As tréguas substituem com proveito os sobressaltos que sejam o resultado dos pleitos afinal inúteis. Pode-se discutir se há pleitos úteis; dirão: a defesa de honra é um pleito útil; mas a subjetividade impera, o que define a lesão da honra que exige a sua defesa intransigente senão as muito subjetivas dores sentidas por cada um?
O pacto de não agressão é o melhor dote. A agressividade abre a porta a uma beligerância nunca saudável. Os que protestam a favor das suas causas legítimas vivem cercados pela angústia de se sentirem vítimas prediletas dos outros. São vítimas dos seus próprios exageros, de um destempero que os cerca com a hibernação. Vítimas de um olhar interior que os atraiçoa. Ateiam os fogos onde se consome a sua serenidade. Sublevam os sentidos, hipotecados pelo raciocínio que treslê as circunstâncias. Têm de ser vítimas de algo, ou as suas vidas perdem-se num emaranhado de significados baços. A menor das ofensas transforma-se num crime irreparável. Daí para diante, sobra o rancor sufocante que não poupa ninguém que for apanhado no caminho.
A perturbação de espírito pode tomar tamanhas proporções que os que são apanhados nesta maré tumultuosa nem percebem que estão colonizados. A inquietação passa a ser um modo de vida. Um desviver de que poucos conseguem ter lucidez para apurar o diagnóstico. Sem capacidade para entenderem a enfermidade, não precisam de armas para a combater. O passar dos dias é um colossal endividamento à conta do desviver.
A menos que, num acesso de lucidez que contrarie os fogos ateados, os beligerantes entendam que um pacto de não agressão transforma os dias em bálsamo. As arrelias deixam de ser fraturas expostas, as palavras ditas pelos outros deixam de ser a cal viva atirada para cima de feridas intencionais, o sono deixa de ser empobrecido por insónias bárbaras, o trato com os outros já não é transido pela desconfiança sistemática.
Através do pacto de agressão, todos reaprendem a ser o que foram antes de terem sido atirados para os tentáculos de uma beligerância fervente. Mas as pessoas continuam a preferir erguer fronteiras em vez de levantarem pontes.
Convocatória de greve geral das crianças, para um dia destes: sem pré-aviso, sairemos de casa sob protesto para os nossos pais saberem que vamos contrariados para a escola. Uma vez chegados à escola, recusar-nos-emos a comparecer nas aulas.
Fundamentação:
Não queremos continuar a de ser enganados pelo imaginário do Natal construído pelos mais velhos. Vamos a um centro comercial, ou a uma feira de Natal, e posamos com o Pai Natal. Chegamos à escola e mostramos as fotografias uns aos outros para descobrirmos que: ou o Pai Natal consegue o milagre de estar no mesmo sítio ao mesmo tempo; ou é um intrujão, fazendo-se passar por quem não é; ou, afinal, não existe. Podiam admitir, os gestores do Natal e os nossos pais, que não há o Pai Natal, que há, talvez, milhões de Pais Natal espalhados pelo mundo, mas que são personagens simbólicas. Podiam confessar-nos que não existe uma pessoa chamada Pai Natal.
Estamos cansados da infantilização que é um anátema, como se fizessem de conta que não somos de uma geração diferente, com acesso a telemóveis por sua vez com acesso ao mundo (existente, imaginário e o do Trump) que nos trazem a informação que os mais velhos, quando tinham a nossa idade, nem sonhavam ser possível existir. Estamos revoltados por os nossos pais e os nossos familiares chegados insistirem na mesma infantilização de que foram vítimas quando tinham a nossa idade. Queremos ser a última geração vítima desta infantilização. Juramos que não faremos dos nossos filhos e sobrinhos uma gesta infantilizada.
Não queremos continuar a pactuar com a mitologia do Natal que é uma pura falsificação. Não é preciso ser perspicaz para descobrir que as prendas de Natal não são distribuídas por um consórcio de Pais Natal locomovidos por remas, porque as renas não voam e ninguém nos revelou pormenores sobre o franchising do Pai Natal. Já não somos ingénuos para nos contarem a patranha das prendas que descem pela chaminé, porque no regime de propriedade horizontal, hoje dominante, a chaminé é por prédio e as prendas de Natal não são uma encomenda coletiva.
Como temos uma precoce, mas bem informada, consciência de classe, queremos denunciar o Natal pelos efeitos nocivos para a justiça social. Há muitas crianças que não podem sonhar com o Natal fantasioso que o capitalismo propaga para as domesticar desde a infância. Insistir na celebração fraudulenta da quadra arrasta muitas crianças para a melancolia por não terem acesso a um módico de generosidade natalícia a que as crianças favorecidas têm direito. Persistir no Natal assim encenado é perpetuar as desigualdades, castrando os sonhos que essas crianças não podem a experimentar.
Pelo exposto, faremos greve às aulas e à sopa por dois dias, em dia que nos apetecer, sem estarmos vinculados a um pré-aviso. (Como somos menores, a inimputabilidade perante a lei dispensa-nos das suas exigências.). Deixamos, à consideração de quem gere o Natal, a exigência que o Natal deixe de ser como é, para não continuarmos a ser infantilizados como somos.
“Os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo”. Shelby
O nevoeiro que se mete no caminho da luz inaugural desenha novas formas de luz que de outro modo não seriam conhecidas. A penumbra insinua-se em feixes de luz que não foram cooptados pela cortina baça que vai colonizando o dia. Ao contrário dos lugares-comuns, que depressa amaldiçoam a manhã tingida de nevoeiro que indispõe as pessoas, o nevoeiro não é sinónimo de mau tempo.
Um efémero exílio pelas montanhas coalesce o silêncio que acompanha o refrigério da alma. No campo de visão não há vivalma, nem estradas que possam desvendar um veículo furtivo só para interromper o exercício heurístico do dia. Não se diga aos capatazes das modas que este é um lugar a visitar. Às vezes, o egoísmo tem sentido. O silêncio extingue as armadilhas da cidade. Nem que seja efémero, este é um exílio de que não se pede escusa.
Um pássaro tomba estrepitosamente no passeio, para sobressalto de quem passa. Acometido de síncope fulminante, caiu a pique. Ninguém pode fugir ao colostro da morte. Ela está de atalaia, envia sinais para que ninguém se esqueça dela. É o incentivo para devermos à vida o modesto pecúlio do tempo que a faz sempre breve.
Duas pessoas discutem com veemência. Não estão para chegar a vias de facto: é uma discussão acalorada, fervida nas divergências que sabem tutelar. À sua volta, as pessoas não podem deixar de ouvir a contenda. São como agentes que escrutinam o mercado de ideias que desfila à sua frente. Não podem ser indiferentes. Todos acatam um código de honra implícito: não se metem no meio da conversa, tomam notas mentais para serem os síndicos do fecundo laboratório de ideias.
