31.8.18

Second birth (short stories #21)


Massive Attack, “Psyche”, in https://www.youtube.com/watch?v=gU-gz06cJCc
          Uma convulsão telúrica, o corpo arrastado por todos os lados, o movimento sobrepondo-se à vontade do corpo (e à força, sitiada), como se estivesse numa máquina de lavar, atirado fragorosamente contra as paredes de um labirinto escasso. Ou então, na volúpia de um vulcão aceso, com vista próxima para o precipício, sentindo o ar incensado pela febre do vulcão em contínua explosão, e os pés vertiginosamente aproximando-se dos deleites da erupção, sem que nada pudesse fazer para embotar o passo. A preclusão da morte não era incindível: o pensamento não a podia comandar e parecia ficar à mercê dos seus humores. Afinal, era um pesadelo. A armadura pesada adejando sobre o olhar adormecido fora suficiente para acordar banhado em suor. Quase jurava que no epílogo do pesadelo fora ao seu próprio funeral. (Às vezes, em desafio com a morte, precisando escarnecer dos seus descaminhos, desenhava um cenário em que era, por fora de si, parte da audiência do seu próprio funeral. Depressa desistia da ideia – não por temor da morte, ou por ser seguidor do princípio “com coisas sérias não se brinca”; sabia que em todos os funerais há gente compungida, algumas pessoas vertendo lágrimas, quase todas elas – fora as que marcavam presença para descarregar um qualquer dever de consciência – peritas no predicamento de opulentos epitáfios em que só merecem evocação as virtudes do defunto, olvidadas as suas imensas fragilidades. Pois, enfim, a morte traz consigo a exaltação das virtudes raramente reconhecidas em vida, o que torna a vida – vista por este prisma – uma inutilidade.) Limpando o suor abundante do corpo, e enquanto preparava nova muda de roupa por até os lençóis estarem banhados em suor, percebeu que a derrota do pesadelo era um segundo nascimento. Com tudo de mau que os segundos nascimentos comportam: juras de fidelidade à mudança de maus predicados para bons em sua substituição, como se tamanha mudança estivesse ao alcance de uma simples promessa. Antes não tivesse sido cativo de tamanho pesadelo. Resolveu o problema a contento: em higiénico ato, decretou o pesadelo como não acontecido. O segundo nascimento já não era preciso.

30.8.18

Lenço enxuto (short stories #20)


The Clash, “The Magnificent Seven”, in https://www.youtube.com/watch?v=QVtt6Cd1s94
          Julgava motivo de vaidade, o lenço continuamente enxuto. Sinal da ausência de lágrimas. E de contratempos, angústias e maldições que são a cal viva das lágrimas. Afinal – e os pergaminhos marialvas não podiam ficar à margem – “um homem nunca chora”. Tinha de exteriorizar a fortaleza para ser o cais que desse segurança aos outros. Saber-se um esteio para um domínio de pessoas era do seu agrado. Talvez involuntariamente, deixava cair a face: ser esteio era prioridade interna, mais do que simples gesto de altruísmo. Ou melhor: o altruísmo era a medida acessória, o passo necessariamente consecutivo à sua autoidentificação como alicerce. As lágrimas eram estigma dos outros (“estigma” – era a palavra forte que tecia o seu raciocínio). Na melhor das hipóteses, o lenço deixava de estar enxuto porque tinha de segurar as lágrimas de alguém. Ninguém fazia ideia da imensa fragilidade que escondia nas arcadas afundadas em subterrâneos lugares, indisponíveis para visitação pública. Em privado, despojava-se do lenço. Podia verter todas as lágrimas que fossem anotadas no pretérito, sem ter de as selar no lenço desse modo sempre enxuto. Uma confidente – a única pessoa que estava ao corrente desta fragilidade – sugeriu que não podia continuar a oferecer o peito de ferro às inquietações dos outros. A fatura, pagava-a em casa, no válido lugar onde acertava contas com a solidão. Nem assim capitulava. Do estatuto adquirido não se pensasse que podia prescindir. Sedimentara tantas responsabilidades diante dos outros que eles não perdoariam a revelação das íntimas fragilidades. Ninguém queria saber dele se soubesse das lágrimas furtivas diligentemente desviadas do lenço. A confidente insistiu: era hora de viver mais a sua vida e menos as dores que desassossegavam os outros (e, por tabela das responsabilidades assentadas, ele próprio). Não anuiu: não tinha vida própria, a não ser a que coalescia nas vidas outras. Em segredo, o seu lenço estava constantemente inundado. Pelas lágrimas de outros que eram suas também e pelas que vertia em segredo.

29.8.18

A cidade dos sonhos (short stories #19)


Sharon Van Etten, “New York I Love You But You’re Bringing Me Down” (live at BBC Proms), in https://www.youtube.com/watch?v=YOtNHl8Wvho
          Que distração avulsa, que deleite incaracterístico, que fogueira inverosímil num acanhado lugar. Que romaria sem gente, que destino loquaz na fecunda procura de lugares que transpiram paraíso. Era uma cidade fugazmente presente. Respirava, ao mesmo tempo, a serenidade de uma cidade devolvida a um deserto de gente, e o bulício, portas-meias com a confusão todavia organizada. Ouvira-se dizer que era a cidade dos sonhos. Onde as pessoas, de tantas serem, não se atropelam nas suas mundanas extravagâncias. Pois a todos eram permitidas as suas extravagâncias, sem a animosidade e a inveja que as extravagâncias infundem noutros lugares. Pareciam num estado imersivo, as pessoas. Todas esboçavam um discreto sorriso, as extremidades dos lábios, quando ambas as camadas dos lábios convergem numa aresta, subtilmente retesadas no sentido do sorriso. Ouvira-se dizer que era a cidade dos sonhos. E que a maior proeza era a tradução dos sonhos em coisas tangíveis. A proeza começava mais atrás: era possível, na cidade que levava o cognome dos sonhos, reter a matéria sonhada em carne viva. (Pois são uma maioria os sonhos sonhados de que não se consegue ter leitura.) As conquistas da cidade eram o transvase da constelação de sonhos que tinham tradução tangível. Também se dizia, talvez a preceito, que não havia conflitos na cidade dos sonhos. Não havia roubos, homicídios, ou outra criminalidade avulsa. De tal sorte que os tribunais foram encerrando, um atrás do outro. E por ser a cidade dos sonhos, em que os avanços eram ditados pela transfiguração dos sonhos passados a papel, as instituições de governação também eram dispensáveis. De tal sorte que essas instituições estavam reduzidas ao mínimo possível – à existência de um gabinete que organizava a tradução dos sonhos, segundo uma ordem espontânea de chegada dos concidadãos que queriam dar o seu contributo. Na cidade dos sonhos, não havia lágrimas. A não ser aquelas que eram vertidas sobre sonhos proscritos. 

