegibilidade dos mandantes apanhados em flagrante mentira, da bênção sem rito aos que souberem dizer repetidamente “não” quando forem convidados a tolerar as intolerâncias dos outros. 

A favor dos excluídos, para que nunca precisem de ser incluídos.