31.7.19

Guardo no peito


Idles, “Rottweiler” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=HK6rWTFRs5Q
Guardo no peito as vozes emaranhadas no leito da noite. Conjugo os verbos que se sobrepõem no almofariz da idade, as diferentes geografias abraçadas num todo sem pátria. Abençoo as não-bandeiras, as não-identidades, as despojadas lealdades que diminuem o indivíduo, ajoelhado diante de sacralizadas entidades. Guardo no peito os vestígios de lágrimas por secar, imagens de mares tumultuosos, o arrefecido ânimo que fica à espera de capitulação. Não guardo no peito as imagens de morte, de mortes.
Se por mim outros falarem, creditem-lhes as palavras: são de sua lavra, não faço tenção de entronizar um biógrafo oficial. Nem a mim encomendo a tarefa. Prefiro o cometimento de viver no afortunado mapa onde os minutos se consomem na sua beleza natural. Pode ser que guarde muitas coisas no peito: as memórias, são o candidato óbvio; mas há mais: os lugares, os fragmentos extraídos à mnemónica do tempo, as pessoas, as palavras, os arrependimentos, as lições embebidas no sargaço do tempo. E se tudo isso guardo no peito, não encontro motivos para o trazer a público olhar. Há um certo pudor, irrecusável, que exige reserva. O peito é a fortaleza que cerzi com as mãos do pensamento.
Guardo no peito tudo aquilo que nele se armazenou. Algumas coisas pela mão da vontade que domino. Outras, sem que possa domá-las, entrando por vontade própria no património que se alberga no meu peito. E, todavia, sei que o peito, se falasse, não se escondia no armário onde decorrem os prantos, a agonia, a autocomiseração rasteira. Não cuida de se ufanar desalmadamente, o peito que guarda todas as coisas confessáveis e inconfessáveis. É um meio-termo. De repente, esse mesmo peito, que sempre protestou contra as meias-tintas, o peito que não hesitava em reclamar para si um lugar de radicalismo, reconhece-se num lugar que está nos antípodas do outrora convocado. Diriam, em sentença apressada: a madurez deixa as suas cicatrizes. Deixo as palavras a quem as diz.
Guardo no peito os sonhos apalavrados. A boémia da tempestade cerebral. As mangas arregaçadas no perene ensaio de qualquer coisa, para não atraiçoar o febril pensamento. A sede de experiência, a terçar armas contra os mastins da atonia. A pele arrebatada pelo doce menear do amor, pelos sensíveis espasmos das artes, pela criação deixada em memória futura. 
Guardo no peito o que o peito quer guardar. Com a caução da minha vontade e contra o império em que ela se consome. E guardo o peito, património maximalista.

30.7.19

Falhamos – e depois?


