9.6.23

Às torres de Babel

The Comet is Coming, “Code” (live at Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=_gtcXU5VSnM

I. Quando éramos pequenos, tomávamos Melhoral sem estarmos doentes. Nenhum adoeceu por tomar tanto Melhoral. Nenhum chegou à idade adulta a precisar de aditivos ilícitos. O doping não era para nós.

II. As cordas dos violinos pareciam teias de aranha. Os dedos adestrados dos violinistas tocavam no verso em que chegava o vento.

III. Sabia que, no futuro, fugia dos vultos perenes que assombram as almas apequenadas. Dizem que as pessoas começam a minguar depois de certa idade. Era testemunha em carne viva: sabia que a sua alma fora maior, como sabia que ela ficara puída com a controversa desaliança com o tempo. Dele não se esperassem conselhos. Era o desaconselho em pessoa.

IV. Pai, por que ainda há monarquias? O pai não sabia como responder à filha. Não podia falar de atavismos, ou de anacronismos, ou de formas datadas de reger um país. Eles não eram exclusivos das monarquias. E se a filha lhe perguntasse pelo inventário das fragilidades da democracia, será que pedia conselho sobre o seu contrário?

V. Pela matrícula, o automóvel era novo. E já estava em cima do reboque. Às vezes, as ruínas morrem à nascença.

VI. Aquela pose grave, denotando a natureza tão séria do discurso que se preparava para ler, o olhar que parecia passar em revista cada pessoa sentada na plateia, o olhar que pedia contemplação e, no final, imperativa ovação. Era muita a forma, mas pouca a substância que rimava com tanto formalismo decadente. Há quem não passe de um enfeite, com pouco para dar além do papel de embrulho. E, todavia, fazem-se passar por senadores ou candidatos a sê-lo.

VII. Por que tinham as mulheres antigas sete saias e depois pariam antes de serem casadoiras? (Das perguntas metodicamente alinhavadas pela filha.)

VIII. Dizia: estou empenhado num esgrima contra os meus paradoxos. Sinto-os a adejar, arfando o ar tropical que enche os corpos de suor pegadiço, sinto-os como se fossem pregas entre as vírgulas que compõem as frases, e não os sei nomear. Já chego a acreditar que é melhor deixar os paradoxos levitarem sem paradeiro certo e ser por eles levado até a uma enseada que mergulha no poente. Só para ver se à noite as estrelas que ocupam o céu enegrecido emprestam uma pista sobre os paradoxos. 

IX. O armazém estava cheio de mercadoria por expedir. As pessoas tinham medo de usar o verbo comprar. Não sabiam do futuro. Nem lhes competia saber, que o grande líder, de braço dado com os ajudantes que industriam as encomendas do grande líder, tinham anunciado que os maus pressentimentos são maus, devem ser atirados borda fora.

X. Querias uma torre de Babel com um roteiro para não te perderes? Ou querias que a torre de Babel fosse um mistério à prova de sondagens, permanentemente inacessível (só assim condiz com a sua cerviz)? Antes de responder, advertiu: aquela não seria a resposta esperada pelos que tutelam os costumes. E respondeu: queria que a torre de Babel fosse à prova de incêndios e de inundações. Para que se mantivesse viva e democraticamente abrisse as portas aos interessados.

8.6.23

Arroto ao alto, para não parecer mal

The White Stripes, “Icky Thump”, in https://www.youtube.com/watch?v=1OjTspCqvk8

Devia haver um medicamento contra a soberba. Devia ser fungível o gesto fúnebre em que se desfaz a vaidade descalculada. Elevadores supersónicos consumiriam o magma da arrogância. Os seus intérpretes, deixados à reeducação por meios próprios.

Franziu o sobrolho assim que ouviu as estrofes cantadas vertiginosamente por um rapper da moda. Como é possível a cacofonia? – mas esse era um problema seu, que era hostil aos modismos e se insurgia como meio de defesa (a mania de querer ser diferente). Ele há sempre privilégios, não há como combater o insustentável eflúvio de desigualdades. Pobres dos ascetas da igualdade, desafiados pela feição tenebrosa do mundo e pelas pessoas que passam por cima do seu semelhante se essa for a caução para os proventos materiais ou para uma qualquer forma de efémera reputação. Pobres são, que ou afocinham no mundo horrendo que invalida o ideal em que vegetam, ou se refugiam num estado de negação que finge serem diferentes as coisas do seu estatuto.

Antes de atravessar a avenida, enquanto espera que o semáforo verde derrote o vermelho, detém-se na figura que empresta as cores ao semáforo. É um boneco estilizado que pulsa dentro de um coração, ou, vendo melhor, o boneco é um coração que o colonizou e arfa o batimento cardíaco que o suplanta. Ao lado, uma rapariga conferencia com alguém ao telemóvel. Está angustiada. Desconfia que o consorte a traiu.

Na parte mais movimentada da cidade, tem de circundar o estaleiro a céu aberto. Os condescendentes, sempre tributários de um otimismo que irrita, comprovam as obras contínuas como sinal do progresso agendado para um dia destes (ou uma década) destas. Quem deles discorda argumenta que os contínuos estaleiros a céu aberto sinalizam o atraso persistente de que é difícil desligar. Há sempre mais outra obra, e uma obra em cima de uma obra que acabou de ser encerrada, um palimpsesto de obras extinguiu a feição da cidade e o silêncio geral parece sinal do consentimento. Dizem que é para bem dos turistas e que os turistas são o visto de salvação da cidade (e talvez, até, do país). Os habitantes da cidade não contam. O edil é acusado de trair os seus constituintes. (Ou de ter interesses, instalados ou inconfessáveis, na indústria do turismo. E assim trair os seus constituintes.)

Uma varina poveira – ainda há varinas poveiras – transpira energia inesgotável. A tarde acabou de ser parida pela hora do almoço e a mulher continua a apregoar a safra contida no cabaz. A voz da varina não acaba. A meio da conversa com uma senhora reformada, enquanto a clientela espera por atendimento (a senhora reformada queria o conforto de uma conversa com alguém), a varina deixa cair que está a pé desde as três da madrugada. Houvesse quem soubesse do exemplo da varina para não sobrestimar o seu próprio cansaço. 

Dizem que as igrejas são lugares de recolhimento. Exílios pessoais. Para os crentes, santuários onde celebram a sua fé. As igrejas servem para a função procurada por quem as procura. Não há notícia de igrejas onde esteja afixado, e em letras garrafais, que é reservado o direito de admissão. Já o rio que corta a cidade em dois não é esquisito. Quem quiser pode banhar-se nas suas águas. O rio não responde pelas bactérias que possam ser invasoras dos corpos dos expeditos que procurarem as suas águas. Por isso o rio não tem sacerdotes a falar em seu nome.

7.6.23

É melhor o prato vazio do que as lentilhas que te queiram oferecer

Pulp, “Underware” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=IQg0STk_pb8

Há os desconfiados da generosidade que os outros praticam. Não acreditam que a bondade seja genuína. Ele há tantas segundas e terceiras e quartas intenções, e assim sucessivamente. Metem nos ombros a desconfiança metódica para não serem vítimas da ingenuidade. Ou desconfiam, porque a mercantilização que tomou conta do sangue da sociedade exige que tudo seja mercável. Até os favores que se ficam a dever, com os juros devidos pelo tempo decorrido.

Diz-se: não se recusa um prato de lentilhas. Não fica claro quem não deve recusar as lentilhas: é quem é demandado para as oferecer, ou o destinatário da liberalidade? Para não serem feridos os ditames da igualdade, dir-se-ia que a incumbência rege ambos por igual. Outros, com propensão para o socialismo, certificam a assimetria: é sobre os abastados, ou os que, não o sendo, têm posses para alimentar a solidariedade, que é validado o encargo. Ainda há os terratenentes que não aceitam os recursos esbanjados, exigindo dos recetores a mesma diligência dos que exercem a bondade. Não devem deitar as lentilhas ao lixo, há quem esteja à míngua e não coube no critério da distribuição das lentilhas.