Um homem a meio caminho entre a meia-idade e a terceira idade recita as pendências a que recusa dar vencimento: a política, os partidos e os escanções da política; os grandes empresários que querem liberdade mas estão sempre a estender a mão para o subsídio ou o corte de impostos; os eternos candidatos a isto e aquilo também, autoproclamados “reservas da nação” (sem perceberem que quem passou à reserva deixou de contar); os que se deitam ufanos porque conseguiram influenciar milhares de acéfalos seguidores; os artistas que se empenham na cidadania, acabam a fazer política e passam a ser contumazes às artes (com perda para as artes e ganho nenhum para o resto); os jornalistas que clamam por imparcialidade e mentem com os dentes que têm; os humoristas que entretêm os outros com a sua (dizem) contagiante boa disposição e com o humor inestético; os narcisistas incorrigíveis; os falsos modestos (o avesso dos narcisistas); os que estão convencidos que estão acima dos demais e mesmo assim não se cansam de apregoar a igualdade; os que vivem agarrados à razão, nem que tenham de recorrer à desonestidade intelectual; aquele viveiros de gente anónima que aspira a trepar uns degraus na hierarquia da popularidade, para tirarem os seus nomes do reduto da indiferença; os mitómanos profissionais; os trapezistas que dizem hoje uma coisa e amanhã o seu contrário e continuam a ser propugnáculos da coerência; os penhores da moralidade e os que tiraram a carta de cuidadores das almas desvalidas; os que só sabem das vidas alheias sem saberem tutelar a própria; os que dispõem de crédito máximo no mercado da arrogância; os eternamente desconfiados de toda a gente.
E jurou: em vez desta gente toda, mergulharia numa dose diária de poesia.
Manuel Loff, “O 25 de Novembro em tons de 28 de Maio”, Público, 27.11.24, p. 10.
As análises são sempre parciais, eivadas de relativismo. Duas pessoas podem ter entendimentos diferentes da mesma realidade, por serem diferentes os pressupostos de que partem e diferentes os ângulos que escolhem para analisar a realidade observável. Por exemplo: um comunista, daqueles que ainda é radical (não se modernizou depois da hecatombe da União Soviética) pode chamar-me “fascista” porque sou de direita (sossegue o leitor: sou de direita moderada). E eu posso repudiar o uso abusivo que o comunista faz da palavra “democracia”, na inesgotável retórica de quem convoca para si o papel de tutor da democracia inaugurada em 25 de abril de 1974. Ou podemos, eu e o comunista, verter diferentes interpretações sobre o 25 de novembro de 1975. Eu ficarei com as minhas dúvidas, o comunista continuará agarrado às suas inabaláveis certezas, à sua cosmovisão hipotecada pela História e com adesão insignificante na sociedade portuguesa.
Como partimos de diferentes pressupostos, olhamos com olhos diferentes. Os pontos de chegada são antagónicos. Cada um ficará amarrado às suas conclusões. Sei que as minhas dúvidas metódicas não se impõem ao comunista radical. E sei, por muito que isso me possa custar (mas dou de barato), que o comunista encosta-me aos fascistas e não abdica da sua verdade irrefutável. Incontroverso é que nem eu consigo convencer o comunista, nem o comunista me convence. Cada um ficará com o seu olhar particular.
Vem este (longo) exórdio a propósito do artigo de opinião de Manuel Loff no Público de 27 de novembro. Loff entra a matar, categórico: é a citação que dá o mote a este texto, que abre o artigo de Loff e é repetida no início do quinto parágrafo. “A direita”, no rosário de generalizações que lhe é grato – muito embora, a páginas tantas, Loff distinga a direita conservadora, a direita neoliberal e, vá lá, o PSD, da extrema-direita –, “a direita” não gosta do 25 de abril. Se tivermos por barómetro a representação parlamentar resultante das últimas eleições, 60% dos deputados não gostam da democracia, e semelhante é a proporção do povo antidemocrático. Eis o clímax da arrogância: Loff, o historiador (ou será apenas Loff, o cidadão?) a julgar mais de metade dos eleitores por serem portadores de pergaminhos antidemocráticos.
A contundência dos argumentos emana do dogmatismo que ocupa o pensamento de Loff. Pode Loff resgatar a história pré-25 de abril para convocar os créditos do PCP no combate à ditadura, que isso não serve para legitimar o pepel imorredoiro do partido como vigilante da democracia. É com base neste pressuposto que muitos transigem com o tudo-e-mais-alguma-coisa do PCP que, talvez (sublinho, talvez), explique a ambiguidade dos comunistas nos acontecimentos de 25 de novembro de 1975.
As interpretações dominantes do episódio selam a narrativa de legitimação do PCP. À falta de provas sobre a ignição da revolta pelo PCP, fica para memória futura a ideia de que o PCP está entre os vencedores do 25 de novembro porque não foi ilegalizado, como queriam muitas personagens de direita radical. Da hipotética conspiração para um golpe que liquidaria a democracia (isto sou eu a ensaiar História contrafactual), os comunistas passaram a perfilar ao lado dos vencedores do 25 de novembro. Daí à ideia de que é despropositado “a direita” celebrar o 25 de novembro porque nem sequer esteve envolvida nos acontecimentos, vai um pequeno salto argumentativo. Típico de quem medra na desonestidade intelectual, de quem está habituado a patrulhar a liberdade dos outros. Falta reconhecer, a estes historiadores oficiais do regime, o simbolismo do 25 de novembro: a Liberdade ficou a salvo de aventuras totalitárias.
Agora é a vez do tipo de direita chegar a conclusões – às suas parcelares e muito relativas conclusões. Continuando o exercício de História contrafactual, que pode ser tão fantasioso como as elucubrações que Loff dá à estampa no Público num registo quinzenal, se o 25 de novembro não tivesse sido um coito totalitário interrompido; se o PCP esteve mesmo na retaguarda da sublevação abortada; o comunista que me perdoe, mas a sua linhagem, que é de alguém que tem saudades da União Soviética, leva-me a concluir que o anti-25 de novembro podia ter ditado a sovietização de Portugal.
Quase a terminar o artigo de opinião, Loff assegura – e afirma-o a sério – que para “a direita”
(...) entre as datas da contemporaneidade, a única alternativa disponível – e não exagero – era continuar a comemorar o 28 de Maio e a “Revolução Nacional” de que falava Salazar. (...) Sendo-lhes inviável fazê-lo, as direitas querem comemorar o 25 de Novembro mas como Salazar comemorava o 28 de Maio. (...) Nesta falsificação repetitiva da história, é sempre assim que as direitas veem os processos de mudança democrática. A democracia fez-se apesar delas, contra elas. Mas ainda não desistiram de vingar-se.
Depois de me sentir esmagado por esta certeza categórica, eu, que não sou militante ou simpatizante do Chega, do CDS, da IL e (vá lá) do PSD, sinto-me desorientado, órfão de referências. Confesso: nunca enverguei um cravo vermelho à lapela, mas custa-me admitir que alguém me julgue por demissão da democracia à conta desta omissão pessoal. Como amante das liberdades, celebro o 25 de abril como celebro o 25 de novembro (sem cair na risível proposta de elevar esta data a feriado nacional).
Mas depressa recupero a lucidez. O que me separa do comunista radical é um mundo inteiro de coisas. Desconfio (contrafactualmente, outra vez) que se o 25 de novembro dos golpistas tivesse vingado, e se o comunismo não estivesse em vias de extinção, hoje não podia publicar este texto. Guardo, como imagem animadora, a certeza de que Loff pode continuar a escrever quinzenalmente onde lhe apetecer e onde tiver acolhimento. Graças à democracia que ele abjura.
Esse é um favor inestimável que a democracia nos faz.