28.8.18

A titularidade do medo (short stories #18)


Moderat, “Last Time” (live in Berlin), in https://www.youtube.com/watch?v=9VRqjUibcaA
         O medo tomando forma. Um vulto que nasce do nada, ou um terramoto que se abate, sem aviso, sobre o rosto virado de frente para o epicentro das coisas terríveis. Um frio gélido percorre a espinha. A respiração faz-se com dor. O sobressalto contínuo empola o pensamento onde nidificam maus presságios. É um pano de pessimismo, o que se abate sobre o chão de que é feita a paisagem. A origem do medo atua em câmara lenta, como se fosse preciso prolongar a agonia. A maldição do medo cavalga num leito fácil. O próprio medo alimenta-se de mais medo, numa espiral interminável. O medo que veio de um quase nada, a certa altura é já uma montanha de medos que se precipita no seu alcantilado vagar. As emendas prometidas outrora não tiveram o efeito pretendido: o medo continua a adejar, indiferente à inquietação que dissolve o sono a ruínas sem préstimo. A respiração continua a doer. Os arrepios como que paralisam os membros, deixam o pensamento sitiado por uma inércia aflitiva. Da mesma inércia que é o ingrediente preferido do medo. Às voltas com este labirinto, torna-se quase impossível romper com o ciclo vicioso. Não há medicamento que tenha vencimento. Não há perito que prescreva metodologia capaz. Antes que seja tarde, e o medo tome por dentro todo o corpo e todo o pensamento, um derradeiro discernimento: o medo derrota-se a partir de dentro, onde se encontram os antídotos necessários. Pode ser difícil encontrá-los. Sem esse desmedo, não convergem as forças no sentido de aplacar os medos dominantes. Talvez seja preciso encontrar um veneno que seja veneno para o próprio medo acutilante. Pois o medo não espera, do alto da sua sobranceria, que a vítima use do mesmo veneno que é usado pelo medo no assalto à vítima. O desmedo remete o medo para o esquecimento. E a vontade volta a ser imperatriz, mal se desembarace dos medos. Até que o único medo sindicável seja o medo de ter medos.

27.8.18

Conta-corrente (short stories #17)


How To Destroy Angels, “A Drowning”, in https://www.youtube.com/watch?v=8Kc-YPqW4k0
          Inventário permanente. Aberta a conta-corrente, todos os movimentos eram meticulosamente anotados. Estava convencido que o fazia para memória futura. Ou talvez fosse apenas uma prisão: os movimentos diariamente registados para não ter deles esquecimento, mas uma opressão em forma de disciplina irrecusável. Não queria admitir: tornara-se quase uma superstição. (Não admitia por desprezar as superstições – como o denotava o “quase” na afirmação anterior.) Para ele, era apenas a circunstância de ser metódico. Acreditava que a conta-corrente tinha de estar atualizada, sob pena de tudo se passar como se os acontecimentos nela lavrados não tivessem acontecido. A conta-corrente era caução do passado. Ao mesmo tempo, não se livrava de uma reprimenda a si mesmo: considerava a conta-corrente uma rotina que travava a autonomia. A dependência era tanta, que prometeu mil vezes destruir os livros da conta-corrente e mil vezes acabou a selar páginas que vinham a preceito de mais um dia findado. Tinha um medo (e nisto, sem dar conta, era tomado de assalto pelas teias vetustas da superstição): que a ausência de atualização da conta-corrente inaugurasse um abismo de onde não podia sair. Era como se o metódico inventariar em registo quotidiano garantisse mais um dia – pois era esse dia que merecia a distinção de ser inventariado na conta-corrente. Parecia que através da conta-corrente estava emaranhado num combate contra si mesmo e contra as forças da natureza. Posto nestes termos, em sistemático exercício que abria a janela de oportunidade para o dia seguinte, a conta-corrente era mais uma fábrica do futuro do que um museu do passado. Como tinha um terrível medo da morte, a conta-corrente era o pretexto para a fintar. Não ambicionava a imortalidade (estava ao corrente da sua finitude). Mas enquanto houvesse conta-corrente para lavrar, abonava o dia consecutivo. Um atrás do outro, enquanto na conta-corrente se sedimentavam páginas e páginas a eito do inventário de uma existência. De uma existência que julgava sublime.

24.8.18

Colheita tardia (short stories #16)


King Biscuit Time, “I Walk the Earth”, in https://www.youtube.com/watch?v=_cdDmqvkpV4
          Sobra a insubmissão. O rastilho aceso contra o vagar que endurece o peito. As pedras calcárias emprestam a austera visibilidade ao palco. Pode-se pensar que as coisas estão adulteradas. Pode-se pensar que a mudança é o húmus dessa adulteração. Às vezes, o olhar decai nos ardis em que se consome. Essa mudança consta do almanaque que serve de tapete aos pés. Pode a claridade vir servida numa moldura baça. Pode a memória confrontar-se com remendos no tempo, já não vívida como outrora. Podem as palavras escapar entre duas linhas de texto, ou dois pensamentos não necessariamente ligados entre si. Não é grave. As rugas do tempo cuidam de tornar a mudança inteligível, para que ela não tenha a aparência de adulteração. É como se as cores do palco fossem mudadas e a luminosidade sobre ele vertida ganhasse outros contornos. O palco transfigurado, para responder ao desafio que sobre ele adeja. O corpo adapta-se – e não é verdade que somos uma espécie adaptativa? Ao longe, os vestígios da lava incandescente que desce vagarosamente os contrafortes do vulcão. Está longe, a erupção. A lava também. Sente-se um ligeiro aflorar de enxofre quando o vento se põe a preceito. Diz-se que a lava não estuga no caminho, mas também não se detém diante de nenhum obstáculo. Depois da lava fica o chão cheio de rugas. Um chão inesperadamente fértil. Nem toda a destruição é destruição em seu sentido final, determinístico. Num volte-face do enredo, haveremos de ser colheita tardia. Tardia, mas ainda colheita. São esses os frutos que contêm a doçura em estado puro. No limiar do desperdício por podridão, são esses os frutos que servem para o néctar que os deuses bebem como fonte de inspiração. Às rugas vulcânicas vão os frutos beber a sua prodigalidade. Quem disse que vir tarde é a destempo? Arrematem-se os relógios no venal logradouro de onde ser serve a sua infecundidade.