A meio da meditação, a ninguém importa perguntar se quem recebe o donativo gosta de lentilhas. 

Das hipóteses terçadas, considere-se a validade dos que desconfiam da prebenda porque não estão seguros que o favor não seja cobrado mais tarde. Têm legitimidade para suspeitar do sinalagma. A generosidade não combina com segundas e terceiras e por aí fora intenções. Ninguém pode medir as intenções do outro, a menos que peticione para o declarar – e, mesmo assim, não garante que o declarado não seja mentira. E se à generosidade corresponder o ónus diferido da contraprestação, não se atesta com que juros o favor vem a ser cobrado. Estes contratos não são contratos (ou é a generosidade que não é contratualizável). Se se mantiver elevada a cancela da desconfiança, quem pode garantir que a generosidade não vem a ser cobrada com juros usurários? Tão usurários que não se sabe como pagá-los. 

É melhor o prato vazio do que as lentilhas que te queiram oferecer: com o prato vazio, és o tutor da escolha, decides o que vai preencher o prato. E não ficas a dever favores (e juros incuráveis).

6.6.23

Protesto contra as ruínas colonizadoras

Faith No More, “King for a Day”, in https://www.youtube.com/watch?v=utZUCghdD88

Com o zelo que nos é devido pela impertinência da não capitulação;

com a destreza de quem tem âncora, a rebelião assestada contra os suseranos das coisas irremediáveis;

com o amparo de uma vontade indomável;

com a obstinação que se ergue contra as marés insubmissas;

com o arnês todavia puído;

com o beneplácito das divindades que não temos a certeza de serem nossas assistentes;

com a clareza que nos é devotada pela noite que se arrasta pelas portas adentro;

com as tesouras terçadas que boicotam os boicotes que contra nós se levantam;

com a posse das metáforas que se jogam a nosso favor;

com os mecenas que desarrumam as convenções firmadas em leis de bronze;

com os embaixadores que se manifestam em silêncio e os bispos de religiões omissas;

com a carne ao rubro que se subleva contra as doutrinações dardejadas;

com as luas que se oferecem nossas procuradoras;

com a purificação da poesia em nosso socorro;

com a invocação dos mares sem dicionário que entroncam na fala;

com as armas possíveis que amanhecem no estirador dos sonhos,

            protestamos:

contra as ruínas que esbracejam como se fossem fantasmas sem medo;

contra os fantasmas que se embebem no sangue para nos possuírem na invalidez das nossas reservas;

contra os ossos tomados por núncios da decadência;

contra os delatores que querem tudo reduzir a ruínas;

contra a pele colonizada por conspiradores da senescência;

contra o esmaecer que oblitera as cores, deixando a vida refém dos muitos avulsos que se jogam num tabuleiro sem nome;

contra os que se entregam aos mastins que, ufanos e cinicamente sorridentes, são como juízes peritos em penas capitais;

contra os atributos do tempo;

contra a verosimilhança das prescrições;

contra as estradas que se insinuam, promitentes de fortunas sem números, e, contudo, não oferecem toponímia;

contra todas as ruínas que estilhaçam a medida do tempo na tela onde se desenha o princípio geral da finitude;

contra a condição, a irremediável condição, de sermos em vias de extinção,

            protestamos

e deixamos o protesto lacrado em solene letra marcada a ouro, sem procuração de outros nomes, sem medo de represálias, sem medo de medo algum. 

5.6.23

A métrica dos exilados

The Fall, “There’s a Ghost in My House”, in https://www.youtube.com/watch?v=D0bZofM6EOU

Podia ser que houvesse furacões, na temporada dos furacões. Ou terramotos cíclicos, que a terra era fraca. Possivelmente, um vulcão adormecido, mas por adormecido estar era ameaça imorredoira. Podia ser que não houvesse cimento que juntasse ao lugar e ele soasse contraditório, um lugar de nascença mas sentido como forasteiro. Podia ser que não houvesse outra métrica que juntasse as almas ao registo do futuro, a não ser a métrica dos exilados.

O exílio podia ser uma escotilha que se abria sobre as esperanças fundamentadas. As esperanças apenas por antinomia: era como se o terreno exilado pudesse ser qualquer um, desde que não fosse o lugar paradoxalmente forasteiro. Conseguíamos arranjar um dicionário que fosse o passaporte para o lugar exilado. E depois, sem juras de identidade, o exílio – há que não o esquecer – seria a festa desejada para celebrar a liberdade de ser, já não dependente da musculada pertença.

Podia haver diferentes métricas, correspondendo a diferentes exílios. Seria como demandar diferentes lugares, e nós procuradores de uma cosmopolita identidade que se sobrepunha às fronteiras que destinam todos os lugares à exiguidade (por maiores que sejam). Recusando o nomadismo que apequena, depois de levantar as sucessivas camadas de véus que se abatem, silenciosos, sobre o corpo hibernado. 

O exílio não seria a recusa do lugar de pertença estranhamente forasteiro. Seria a convocatória de outros lugares, como se a sua demanda participasse na maioridade da alma. Nem que este fosse um fingimento mal encenado: se fosse preciso, o convencimento interior do exílio não como uma evocação destrutiva, contra um lugar que perdeu as margens da identidade; mas como a procura pelo avesso das fronteiras, até que os lugares por demandar congeminassem uma pertença múltipla e sem as algemas da identidade.

Chegava uma altura em que as interrogações esbarravam, incessantes, no peito ferido. E nós, que não capitulamos às anestesias que nos servilizam e condenam à subserviência, inseminamos o exílio como resposta. Procuramos outros palcos, que sejam o fértil mecenato que resgata da decadência ajuramentada.

2.6.23

Todavia – todavia

Temples, “Cicada”, in https://www.youtube.com/watch?v=HTc4Zl7qtmA

Sentado no cais, os olhos apreciavam o rio aburguesado, como se adiante houvesse uma represa que o retesasse e ele amesendasse sobre um caudal pusilânime. Um gota de suor do dia descia pela coluna vertebral: a Primavera fazia uns esgares de Verão e a praia estava de sentinela, convidativa, à espera dos veraneantes. E todavia:

Um executivo, apessoado como soem ser os executivos, avançava com celeridade pela marginal fora em cima de uma trotinete silenciosa. Uma senhora distraída e o seu cão (também distraído) iam sendo colhidos pelo executivo, que se desviou a tempo e a tempo de vociferar uns impropérios contra a distração da senhora (e do cão). 

Um pouco à frente, uma roulotte de comes e bebes. Uns rapazes, porventura faltosos à escola (é o pessimismo a aflorar), esperavam pela comida com ar de quem já não comia desde ontem. Atiraram-se ao almoço como se aquele fosse o dia do destino. 

O ruído de fundo tomou conta do cais. Um paquete deslizava vagarosamente pelo rio à procura do estacionamento. O convés estava cheio de turistas, cheios de apetite pela cidade néon. Naquele momento, a tonelagem do navio de cruzeiros desaburguesou o rio. E todavia:

Na avenida contígua ouviu-se um som estridente, metálico, como se duas matérias compostas de alumínio se fundissem uma na outra, à medida de um bombardeamento que depressa se pressentiu que não era. Dois automóveis enfaixaram-se um no outro. Um idoso em preparos de moço de recados foi o primeiro a chegar à “ocorrência”. Acusou o automóvel de grande cilindrada de ser o culpado – e, pobre homem, não lhe ocorreu, ali na “ocorrência”, que as regras de boa convivência mandam seguir o direito de contraditório. Insistiu na sua justiça: “Eu vi tudo. Este carro preto ia a mais de cem – de certeza que ia a mais de cem, ou a cento e vinte. E não parou no semáforo vermelho”. E todavia:

A sorte da senhora, do cão e do executivo foi terem ficado parados. Distraídos, enquanto se travavam de razões pela outra “ocorrência” que quase tinha ocorrido antes, não deram conta que o semáforo estava verde para os peões. Foi a sua sorte. Tivessem atravessado a avenida com a bênção do semáforo verde e seriam as vítimas colaterais da pressa do ministro sem pasta. 