Leio os lábios: intriga-me que alguns jogadores de futebol, enquanto cumprimentam os adversários antes de o jogo começar, lhes desejem “bom jogo”. Fico intrigado, mas não devia. Com o mundo no estado em que se encontra, aqueles votos têm muito de insincero. O mundo nosso não é um lugar de lisura, muito menos quando alguém deseja ao adversário, num contexto tão competitivo como é o desporto, o contrário do efeito desejado. O desporto não guarda nada do espírito olímpico original. Perpassa a ideia que no desporto-negócio, que está a substituir o desporto-paixão e o desporto identitário, todos os meios são válidos para atingir os fins. Desejar “bom jogo” ao adversário é dito da boca para fora, uma alocução mecânica que verte um módico de fair play, só para fazer de conta.
Ou será que desejar “bom jogo” é um enfeite para enganar o adversário – como se o hipnotizasse com tão boa educação? Não será, pois o adversário estará formatado para retorquir na mesma moeda. Quando dois adversários desejam reciprocamente “bom jogo”, estão a caminho de um empate que não tem por onde se desatar. Esta franqueza, uma máscara vestida por imperativos de boa educação desportiva, traz um impasse. Um “bom jogo” ao quadrado, que sirva aos dois adversários que desejam um ao outro que bom seja o seu jogo, pende para o menor denominador comum. Como se os dois se contentassem com um suficiente menos, porque é, ao menos, um suficiente. Quando todos empatam, ninguém ganha. Mas, ao menos, ninguém perde. É um contrassenso desportivo.
Os que conhecem o desporto contemporâneo sabem que a competitividade levada ao limite, com a usura dos que se socorrem de métodos reprováveis para chegar ao olimpo e a recorrência de ardis que falsificam o fair play, está nos antípodas do verniz de educação entoada quando se deseja um “bom jogo” ao adversário. Dir-se-á que os votos de “bom jogo” endereçados ao adversário têm de ser lidos no contexto: quando um desportista formula esses votos, eles traduzem-se no seguinte: “desejo-te bom jogo, que não te magoes,” – porque ainda há uma ética profissional entre pares que não tolera danos à integridade física – “que o teu bom jogo não seja suficiente para que o meu seja melhor do que o teu e que não impeça que a minha equipa vença a tua.”
O desporto é a imagem acabada da política, desde a doméstica à internacional: um rosário de proclamações bem-intencionadas que raramente quadram com as concretizações. Fica bem prometer boas promessas, ou dizer o que cai bem no goto da audiência. Depois, funciona má memória das pessoas: entre a panóplia de proclamações bem-intencionadas que transbordam para o espaço público e as preocupações do dia-a-dia das pessoas, as promessas alinhavadas no pretérito depressa ficam condenadas ao esquecimento. Não há prestação de contas do que foi dito no passado.
As palavras diplomáticas são ditas porque fica bem serem ditas. Mas não significam nada. São parte de uma retórica vazia. Não há amigos quando o desporto tão competitivo é o palco onde desfilam adversários que por vezes se transfiguram em inimigos. E entre inimigos, não há ética que lhes valha.
Será a matéria furtiva a caução para a âncora que se lança na noite?
Os provérbios querem que haja povo a acreditar neles. Não são nada sem o povo, que é o seu fautor. O povo seria refém de uma orfandade se não tivesse bússola num compêndio de provérbios. Está por determinar o que seria do povo se um déspota malévolo (não os havendo benévolos, e essa é uma certeza categórica) determinasse a extinção dos adágios populares.
É como num cozinhado, os ingredientes não são por acaso e respondem à idiossincrasia de um povo. Pois foi o povo o soberano da construção da gastronomia: as pessoas têm de comer para se manterem, é preferível que o façam com proveito para o gosto. Mais tarde, uma casta de iluminados toma lugar na gastronomia e reinventa os modos. Reinterpreta o receituário. A parte substancial do povo não se diz destinatária da criatividade culinária. Estranham a combinação original de ingredientes, desconfiam, sobretudo, das doses homeopáticas em que são servidas as iguarias. O povo não nasceu para ser magro.
Para não serem acusadas de conservadorismo, as pessoas são desafiadas a estilhaçar as convenções que as amordaçam. Mas não dão conta da mordaça que restringe a sua vontade. Muitas continuam sitiadas nos lugares exíguos onde se sentem confortáveis. Os costumes por que se regem devolvem algum senso de pertença, não os entendem como limitações. Nos confins da autoproclamada intenção de conduzir as massas, os engenheiros sociais desconfiam da lucidez do povo. É compreensível: querem é um povo dependente do pensamento dos predestinados que pensam por eles; querem um povo obediente, que não ouse sair dos seus limites. Se forem nómadas no pensamento, aprendem a usufruir da autonomia, que torna os engenheiros sociais dispensáveis.
A matéria é subjetiva. Por mais que os rostos dos costumes sedentários argumentem em sentido contrário. Se não houvesse carris que enfeudam as pessoas, se todo o chão que pisam fosse puro baldio, não haveria dependências que ostracizam o pensamento. Não haveria quem, falsamente benévolo, orquestrasse uma castração sem ser notada, sob pretexto de poupar as massas ao incómodo do pensamento.
“God shave the Queen”, João César Monteiro, in A Comédia de Deus
Ora: enumera os garfos perdidos no arrozal, enquanto os operários labutam de cabeça baixa – na injusta imagem que os realistas com certa linhagem ideológica denunciam, só para confirmar a teoria da luta de classes. Enumera todas as opressões que tornam profundamente injusto o mundo, como se deus (se existisse) conspirasse com esta linhagem ideológica para provar que os pressupostos de que partem quadram com o quadro de profundas injustiças que emoldura o mundo.
Depois: conta os automóveis vermelhos que se cruzarem contigo na autoestrada até a Lisboa. Saberás, então, porque os comunistas andam em baixa nas preferências do eleitorado, o que acaba por conspirar contra deus, na sua santa aliança com esta linhagem ideológica, pois dezanove em cada vinte pessoas que vão às urnas não acreditam no cenário apocalítico que serve a santa aliança.
A seguir: desvia o olhar para aspetos mais mundanos (por mais que os contraries, eles fazem parte do mundo em que habitas, ou não se chamassem mundanos). Observa o chinês que come sem modos o pequeno-almoço e recorre aos galões multiculturalistas para dares o devido desconto: comer com a boca aberta, em ruidosos movimentos dos maxilares que soam a poluição sonora (e visual; e a um quadro absolutamente inestético) fará parte da cultura do chinês. Não o deves abjurar. Desvia outra vez o olhar: a senhora sexagenária que estava na mesa do lado já terminou o café e “fazia horas” (como se costuma dizer, na tirania das expressões idiomáticas) para começar a lida da casa onde trabalha. Levantou-se e foi comprar um maço de tabaco e três raspadinhas, que avidamente raspou com uma unha pré-encardida, a que se seguiu a compra de mais três raspadinhas. A atenção divina anda afastada da senhora. E é indulgente com o chinês, liberto de uma convenção social de que está dispensado.
Mais tarde: observas uma artista circense que faz acrobacias com uns pinos enquanto o semáforo está vermelho, para ganhar o pecúlio do dia ao colo da generosidade das pessoas que esperam pelo semáforo verde. Quase ninguém contribui. A generosidade não está em alta na bolsa de valores dos valores. As pessoas querem que a luz verde substitua a vermelha, o mais depressa possível.