Sigur Rós, “Varðeldur”, in https://www.youtube.com/watch?v=sBubnbNFyW0
“Primavera Selvagem”, de Arnold Wesker, Teatro Nacional São João
Não interessa o axioma: “quem nunca falhou que atire a primeira pedra”. O falhanço é inato. Corre no sangue. Não é intencional. Quase nunca: quem, no seu juízo, comete um ato ou profere palavras com o propósito de se magoar, saindo de cena com a impressão de ter falhado e de o malogro se dever à intencionalidade dos atos ou das palavras?
No imenso, emaranhado jogo da vida, não sabemos das consequências dos atos e das palavras. É uma aposta no escuro. Por isso é que os mais prudentes jogam à defesa, com receio de que o risco quadre com uma miríade de falhanços. Evitam decisões. Preferem ficar no estado minimalista em que se encontram em vez de se fazerem à vida, de transfigurarem a vida para melhor. Têm medo que saia o contrário do pretendido. Timoratos, ficam onde estão. Apesar de não estarem satisfeitos com o estado atual de coisas que é o palco que pisam – apesar de viverem aprisionados numa melancolia que parece imorredoira.
Se nos mentalizarmos que estamos fadados para o fracasso, não somos atordoados pelo macilento ónus da indecisão. O que sabemos? Que a imperfeição consanguínea não se desafeiçoa de nós. Devemos calcular a forte probabilidade de os atos ou de as palavras não terem o efeito desejado e somos assaltados pela angústia do malogro. Não é confortável ser confrontado com o sabor acidulado do fracasso. Mas um fracasso não é uma pedra tumular que se abate sobre o indivíduo momentaneamente falhado. É um intervalo na opacidade da vida. Uma exigência dela. Imagine-se o contrário: imagine-se alguém com o pressentimento da perfeição, com um percurso imaculado; como pode essa pessoa reivindicar tamanha pureza da vida se nunca travou conhecimento com o falhanço?
Sim, falhamos. E depois? Voltamos a falhar depois, se preciso for. Ao menos, não ficamos reféns da dúvida perene, da interrogação que adeja sobre os limites da consciência, a pergunta que esbarra no peito e o deixa em ferida, a pergunta que abre o nó górdio da contrafação do que poderia ter acontecido se a decisão tivesse rompido as baias da indecisão. Falhamos e voltamos a falhar, as vezes que forem necessárias. Entre os falhanços, colhemos matéria fértil, a aprendizagem irrecusável, a madurez que nos ensina a saber da vida quando, de outro modo, à sua mercê ficaríamos. Não nos esqueçamos da advertência do poeta:
(...) mas não te importes
não te importes 
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso.
Mário Cesariny, “De profundis amamus”.

29.7.19

“Esqueci-me do futuro” (short stories #131)


Mark Ronson ft. Lykke Li; Late Night Feelings”, in https://www.youtube.com/watch?v=OpNJTr7q1LM
          “O coldre é o meu arnês”, dizias, com orgulho. Vias como eram usadas as armas e ficavas encantado. E, todavia, não havia nada que respirasse confiança. Pressentia que transpiravas a passado, incapaz de coabitar no âmago da tua alma. Repetias: “o coldre é o meu arnês”, e metias as mãos nas algibeiras de onde trazias um nada impressionante. Talvez estivesse eu errado. Havia uma dissonância que armadilhava as conversas. Habitualmente, discordávamos. Não que isso fosse de desaproveitar. O que inquietava era a forma (não a substância) das discordâncias. Era preciso estar sempre de atalaia, antecipar a jogada do outro que ia acontecer daqui a três movimentos. Escusado será dizer que nada acontecia com a espontaneidade que devia ser mote. Tu continuavas agarrado a uma conspiração geral que cobria o mundo inteiro e que, suponho, te locupletava o sono. Eu – dizias, ripostando ao meu, porventura, impertinente diagnóstico – era um ingénuo, um desprendido das coisas do mundo, incapaz de perceber o que estava à minha volta e, invariavelmente, uma presa fácil dos mastins que o tomaram de assalto. Nunca retorqui. Não quis. Não era importante. Preferia que usasses as implacáveis acusações como escudo para tua proteção. Não esperava reciprocidade, pois não há (e digo-o: felizmente) duas pessoas iguais. Um dia, atormentado por uma conjuntura de mau humor, devolvi acusações. Sem negar o labéu que sobre mim arremessaste, não ficaste sem resposta: “o teu problema, o teu maior problema, é que já te esqueceste do futuro e ele ainda não teve lugar.” Ficaste indefeso. Não conseguiste balbuciar umas palavras em teu amparo. Nesse dia, nem sequer dissemos adeus. Até hoje. Todos estes anos depois (tantos que deles perdi a conta), ainda vem à memória a contundência deste episódio. Talvez estivesse destinado a que seguíssemos caminhos diferentes e a indiferença fosse o epílogo que nos esperava. Não tenho a ideia de em mim medrar o mínimo arrependimento. Nisto, não há acasos. Se o tempo pudesse voltar atrás, repetia que te esqueceste do futuro e ele ainda não tinha acontecido. Como as imagens do tempo trataram de apurar. O que nunca te ouvi dizer, foi “esqueci-me do futuro”. Proponho que seja o teu epitáfio.