Um mirone – a “ocorrência” já era testemunhada por uma vintena de mirones – sentenciou com a frieza de quem não quer saber se há feridos entre os destroços: “se este ministro tivesse pasta, ao menos admitia-se a pressa.”

A culpa da pressa é das pastas. De todas as pastas, as materiais e as imateriais, as tangíveis e as metafóricas, que carregamos pelo tempo fora.

1.6.23

Morada

Trent Reznor & Atticus Ross, “Life on Mars”, in https://www.youtube.com/watch?v=F4fQhHBuvc0

E se fôssemos todos nómadas? Haveria propriedade de casas, haveria bancos a locupletarem-se com um importante quinhão do fruto do trabalho, haveria costumes por fazer, matrimónios por excluir, telhados que perdiam a serventia, famílias em vias de serem desfeitas? E se não houvesse a obrigação legal de uma morada e fossem diferentes os lugares onde pernoitamos, sem regra a não ser a impenitente desregra, as mãos assentando no cimento que não endurece? E se fôssemos todos nómadas e em velas acesas atirássemos as juras de sangue para um rio anónimo, antes que a longa mão de Janus nos albardasse, tão docemente instruídos fomos a seremos gregários para que a injúria da misantropia não desça sobre nós?

Convocatória para a condição apátrida: não pode haver laços que tragam o ónus, quase sempre invisível, da obediência, do escrupuloso seguimento dos comandos que se impõem, dizem, a bem da coletividade, a bem da civilização que nos recusa a condição de selvagens hodiernos. Havia requisitos que eram requisitos de outros requisitos, por sua vez exigências que enquadravam um todo incoerente. Burocracias embebidas na carne, como se os burocratas, excitados com as jornadas repetitivas e a interminável ementa de formulários, inventassem um mundo por dentro do mundo só para justificarem a sua existência e fazerem prova de vida da burocracia. E nós, soterrados pelas leis e regulamentos, à mercê do arbítrio dos burocratas, na impossibilidade manifesta de os sabermos existentes (muito menos soletrá-los de cor), sonhamos com os antípodas.

A morada não seria a morada. Seria reinventada. Seria imaterial, sem ceder aos caprichos da geografia – que a geografia exige sempre um local e um sujeito que se sujeita ao local. Seria onde apetecesse for. Hoje aqui, amanhã noutro lugar ainda por saber, depois de amanhã talvez no lugar de partida, ou talvez não. Outra vez: para que as desregras fossem a única regra. Um maestro apenas com instrumentos, sem corpo a sustentar a função. Uma morada sem código postal. A soberania da vontade de quem a quisesse adestrar, contra os códigos de conduta, contra a absurda manta de retalhos que se esconde em poeirentos arquivos mentais. 

Até que a morada fosse apenas uma parcimoniosa lembrança da usura a que éramos submetidos, enfim redimidos da servidão servida pelos longos tentáculos intrinsecamente contra a vontade dos dissidentes – contra a vontade, em si. 

A morada passaria a ser o lugar mental de quem quisesse sê-lo.

31.5.23

Horas extraordinárias

Sean Carpio, “Ancestral Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=A5QwNuCX3Bc

Se puderes, ensina-me a semear as horas extraordinárias. Pega nos meus dedos e eu deixo que deles te sirvas para desenhares o dicionário onde se congeminam as horas extraordinárias. Prometo recompensa a preceito. Prometo ser diligente seguidor das horas extraordinárias que me souberes doar.

Destas horas que são extraordinárias fica a moldura da perenidade. A menos que a memória seja atraiçoada e o esquecimento se sobreponha, podendo-se duvidar se essas horas foram extraordinárias. Tê-lo-ão sido quando assim foram inventariadas – não pode sobre isso ser legítima a dúvida. Pergunto-te: as horas extraordinárias prescrevem, sabotadas pela memória controversa que se enquista como matéria morta, às custas da capitulação que vem com o tempo? E tu, sem hesitar, evocas a moldura da perenidade das horas extraordinárias. Elas desmentem o princípio geral da finitude das coisas.

Agora que me ensinaste a distinguir as horas extraordinárias, julgo que posso engordar a estipulação com umas mãos cheias delas. Muitas devem-se a ti, que ao mesmo tempo me arrancaste da letargia e és intérprete dessas horas. Confundo agora os dois papeis, mas não interessa. No exercício de ambos passaste a ser a mais extraordinária das horas, mapa por onde me perco sem me saber perdido, âncora que me devolve a lucidez que teimo em perder por perto, um ensino contínuo. É uma extraordinária hora composta de centenas de milhares de horas, na adulteração intencional da aritmética – uma adulteração que não nos faz párias à mercê dos polícias dos costumes. 

Nessa demorada hora extraordinária composta por incalculáveis extraordinárias horas, houve alguns intervalos que conferem a nobilitada hora que é a nossa morada. E outras, sublimes, que cresceram por cima das ameias do castelo para as anotarmos num bloco de notas que é segredo, arrumando com as mãos diligentes as estrofes que elas verteram no opulento regaço em que nos amparamos. Esse regaço que é do tamanho de mares inteiros.

Estas são as horas extraordinárias que não têm valor. A embocadura onde arpoamos a carne que o tempo deixa passar. As horas, algumas, tatuadas nas rugas que nos avivam a maturidade pendente. Mas extraordinárias, tão extraordinárias horas são estas que ditamos, à revelia da modéstia, que seriam horas heurísticas para quem, por fora de nós, as pudesse angariar.  

 

30.5.23

O fazedor de sismos

Tindersticks, “Marbles”, in https://www.youtube.com/watch?v=19Eu1tDnQn4

Como se desmontam os demónios? Como se contraria a insanidade que amanhece com a noite e se perpetua nas veias esquecidas? Como se esconjuram as cicatrizes que são um mapa no corpo estremunhado? Como se antecipam as didascálias bizarras que murmuram no feitiço dos sonhos?

Usava o dia com a usura do costume. Não se intimidava com a invocação da consciência: a austeridade fê-lo à prova de dores, até das dores de consciência. Não lhe contassem fábulas incandescentes com almas errantes e outras à procura de conforto. Ou encenações com unicórnios pelo meio, que os seus fautores não desistiam de fidelizar os mitos. Pudesse a sua insensibilidade ser medida em ouro e não havia dívida externa a pesar como um garrote sobre o país vindouro (costumava lamentar-se, na intimidade do silêncio).

Não eram os muros que o incomodavam. Sempre houve muros a apartar as pessoas, porque haveria esta era de ser de desmuros? Alguém contrapôs: o muro de Berlim já não existe e todo esse simbolismo é mais do que uma metáfora. Mas havia outros muros, os muros invisíveis, e esses estão tatuados nas mentalidades que não mudam por decreto (apesar do voluntarismo e da – autoproclamada – bondade dos engenheiros sociais). Esses são os muros que não se transpõem, que não se abatem. 

A menos que um sismo fosse tão preventivo que os muros fossem dissolvidos numa maresia de novas mentalidades. Era preciso formar um fazedor de sismos. Era preciso que desmontasse os arquétipos para obrigar as pessoas a pensar, elas que não estão habituadas a fazê-lo e confiam, por omissão ociosa, nos autopropostos pensadores da comunidade. Era preciso convencer as pessoas que estes sismos as obrigam a peregrinar interiormente para saberem as extremas que perdem bússola, para descobrirem onde se recolhe a âncora e deixar a embarcação navegar por autorrecreação. 