23.8.18

O tempo furtivo (short stories #15)


Mão Morta, “Aum” (ao vivo na Antena 3), in https://www.youtube.com/watch?v=eLtMFp0sIOk
          Que impressão digital fica do tempo cevado? Um ermo, talvez, uma distante fotografia que nem a melhor memória consegue avivar – como se fosse uma fotografia a preto e branco, e desbotada. A cabeça insiste, contra os tentáculos da fadiga. Pode ser que uma medida fique a levitar e a intemporalidade seja proeza à mão de semear. As algemas que impendem trazem segundos pensamentos. No papel deposto, onde se desenha a linha do tempo, as palavras e as imagens erram com uma voracidade aterradora. As páginas sucedem-se umas às outras, imparáveis. Por mais que a cabeça instrua a mão para travar o léxico das páginas, a mão cristaliza, contrafeita pela aceleração das páginas onde o tempo é macerado. Uma pergunta irrecusável sobe à boca: com tanta vertigem no desfile das páginas, e em sendo elas açambarcadas por um tempo despótico, não se incinera o tempo no dobrão que devia ser seu capataz? Eu julgo que há um contratempo maior do que todos os outros: de tanto se elaborar sobre o tempo, ele é o ditador que sobre a vontade se abate, locupletando-a. Não há menção honrosa ao pretérito. Também não se espere que o porvir peça licença para anunciar menções honrosas: ele joga-se no cinzel da indefinição. É o tempo que corre atrás de nós (por mais estranho que pareça o enunciado). Corre atrás de nós, para que sejamos seus súbditos e lhe prestemos vassalagem. Mesmo que a sua furiosa demanda se jogue contra nós, quando damos conta que o tempo veio com a leveza de um estorninho e tende a dissolver-se no efémero que é seu nome próprio. Oxalá houvesse um modo de tornar as coisas fáceis. Podíamos habitar numa medida alternativa do tempo, homologando um tempo diferente, variável. Para não estarmos penhorados pelo tempo, antes dele sendo seus tutores. 

22.8.18

Ritual (short stories #14)


Altin Gün, “Goca Dünia” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=FyQ_5uLyFMo
          O pé direito que é o primeiro a sentir o chão depois do sono. O pé direito que tem precedência em qualquer entrada. Não passar sob uma escada emparelhada. Ouvir sempre a mesma música na véspera de eventos significativos. Envergar a mesma roupa para efeitos da presença nesses eventos. Nunca empregar determinadas palavras, apenas porque são palavras com as quais existe uma embirração sem explicação. Fugir do treze, que dizem que o número do azar (mesmo sem ter razões de queixa do treze, em grande parte por dele fugir a sete pés). Evitar gatos pretos. Colecionar todos os trevos de quatro folhas que venham ao conhecimento, até que já não seja possível extraí-los da senescência própria depois de serem arrancados pela raiz. Militar contra o caos da manhã, por conviver mal com a alvorada e o mau-feitio ser idioma dominante. Ler os jornais de trás para a frente. Fazer a corte a um conjunto de objetos de colheita especial, por terem ficado lavrados no livro do tempo como objetos com correspondência a episódios memoráveis. Não escarnecer (nem em privado) de coisas sérias. Não admitir o ateísmo, que deus pode existir e, vigilante como apregoam ser, descerá a mão irada da vingança. Não bater as claras em castelo em movimentos circulares que sejam o oposto do movimento do relógio. Para as senhoras: não bater natas em chantillyquando estão menstruadas. Não ver filmes de terror. Não jogar na lotaria em dia que faça coincidir a sexta-feira com o décimo-terceiro dia do mês (não vá a fortuna ser a aliteração do azar – como quem diz: se não fosse pela inesperada abastança, não seria dado a apreciar certo cometimento que acabará por inaugurar a desdita). Não tresler o ocaso nem fingir a maresia. Respeitar escrupulosamente a cartilha dos rituais. Ou então, o simples desprendimento destes atavismos, de todas estas algemas, autoinfligidos elementos que cerceiam a autonomia, e deixar o corpo e o pensamento vogarem livremente por onde lhes apetecer. Sem medo de nenhum medo. 

21.8.18

Sol da meia-noite (short stories #13)


Lince, “It Feels Like Looking at Sculptures”, in https://www.youtube.com/watch?v=iIxgG7ONwNk
          Confecionamos a maresia à nossa medida. Dantes, as paredes eram apenas paredes. Obstruções completas; na melhor das hipóteses, uma delimitação contra território exterior, áridas paredes. Agora, as paredes são oportunidades de janelas. De onde o olhar se projeta para o exterior, em não intrusivo movimento, saciando a sede de conhecimento dos lugares que se depõem a nossos pés. Sim: transfiguramo-nos imperadores dos lugares esses. (Outros poderiam ensaiar semelhante reivindicação, mas não cuidamos de dar atenção a exteriores proclamações.) É de lá que desenhamos a paisagem que se entretece sob o nosso olhar. Somos argonautas das marés que emprestam o odor a cada lugar. Podíamos dizer: trazemos no alforge das memórias um módico (pelo menos) dos lugares que vieram ao nosso conhecimento. Somos mais ousados: os lugares são maiores a partir da nossa presença. Não é exorbitância. Do pináculo da humildade, declaramos a nossa quintessência singular. Não esperamos que seja tributada em seu desalfandegar. De oferendas tais não se espera atividade punitiva. E sim, confecionamos a maresia à nossa medida – e todos os lugares são nossos arquipélagos, de onde se incita a combustão das coisas que importam. Sob o sol da meia-noite, nem que seja em latitudes que não o tenham, ou nas latitudes que nos esperem em devir laudatório. Na nau que desenhamos e de que somos timoneiros, sulcamos os mares a eito, sem medo das marés em convulsão, sem medo das palavras histriónicas ou de fantasmas pretensiosos. No diário de bordo, enquanto emolduramos em palavras honestas o derradeiro sol da meia-noite, tomamos espera no entardecer que nos espera. Não há pressa. O próximo ancoradouro não desaparece. Na viagem de entremeio, concebemos as estrofes com o mel dos lábios que selam as palavras a preceito. São seu guarda-freio, tutela sem recurso no dédalo dos tempos sem memória. Não se poderia esperar diferente de um amor.