Antes que seja tarde (não percebes porque dizes, como se fosse uma auto advertência, “antes que seja tarde”): já é noite, num entardecer prematuro, e um homem de meia-idade corre pela avenida fora. Os carros deslocam-se mais depressa, apesar das filas de trânsito. Nem assim o homem desiste e continua a correr, impassível, isolado do resto do mundo, no mergulho sistemático nos auriculares. Não é preciso muito para sermos ilhas no meio da multidão. Mas não contem este segredo da misantropia militante, que os adeptos da condição gregária podem ficar indispostos.
Rescaldo do dia: corremos todos, mesmo os que não sabem, uns atrás dos outros, uns contra os outros, uns com os outros. No auge da diferença entre todos nós, as velocidades são desiguais.
Se calhar, Marx estava certo e deus inspirou-se nele.
Caminhava no sentido do poente, para fazer a vontade ao dia. O crepúsculo descia sobre o céu tardio. A cidade começava a acalmar do bulício esquizofrénico. Parecia que o dia tinha esgotado os adjetivos. Um convite ao torpor delimitava o corpo, que começava a extinguir os vestígios de alma. Agora, estava quase a ser apenas um autómato, como se, diluída a vontade, sobrasse apenas o acaso que ditaria o tempo consecutivo.
Anoitecera quando um sobressalto povoou as imediações. Um troar belicoso, seco e assustador. Não era um sismo. Algo explodira. As pessoas começaram a correr de um lado para o outro. Umas, aturdidas, fugiam do lugar da explosão. Outras, acesas pela curiosidade, acorriam ao local, seguindo o rasto do estampido. As primeiras corriam, desamparadas e assustadas, algumas ensanguentadas pelo aleatório atear dos estilhaços. As segundas não conseguiam controlar o instinto de quem procura sofregamente as desgraças para delas ser testemunha.
Tinha havido uma explosão numa loja. Os vidros estavam todos estilhaçados. As paredes da loja ruíram. O que era a loja de meias era agora uma cratera. A polícia afastava os mirones e os bombeiros começavam a fazer o rescaldo, depois de extinguirem um incêndio que deflagrara. As ambulâncias chegaram mais tarde. Não havia vestígios de danos humanos, para além das pessoas que passaram na rua contígua a fugir do pânico, brevemente ensanguentadas pelos fragmentos projetados pela explosão. Os hospitais confirmaram que eram feridos ligeiros, nada que não fosse cuidado com meia dúzia de pontos, uns pensos e umas pinceladas de Betadine.
Só depois é que chegaram os serviços secretos. As gabardines escuras ostentadas por indivíduos circunspetos denunciavam a linhagem. Os modos rudes rimavam com a sisudez e as palavras telegráficas confirmavam o estatuto. Era preciso saber a origem da explosão. De acordo com os primeiros indícios, tinha sido uma bomba. Quem teria sido o autor da bomba e que protesto lhe era intrínseco?
Os mirones foram retirados da rua e das ruas limítrofes depois de os serviços secretos ordenarem à polícia para estabelecer um cordão de segurança de dois quarteirões. O tempo acalmou as memórias do episódio, tal como acontece quando o corpo começa a desligar assim que é invadido pelo crepúsculo que pressente a extinção do dia.
Meses depois, a revelação deu à estampa: a bomba foi colocada por indivíduos já identificados para os devidos efeitos e que estavam em parte incerta. Nesse mesmo dia, depois de revelada a identificação dos autores da bomba, a perplexidade não demorou a ser atendida. Um par de horas depois, um movimento desconhecido reivindicou o atentado e justificou-o: era um protesto contra o 25 de novembro, por, esse sim, ser um atentado contra a democracia que só pode rimar com os direitos do povo.
O Rossio demorou quase um ano até a voltar a ser o que era. As cicatrizes do atentado, essas, já vinham de trás. Sempre houve quem quisesse que a liberdade tivesse ficado pela metade. Já depois da História, conseguiram refazê-la sem efeitos retroativos. Sem saberem, ou talvez apenas sem perceberem, reforçaram a razão à História.
Não sabiam medir o pesar das coisas. Às vezes, sentiam não passar de vultos, como se o sangue olhasse de fora para as veias e os dias começassem pelo entardecer. A vaidade de uns quantos era deduzida às fragilidades averbadas. Os espelhos contíguos, puídos pela ordem do tempo, juntavam-se aos estilhaços outonais. Não se dissesse às pessoas que estavam destinadas a ser fantasmas; essa era uma intenção indigente, o disparatado afocinhar numa farsa. E se a farsa estava a recrutar farsantes, era porque estava distraída. Todos os olhos por junto, adormecidos no miradouro estremunhado, contavam para a angariação dos modos subtis que faltavam para emprestar às vidas a singularidade errante. No lugar que se apossara do tempo, a dissemelhança era causa de exílio involuntário. Apedrejados os audazes, os demais continuavam indiferentes à anestesia que os colonizou. Evitava-se começar as frases por “não” com a mesma vontade que as pessoas eram aconselhadas a não fazerem perguntas. A profilaxia preventiva das interrogações, em plena renúncia da Filosofia, era a marca de água de uma civilização cada vez mais incivilizada. Não pedissem água pura a este exército empurrado para a indigência. De cada vez que passava um dia, aprendiam a ser o contraste das solenes proclamações que enfeitavam os manuais de comportamento. As pessoas, tão ciosas do seu nome, eram levadas a ser meros números, como se os seus rostos não contassem, como se fossem todos mera massa destinada à indiferença. Se soubessem articular oráculos, talvez fossem consumidas pelo medo; talvez deixassem de saber a gramática dos sonhos. Por isso evitavam olhar de frente para o tempo. Fingiam. Fingiam tanto que já não sabiam se apenas fingiam, ou se fingiam fingimentos. Eram peões num carnaval imorredoiro. E safavam-se: antes a câmara psicadélica onde tudo se fingia, do que a aterragem forçada no leito em que as coisas acudiam.
O novelo não tem fios. Atinge as veias quando o desfiladeiro coloniza a paisagem e o olhar se extasia. O engenho humano, como filigrana pura, porfiou até conquistar à rocha indomável um caminho para as pessoas irem de um lado ao outro do desfiladeiro. Procurou bibliografia sobre a construção da estrada que rasgou uma nesga do desfiladeiro. Não encontrou. Não há registos da construção da estrada. Será por causa do mistério que é o desfiladeiro.
II
As pessoas filiavam-se em grupos de variegada índole. Davam expressão à condição gregária. Não queriam a solidão. Tinham medo da solidão. Mas limitavam-se a preencher o formulário de inscrição e a pagar as quotas. Não compareciam. Faziam de conta que a solidão não os apoquentava. Ou fingiam que a pertença a vários grupos, de variegada índole, passava um verniz sobre a solidão. Outros, misantropos incorrigíveis, diziam: na morte, tenho encontro marcado com a solidão. Não vou disfarçar agora.
III
Os pescadores subiam à vila depois de amanharem as artes e fazerem a limpeza básica da embarcação. A diversão vem depois das obrigações do trabalho. Apenderam na escola e em casa, em famílias torturadas pela perenidade do trabalho. Os que tentaram dissidir, ensaiando avulsos movimentos de rebeldia, acabaram por se resignar. Sozinhos não podiam contrariar as convenções.
IV
Os amigos ocupavam um módico de tempo com a boémia. A boémia pode ser tudo o que não seja trabalho. Libertavam-se. Diziam: enfim, não somos nós.