O fazedor de sismos podia ser tomado como um anjo exterminador, o escultor da nova civilização, os dedos impregnados de tinta-da-china a deixar poemas à sua passagem nas paredes contumazes da cidade, para que as pessoas amanhecessem e confiassem que estavam num lugar diferente, com o sol e as nuvens e a chuva de sempre, mas sem a injúria do mundo de antigamente. Porque o fazedor de sismos se contorcia, em repetidas ondas sísmicas que subiam na escala de Richter, de cada vez que ouvia um conservador apregoar que antigamente é que era bom. 

29.5.23

Amanhã, a tempo do furacão

Sigur Rós, “Rembihnútur”, in https://www.youtube.com/watch?v=tHabcP2CcGw

O sonho português é comer camarões, deixar crescer um bom bigodinho, viver bem a vida, ir à praia, apanhar um solinho. Essa é a minha versão de vencer na vida

Um artista, da mesma nacionalidade, de má fama.

Princípio geral das despreocupações: fita o horizonte, ele há sempre coisas piores no cardápio das divindades. Não é ser guru de autoajuda, que essa desarte fica para quem não encontrou outra maneira de se fazer à vida (o que vale para os soi-disant gurus e para quem deles se socorre, como se fossem a derradeira tábua de salvação de uma vida que não precisa de salvação). 

Amanhã vem a tempo. Vem sempre a tempo. Não sejam gastas lágrimas que sintetizam a angústia desembaraçada que, à noite, pinta o céu com a negrura que é típica da noite. Está à vista de todos: a noite é um vulto que se abate sobre o dia, e em particular sobre as pessoas, sem que outros significados possam passar a alfândega dos sentidos ou que uma qualquer metáfora da vida adeje sobre a dita. Depois da noite, ciclicamente, até contra as piores desesperanças dos profissionais da amargura, será o domínio da manhã. A menos que arranjem pretexto para verter uma tela hedionda sobre a manhã (por exemplo: a manhã interrompe o sono), situem-se antes no hemisfério heurístico.

Para que não sobrem equívocos, o princípio geral das despreocupações não recomenda uma ilusão anestésica. O mundo tem lugares e pessoas que não são recomendáveis. Não é difícil arregimentar provas que atestam os postulados dos pessimistas antropológicos (e de outros que alargam o campo de análise). Às vezes, o analista é o primeiro a não se fazer recomendado. Não se aconselha que caia um manto de fingimento. Entre todos os males que campeiam, cabe-nos a destreza de não capitular para não sermos reféns de uma metafórica noite perene.

Por exemplo: a simplicidade. O não arrastar os pés para um voo lunar sem combustível, para depois o despenhamento não ser fragoroso – já que não se leva arnês. O libreto é feito à medida. Num equilíbrio entre o sufrágio das iridescências que se sopesam contra a embocadura pútrida onde o mundo se hasteia. Tomar a medida por defeito não é defeito. É pressupor as coisas como são sem as elevar a uma potência exagerada e desigual.

Daí a predição do artista: descontando o estigma da generalização, o cidadão realiza-se na modéstia de ter camarão para petiscar, agilizar a estética a bordo de um bigode atávico, acastanhar a epiderme na praia, bendizendo o astro-rei. Em suma, levando uma vida de bem viver, com toda esta modéstia que é sinónimo da maior grandiosidade que temos para ser.

26.5.23

Não apanhes o TGV que perdes a paisagem (short stories #425)

Jules Maxwell & Lisa Gerrard, “Aldavyeem (A Time to Dance)”, in https://www.youtube.com/watch?v=fTID-V4dY-o

          Dizem os núncios, a cavalo da proverbial sabedoria encerrada nos compêndios empoeirados: quem se apressa acaba por perder o mandamento do tempo. Esses acabam reféns da contumácia. Tudo desfila a uma velocidade vertiginosa, tornando as imagens num borrão que desagua num terminal sem saída. Não se moderam no apetite de tudo e ficam com as limalhas de um nada que levemente arrepia as mãos. Se fossem outras as suas intendências, cuidariam de mecenatos diferentes. A curadoria de um museu gratuito (podia ser o museu do futuro). As páginas de um livro, emolduradas numa parede significativa. Uma música (se fosse possível escolher uma música só). Um lugar tatuado na pele. A confissão das desproezas e a vaidade inerente. A costela de hedonismo, destruindo a depreciação da palavra – encontrando, até, suserano para as coisas mais frívolas. O trabalho de campo, para descobrir as paisagens à prova do TGV que reduz o tempo a uma frágil cápsula à mercê do acaso. De outro modo, os cuidadores do tempo moderno conspiram contra a paisagem que se senta à frente dos olhos dos seduzidos pela voragem com que tudo passa na tela. Quando dão conta, o tempo já vai avançado, a caminho da decadência. Não conseguem sonhar as paisagens que perderam. Não conseguem atestar quantos anos foram atirados ao labirinto sem porta da saída. Combinam entre si a mentira – e mentem ao tempo, sem saberem que estão a autoinfligir uma mentira; e só muito mais tarde, depois de todas as noites mal dormidas, intuem os danos deixados pelo corrupio de mentiras. Devia haver uma lei para limitar a velocidade do TGV. Nem que fosse preciso um novo batismo ao comboio que nos leva. Deixaria de ser TGV. Mas seria um comboio profícuo. E nós, teríamos como destino um cais a favor. 

25.5.23

Never mind

Keren Ann, “Lay Your Head On”, in https://www.youtube.com/watch?v=91g9xqh4qU0

As máquinas percutem a pedra, incessantemente. O ruído ecoa na boca, como se houvesse um esgrima por dentro do corpo e a carne sofresse repetidos abalos sísmicos. As pás remidas travam o vento contra a sua vontade. Mas é o vento que sobressai, como as pás fazem questão de ostentar. O corpo é uma pedreira inteira.

Como pode haver quem odeia a manhã?

Tomava a interrogação como mote. A manhã; a inauguração do dia (se descontada for a noite, que para efeitos cronológicos inicia um dia, mal atravessa o equinócio da meia-noite). Quem pode atirar insultos à manhã, só porque ela irrompeu e atirou lava para o sono interrompido? Mal sabem os que tardam em se libertar do amolecimento que a noite não é um deserto por onde apenas erram os boémios ou os que, à mercê de uma angústia órfã, tirocinam a insónia existencial. Talvez prefiram trocar de lugar com os que não usam a noite para dormir e a atravessam no lugar dos que fazem da noite jornada de trabalho.

É próprio do lugar-comum: muitos não estão satisfeitos com o que têm. Não chegam aos mínimos de lucidez para entender que o oposto amplifica o desconsolo.

Em vez de um surf mórbido nas páginas das notícias cheias de depressão, deviam encontrar as avenidas bucólicas onde as nuvens negras metafóricas não têm reservado direito de admissão. Em vez de cançonetas que não saem do ouvido, viciando as pessoas na iteração que exaure o sangue, deviam frequentar o teatro, recitar poesia ao deitar, dar ao sexo o que o sexo tem para dar, esconjurar as miragens que dissolvem o paradeiro.

Soubessem menosprezar as diligentes provocações, fingindo, a bom fingir, que habitam outra galáxia ou que as provocações vieram bater à porta errada (“mão morta, mão morta, vai bater àquela porta”). Soubessem não assinar no papel amarrotado onde se enquistam as almas beligerantes. Até serem mecenas de uma constelação nómada que inventaria os lugares mil, em vez de serem arrastados para uma maré forasteira. 

Até dizerem, com o garbo de quem se sabe ileso às instigações, never mind.  

24.5.23

O enforcado por uma unha negra

DIIV, “Doused”, in https://www.youtube.com/watch?v=KI79GPXAICM

Queria uma homenagem e acabou enforcado. As medidas conseguiam os seus deslimites, quando tudo à volta se esboroava numa vontade fracassada. 

Um dia confidenciou: “gostava de ver o nome imortalizado na toponímia.” Fez os impossíveis por chamar a si a visibilidade. Era como se sentisse que a sua grandeza transbordava da pessoa que era. Ou que a pessoa merecia outra dimensão, como se reclamasse a seu favor uma galáxia inteira e todos fossem seus satélites. Nesse dia, a confidente segredou, em forma de discreta advertência: “cuidado, depressa podes perder a noção dos limites. E depressa vens do céu ao inferno.”