20.8.18

All the way down (short stories #12)


A Guy Called Gerald, “Humanity”, in https://www.youtube.com/watch?v=9X0XnnzSNLQ
          Não é um exercício de mortificação. Não se trata de decadência, como seria de adivinhar pelas palavras aglomeradas: “all the way down”. Quando se começa do cume e o caminho depois vem sempre a descer, poder-se-á pressagiar um mau agoiro, com o verbo a piorar a cada passo, até chegar a ser ruínas de si próprio. Trata-se de uma tresleitura. Não é lugar para desembainhar metáforas. É lugar para o oblívio das metáforas, para a literalidade da expressão que se embebe no úbere das suas palavras constitutivas. A matemática pura dos termos adequados: sempre a descer, porque antes se assinalou a proeza de uma ascensão. Uma subida que não está ao alcance dos simples mortais. No auge, depois de libertar a extenuação e em aproveitando para apreciar o mapa sob os pés, congeminam-se os sentidos operacionais. Depois de subir, encena-se a descida. Sem qualquer esboço de decadência, pois não se cuida de saber os terríveis meandros que mergulham a existência na sombra de si mesma. Descer pode parecer uma empreitada fácil, mas vaticina uma inesperada contrariedade (ao olhar do lugar-comum, pelo menos). Solta-se o freio do corpo e ele desafia a gravidade. É preciso ter tento no corpo enquanto a alcantilada descida se sopesa contra o seu peso. Podia apenas voar; não é garantido o resultado (por mais que o senso-comum advirta contra a possibilidade, atirando, contra ela, as fracas probabilidades de glória; antes do acontecido, ninguém pode aferir sobre o desiderato). Sempre é a descer, e na companhia da vertigem – e continua a não ser o lugar para o uso de metáforas. Ao fundo da descida, um abrupto fio de água anuncia o vale. A vertigem da descida adultera os sentidos: o fio de água parece eclipsar-se no horizonte. É uma miragem. O corpo transido pela vertigem da descida atravessa a combustão das miragens. A descida está quase no fim. O passo estugado confirma-o.

17.8.18

Os olhos sôfregos (short stories #11)


Beach House, “Myth”, in https://www.youtube.com/watch?v=3lIyDxfUhxM
         Uns olhos ardilosos: por sôfregos serem, ambicionam muito consumo, de preferência de coisas neófitas que, por neófitas serem, despertam os sentidos que caucionam a curiosidade. E, contudo, quase sempre os olhos não rimam com os demais sentidos, os sentidos que são chamados a serem juízes do consumido. Por isso são ardilosos, os olhos. Os olhos que não conseguem ter filtro e não aprendem com as lições pretéritas. As armadilhas da sofreguidão são constantes. E nem assim aprendem, os olhos, a não serem sôfregos. É como se o olhar se sobrepusesse ao demais, aos outros sentidos que ficam à espera de um sinal enviado pelo olhar, e à lucidez que não se precata. Olhos assim sôfregos são o archote da frivolidade. Consideram o papel de embrulho, as cores esplêndidas em que o objeto vem apresentado, as promessas que, de tanto oferecerem, mereciam um módico de desconfiança como critério. Não se interessam pelas camadas sob o verniz superficial. Olhos que não encontram um filtro são o precipício em que se deitam seus tutores. Muitas são as vezes em que as promessas de idílio malogram no parapeito da experiência. Os outros sentidos, e o logradouro da lucidez, não lobrigam a mesma medida. Por isso, os olhos são astuciosos. Nunca parecem adestrados. Ou têm memória curta, ao não conseguirem resgatar as lições que interessam da moldura onde as memórias estão guardadas. Comem de mais, estes olhos, sem que o restante corpo fique saciado. Olhos que são sôfregos mais parecem separados do corpo demais, sem ligação sequer com o pensamento. Sobra a hipótese de os olhos serem propositadamente sôfregos: uma provação não insidiosa instalada no horizonte, para quem os tutela saber distinguir o que interessa. Por portas travessas, uma desafiante instrução dos sentidos. Pois não são poucas as vezes em que temos de contrariar o impulso dos sentidos se a razão for chamada à colação. Para negar provimento aos olhos que crescem em sofreguidão. 

16.8.18

Pretérito imperfeito (short stories #10)