26.7.19

Caderno diário


David Bowie, “Modern Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=HivQqTtiHVw
Para memória futura: deixam as palavras o seu selo, eternizado no papel que as hospeda. Pode ser a inspiração do momento, um pensamento avulso, a advertência necessária contra as pedregosas avenidas do mundo, o estado de arte, a miragem que não se consome por dentro de um sonho, umas estrofes não pretensiosas, o arrematar de uns pensamentos sem paradeiro que se constituem num enredo improvável, uma janela que se representa como varanda curvada sobre as faldas do mundo, a prova do amor (como se fosse preciso prová-lo por palavras escritas) ou o espelho do desamor.
Ou mnemónica: o antídoto do oblívio, que o tempo desgasta a memória e é preciso convocá-la para definir os limites e os deslimites. Contra a irregularidade dos acontecimentos bolçada pela memória atraiçoada, ou intencionalmente deformada. Mnemónica que gravita no caderno diário, nos seus vários volumes, que recebe as anotações meticulosas de quem tem medo do esquecimento. Uma memória descritiva, para a geografia do tempo não ser em vão.
Ou o caderno diário como representação do passado. Sem medo dele. O caderno que fala pelas falas que se perdem na bruma que condensa o tempo pretérito. Alguns, possuem o caderno diário para reinterpretar os acontecimentos que tiveram lugar, para reescreverem as palavras que foram ditas. Não honram o caderno diário. São farsantes que usam o caderno diário para redesenharem a história que julgam não ser digna deles, cinzelando-a a seu proveito. Desconhecem que eles é que desonram a história, quando mentem com todos os dentes e vertem por escrito a mitomania sem remédio. Está para saber se há biografias que recusam o leve odor a hagiografia e retratam alguém por defeito.
O caderno diário não tem de ser diário. É quando apetecer. Um formulário que abraça o olhar vivaz. Exercício contrafactual de todo o tempo que é escrutinado (faltando saber daquela parte que ficou de fora). Sem apagar nada. Sem transfigurar o que se passou, para a mácula não cair sobre o dorso dos escreventes. Um caderno diário que é a faina do tempo a propósito, ou quando aprouver, para a distante configuração do tempo. 
É um legado, para consumo próprio. Ou apenas um exercício heurístico, para derrotar o mundo que teima em ser obnóxio.

25.7.19

As montanhas foram feitas para trepar


Cocteau Twins, “Iceblink Luck”, in https://www.youtube.com/watch?v=L_Tj4bJ0VFw
Não adiantam os prantos se as contrariedades teimam em fazer parte do palco. As lágrimas não resolvem nada. Nem as contrariedades. Se têm algum fruto, as lágrimas, é o de se deitarem em cima de mais uma camada de angústia. São um fruto envenenado.
É por isso que as montanhas não podem ser olhadas como matéria preparada para um princípio geral de capitulação. São astutas, as montanhas: vistas ao longe, quando apenas se apresentam como uma imensa massa, não intimidam; quando a distância se supera e as montanhas estão mesmo ao pé, alcantiladas e pressentindo obstáculos, elas assustam. Há muita gente que desiste antes de tentar derrotar a montanha. 
(Esta formulação – “derrotar a montanha” – encerra um equívoco. Insinua-se que a montanha está contra quem a quer trepar, ou o contrário. A montanha pode ser um obstáculo quando separa o lugar onde se pretende aportar. Um obstáculo não é uma adversidade. A montanha é o caminho necessário para chegar ao lugar desejado. Ou, quando não é o caso, e a montanha é um objeto de ócio, cuidando de uma curiosidade de almas preenchidas pelo interesse, ela não é uma contrariedade. É matéria-prima que contribui para o contentamento do alpinista de circunstância.)
As montanhas foram feitas para trepar. São acidentes do terreno que obedecem ao sortilégio da trama do mundo. Por mais inclinadas que sejam, por mais árdua que seja a escalada, a montanha merce o respeito de ser ascendida. Ou de pelo menos se tentar. O próprio que empreende a ascensão não se respeita a si próprio se desistir à partida, ou se for seu o convencimento de que não será empreitada vitoriosa, a ascensão. O diálogo entre a pessoa e a montanha é uma questão não trivial. Pertence ao domínio da intimidade. Só o próprio sabe o que foi preciso tirar do corpo para subir ao marco geodésico que encima a montanha. É um esforço intransmissível. 
O marco geodésico emoldura a façanha. Os que desconfiam de si mesmos e os que arrastam os ossos pela mitomania têm de provar a proeza, fotografando-se para a posteridade na companhia do marco geodésico. Emulsionam-se, ao mesmo tempo, numa arcada do narcisismo. Ao fazê-lo, insultam a montanha que os acolheu com a sua paradoxal bondade exigente. A montanha não merece o despropósito. Não se admitem exageros, nem por defeito (a desistência da ascensão), nem por excesso (o vangloriar de quem ostenta a proeza como sinal de derrota da montanha). 
Um dia destes, pode acontecer que seja a montanha, sentindo-se ultrajada, a derrotar quem a quis derrotar.