Não se importava de não ter direito ao anonimato quando andava na rua. Sentia um prazer indiscritível ao sentir as outras pessoas a sinalizarem o seu reconhecimento com olhares sintomáticos – ele notava, com deleite, os olhares levantados do chão como quem reconhece o rosto com que se cruzam. Contra a apatia geral. Um serviço público. Há pessoas que só por existirem são um inestimável serviço público. Todos os que levantam o olhar e o reconhecem é como se manifestassem o agradecimento por ele existir. 

De outra vez, outra pessoa do seu círculo quis temperar os excessos de autocontemplação: “tem cuidado, nem tudo é interpretado pelos outros de acordo com a tua grelha de análise.” (Era um incorrigível sociólogo, este conhecido.) Não se intimidou. Ele não se cansava de olhar para o seu espelho metafórico. Para além do seu espelho metafórico. Como se precisasse de encontrar novas constelações que albergassem todas as ramificações do seu eu. 

Um dia, foi o descalabro. Na enésima presença na televisão, perdido entre a infinitésima vez em que usava “eu” para adornar as frases, perdido na encruzilhada da sua gongórica opinião sobre tudo-e-mais-alguma-coisa, foi atraiçoado por um deslize imperdoável, apontando o dedo ao interlocutor que o provocou num debate de ideias sobre a inevitável atualidade (a maldita atualidade): 

Sobre esse assunto, não duvide do que digo. É doutrina. Doutrina com o meu lacre. E eu não minto. Não minto! Que me lembre, nunca menti. Mesmo que este seja o mais aberto descaro que proclamo, o perjúrio cai sobre si, que não lhe admito lições de moral e não demora muito estou a encomendá-lo ao mais respeitável raio que o parta.

Quanto findou a colérica intervenção, pouco faltava para a jugular explodir numa erupção feérica. Uma gota de suor escorria velozmente pelo rosto abaixo, prestes a invadir o canto da boca que ainda estava trémula. Caiu em si. Esteve a um triz de pedir a desculpa, aproveitando o silêncio atónito da moderadora e do interlocutor, convertido em inimigo pela cólera que o invadiu. Mas não podia pedir desculpa. Era dar parte de fraco. E ele não podia dar parte de fraco. 

Nunca mais apareceu nas televisões e nas estações de rádio. Nunca mais os jornais lhe pediram a opinião de perito. Aqueles vinte irados segundos fizeram a diferença entre a pública condição que tanto considerava e o enforcamento – em público, como tinha de ser.

23.5.23

Magistério (lotaria)

Ólafur Arnalds, “Fyrsta” (Living Room Songs), in https://www.youtube.com/watch?v=SDezzDQVy6M

Dizem as modas de serviço, já quase não há nada para aprender. Se há tão pouco para aprender, haverá o tanto mesmo para ensinar. Tomara que os silogismos fossem complexos, mas a aprendizagem nunca se divorciou do ensino. Até que as modas de serviço ensinam o que ensinador nenhum consegue ensinar: aprender com a ajuda de quem ensina está a perder cabimento e os novos aprendentes sabem fazer o seu caminho entre os tortuosos (outrora) caminhos das ciências. Os que ensinam podem-se dedicar a outra arte. Há tantos autodidatas que o magistério está em vias de extinção.

O golpe de asa foi a inteligência artificial. Pouco importa o adjetivo que vem colado a esta inteligência. Pouco importa: os que nunca andaram atrás da inteligência, mas apenas de uma fechadura por onde entrasse a esperteza, mal sabem o que é a inteligência, muito menos a sabem adjetivar. A menos que as convenções tenham mudado e agora o artificial seja melhor do que a sua antítese. Deve ser uma das sínteses formuladas pela inteligência artificial, com a bênção dos apedeutas.

Quando tudo é tão acessível, tudo está tão à mão de semear, as pessoas não desconfiam, não tergiversam? Não se propõe uma teoria geral da desconfiança, nem que ela se abrace a coisas desprovidas de complexidade (como se a simplicidade fosse uma conspiração para premiar os poltrões). Às vezes, a simplicidade é o mais difícil. A simplicidade instrumental é apenas um recurso para premiar o menor esforço. É oportunista.

O sumo do conhecimento passou a ser um fast-drink emborcado com a bruteza de um shot, de um trago só. Como se os aprendentes se embebessem em doses concentradas de conhecimento. Julgam que sabem muito e de coisas diversas. Mas sabem pouco mais do que nada em cada domínio. O precipício entre os dois lugares é o lugar sacrificial onde, com a ajuda da sobranceria, intentam empurrar os demais, virando o estatuto do avesso. O magistério tornou-se um prolongado sacrifício. Com doses abundantes de desinteresse (e o interesse pelo quê, afinal?), autoconvencimento de um conhecimento apenas inflacionado, com a pesporrência de quem pouco sabe e confronta o ensinador – porque, afinal, este é dispensável e sabe menos que o aprendente. Uma lotaria, com assíduas visitações de insulto à inteligência.

Um dia destes, os lugares de uma sala de aula ainda vão ser trocados.

22.5.23

Sonho alto (corsário)

Expresso Transatlântico, “Bombália”, in https://www.youtube.com/watch?v=Q1UDt5TfTa8

Lobo mau, lobo mau: assim arranco o coração com as mãos, o sangue todo como seiva dos fantasmas que se escondem na brisa das sombras. E tu, lobo mau, sequestras o mundo que não está de atalaia. Os penhores da carne são oferendas aos forasteiros sem caução. Toda esta luz clara fere a alma. E tu, lobo mau, passas invisível entre os rasgões do vento.

Se ao menos as largas vidraças não fossem baças, talvez os amanhãs não fossem juras sem consentimento. Dizes, lobo mau, que os amanhãs são promissores. Desconfio que é uma anestesia que insinuas junto dos distraídos, para juntares à tua volta um séquito de gente esfaimada do seu próprio sangue. E depois, quando as marés se sublevam e destroem os castelos de areia, sobram os poemas que adoçam a boca, a mesma boca que já não os sabe entoar de cor. E tu, lobo mau, rasgas a pele porque sabes que os sonhos estão exorcizados. 

Sonho alto, este. Como o promontório onde se armam as cristalinas águas que dão alimento à sede. Os prístinos dias convocam-se contra a madurez; lobo mau, dizes que esta é a meia-idade, e eu aplaudo a ideia: ainda tenho a outra metade para meus dedos desenharem as fronteiras e as desfronteiras. Não me retiras esta bucólica enseada onde me sei exilado. Esses sonhos são tempestuosos, como se fossem o fingimento da vida que se entretece no queixume de quem se desvia de sobressaltos. 

Dizes que sonho alto, lobo mau. E sonho. Muito alto, como se fosse um atleta com mais de dois metros, ou talvez uma montanha que sobe além dos dois mil metros, e abraço em mim os êxtases que emprestam corpo à vida – ou como o tenor, com a sua voz grave, o pano de fundo para a voz-trovoada que fala para longe. Sonho alto como se por dentro do sono dormisse acordado. E às raízes do sonho arrancasse a ossatura de que preciso. 

Se sonho alto, os sonhos são cúmplices. Materializem-se ou não, encontrem diagnóstico em fragmentos do passado, ou não. Sabes, lobo mau: não és intimidação que se abata sobre o meu consolo. Porque sei que estás banido dos sonhos e por isso é alto o sonho que traduz o sonhar alto.

Subo às asas do sonho alto para me entronizar na invisibilidade de um lugar que sabe de que cor é a carne que trago vestida. Como se fosse o melhor dos corsários.