Brian Ferry & Todd Terje, “Johnny & Mary”, in https://www.youtube.com/watch?v=Din_eWjJWe0
          O rosto macerado pelos ventos vindouros: as rugas são apenas marcas que o tempo futuro há de legar. Não importa o passado. Não importa julgá-lo. Pois se não tem essa serventia, que sentido faz ter dele vergonha? Os arquivos estão cheios de poeira e alguma dela até pode ser tóxica. E depois? Trazemos connosco um gáudio irrebatível – o orgulho de sermos alguém no tempo presente, na glorificação sublime do que nos é dado a experimentar. Não se condensa do pretérito nada que tenha préstimo. Os arranjos do tempo são efémeros campos onde a sementeira se esgota no instante seguinte, no instante imediatamente seguinte. Aprendamos a orientar o olhar para o lugar presente, como se fosse possível esgotar as outras medidas do tempo na medida atual, por sua vez exaurida no exato instante em que é dada a revelar-se. A convergência de vontades ergue as efemeridades ao seu estatuto proeminente. Abraçamos o instante; enquanto o abraçamos, somos tutores da sua moldura, como se a nós viesse o sortilégio de perpetuar o instante pela medida do tempo que for nossa decisão. O pretérito é sempre imperfeito. Essa é das poucas certezas que podemos ter como assente. A espada que se deita no umbral do porvir terá validade quando a vontade, ou apenas os acasos, assim determinarem. Poucos somos além da nossa vontade. Às vezes, somos reféns inteiros do acaso. Seremos maiores se a nós vier a força para cinzelarmos a vontade, arpoando-a a uma indomável condição. Diluindo o sofisma que nela se encerre. Mesmo sabendo que somos arautos da fragilidade que é corolário da imensa grandeza das pessoas. Enquanto viajarmos no mapa do tempo saído das nossas mãos, seremos arquitetos dos desenhos que têm as mãos por património único. Mesmo que o pretérito seja um véu embebido em imperfeições. Ou, talvez, por esse motivo. 

15.8.18

A janela estilhaçada (short stories #9)


Sufjan Stevens, “Chicago” (live at Austin City Limits), in https://www.youtube.com/watch?v=SKZYb_S_KBg
          Era uma rua estreita, inclinada, muito inclinada, arqueando o seu peso sobre o peso morto da colina. Uma casa diferente das outras. As outras, alindadas, ostentando pintura nova, as cores garridas projetando-se das paredes como se fossem as suas comendas e muito fosse o orgulho não disfarçado das casas assim airosas. A casa que era diferente era uma casa triste, sombriamente cinzenta, ausente de cores. Não se diria estar em ruínas, ou sequer abandonada: um estendal com roupa a secar era a prova de que era habitada. Uma das janelas, no primeiro andar, tinha o vidro estilhaçado. No parapeito da janela, dois vasos com alecrim. Em contraste com a demais figura da casa, o alecrim estava pujante, abundante, vivaz. Conseguia-se sentir o aroma a partir da rua. Na sombra dos estilhaços em que se transformara a janela, distinguiu-se a silhueta de uma menina. Parecia atarefada, para trás e para a frente, mexendo e remexendo aqui e acolá. O cabelo comprido acompanhava, em suave coreografia, as lides da casa. A menina assomou à janela. Trazia um pano de limpar o pó. Cuidadosamente, para não se ferir nas arestas vivas do vidro estilhaçado, limpou a madeira da janela. O rosto vinha afogado em tristeza. A melancolia devia-se à janela estilhaçada – talvez não tivesse dinheiro para a mandar reparar. Num descuido, a menina fez um corte num dedo. Verteu lágrimas em vez de sangue. A janela estilhaçada tinha exaurido o sangue, mas continuavam fecundas as lágrimas que eram a prova da imensa melancolia que a menina trazia como selo da existência. Três dias depois, voltou àquela rua. A casa que era diferente das outras já não estava habitada. Uma agência imobiliária informava, em letras garrafais, que fora vendida. Os vasos de alecrim continuavam no seu posto. Ainda não tinham tido tempo para começar a definhar. Talvez a menina tenha deixado a melancolia na casa diferente das outras.

14.8.18

Lavandaria (short stories #8)

Moderat, “Reminder”, in https://www.youtube.com/watch?v=cJwsNUoazUg
      O fuso horário desacertado junta nuvens baças ao entendimento. As ideias medram, todavia confusas. De resto, até as mais regulares palavras parecem ter perdido sentido. Uma estocada diferente: desafiam-se as coisas em seu vestuário aparente. Desafiam-se. Mas como? O sortilégio que se emenda é uma provocação aos cabos estirados na varanda onde se perfila a maioria. Talvez a lavandaria seja o remédio. Submeter tudo a uma purificadora lavagem, a água refrigeradora atuando como uma bênção que desvenda a caução esperada. E depois, o que se espera é que as coisas comecem a fazer sentido. Que as peças dispersas sejam dispostas no chão translúcido e se juntem umas às outras, com o vagar necessário, começando a formar um conjunto coerente. Não se esperam milagres. (Os milagres não acontecem.) A água que atuou sobre as coisas a ela submetidas é um resíduo sem serventia, provavelmente encardida. Sinal suficiente da sua utilidade. Através da lavandaria, a podridão que embaciava as coisas passou para a água que as devolveu ao estado de inteligibilidade. Não são águas pútridas. Nem se admita que os resíduos que traz em seu caudal contaminam os cursos de água onde desaguem. São águas generosas. O selo de uma defenestração capaz de devolver um sentido mínimo ao que estava no limbo da névoa plúmbea. A lavandaria é cortejada pelos íntegros, pelos que não se acomodam no umbral do entendimento acrítico, pelos que desfilam as interrogações constantes contra a apatia do adquirido. Mesmo os dados consabidos não estão fora da cogitação. O fuso horário desacertado pode não corresponder à imagem de um relógio; pode ser apenas a desorientação que consome, desde o interior, as suas vítimas. A lavandaria remedeia os contratempos que se opõem ao entendimento. Não interessa saber a origem do manancial que serve as águas purificadoras. É melhor confiar no sortilégio.   

13.8.18

Etiqueta vermelha: aviso do fim de prazo de validade (short stories #7)


Tricky, “Aftermath”, in https://www.youtube.com/watch?v=25y3cMC9i94
          Como nos iogurtes quase fora do prazo: uma etiqueta vermelha informa a ocorrência (e determina o preço de saldo). É voz corrente que os estabelecimentos comerciais se precavem (e acautelam os consumidores), pois a vida útil das mercadorias estende-se para além do prazo de validade. Peca por defeito – ou uma espécie de rede de segurança com margem para prevenir fatalidades. Corre à boca pequena que não faz mal se as mercadorias forem consumidas depois de atingido o prazo de validade; falta saber qual é a margem de segurança depois de expirado o prazo de validade – falta saber a partir de quando a mercadoria se deteriora e a saúde pública passa a correr riscos. Talvez seja assim com as pessoas. Ninguém lhes pespega uma etiqueta vermelha – e muito menos se pensa em atribuir preços que correspondam ao seu valor venal. Com uma agravante: quem arrisca o precipício da prescrição é o último a reconhecê-lo. E outra: passado o prazo de validade, cai-se na decadência irremediável. Não faltam espelhos aptos a advertir a aproximação do termo da validade. Só que esses espelhos estão disponíveis para os outros, sobretudo para os que decretam o fim da validade de outrem. Aos próprios, tais espelhos (como o reconhecimento do termo da validade) é um lugar ermo, inacessível. (Com raras exceções.) Males destes acontecem sempre aos outros. Somos os últimos a admitir que connosco se pode passar o mesmo. Quando damos conta, não vamos a tempo de retroceder. Pode ser que ainda haja validade para além do fim do prazo de validade. E que este prazo tenha sido definido antes do tempo. Não custa instruir a esperança.