V
O que faríamos com um desafio inesperado, os dedos terçados pela contingência a embater no peito? Seríamos capazes de virar o olhar do avesso, se fosse preciso para domar o contratempo? A incerteza não avisa de véspera. Nós, que nos julgamos de atalaia, não sabemos como o futuro vai soar quando for deposto aos nossos pés. Mais tarde, quando a madurez assobiar continuamente, diremos que ninguém está preparado para as contrariedades. O futuro não se encomenda. Vive-se, quando desaguar no presente.
VI
A matéria abissal tropeça no vazio do tempo. Dizemos: sem embargo, para dar uma oportunidade à mascote do tempo indelével. Devíamos dizer: com o embargo das alterações insindicáveis, porfiamos pelo túnel do tempo. Somos seus passageiros, à mercê da contingência que industria.
(Para que este texto não seja treslido à medida da conveniência dos que vão ser criticados, eis o registo de interesses: causa-me perplexidade e preocupação a popularidade dos extremistas de direita que têm vindo a subir a pulso na paisagem eleitoral. São uma excrescência da democracia, mas não pode ser vedada a sua participação em eleições se e enquanto não manifestarem a intenção de terminar a democracia. No passado recente, alguns destes credenciados exemplares tomaram conta do poder por terem ganho eleições. Por mais entorses que tenham causado à democracia, não lhe puseram termo. Merecem o benefício da dúvida, por mais que causem náusea – nestes tempos, ainda mais do que a extrema-esquerda.)
Brecht dizia que se devia dissolver o povo quando o povo é ingrato e não vota “como deve ser”. Eis o drama existencial da democracia, esse regime que, de acordo com alguns iluminados, uns ascetas que aspiram a pastorear o bom povo que precisa de orientação, é o melhor desde que o povo eleja os que são devem ser eleitos. Há alguém que, na senda do sofisma de “quem decide quem decide?”, instrui o bom povo para saber os candidatos ou os partidos recomendáveis e os que devem ser impedidos de ganhar.
A triagem feita pelos iluminados é um exercício de denegação da democracia. Eles próprios, ao recomendarem os eleitos recomendáveis aos eleitores, atropelam o jogo da democracia. Este exercício esbarra noutro que é intrínseco à democracia: o direito de escolher entre as listas ou os candidatos que se apresentam a concurso eleitoral. Não é exagerado adivinhar que se um acaso levasse os “certificadores” de candidatos à titularidade da batuta do regime, excluiriam certos candidatos e partidos que, de acordo com a sua visionária sentença, não respeitem os mínimos de aceitabilidade democrática.
Para seu imenso desgosto, o Estado de direito tem superioridade e funciona como uma importante mnemónica: a vontade intransigente de quem inspira as massas que precisam de aconselhamento não se torna letra de lei. Por muito que interiormente aspirem a ser condutores das massas e acreditem que ditam as leis (como se houvesse um ordenamento jurídico seu que suplanta as leis existentes), esse não é o caso.
Para seu pesar, o sistema político tem regras que aceitam aqueles que os condutores de almas já condenaram ao desterro político. Para sua grande mágoa – e para o pior que se possa imaginar –, estes abencerragens de um passado deplorável têm cativado cada vez mais votos. Alguns, homessa!, chegam a ganhar eleições. Outros, dantes ausentes da paisagem política, conseguem ter um contingente numeroso de representantes parlamentares. Os donos da verdade assentam nos pergaminhos antidemocráticos destes populistas, esquecendo a temerosa linhagem de outros populistas que gravitam na assimetria ideológica dos que são atirados para o lodo autocrático.
O pior é quando os juízes da moralidade impante animam as hostes a saírem à rua em protesto contra eleições ganhas pelos “fascistas” – o rótulo tão fácil, tão banalizado e tão esvaziado de significado que não seja a sua adulteração como vexame dos que ousam ser nossos opositores. Ou quando efabulam sobre a qualidade do voto dos que escolhem estas personagens de má rês, atropelando flagrantemente o princípio do voto individual e de como todo o voto, até o que mais lamentarmos (de preferência no nosso íntimo), conta por igual. Estes juízes do politicamente correto escorregam para o anátema do que dizem defender em público, a igualdade de todos e a incontestabilidade do voto popular. O que dizer destes lídimos representantes “da verdade” (como se fosse possível objetivar a verdade) quando se investem no papel de guardiães da democracia e convocam manifestações de rua que exibem desprezo perante os resultados de uma eleição? O que dizer da linhagem destes “democratas” quando atacam deste modo um esteio da democracia?
Estes autoinvestidos embaixadores da moralidade política, que se elevaram a mecenas da democracia, exibem um traumatismo democrático: não sabem aceitar o resultado de eleições quando os que as vencem saem da sua órbita de aceitabilidade. Mas pior do que aparecerem com os seus traumas democráticos, é o traumatismo que, sem darem conta (prefiro acreditar nesta hipótese benigna), causam na democracia.
A vizinhança do medo, um grama acima do abismo, só para ficar de atalaia. Um grama acima do abismo, e o abismo pendido no espaço que o separa do chão onde se despenharam ramos de árvores arrematados pelo vento que pertenceu a uma tempestade qualquer. O arnês é obrigatório. Até para os que não forem ousados e apenas se abeirarem do precipício. Nunca se sabe se um golpe de vento inesperado os atira para o medo irremediável.
O arnês precisa de nós firmes. A negligência não participa na linguagem do arnês. O medo que se acerca do palco não transige com a negligência. Até aos mais distraídos não fica esquecida a diligência. Se o zelo fosse uma formalidade, e não fosse atendido com o cuidado exigível, o arnês seria só um disfarce. Os nós têm de ser exigentes como o arnês, para o arnês não ser inútil. É preciso fazer nós de marinheiro, com a cautela de quem se mete com o medo sem medo de ter medo.
Os nós de marinheiro não são um monopólio dos marinheiros. Há gente que nunca foi ao mar e aprendeu a dar nós de marinheiro. Tiveram de lidar com o medo e os nós de marinheiro são a vacina contra o medo. O engenho tece os milagres que deixam de o ser quando às mãos chegam empreitadas inesperadas. Os nós diligentes formam a armadura necessária. Se o medo for substituído pela audácia, e na audácia houver apenas uma intrepidez insensata, os nós prontificam-se ao desaperto. Para que o medo não seja final, os nós do arnês devem ser feitos por peritos. Como se fosse preciso garantir uma caução infalível para o medo não ser final.
Na falta de destreza para acondicionar os nós de marinheiro, o arnês é afivelado por nós cegos. São nós indestrutíveis, mesmo que seja à custa da corda depois puída. Porque um nó cego não se desfaz. Nem todos são marinheiros para atarem nós de marinheiro. Mas o nó cego passa no teste do medo.
O piano tinha direito a um pequeno púlpito, meia dúzia de degraus acima do chão do átrio do hotel. Estava impecavelmente polido, como se alguém tivesse acabado de engraxar um par de sapatos. As pessoas abeiravam-se do piano. Circundavam o piano. Algumas tocavam levemente o piano com uma mão, extasiadas pelo instrumento que era centrípeto.
Não se podia dizer que o piano atraía as pessoas por causa das luzes feéricas do lugar. A gerência do hotel preferiu que as luzes fossem baças, o que causava ainda mais admiração nas pessoas que visitavam o piano: se houvesse luzes mais pujantes, imagine-se a cintilação que o piano emitiria.