19.5.23

No paraíso todos são desempregados

Queens of the Stone Age, “Emotion Sickness”, in https://www.youtube.com/watch?v=LIejWJ1rsgU

Na terra dos pesadelos, o gelo aquece a que temperatura? Ou: se encontramos uma encruzilhada sem toponímia, seguimos pela segunda escolha (para reprimir os instintos, como ensinam os zelosos guardiães dos bons costumes)? Arranca-se o sal às pedras para descobrir que a montanha já teve mar à ilharga? Os mares recuaram e foi assim que o planeta se pariu (e descendemos todos de peixes)? Dizem que só somos plenitude quando desembarcamos num cais que deixa entrar aveludados feixes de luz pelas entranhas das janelas e reparamos que uma placa no apeadeiro confidencia o paradeiro: “Paraíso”.

Pode ser o céu. O céu quando morremos (não interessa saber se é apenas metáfora, outra figura de estilo, ou se o céu é literal). Supõe-se que as apoquentações não foram admitidas a concurso quando se aprecia a validade do céu. Não é ao acaso que o paraíso é o paraíso. Se o paraíso fosse semelhante aos lugares terrenos que acompanham as vidas enquanto duram, mais valia ficar vivo; ninguém tinha esperança na morte, porque a morte (é o que dizem as efabulações) não é morte: é a vida que nunca conseguimos viver nos lugares terrenos e enquanto a vida levou a trela dos sentidos. Pelo caminho, o céu pode ficar embaciado e ninguém sabe se soa a paraíso.

Alguém sugere que devemos esperar pelo céu para conhecer deus em pessoa (descontada a contradição de termos). Até os ateus não perdem nada, pois nessa altura só podem prestar contas aos seus pares que ocupam um pedaço do céu por sua conta. Poderão dizer, em meritório estribilho: o céu é seu. Alguém insinuou que deus, como está desempregado, pode ser a tutela de todos os que ganham bilhete para o céu. Se deus trabalhasse, nem a omnisciência lhe valia.

Há também quem proponha que no céu só há desempregados. Ou, dito de outra forma: o céu é o lugar onde todos merecem a segunda reforma. Não há mercados, mercadorias transacionadas contra o dinheiro que se aufere em contrapartida do trabalho, nem marxistas, nem capitalistas suicidários (aposto que vivem em espaços contíguos, por divino castigo pela militância diligentemente irritante), não há futebóis inflamados, nem querelas entre eruditos que alimentam as querelas com toda a erudição, nem hinos que agarram a mão ingenuamente nacionalista ao peito, nem trofeus de nações contra nações (a guerra por meios pacífico-desportivos), nem patetas ou idiotas disfarçados de patetas, nem (dizem – mas não sei se hei de crer) mentirosos. 

Mas se o céu é o paraíso, por que precisamos da extinção da vida para merecer essa morte?

(Registo de interesses: acredito no céu para efeitos meteorológicos e astronómicos)

18.5.23

Abaixo as arengas

Gaz Coombes, “Walk the Walk” (Live at the Sheldonian Theatre, Oxford), in https://www.youtube.com/watch?v=diaLVeGHSLU

Mandam-se as vozes tonitruantes para a parada. Pede-se que esperem. Pede-se que se agarrem firmes na espora da desonestidade intelectual, que ela vai ser armamento assíduo. Exige-se fidelidade canina: têm de estar preparadas para serem curadoras de quem as mandatou. Façam as vezes de testa-de-ferro. Como os soldadinhos metidos em comboios que os levam para a carnificina. E eles, uns enganados e outros iludidos, nem sabem que é a viagem para a morte. Mal menor, que deixam de arengar.

Nas arengas que são o apreço não se fala de dar o corpo às balas num desprendimento ensandecido. Apuram-se os eleitos para as arengas que estão por vir. Encena-se tudo com aguarrás. Dissolvem-se as manchas de outrora com o melhor dos diluentes. Se sobrarem páginas inapagáveis, é melhor haver um recurso expedito, uma manobra de diversão, um bocejo que distraia, a telúrica mudança de assunto para que o assunto não vá morrer nas páginas resgatadas que atestam uma contradição entre dois momentos. Se for preciso, verte-se o perfume que as andorinhas exportam do Norte, só para anestesiar as circunstâncias. E manda-se tudo para o alfaiate, para reciclagem da memória.

Salvemo-nos das arengas onde fruem os meirinhos de gente maior que não tem coragem de dar a cara pela suas causas. São os procuradores, escondidos nos bastidores, e seus são os embaixadores que se prestam por meio soldo e a promessa da escada da glória. Estas são as arengas que se dispensam. A fartança de ilusionismo retórico, o recurso à palavra gongoricamente interminável que hiberna os outros, a insolência do pretexto disfarçado de argumento, os garfos que metem pela garganta abaixo dos oponentes, a omissíssima natureza de que são feitos.

Abaixo estas arengas que adulteram os areópagos onde a parlamentação devia ser cheia de lisura, onde os participantes deviam ser instruídos da dignidade de o serem. Nestas arengas, o máximo que se alcança é a desaprendizagem; o assíduo insulto à inteligência dos outros; a barbárie do impudor que cobre as mentiras com um denso véu de re-verdade. Até que a noite peça o sono e os sonhos avivados mintam as mentiras piedosas, as que desmentem as arengas instituídas que transfiguram o desejo de saber do outro através das ideias. Devolvendo ao ouro a sua dentição perfeita.

17.5.23

Bom Partido

Björk, “Big Time Sensuality”, in https://www.youtube.com/watch?v=-wYmq2Vz5yM

(Mote: um partido chamado Iyi Parti, na Turquia, que aparece nas notícias traduzido para Bom Partido)

Bom Partido – o nome de um partido assim inventado para verter um refresco na paisagem política. Um momento heurístico em que um partido daria o mote para a política deixar de ser o que se tornou a coberto do antagonismo de ideias e de programas. Pois depressa o antagonismo se transfigurou em confrontação, da política se dizendo que, enfeudada em partidos, se tornou a forma de disfarçar guerras por meios só aparentemente pacíficos.

O Bom Partido não precisaria de programa. Só tinha de convencer os eleitores que era bom. Os eleitores que chegassem a bom porto por antinomia: aquele era o único partido que era bom. Sem que fosse preciso ao Bom Partido verberar os adversários: como bom partido, seria só elogios aos adversários, de uma ponta à outra, sem exceções. Sem que a enxurrada de elogios fosse uma demarcação do Bom Partido. A capacidade de elogiar os outros faria a diferença. Seria a sua demarcação. A forma de desarmar os adversários. Estes, ou jogariam pelo mesmo estalão (e se todos o fizessem, a política tornar-se-ia uma entediante procissão de elogios mútuos), ou, se o não fizessem, situar-se-iam como partidos maus. 

Caberia à consciência (ou apenas às simples preferências) dos eleitores o demais. Os que acreditassem na semântica da bondade política, votariam no Bom Partido; ou, encantados com a interminável procissão de elogios mútuos, acabariam por votar no partido que sempre votaram, dissolvendo a vantagem comparativa do Bom Partido. Os que não caíssem no logro da ingenuidade, filiados no incorrigível pessimismo antropológico, cientes que a bondade alardeada era um ardil, continuariam a votar em partidos que não alinhassem na adulteração da política. Já os gurus do marketing, os possíveis inventores do Partido Bom, esfregariam as mãos de contentamento pelo rasgo de reinventar a política que passa no palco dos partidos. Outros, apegados à realidade do chão cheio de pregos, diriam que um partido que se chama bom é porque sabe que é o contrário e precisa de o negar, aldrabando os que caem no logro.

Para o Bom Partido não haveria lugar a diagnósticos catastróficos. Tudo seria paradisíaco, mesmo que não passasse de um disfarce. O Bom Partido podia ser uma muleta do partido do governo (ou o seu idiota útil). Se assim fosse, talvez se esvaziasse a agenda potencial do Bom Partido: se vivemos num paraíso, o que há para melhorar? Ou podia ser um apóstolo da crítica construtiva. Anotaria as fragilidades que precisam de medidas corretivas ou de políticas de fundo. Oferecendo-as ao partido do governo. E, como Bom Partido, estaria a proclamar, sem rodeios, que boas são as suas medidas. Por exclusão de partes, para que o bom entendedor se faça entender.