10.8.18

Coexistência (short stories #6)


Air, “Surfin on a Rocket”, in https://www.youtube.com/watch?v=IE4KUvoGgXE
          Um arquipélago de matéria: do mesmo modo que não somos ilhas, pedaços de nós vivem subtilmente embebidos noutros. Por isso, é ilegítimo postular que “o inferno são os outros”. Em conferência com a reciprocidade, há laivos dos outros que fazem parte de nós. Que não sejam confundidos os planos: a exposição às influências exteriores é ditada pela vontade; as que esvoejam como esporas cravadas no dorso, são maquiavélicas intrusões recusadas pelo império da vontade. É inato à condição da espécie: coexistimos. No que a coexistência pode ter de laudatório e de repreensível. Não é sempre o modo de haver coexistência pacífica ou tolerável. Compensa-se com a coexistência que enche as medidas. Este é um exemplo de como a qualidade leva de vencida a quantidade: por mais numeroso o exército dos que corporizam a coexistência lamentável, ele é derrotado pelo restrito grupo que pertence à coexistência propícia. As interações da coexistência assentam numa complexa teia. Não é possível desenhar essa teia. Não são lineares as linhas que unem dois pontos. Os pontos que se unem através da teia podem ser sufragados pela interrupção determinada por fatores externos. E a própria lucidez de quem congemina os fios que entretecem a teia pode sofrer variações: um padrão de julgamento é subjetivo e pode mudar de feição a meio do jogo. Ao evocar a ilegitimidade de postular os outros como inferno, sobe à boca de cena um pressuposto difícil de aceitar (em manifesto entrose de qualquer culto de personalidade): o inferno somos nós. O encómio é para os que aceitam a nossa coexistência. 

9.8.18

Bottleneck (short stories #5)


Sufjan Stevens, “Fourth of July”, in https://www.youtube.com/watch?v=vq5NvJvr55Q
          A garrafa estende-se num largo estuário, longânime. Um mar da palha, à lisbonense. Sendo largo o estuário, tem esqueleto de sobra para alojar as palavras prolixas, para memorizar os rostos de numerosas pessoas que já foram transeuntes no passeio por onde desfila a existência. Tem capacidade para fazer corresponder nomes a rostos, usando uma mnemónica infalível. Toda esta memória serve para um criterioso anexar de citações de livros que ficaram nas estantes e com lugar reservado num pedaço da garrafa. Vista à distância, a garrafa parece um mosaico de coisas indistintas, as cores atropelando-se umas às outras, irradiando uma claridade contagiante. Dir-se-ia: se esta garrafa fosse lançada ao mar por um marinheiro com o atrevimento para desenhar uma memória futura, quem a encontrasse teria tempo de sobra para a sua hermenêutica. A garrafa foi sendo ocupada à medida que o calendário se depunha no seu movimento natural. Mas a garrafa não é um santuário ilimitado. O seu largo estuário estreita-se quando se avizinha do gargalo. Confrontada com o garrote, a garrafa reclama um alívio. Não pode continuar a ser um recetáculo de palavras prolixas, de rostos cruzados, de nomes em rima com os rostos, de livros, música e o demais que uma existência compreende. Impõe-se a seletividade exigida pelo estreitar do caudal, sob pena de tudo transbordar da garrafa e tudo ser desaproveitado. Chega o momento em que a garrafa tem de ser vazada. Higienicamente vazada. É como acontece às barragens, que armazenam suas albufeiras que periodicamente têm de ser vazadas. À espera de serem preenchidas com a fértil matéria que o tempo vindouro traz até elas.

8.8.18

Silêncio de fachada (short stories #4)


New Order, “Your Silent Face”, in https://www.youtube.com/watch?v=WFRjCqpskrE
          Será pedir de mais, na sombra deste silêncio que aparenta doer, que haja palavras que se refugiam no silêncio? Não se caia no lugar-comum de adjetivar o silêncio: ele não é ensurdecedor. Podem dizer que dói mais a ausência das palavras do que um palco montado com palavras desagradáveis, agressivas, autênticos dentes de leão aferroados na carne funda. O silêncio é de fachada. Uma escolha deliberada: alguém põe-se a falar através do seu silêncio; ou, por outras (não ditas) palavras, a escolha intencional do silêncio é a forma de reprimir palavras que seriam duras. Nesta medida, o silêncio diz muito. Diz tanto quanto as palavras resguardadas na varanda do silêncio. À volta do silêncio, as testemunhas reduzem-se a essa condição – são testemunhas do silêncio, não conseguem decifrar as palavras escondidas na cortina do silêncio, não as conseguem adivinhar. Adejam as sombras que são a mácula do silêncio. O silêncio não se afivela no penhor de quem não tem nada para dizer; ao contrário, é o sufrágio das palavras propositadamente obliteradas no parêntesis do silêncio. Evocam-se no ar, onde são dissolvidas à medida que a ira febril arrefece com a ajuda do tempo. Essa é a sua condição ideal. Se as palavras pungentes, escondidas no castelo indomável do silêncio, fossem reveladas, seriam um punhal cravado nas costas de quem testemunha o silêncio. Mas o silêncio de fachada não é um ato piedoso. É um jogo que se joga, no cálculo das probabilidades de certas palavras que, por terem sido ditas, causam danos que, uns após outros, podem chegar a ser irreparáveis.