24.7.19

A destoar do tédio


Mão Morta, “Barcelona”, in https://www.youtube.com/watch?v=I8DcH-uOJss
De repente, um medo azedava a boca. Dizias: “sossega. Não vou deixar entrar o mar.” Não estava em causa. A maresia era um conforto. Tirava as forças ao tédio que parecia pintar as paredes com um musgo ensurdecedor, um musgo que embaciava as estrofes por onde o olhar se compunha. Eu dizia: “só não quero que pintem o mar.”
As bandeiras arrematavam o céu. Parecia que só havia bandeiras, nada de céu. Uma ilusão que disfarçava o viés do olhar. Podia ser que fossem iguais, os lugares. Podia ser que às mesmas horas fosse feito tudo da mesma maneira. Ou que palavras mecanicamente entoadas fossem a resposta a circunstâncias escritas em roteiro. Não importava. À boca de cena, a vontade de erradicar o tédio era imperatriz. Havia sempre um lampejo de imaginação a fermentar nos interstícios da ação. O pensamento não dorme, nunca.
A povoar o imaginário, paisagens, excertos de poemas, uma cena marcante de uma peça de teatro, o rosto emoldurado nos contrafortes da memória, avivado a tinta-da-china, a simplicidade de um beijo na boca sedenta. Dois ou três fragmentos vívidos de uma conversa, o chamamento do porvir, a farta dança do tempo presente, uma coreografia irrecusável. Juntavam-se os vestígios do eu que não capitulava perante a fácil tentação do tédio. Era preciso destoar. Uma insubmissão afinal não tão exigente como se podia arbitrar. Não é preciso ser perito: assim como assim, as notas de música sucediam-se na exata medida da maior ou menor aprovação da música, e não era preciso saber nada de música para adestrar um juízo estético.
“Se ao menos voasse...”, atiraste, com o ar pensativo de quem parecia imersa num sonho distante. Desafiei-te a completar a frase. Ouvi o silêncio. Talvez fosse um desafio para mim; minha, a incumbência de completar a frase – como se fosse uma escrita a quatro mãos. Arrisquei: “...tirávamos, juntos, a fotografia do mundo e guardávamos no cofre, parte do nosso tesouro.” Vi lágrimas furtivas humedecendo umas linhas erráticas que se desprendiam dos olhos. Sequei-as com os meus dedos. Não havia nada de compulsivo na comoção, nem era dar parte de fraco. Reforcei a ideia: “despojamo-nos dos artefactos, recusamos as distrações que são insinuações dos capítulos que, afinal, não interessam, e partimos – partimos ao acaso, no avulso do tempo que nos vem às mãos, sem mapa. Como só nós sabemos.”
Sem sabermos dos ventos que sopravam, espreitávamos o rosto do dia que se deitava à medida que a primeira luz diurna tomava conta do dia. Era mais um dia (talvez fosse esse o anúncio do pequeno-almoço). Os dias nunca são iguais. Por mais que o pareçam. 