(Trabalho de casa feito: o Bom Partido é um partido de extrema-direita. À consideração do eleitor (turco).)

16.5.23

Os minutos pela metade (ode às metáforas)

New Order, “Blue Monday” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=XXui9GiDdf8

Olhas por esta porta como se ela fosse um demónio que trespassa as dores do mundo. Se fosses ao convés das ideias, de lá virias saciado com tanta abundância. Serias surpreendido com a matéria-prima copiosa e de ti desconhecida. Talvez chegasse para deixares à porta a desconfiança dos outros. Eles não são os demónios que, açambarcado pela desconfiança, julgas.

Em tua defesa, argumentas que a experiência cimenta a legitimidade da desconfiança. Não devias ser refém do passado. Não deves aceitar que todos são uma amostra dos poucos que te deixaram cicatrizes que o esquecimento não consome. Faz uma experiência: muda de lugar, ou muda de pessoas que frequentas, só para perceberes se são de outra genealogia. Os forasteiros não são sempre os algozes que se aprisionam a uma moribunda condição.

Pode ser que sejam as metáforas a emprestar outro chão aos lugares. Delas serás servil, para de uma servidão sem o jugo da palavra levantares outra cortina sobre o palco que atrás dela se esconde. Até que os minutos possam ser a bengala de uma reinvenção do tempo. Em vez de contarem pela totalidade dos segundos convencionados, farás dessa medida o que dela julgares oportuno. Se queres retesar o tempo entre as mãos, não deixes que o minuto se extinga ao fim de sessenta segundos. Noutros preparos, podes querer esgotar a medida do tempo sem que ele se esgote por dentro das baias que o configuram. É quando apetece que os minutos fiquem pela metade. Ele há também geografias do tempo que não merecem lisonja. 

Quem te instruiu na profecia das mãos calejadas não sabia que os calos, ou até as mãos, podem ser apenas metáforas escondidas em compêndios feitos de páginas bolorentas. Ou um carrossel enferrujado que se deita sobre as planícies, até colher todas as flores e debulhá-las no parapeito do medo, dissolvendo-o a matéria vã. E tu agradeces às metáforas que desenjoaram o tempo.

15.5.23

O tribunal dos acostumados

A Flock of Seagulls, “I Ran (So Far Away)”, in https://www.youtube.com/watch?v=iIpfWORQWhU

Falava-se de oportunidades. Os degraus escondidos eram procurados pelos braços dos acostumados. Sem que houvesse cólera por registar. Os amanhãs que esperavam diziam-se ambiciosos.

Houvesse oratória empenhada: os de todo o lado parlamentavam com dignidade. Não havia proibições. Não havia vieses que pudessem boicotar a fala. Aprendia-se. Aprendiam, uns com os outros. Por isso aceitavam parlamentar. Chamavam-lhe o tribunal dos acostumados.

Não que houvesse inércia, para ao tribunal chamarem tribunal dos acostumados. Cada um regia-se pelas regras que estatuía para si mesmo. E respeitava as regras dos outros. Tudo era sobre equilíbrios. Quando havia conflitos, eram os próprios que os resolviam. Promoviam as tábuas de entendimento, sendo os arquitetos que limavam as arestas.

Não havia montarias para aprisionar os dissidentes. Abriam-se as portas do tribunal, mas eles não eram obrigados à conversão. Viriam, se quisessem. E se quisessem vir, podiam sair com a mesma aura de dissidentes. Podiam falar. Podiam discordar do código de conduta. Podiam formular as interrogações que discutiam os esteios dos acostumados. Podiam ser párias sem serem isolados, nem eram convidados ao exílio.

Todas as portas eram permeáveis. As paredes estavam repletas de estrofes dos anos idos, como se fossem a enciclopédia dos costumes e dos descostumes. Todos contavam por igual. Até que alguém interrogou se a paridade entre costumes e descostumes não era uma igualdade do avesso. Deixá-los no mesmo patamar era ultrajante para os embaixadores dos descostumes. Não era por acaso que eram descostumes. Não podiam ser nivelados pelos costumes: por esse andar, um dia destes já não havia diferença entre costumes e descostumes. Isso só podia interessar aos acostumados. A paridade podia acontecer com o esvaziar dos descostumes, silenciosamente transfigurados em costumes.

Foi o tribunal dos acostumados que, num rasgo de lucidez, travou a tentativa de tornar costumes e descostumes pares. Ninguém precisava de ensinar ao tribunal dos acostumados o que era decente. Deixar que os costumes colonizassem os descostumes era indecente. Para os descostumes e para os costumes. 

12.5.23

Quem quer um unicórnio?

The Murder Capital, “Ethan”, in https://www.youtube.com/watch?v=5v76Sk-FeV4

As lantejoulas falavam por ele. Não se dissesse que a extravagância não era a sua gramática: pudesse cumprir com os quesitos da simplicidade e era como se fosse forasteiro no seu próprio lugar.

Fazia da extravagância o verbo luminoso que enchia as veias de sentido. Não precisava de solenidades. As lantejoulas, ou uma indumentária que deixava boquiaberto quem passava (a menos que fosse um seu par), era a marca distintiva. Mas não era fácil. A extravagância era atestada pelo olhar dos outros. Era assim que se apresentava, só era extravagância para os outros. Nunca idealizou a extravagância como a casa de partida. 

Um dia, quis virar a extravagância do avesso. Teve de ir às compras, em primeiro lugar. Antes confirmara, numa breve indagação ao guarda-roupa, que não tinha roupas que não pudessem ser certificadas como não extravagantes (o eufemismo para a palavra que mais odiava: normal). Comprou a roupa que pudesse ser considerada “normal”. Não foi fácil decidir-se. Enquanto zeloso observador das pessoas e dos costumes (aquela costela sociológica que nunca teve cumprimento académico), não era fácil esboçar o protótipo da moda masculina. Não lhe interessavam as tendências abençoadas pelos gurus da moda: são raras as pessoas que se seguem por esses mandamentos. O observador meticuloso das pessoas e dos costumes distinguiu muitas variedades de vestir. Decidiu-se por uma, sem grandes demoras. Assim como assim, não era representativa do seu estar. 

Nesse dia, sentiu-se extravagante pela primeira vez. É como se estivesse numa pele não sua. Se olhasse para um espelho, não se reconheceria. Pela primeira vez em muito tempo, o porteiro do prédio não olhou para ele com a comiseração de que, no seu entender, os extravagantes são merecedores. O dia parecia não acabar. O mal-estar colonizou o corpo inteiro, como se tivesse assanhado uma alergia contida em hibernação. 

E teve a noção do que era representar o foragido que assoma contra a maré dominante. Não na sua pele habitual, mas contracenando num sangue que era forasteiro. Por se ter sentido extravagante pela primeira vez, em muito tempo.

11.5.23

A frustração do ministro das finanças da Holanda (texto um bocado marialva, mas só como recurso estilístico)

Queens of the Stone Age, “Crucifier”, in https://www.youtube.com/watch?v=7iOS1mNyvoc

(Advertência: o ministro das finanças da Holanda que entra nesta história não é o que está em funções)

O ministro das finanças da Holanda lembrou-se de parodiar os nativos do Sul da Europa que, de acordo com a sua eminente visão sociológica, gastam dinheiro a mais em mulheres e vinho (verde, ao que consta). Foi deste selo mal lambido que se lembrou para justificar o estereótipo de prodigalidade nas contas públicas que assolava os países do Sul da Europa quando a União Europeia vivia sob o estigma de (mais) uma crise. E ele, vindo de um país impecavelmente disciplinado, queria apostrofar os esbanjadores do Sul da Europa, que deviam aprender com a retidão que se pratica, sem desvios, por aquelas protestantes latitudes.