Perto da cauda do piano, uma pequena placa continha informação para os interessados:
Ryuichi Sakamoto tocou no piano durante a sua estadia neste hotel.
Para quem soubesse quem era Sakamoto, o piano tornava-se um ícone. Não era de estranhar que a gerência do hotel tenha promovido o piano a um lugar de destaque. Mas o piano não estava naquele lugar quando Sakamoto desceu do quarto, numa noite de insónia, e abriu a tampa do piano para dedilhar umas notas, ao início, ganhando a confiança no piano ao ponto de ter estado meia hora a falar com ele através da música. Era noite funda. Apenas um punhado de funcionários que estavam de serviço e alguns hóspedes que chegaram a más horas ouviram a récita improvisada e improvável de Sakamoto. Não se soube quantos deles saberiam quem era o pequeno japonês que tratava o piano do átrio do hotel por tu.
O gerente do hotel soube no dia seguinte. Ninguém soube dizer se o pianista era de circunstância, um amador todavia com dedos destros no piano, ou um pianista profissional. O gerente, que fizera formação em música clássica, correu os dados dos hóspedes. Encontrou o nome de família “Sakamoto”, seguido do nome próprio “Ryuichi”.
O gerente do hotel não se perdoou ter trocado o turno da noite com o subgerente. Devia ter sido ele a fazer o turno, mas estava cansado e pediu ao subgerente que ficasse na sua vez. Perguntou na receção se alguém se tinha ido ao piano depois de Sakamoto. Disseram que não. O gerente encaminhou-se para o piano, puxou discretamente o banco atrás enquanto levantava o tampo do piano com a mão livre. Os dedos passearam pelas teclas que horas antes tinham sido massajadas por Sakamoto. E o gerente, quase por osmose, sentiu-se Sakamoto por uns instantes. O Sakamoto que não conseguiu ser, antes de ter feito carreira na hotelaria.
Quanto ao piano, foi entronizado. Ao gerente do hotel ainda passou pela cabeça a ideia de tornar inacessível o piano, para que as pessoas não dissipassem os restos de Sakamoto que ficaram a fazer parte do ADN do piano. Mudou de ideias. As pessoas que soubessem quem era Sakamoto tinham o direito de tocar no piano onde o músico tinha tocado.
À prova de bala, exibem a gongórica exaustão de si mesmos. O falatório é fecundo, as realizações sobram na cortina de fumo das promessas miríficas em constante ebulição. As poucas que beijam a luz do dia esbarram no avesso das benesses. Às vezes, é melhor política não fazer nada.
Os mecenas da situação estabelecida, gravitando na órbita do fazer público, contestam o juízo. Consideram-no um pré-juízo, grávido de ideias feitas. Desafiam os descontentes a entrarem no palco público, a serem proponentes das maneiras alternativas. Como se fosse imperativo estar por dentro para a crítica ganhar legitimidade. Mal-amanhados, os eriçados astronautas da coisa pública passam ao lado de um direito fundamental de que ninguém pode ser privado: ser cidadão começa pela admissão de um erário de direitos, os deveres pertencem à consciência de cada um. Um dos direitos é de sermos os soberanos avaliadores dos que sobem a palco e desenham, com a diligência possível, o esboço do presente e do futuro. Mal iria a liberdade se aos descontentes fosse vedada a liberdade da crítica. Se a vontade fosse feita aos censores disfarçados, assimétrica seria a liberdade, uma regalia exclusiva dos seus aduladores e dos que aceitassem castrar a liberdade de expressão.
Os embaixadoresda situação ficam indignados quando sobre eles se abate um voto de desconfiança. Parece que estão ungidos com o barbante da perfeição e sua é a infalibilidade reinante. Quando esbarram na crítica, reagem com hostilidade. Porque a crítica é uma adversidade. Escondem-se sob o verniz muito epidérmico, os salazarentos entranhados. Ah, se pudessem prescindir, ou ao menos temporariamente suspender a democracia, não ficariam à mercê do povaréu impreparado e tremendamente ingrato. Até ser levantada a suspensão, podiam concluir a sua missão e – acreditam, tão seguros das suas capacidades (e reféns de um espelho de ilusões) – imortalizar o seu nome nos livros que selam a História conjunta. Pois é isso que importa.
A recompensa que merecem é um voto de desconfiança. Não é a escolha dos rivais; é a escolha para que os mandantes não continuem a desmandar.
Do espectro dos milagres – porque as pessoas sossegam os espíritos, quando os espíritos tendem para o sobressalto contínuo, ao serem anunciados milagres. Os milagres contrariam os padecimentos que assaltam as vidas com uma frequência superior à desejada. Invertem o curso dos acontecimentos quando as vidas esbarram em contrariedades e não avançam no curso cobiçado. Um milagre é o tira-nódoas que as vidas das pessoas precisam, porque uma vida enodoada fica aquém da vida que merece ser.
Quando há inundações e os carros ficam submersos, depois a água deixa de ser invasora e os carros já não são submarinos. Mas eles não voltam à vida sem uma reparação do motor. Um carro não foi feito para ser submarino. A mecânica não é à prova de água. Quando a água lodacenta invade o motor, o carro fica fora de combate. Saber que um carro – um Mercedes, com a licença da publicidade gratuita, só para confirmar o mito de que os Mercedes “nunca mais acabam” – esteve submerso e quando foi retirado das águas respondeu à chamada da ignição, é do domínio do milagre.
É como se as pessoas que vivem agarradas à ideia de milagre pudessem desconfiar que o seu afogamento não é fatal. Aventurem-se mais audazmente no mar, no rio, na albufeira, na lagoa, na piscina, na banheira. Se a aventura se saldar por um afogamento, serão como o resistente Mercedes à prova de água: retiradas do afogamento, feita a manobra de reanimação – exigindo a presença de um perito no assunto, o que não pode ser garantido no cenário do milagre –, o afogado regressa à vida para contar como é estar uns minutos do lado da morte.
As pessoas devem saber medir as circunstâncias. Elas não são feitas da mesma fibra dos Mercedes que podiam ser submarinos. Os pulmões não foram feitos para respirar debaixo de água. Muito embora os Mercedes sejam projetados por pessoas e fabricados por algumas pessoas (em parceria com robots), as pessoas são feitas de outro material. Que não é impermeável.
Os milagres não foram feitos para todos. As pessoas não devem imitar o Mercedes que passou por submarino. Correm o risco de já cá não estar para saberem do ocorrido. Já o Mercedes que ressuscitou da submersão, anda por aí. Pronto para as curvas.
Aos interessados, gente não órfã de passado e, todavia, ambicionando exibir um, magnífico e exemplar, que seja diferente do seu; gente arrivista que não saiu da cepa torta e, insatisfeita com o que lhe foi reservado pelo destino (ou pela indolência; ou por uma conjugação de circunstâncias que jogou a seu desfavor, real ou imaginada), quer ostentar pergaminhos só possíveis com a reconstituição do seu passado; gente que se acusa vítima de injustiças avulsas, ou atingida por várias marés de infortúnio; e gente já instalada mas grávida de ambição, com uma sede irreparável de craveira que os eleve a outro patamar. Aos interessados, estes e de outras linhagens elegíveis, o anúncio altissonante: vendem-se passados.