23.7.19

Desprazo de validade


Trent Reznor, Peter Murphy and TV on the Radio, “Dreams” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=bZYjHsbSQpY
Já que se fala tanto de distopias: e se as pessoas, dando cumprimento à tendência de verificação constante do paradeiro que é intermediada pelas maravilhas da alta tecnologia, passassem a trazer tatuado o prazo de validade? 
Teríamos os defensores da medida, rendidos às maravilhas dos avanços tecnológicos e preparados para abdicar dos seus direitos de personalidade (ou, em não dando conta do dano, apenas inebriados pelas maravilhas da tecnologia que avança velozmente). Avocariam a causa a seu favor, sendo os primeiros voluntários a tatuarem o prazo de validade na pele. Não se importariam de saber a data da morte. Confessariam ser um incentivo para viverem a vida desafogadamente, com a intensidade de quem sabe ser a existência sempre curta, mesmo quando alguém atinge idade avançada. Outros, readmitidos à paz interior depois de uma cura com os préstimos de um mal-ajambrado guru de “autoajuda”, dir-se-iam preparados para abandonar o mundo dos vivos, motivo pelo qual até agradeciam que fosse tatuado o prazo de validade em zona do corpo visível.
Do outro lado, os que se insubordinariam contra a intrusão nos direitos de personalidade. A seu favor, diriam que ninguém deve arcar o ónus de saber quando vai deixar de existir. Seria uma forma de aprisionar as pessoas, como se sobre todas elas pesasse uma sentença de morte com prazo definido – uma sentença de morte disfarçada de eufemismo, o “prazo de validade”, como acontece como o mais banal dos produtos consumíveis. Nem sequer devia ser dada autorização a uma autoridade central que, deitando mão a dados compulsados por um supercomputador, conhecia o prazo de validade de cada pessoa. As vidas sujeitas a este ónus passariam a ser angustiantes e as pessoas, no afã de apressarem a vida sabendo da aproximação do prazo de validade, teriam a tentação de asneirar com frequência. O habitual padrão de disparate já é suficiente.
Sobrava a terceira hipótese (a minha preferida, pois abomino distopias): num ataque meticulosamente preparado por uma brigada de guerrilha urbana, formada para rebater o uso indevido de alta tecnologia sempre que dele resultasse uma intrusão na esfera individual, a brigada conseguiria roubar a base de dados com os prazos de validade de todos os habitantes do mundo. Destrui-los-iam sem remorso e sem possibilidade de recuperação. Os governos do mundo deixariam de contar com os dados que informavam o prazo de validade de cada pessoa. 
Daí em diante, todos podiam contar com um desprazo de validade. E levar as suas vidas sem o estigma de um prazo de validade. 

22.7.19

Referendo (short stories #130)


Lena d’Água, “Hipocampo”, in https://www.youtube.com/watch?v=4i8IPDbJQAw
          O rumor. Avassalador. Estás por dentro dos teus atos e sabes que o rumor não tem linhagem. Mas o rumor espalha-se com a facilidade de um miasma. Quem acredita não quis saber do contraditório. Como o rumor era avassalador, passaram por cima do resto – das memórias, do conhecimento, de um módico de confiança – e selaram o teor do rumor com chancela fidedigna. Estás desorientado. Olham-te com desconfiança, evitam-te na rua e nos cafés, nos restaurantes já não és servido com deferência. À frente do corpo sentes habitar um terrível abismo para onde foste atirado com o selo soez da injustiça. Para piorar, estás emudecido. Podias ripostar. Defender a tua honra. Talvez a mudez tenha a ver com o teu compromisso com a ética da lei. Aprendeste que o acusado não tem de provar a inocência. É este imperativo com os princípios em que foste educado que te silencia. Contra ti mesmo. Devias saber que o sentimento comum fermenta numa teoria da facilidade: as pessoas preferem o que é fácil, que se sobrepõe à maior complexidade justaposta aos princípios. O rumor foi fulminante no apuramento do sentido que as pessoas atribuíram à sua verosimilhança. Não querem saber da verosimilhança do rumor. O rumor fala mais alto. É um ato compulsivo da decadência impante. De repente, regressas a Kafka (“O Processo”). Reivindicas o lugar da vítima do enredo. Por mais que puxes pela cabeça, não consegues entender o rumor e por que alguém o irradiou. No apogeu da desorientação, perguntas se não terias sido invadido pela desmemória e o ato de que vens acusado, e de que não tens memória, tenha acontecido. Interrompes a especulação a tempo. Não podes responder por exercícios especulativos que extravasam os sentidos. Dás como garantido que o ato de que consta o rumor não aconteceu. Agora queres defender a honra. Imaginas um referendo organizado por meios teus. Perguntarias, tão simplesmente, se acreditam na tua culpa ou na tua inocência. Paras a tempo. Os referendos não foram feitos para julgar ninguém. Nem tu precisas de julgamento. Deixas o rumor para os seus fautores e para quem lhe deu rédea longa. Eles é que são devedores de justificações. 