7.8.18

Saldo ilegítimo (short stories #3)


Ty Segall & White Fence, “I Am Not a Game” (at Room 205), in https://www.youtube.com/watch?v=zpWPgduRk-U
          Um nome é um saldo. A contabilidade infecunda que sobre ele se abate (nome). Sem pudores por perto, que ele (saldo) tudo desfaz a cinzas quando se investe de contratempo. O pesponto de um nome pode ser sua fronteira. Se for vazio por dentro, a delimitação contundente do nome não tem serventia. Ele nada significará. Será destronado por um soldo sem saldo. Não se pode opor aos demais nomes, nem sequer quando estes intuem a colonização dos lugares que o nome sem conteúdo diz serem seus. Dir-se-á, nesse caso: um nome sem pergaminhos é um nome sem saldo. Ou com ilegítimo saldo a tornear o seu calcanhar, que nem chega a ser de Aquiles. Uma profunda névoa açambarca-se do lugar em que se encontra. Por mais solenes as proclamações sobre a posse de tal lugar, a cobiça não frui, malquista pelos olhos avulsos que, no âmago da profunda névoa, se constituem juízes. Condenado ao saldo ilegítimo, o nome desapossado de lugar inquieta-se com a servidão a que parece condenado: a orfandade, como acontece aos nomes tornados ilegítimos. Sem coroa para envergar, o saldo decretado ilegítimo por juízes sem rosto, o nome afogado não perde os sentidos. Não impugna o libelo da sua ilegitimidade. Reinventa-se. Fixa esteios num lugar diametralmente oposto (ainda que vizinho ao que largou). Já não admite os pespontos que dão cor ao nome como limites irrenunciáveis. Aprendeu. Vale mais ter um exíguo território todavia preenchido e limites volúveis. Os nomes não são ilhas desertas, não são lugares sem contiguidade. São legítimos quando são uns e outros água do mesmo caudal. 

6.8.18

Ruínas monumento (short stories #2)


Nine Inch Nails ft. David Bowie, “Hurt” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=c7_Te7iDojA
          Destroços sem utilidade. Perduram no porvir o que remanesce em forma de ruína. Os petizes, ainda não educados para a validade dos despojos do tempo, perguntam por que as ruínas não são destruídas para darem lugar às modernas edificações que enxameiam as cidades. Há mais velhos com o mesmo desejo. A propaganda da avareza, visível em tais desmandos, não se sabe se é apenas um frémito da abastança ou o selo da ignorância. Empreiteiros, arquitetos, ascetas da modernidade, alguns políticos devidamente assinalados, petizes ainda impreparados – todos são a peanha que não entende as palavras das ruínas com propósito. Não são ruínas como todas as ruínas. Não são um mostruário de decadência, mesmo que sobejem de eras que foram de opulência e depois acabaram consumidas pela decadência. São ruínas monumento. Um pedaço de História que alcança o tempo presente, como se o tempo pretérito fosse transportado até hoje. Não são ruínas decadentes, como os prédios embargados e que nunca mais tiveram sinal de vida, ou o matagal que se sobrepõe a paredes de casas abandonadas, ou a vociferação angustiante das almas que se adulteram no pórtico das suas próprias ruínas. Um dia, um daqueles empreiteiros avarentos fazia planos na companhia de um arquiteto. Haveriam de seduzir um autarca e depois um secretário de Estado para a sua causa. Não terá sido coincidência que, nesse entardecer, quando chegaram a casa, e depois de uma discussão acesa com as consortes, as ouviram protestar – como se estivessem em uníssono – que os dois tinham a alma em ruínas.

3.8.18

A faca de dois gumes (short stories #1)


Rhye, “Song For You”, in https://www.youtube.com/watch?v=No9CLpAI1aI
          Cara ou coroa. Sem ponto de interrogação. Não há lugar à tergiversação. Ou é cara, ou é coroa. Ao acaso ficará o critério. Não se sabe o que está escondido – nem na cara, nem na coroa. Do revólver desarmadilhado sobram as munições. Podia-se pesar e medir e saber da temperatura das munições como presságio do que seria se cara ou coroa tivesse sido a escolha. Recusada a empreitada, prossegue a demanda. Descobre-se a existência de facas que têm gume nas duas extremidades. Facas sem coldre. Facas terrivelmente assassinas. Ou até suicidas, pois a ausência de coldre, e a exposição dos gumes em ambas as extremidades, pode ferir, e fatalmente, quem empunhar a faca de dois gumes. Há quem não se intimide. A desorganização reinante é a má caução da insegurança (argumentam). Uma arma, é só uma arma de defesa. Se todos pensassem deste modo, ninguém precisava de facas (de um ou de dois gumes). Ninguém era agressor. Alguns agressores defendem a honra: tornaram-se agressores porque as circunstâncias jogaram a seu desfavor. Foram empurrados para a agressão do outro, o único meio de restaurarem um certo sentido de justiça (da justiça aparelhada pela sua subjetiva visão). Às vezes, o agressor é o próprio que se apetrecha da faca de dois gumes para se defender. É uma questão de cara ou coroa. Ser agressor, ou defender-se de um agressor; ou perpetrar em si mesmo a agressão na imoderada restrição contra as agressões outras. A cara também pode ser coroa, sem que se saiba.