Vendem-se passados de gente desinteressada no passado seu; de gente que deixou de existir e lavrou em testamento a vontade de transmissão de parte ou de todo o seu passado; de gente, ora altruisticamente motivada para melhorar a vida dos outros, ora mercando o passado em fragmentos ou na totalidade contra um pagamento correspondente.
Desenganem-se os conservadores que advertem, agarrados às convenções que funcionam como sua boia salvadora, que o passado é pessoal e intransmissível. Insistem: o passado está colado à pessoa que o titula, não pode ser transferível para outra pessoa. Estes conservadores têm de ser repudiados: ele há tanta gente que aspira a ser diferente de quem é, que a sua vontade só se autentica se conseguir vestir um passado que lhes foi transmitido por ato, gratuito ou oneroso, de outrem. Não podem travar as ambições dos que querem ser maiores do que o seu próprio espelho anuncia.
As pessoas têm legitimidade para não estarem contentes com quem são. Devem poder ambicionar a ter outra, maior, estatura da que arcam. Dantes, falsificavam-se credenciais, materializando mentiras negras que arrastavam consigo o ónus do indesculpável. Retificar a propensão para esta mentira grave consegue-se através da legitimação de uma mentira que tem uma gravidade menor: merquem-se passados, que deixam de ser pessoais e intransmissíveis, e seja saciada a teima de muitos serem de uma grandeza que o seu passado não caucionou.
A seguir, mude-se o nome deste lugar para república popular da mentira.
“(...) dizer coisas inúteis resume bem a atitude essencialmente moderna.”
Fernando Pessoa
(Em defesa da banalidade)
Quanto mais é a palavra escrita, a palavra dita, maior a probabilidade do que se diz emergir com a cola da irrelevância. Os autores desta sentença estão sentados num pedestal e, empossados de um juízo crítico acima da vulgaridade das massas, avaliam o que é útil e inútil. Tendo dotes especiais de sindicância (sobretudo quando a mesma se dirige aos outros; outro tanto não se diria se fizessem um autoexame), a exigência com que exercem o mandato leva-os a incluir no património da inutilidade parte substancial da cacofonia que integra a fala e a escrita.
Não será critério decisivo defender a convocatória da democracia, e a acessória garantia de igualdade, para recusar o solipsismo dos que, sentados no seu alto trono, condenam grande parte do que é dito e escrito a ser património da inutilidade. Às vezes, a acrimónia com que se desfaz um texto ou as palavras proferidas por alguém explica-se pelo antagonismo pessoal: é um método, e desleal, de atacar alguém pelo alguém que é e não pelo que o que acabou de dizer ou de escrever. A acrimónia é reveladora das motivações dos tais juízes das palavras alheias.
Outros são os casos que escapam ao diletantismo da acrimónia e selam a avaliação sistemática e eivada de rigor sobre-humano: os avaliadores são tão exigentes que sentenciam a desqualificação geral das palavras ditas ou escritas. Como se estivessem a condenar uma parte significativa da humanidade ao silêncio, talvez para ficarem eles, e um escol sob sua caução, a falar sozinhos.
Por menor que seja a qualidade das palavras ditas e escritas, incomodam mais os próceres que sentenciam a desqualificação da grande maioria. Esse princípio aristocrático, só justificável por um devaneio interior de quem ousa avaliar a qualidade dos outros, concorre para a morte da concorrência da palavra dita em público ou dada à estampa. É mais danosa a arrogância dos autoinvestidos aristocratas do que a pobre qualidade do muito que se diz e que se escreve. É mais lesiva a oligarquia da palavra que preconizam do que a palavra gongórica, irrelevante e, tantas vezes, refém de ardis gramaticais e sintáticos.
Porque, como advertiu Montaigne, “mesmo no mais alto trono do mundo estamos sempre sentados sobre o nosso rabo”.
A morte, essa cabra, não desiste. Subtrai as pessoas à vida, umas cedo de mais. A morte, façanhuda, conspira contra os que querem saber que em vida têm muitos mares a cultivar. A morte, quando nos é próxima, é filosófica. Obriga a pensar. Leva a juras que se antepõem a mudanças sentadas no astrolábio do futuro. Até à morte que nos é próxima, vamos esquecendo o valor incalculável da vida. Esquecemos que nós, os que ainda não fomos vítimas da morte filha-da-puta, somos a vida que se emoldura em sublimes fragmentos poéticos. Esquecemos o fio frágil da vida e atiramo-nos às angústias, às quezílias, às coisas que nos desenamoram da vida, como se andássemos à procura dos vultos facínoras que estão de atalaia, à espera da nossa vez. A morte próxima, a morte que vem sem aviso de receção, é um profundo abalo sísmico. Não disfarçamos se plantamos outra jura no caminho: a morte ensina a fragilidade da vida, ensina a sua efemeridade. E se queremos ser cultores da vida, como se ela dependesse de cada um e não contrário, temos de a tomar pelas rédeas e fazer dela aquilo que vier ao estuário por força da nossa vontade. A morte é heurística. Não para fazer de conta que não ficámos tristes; é heurística porque ensina a projetar outro olhar sobre a vida. Vamos tomá-la como se fosse uma pega de caras. Vamos esquecer os mesquinhos motivos que nos forçam a desperdiçar tempo, a deitar fora pedaços da vida que depois, à vinda da morte, já não podemos resgatar. A morte intimida: para um agnóstico, a morte não é um parágrafo; é o ponto final, a página derradeira que já não vai ser virada, por falta de comparência. A morte intimida muito. Mas a morte próxima, a que ronda de perto a nossa existência, dá o ânimo de sermos vida plena caso tenhamos esquecido que a vida pela metade é a pior forma de a merecermos. À homenagem merecida da pessoa próxima que partiu, juntamos a jura de sermos vida inteira. É a homenagem viva que podemos deixar ao amigo que foi agarrado pela morte.
#1 – Foge sem fingires se a fuga for exílio voluntário, mas irrecusável, do atual estado das coisas.
#2 – Atravessa a maresia que se levanta no zimbório da madrugada, que o tempo a essa hora é feito de ausências.
#3 – Convoca a claridade para o teu olhar, preenche-o com uma página em branco que espera por uma fotografia onde tudo se apura na sua lhaneza, sem os equívocos fabricados por farsantes e a armadilha em que são apanhados os seus antagonistas.
#4 – Nunca saias à rua sem a poesia que fala em teu nome.
#5 – Dá-te à imaginação que se congemina a favor no palco sem espinhos a que sobes sem medo dos caçadores que não se desamparam da estultícia.
#6 – Aprecia as flores que vicejam nos arbustos da montanha, nota como elas compõem a paleta de cores que depõe a favor do arco-íris.
#7 – Desinteressa-te dos que, em pose grave, exercitam os seus oráculos. A atualidade a que viras costas será ainda pior com o desenho dos prefaciadores do porvir.
#8 – Mergulha nas teclas de um piano, por mais que sejas amador.
#9 – Desamarra os medos que sobem pelas costas dos dias e deixa-te estar como embaixador do tempo presente que se esconde da sua medida.
#10 – Sepulta os fantasmas num lugar avulso e ermo e esquece-te do seu paradeiro.
#11 – Consagra-te aos vícios que te apetecer sem receio do olhar acutilante e densamente moralista dos outros. Ensina-lhes que as vidas deles são indiferentes.
#12 – Combina números de memória com as estrofes de um poema arrancado de uma página ao acaso.