19.7.19

Seis da tarde


Jambinai, “In the Woods”, in https://www.youtube.com/watch?v=ErbdE5niMnE
Seis da tarde. Persigo a noite. Não sei se é mundana, ou se dela extraio um sal intenso que perfuma o peito. As pessoas seguem apressadas. Regressam a casa. Vão mais apressadas do que na inauguração do dia, quando faziam a viagem a caminho do trabalho. No penhor do entardecer, julgo ser a prova de que não deve haver ninguém que seja refém do trabalho, ou que viva para trabalhar – como é de bom tom dizê-lo, nesta sociedade mecanizada onde os fingimentos se disfarçam de fingimentos de si mesmos, numa cornucópia de mentiras que as pessoas contam, aos outros e a si mesmas (para começar).
Seis da tarde. Se fosse outono, depois da mudança da hora, não tinha de perseguir a noite: ela já tinha encontrado o seu ninho no fuso horário. As pálpebras cansadas pedem resguardo. Um casal enamorado refugia-se da chuva, entrando no bar do hotel. Um prestimoso taxista cobre-se de chuva para proteger a senhora idosa que chegou ao hotel. Um cão vadio abriga-se na extensa pala que dá acesso à entrada do hotel. O rapaz, que tem a tarefa de se desmultiplicar em cortesias quando alguém chega ao hotel, afaga o cão, discretamente. Há já muita gente sedenta do horário de verão. Consideram que o crepúsculo repentino esconde nas trevas a quintessência do mundo. Sem darem conta, são otimistas incorrigíveis.
Seis da tarde. Faz uma dúzia de horas que estou acordado. Não sei a que horas serei relíquia do sono. Às vezes, fico acordado até perder o sentido do tempo. Enfureço-me. Sei que voltarei a acordar daí a um punhado de horas, ao cabo de um sono insuficiente. O dia seguinte será um arrastar penoso do corpo, a semi-hibernação do pensamento (na melhor das hipóteses), o palco para sobressaltos fáceis. Aviso as pessoas, como certificação em minha defesa, que é um dia tingido pelo mau humor. É melhor para todos. Não sei, uma dúzia de horas depois da minha aurora para o dia nascente, o que fazer deste entardecer. Não sei do paradeiro da noite.
Seis da tarde. Ou é o relógio que está parado? Não pode ser: a modernidade não se compagina com relógios que funcionam a pilhas – isso era antigamente. São mesmo seis horas. Fico estático a olhar para o mostrador do relógio, onde o pequeno ponteiro dos segundos faz a sua marcha habitual. Fico à espera que sejam seis horas e um minuto. Para saber do sabor de um minuto suplementar que se acrescenta ao entardecer. Para ser testemunha do envelhecimento do entardecer, e não só do meu. Sinto-me prefácio do mundo, ou então uma anónima nota de rodapé perdida do meio do volumoso livro que condensa as vidas todas. 
Seis da tarde e já sinto que a noite me persegue.