2.8.18

A imprensa que convoca a comiseração


LCD Soundsystem, “Dance Yrself Clean” (Muppets rock out in Brighton), in https://www.youtube.com/watch?v=Zj9Sv1JpmPs
Os nobres sentimentos têm de ser educados a partir da imprensa (e, talvez, seguindo os recados, os discretamente enviados recados, dos que se constituem patronos da “boa sociedade”). A comiseração é um desses nobres sentimentos. Sobretudo a propósito de cataclismos que arrematam um punhado de mortes.
Muito se poderia teorizar acerca da necessidade da comiseração. É uma simbiose interminável que coloca os dependentes da comiseração num esquizofrénico papel: ora são os generosos fautores da comiseração, deixando o seu verbete de solidariedade junto dos desvalidos do momento; ora se imaginam, num tempo indeterminado (que as desventuras não escolhem lugar no calendário), na pose de quem precisa da comiseração dos outros. Não admira que haja tanta gente disposta a alinhar no exército que salpica postas de comiseração quando é necessário. Querem-na – ou terão sua serventia – se for tempo e modo de precisarem dela para remédio (aparente) das angústias excruciantes que os assaltarem. Depois, o povo dirá, qual trunfo guardado na manga dos lugares-comuns, “temos de ser uns para os outros.
Ontem, um jornal continuava o acompanhamento dos incêndios na Grécia. A contabilidade dos mortos aumenta a cada dia. Na melhor imersão de sensacionalismo obsceno, o jornal documentava as mais recentes vítimas, descobertas depois de alguns dias em que estavam inventariadas como desaparecidas. Os detalhes é que são lúgubres. Para começo de conversa (e para que os candidatos à lágrima de comiseração comecem a preparar o lenço a preceito), duas das vítimas eram irmãs gémeas. As outras duas eram seus avós. Para concluir o detalhe mórbido da notícia, o jornal dava conta que os quatro foram encontrados abraçados uns aos outros e assim pereceram sob o jugo do fogo.
Imagine-se o efeito psicológico, devastadoramente psicológico, que a notícia, e a escolha dos detalhes que serviram a sua narração, causou nas pessoas mais achacadas à comiseração. Uma hipótese: “pobres irmãs gémeas, que vieram ao mundo separadas por uns instantes e do mundo foram levadas ao mesmo tempo, na ceifa do fogo destemperado.” A descrição atinge foros de obscenidade ao saber-se que as gémeas e os avós, imersos no pânico, se abraçaram na remota esperança de se protegerem da imparável cavalgada do fogo. Exclamarão os patriotas da comiseração, com um severo amargo de boca tingido pela incorrigível tentação do voyeurismo: “que modo horrível de morrer!” Ato contínuo, dirigem as suas preces para os pobres falecidos em tão horrendas circunstâncias. Não lhes é dado perceber que as preces são extemporâneas, por ausência de destinatários. 
Entretanto, acumularam mais uns pontos no deve e haver da comiseração. Futuramente, poderão reclamar a troca desses pontos por uma maquia de comiseração quando ela for útil. Assim se compreende melhor que “temos de ser uns para os outros”...

1.8.18

Da utilidade do arco-íris


Conan Osiris, “Barcos”, live on Ginga Beat, in https://www.youtube.com/watch?v=sJPfYhcrZCo
I
              Num pequeno país asiático – consta da notícia–, o líder, há trinta e três anos no poder, ganhou as eleições outra vez. Todos os lugares do parlamento pertencem ao seu partido. Na declaração da vitória, o líder deixou cair que o país vai a caminho do partido único, pois a oposição não reuniu votos para ter lugares no parlamento. O déspota está errado (a menos que admita a condição de déspota, termos em que o anunciado é um postulado lógico). A legitimidade está incarnada na pluralidade de vozes. Mesmo que o viés se acentue e um dos concorrentes se torne (quase) monopolista, é quando as vozes dissidentes, por mais exíguas que sejam, fazem sentido. Não há notícia de arco-íris compostos por uma singular cor (a menos que sejam fotografados a preto e branco).
                                                        II
          Numa reunião, e depois de trocados argumentos, o moderador anuncia que se impõe um “consenso”. Podia ter dito: “esforcemo-nos por chegar a um mínimo denominador comum”. Fez tábua-rasa e arriscou bitola mais ambiciosa – e, ao mesmo tempo, totalitária. Algumas das vozes discordam do método e do resultado pretendido. Mesmo que estivessem dispostos a contribuir para o mínimo denominador comum, com a ressalva das posições divergentes (e sua legitimidade), não aceitam o “consenso” imposto. Não admitem que seja validada a sobreposição da maioria sobre as minorias. Amotinam-se contra a ditadura da maioria. Alguns, com propensão para o mau feitio, proclamam a indiferença ao “consenso” enquanto esgrimem argumentos contra – nem que sejam argumentos forjados no estirador intelectual, apenas para contrariar o “consenso”. O “consenso” é o arco-íris unicolor. Sem sabor. Uma camisa-de-forças sobre os que discordam e, todavia, sabem ser a sua discordância silenciada no altar supremo do “consenso”. O arco-íris não fica visível se houver nuvens a embaciá-lo.
III
              O homem experiente acusa o toque: ficou contristado ao saber que alguém não tem simpatia por ele. Incomodado, pergunta aos mecanismos interiores como pode acontecer alguém não gostar dele. É sua aspiração saber que reúne a simpatia de todos – sem exceção. Está profundamente errado. Ninguém pode pretender beneficiar de um aval incondicional dos outros. É uma vaidade espúria. Só pode acontecer por o pessoal espelho de tal pessoa irradiar uma imagem distorcida de quem nele se projeta. Ninguém pode pretender ser adorado na unanimidade, pois essa mesma pessoa não gosta de toda a gente. “É saudável que haja pessoas que não simpatizam connosco”, sossegou o psiquiatra, a meio de uma sessão de psicanálise. O homem, não convencido, admitiu que devota mais atenção aos que não gostam dele (pelo incómodo causado). O psiquiatra esbraceja a metáfora do arco-íris: “Não gosta de todas as cores do arco-íris, pois não? Imagine o que seria do arco-íris se apenas as cores da sua preferência o compusessem.
IV
        Princípio metódico contra as maiorias: o direito geral à discordância. Nem que seja por higiénico imperativo intelectual. As maiorias já são, por definição, numerosas. Não precisam de adicionais alistamentos. É mais gratificante engrossar o reduzido rol de uma minoria, saber-se sentado nas hercúleas contracorrentes que se insubordinam contra marés dominantes. O arco-íris não é pintado com uma só cor, ou com um punhado de cores. É uma constelação de cores (sete, dizem os manuais; muitas mais, se o arco-íris for metáfora). E mesmo que o olhar destaque uma ou duas cores como as que dominam o arco-íris, o mesmo olhar não pode desprezar as outras cores que compõem a paleta. Ou não passa de um olhar maniqueísta e parcial, um olhar que recusa a pluralidade e que não chega a ser adulto.