#13 – Exalta a música que te isola do resto como um idioma à prova de regras.
#14 – Adormece por dentro dos sonhos de que já não tens inventário, eles sussurram o roteiro magno do dia estilhaçado.
#15 – Comparece na praça deserta, fecha os olhos, e submerge no labirinto que se entretece no tempo furtivo.
#16 – Acorda com o suor pendido na testa, os sonhos ilegítimos proscritos, e uma vontade irreparável de sair sem roteiro, preso pelo peso do acaso, furtivamente à revelia da atualidade.
Viram? O peão avançou uma casa. Se quisesse saltar umas casas pelo caminho, não podia, as regras não deixavam. Já o cavalo move-se três casas, desde que uma seja numa direção e as outras duas noutra direção. Um cavalo vale mais do que um peão.
Ou então desmistifica-se a comparação. É apenas um jogo de xadrez, não é preciso chegar a conclusões impróprias. O xadrez pode ser uma metáfora, mas é só uma metáfora. As metáforas são exercícios estilísticos que podem ajudar a perceber o que se passa à nossa volta, mas não reproduzem o contexto como se fossem um padrão fidedigno. Ou podia-se amortecer a rudeza da comparação – quem é que se lembraria de trazer um cavalo para o palco onde a pessoa quer ser comparada? – lembrando que o cavalo tem uma passada mais comprida do que a pessoa. Por isso, três casas de cada vez.
Se à metáfora se regressar, tanto é possível sugerir que o xadrez é profundamente antidemocrático como desvalorizar o jogo como representação do mundo em que nos movemos. Em abono desta posição, não é legítimo extravasar de um jogo para o mundo, pois um jogo é apenas um jogo. Se se alinhar pela primeira posição, anotam-se as limitações aos movimentos dos peões, compara-se com os movimentos do cavalo, e a tempestade perfeita aterra no horizonte: ao povo não se deixa avançar mais do que ao cavalo. O cavalo tem mais direitos do que o povo.
O xadrez é o selo das desigualdades que continuam a tatuar a pele social. Os bispos podem-se mover na diagonal num número de casas que só depende da sua vontade. As torres – a personificação do exército – movem-se quase como os bispos, só que não podem saltar casas na diagonal. Só a rainha se move quantas casas quiser, na diagonal, na vertical, ou na horizontal. Quem inventou o xadrez era clerical e a favor da monarquia.
É quando se observam as movimentações do rei que o diagnóstico que a democracia inerente ao xadrez sofre um retrocesso – e um retrocesso destes representa um avanço social. O rei só se movimenta uma casa de cada vez na diagonal, na horizontal, ou na vertical. Ou o rei está obeso e anafado e, cansado de tanto exercício que implica avançar uma casa, senta o abundante corpo na primeira casa à mercê.
Afinal, o xadrez não é antidemocrático. Acolhe um rei sedentário e os peões também sedentários. Quanto à latitude dos movimentos, não há grande diferença entre o rei e os peões. O rei desce do pedestal para celebrar a soberania do reino junto dos anónimos peões. E estes, nem que seja por um dia, convivem com o rei descido às ruas. O xadrez ensina que as peças de um lado do tabuleiro são gregárias e falam umas com as outras. Mas não falam com as peças do outro lado do tabuleiro.
O xadrez pode não ser antidemocrático, mas é um livro aberto onde os beligerantes encontram casa para se guerrearem.
Atribulados tempos os hodiernos, em que a moderação entrou em retração e a razoabilidade está em vias de extinção. A causa radica na radicalização em curso. Acusam-se os populistas de uma certa extração, que passam por cima das lições da História e cuidam de a reinventar quando é conveniente. Segundo a proposta apocalítica dos que se apressam a atribuir esta titularidade ao grotesco desfilar de radicais, é a vingança sobre a História. À sua conta, um discurso que perdeu o pudor de usar certos temas dantes tabu, não hesitando em recorrer a uma retórica excessiva que não é compatível com o debate civilizado.
Do lado contrário, cada vez mais acantonado no singular (dantes era mais fácil observar a pluralidade deste lado da trincheira), situam-se os que sempre hostilizaram esta extração de radicais, os que os repudiam por atentarem contra o código de conduta da convivência democrática, e os que, não se situando em nenhum dos dois sectores anteriores, se demarcam dos radicais com a marcação de um perímetro de segurança. Dantes, eram os primeiros que se socorriam de uma retórica desaforada para resistirem à emergência dos que outrora foram combatidos muitas vezes com o preço de vidas. Os demais assenhoreavam-se da moderação.
O tempo atual reconfigurou a paisagem. A polarização tomou conta do palco onde competem visões concorrentes. Responde-se com discurso grotesco ao discurso grotesco dos radicais. Como o discurso grotesco é todo ele grotesco, não se admita que há o grotesco bom, que se abriga sob a nossa asa, e outro grotesco que deve ser categoricamente denunciado. Sobretudo se a imoderação que tem tomado conta dos que nunca foram radicais derreter a razão que possam ter. Da mesma forma que a violência coalha a razão, e não há razão que se alicerce no bastião da força, responder ao discurso imoderado com reações imoderadas traz os moderados para a casa dos radicais. Para combater os radicais e as ameaças que eles possam representar, há muito quem defenda que deve ser usada metodologia afim.
Só que o radicalismo e a imoderação em que se debate não podem ser a caução de uma imoderação de sinal contrário, porque se trata de imoderação. Quando se objeta ao discurso soez de um radical com palavras também agressivas e em contramão com o código de conduta dos moderados, passamos a não ser diferentes dele. Alguns dirão, em defesa da derrapagem intencional para o discurso extremado, que é por um imperativo de resposta aos radicais a que nos opomos. É a gramática que eles conhecem. Se assim nos comportarmos desde o outro lado da trincheira, começamos a falar a mesma gramática que é característica deles. Começamos a ser parecidos com eles, pelo menos no modo como falamos com eles. Começamos a adulterar a nossa identidade.
Para continuar a haver uma linha de demarcação, não nos podemos sentar à mesa do banquete dos beócios. A convivência contagia-se e, de começarmos a recorrer a uma retórica grotesca, usando os mesmos métodos e figuras de estilo dos radicais, passamos a falar numa gramática igual. Contribuímos para o empobrecimento do debate público quando devolvemos, sem o sangue de aracnídeo que devíamos ter, acusações tão torpes como as que são típicas das provocações encenadas pelos radicais.
O argumento válido não é o da palavra imperativa para desmontar o radical ameaçador, se essa palavra nos nivela pela sua estatura. O argumento válido é deixá-lo a falar sozinho, enredado na puída língua de trapos em que articula o primitivo pensamento, deixando por sua exclusiva conta a procissão de mentiras, de ideias perigosas, de insultos gratuitos, de boçalidade que trespassa os seus corpos. O argumento deixa de ser válido se descemos ao seu nível, pois legitimamos a sua retórica, o seu modo de estar, a hostilização contínua. Não queremos ser como ele, mas agimos como se fossemos um deles.
Esta é uma das possibilidades mais aviltantes da polarização, a que parte da radicalização de uns e termina com a radicalização dos outros como reação aos primeiros: o nivelamento é feito por baixo. Ao ódio não se responde com ódio, porque é ódio na mesma. Responde-se com indiferença. Que é o prémio merecido dos radicais que ateiam o fogo da acrimónia constante.