Ninguém cuidou de esquadrinhar o currículo do ministro das finanças da Holanda – não o currículo profissional; a sua vidinha, tão vidinha como a vidinha do comum dos mortais, com a diferença de, uma vez na vida, ter abocanhado tão relevante sinecura e, por mercê do facto, a sua voz ter sido propalada aos quatro ventos sobre uma Europa derruída.

Aqui vai uma teoria com o beneplácito da especulação, pois esta teoria não tem pilares que a alicercem como tal. O ministro das finanças da Holanda foi um mal-amado toda a vida. Se fossem à dark web da sua vida, encontrar-se-iam páginas de desamores e intensos momentos onanistas por não encontrar correspondência com donzelas que pudessem saciar os prazeres carnais. O ministro das finanças da Holanda embebeu o catecismo protestante e não bebia álcool às refeições, a menos que houvesse ocasião especial e a solenidade puxasse a perna para o hedonismo, metendo um parêntesis na austera forma de vida protestante, ocasião em que se vingava de tudo o que lhe apeteceu beber mas a castração interior impediu.

O ministro das finanças da Holanda é aquele frustrado que não conseguiu ter sucesso entre o sexo feminino, servindo-se dos prostíbulos (legais no seu país) para se aliviar de outras repressões, cuidando, ato contínuo, de endossar o alívio da consciência para os bárbaros povos do Sul da Europa, eles abertamente marialvas, misóginos e propensos à frequência de meretrizes. Descobrir-se-ia, se a investigação alusiva tivesse sido empreendida, que o ministro das finanças da Holanda tinha em sua posse um estudo sociológico com credenciais acima de qualquer suspeita que provava o sucesso económico dos bares de alterne nos países latinos em que são proibidos, por comparação com a exiguidade de resultados económicos dos lupanares legalmente instituídos no seu país.

O ministro das finanças da Holanda babava-se ao passar ao lado de uma loja de vinhos. Espreitava pelo canto do olho e à noite sonhava com orgias regadas a dispendiosos vinhos franceses. Os outros é que arcam com a má fama, enquanto o ministro das finanças da Holanda, e os seus patrícios que assinaram por baixo a descoberta altamente sociológica, fazem de conta que são querubins, modelos de virtudes que podem cobrar as desvirtudes dos mal-afamados povos latinos que só pensam em coisas hedonistas.

Nós por cá, temos um provérbio para avivar a memória esquecida do ministro das finanças da Holanda: não olhes para o que eu faço, olha para o que eu digo. 

Já ao défice de consciência, o ministro das finanças da Holanda disse nada.

10.5.23

Uma vacina para toda a obra

Slowdive, “Star Roving” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=Aw3qv0ltEmY

Fizesses ioga, ou fosses a uma casa de fados (se tivesses a garantia de que fadistas castiços estavam no plano da sala), ou, apenas, fosses exílio por dentro da tua pele, e tu, pastor de ti mesmo, não precisavas de exibir o patíbulo onde te sentavas. 

Fosses ao cinema ver um filme sérvio sem legendas, ou ao mercado central só para ouvires os pregões das varinas, ou então, em última instância, passeasses vagarosamente junto ao rio para perceberes as estrofes hasteadas pelo odor tão característico do rio como se fossem o hino a que nunca aderiste.

Fosses um vulto escondido, ou juiz em causa alheia, hipótese que manifestamente desagradava, fosses a encarnação de uma borboleta a aproveitar o corrimão da Primavera, ou o homem distintivo, cheio de superioridade moral para esbofetear nos outros e, todavia, assíduo visitante dos presbitérios para expiares os inconfessáveis podres.

Fosses o cimento de outras pessoas (não tivesses um pacto secreto com a solidão), fosses o improvável artífice de milagres não solicitados, ou apenas aquele peão que anda à procura de um tabuleiro para poder ser peça de um jogo.

Fosses o mecenas dos disparates que se amontoam no fio do horizonte, tu, caixeiro-viajante de causas improváveis, das causas que se desviam dos índices da popularidade, fosses responsável pelo inventário das frivolidades que matam o tempo, ou apenas mais um que se alimenta da indiferença em que todos vegetam.

Fosses o penhor dos vulcões submersos, estiolando as pálpebras cansadas que se deitam sobre o olhar em capitulação, fosses embaixador de algo por saber, ou candidato à toponímia se não tivesses um código de conduta que afasta a popularidade.

Fosses o âmago das matérias que curam as angústias, o esculápio que desamedronta as maleitas arrancadas à ossatura da sociedade, ou o penhor das palavras sem pré-aviso que se totalizam nas páginas impermeáveis à idolatria, e tu, baleia entre anões, à sua mercê, tão pequeno. 

Fosses a vacina em ti mesmo aplicada e terias como saber que os disfarces que aliviam a linhagem do mundo são de cepa pior. Fosses o lugar onde a vacina para toda a obra é forjada. E não precisavas de te exilar de ti mesmo.

9.5.23

Manobra de diversão

Faith No More, “Last Cup of Sorrow”, in https://www.youtube.com/watch?v=gjEbHBafvm0

Na biblioteca, nunca procurava livros na estante prometida. Errava por outras estantes, perdia-se no labirinto dos livros de que só saberia depois da existência. Lá em casa diziam que estava condenado a não passar da cepa torta: andava como o caranguejo, sempre para o lado, outra vez para o lado, até que o lado a que ia parar estava nos antípodas do lado inicial.

Não se apoquentava (de não passar da cepa torta). Não queria fazer carreira e, a crer nos exemplos dos que urdiam as piores conspirações para subirem na carreira, não era lugar que queria frequentar. Ninguém o convencia a ser cultor de uma especialidade, afunilando o conhecimento como se apenas houvesse aquele domínio do conhecimento. Dizia: “um perito de uma coisa só é um perito anão, amordaçado nos corredores estreitos desse conhecimento.” Não queria ser participante deste nanismo e ser refém desta mordaça. 

Quem conhecia a sua secretária sabia da desarrumação dos livros que quase não deixava uma nesga desimpedida para que a pessoa que se sentasse do lado contrário o pudesse ver. O apanhado dos livros empilhados era uma arca de Noé do conhecimento. “Um dia de cada vez, um livro de cada vez”: o lema que acompanhava a assinatura nos emails enviados. Hoje pode ser um livro de Sociologia, amanhã um de História, depois de amanhã outro de Filosofia das Ciências, ao quarto dia a Literatura Clássica, ao quinto (escolhido ao caso como dia de leitura lúdica) um roteiro de turismo para ver se decidia aonde ia de férias, ao sexto um livro sobre Biologia, ao sétimo um livro de Economia, ao oitavo um livro de Geografia – e assim sucessivamente.

Eram anos de carreira perdidos, porque nunca quis ser perito de um conhecimento apenas e continuava a acordar com a versatilidade a servir de condimento do pequeno-almoço. Não lhe pedissem planos. Ele era o primeiro a boicotar os planos que fossem da sua autoria: um dia acorda e descobre, à última da hora, desfazendo a maré pensada de véspera, uma leitura que não estava no programa. E assim foi fazendo o tempo, de leitura em leitura, anarquicamente, apenas com uma regra de conduta: não havia regras, nem as ditadas por ele e muito menos as que pudessem ser ditadas pelos outros, a açambarcarem a leitura. Apenas as manobras de diversão que o impediam de ser perito e o consagraram à abertura de espírito de quem se situava no ponto de intersecção de vários conhecimentos.

Que lhe chamassem caranguejo, por causa das sucessivas manobras de diversão que o atiravam constantemente para o lado e mais para o lado, não o importunava. Gostava de dialogar com os vários ramos do conhecimento. Sem querer, por não poder, ser erudito de coisa alguma. As cátedras que ficassem para os ambiciosos que não se importavam de conhecerem tão pouco.