18.7.19

“Não comprava um automóvel ao primeiro-ministro”


Jane’s Addiction, “Been Caught Stealing”, in https://www.youtube.com/watch?v=jrwjiO1MCVs
(Um texto que não é sobre este primeiro-ministro, mas podia ser; é sobre primeiros-ministros, em abstrato)
Dez razões para não confiar no estado do automóvel de que o primeiro-ministro fosse vendedor.
I
            O primeiro-ministro é um bem-falante. Concedo: para primeiro-ministro, é melhor que seja bem-falante, que domine o idioma e não tropece em erros de sintaxe e de ortografia. O povo só confia os seus destinos se estiver sossegado com os dons de retórica do timoneiro. No meu caso, por defeito de personalidade, desconfio de gente com prosápia abundante e verbo fácil. Fazem-me lembrar os vendedores de feira, que também se distinguem pela retórica gongórica e pela má qualidade do produto negociado.
II
        O primeiro-ministro é recaidiço na contradição. Proclama uma coisa e o seu contrário, com a sorte de a imprensa amestrada não o confrontar com o contraditório do que diz e depois desmente ao dizer o seu contrário. Quem é prisioneiro de tantas contradições não é credor de confiança. O automóvel deve vir com defeito (porque ele abonaria o seu impecável estado).
III
            O primeiro-ministro é um diplomata incansável. Serve-se das artimanhas dos diplomatas para chamar a si o epílogo de negociações árduas, dando como seus os créditos que sobram no termo das negociações. Consegue ludibriar um numeroso exército, que o considera “negociador exímio”. Eu não negociava a compra de um carro com um “negociador exímio” (pelo menos, com um que assim se fizesse passar). Tenho a impressão de que o negócio seria proveitoso para o “negociador exímio”, apenas.
IV
            O primeiro-ministro irrita-se com quem se lhe opõe. Detesta ser confrontado com outras ideias. Não disfarça o incómodo quando é acossado. Reage com táticas de guerrilha urbana, desqualificando os oponentes com ataques ad hominem. Tinha receio de comprar um automóvel ao primeiro-ministro, pois se o veículo trouxesse defeitos não revelados o vendedor atacar-me-ia impiedosamente.
V
            O primeiro-ministro ufana-se de o ser – e revê-se como político acima da média, inderrotável. Não comprava um automóvel a um vendedor jactante. Tanta vaidade seria o mote para uma nota de desconfiança sobre a mercadoria transacionada, decerto apresentada como inigualável para a quilometragem e uso.
VI
            O primeiro-ministro é adepto do espetáculo fácil, popularucho. O defeito pode ser meu, mas estou nos antípodas desta estética. Desconfio que o automóvel vendido pelo primeiro-ministro vinha carregado de utensílios kitsch
VII
            O primeiro-ministro não esconde a propensão para a trapaça, até com os seus correligionários. Subiu na vida a pulso (o que não é mácula), mas por vezes teve de atropelar alguém pelo caminho. Não comprava o automóvel de alguém com estes pergaminhos. Ninguém garantia que o primeiro-ministro ocultasse um acidente de viação que possivelmente teria deformado o chassis.
VIII
            O primeiro-ministro tem memória curta – até no esquecimento de correligionários seus e de quem foi o seu patrono. Como se pode comprar um automóvel a alguém que fraqueja na memória, se a memória é imprescindível para reportar um registo recomendável da mercadoria?
IX
            O primeiro-ministro tem ar de malabarista. Consegue equilíbrios que, os por si enfeitiçados, consideram impossíveis – o que ajuda a construir a fama de “negociador exímio”. Um malabarista consegue convencer gente variada com interesses divergentes. Não se compromete com nenhum dos lados da barricada, conseguindo passar intacto entre os pingos da chuva. Como comprador do automóvel do primeiro-ministro, não teria como saber se o enredo era factual, ou apenas um ardil para me açambarcar como comprador.
X
            O primeiro-ministro veste mal. Admito, esta é uma incompatibilidade estética, destituída de racionalidade. Mas é argumento ponderoso: não considerava a hipótese de comprar o automóvel do primeiro-ministro, porque os seus padrões estéticos levá-lo-iam a ser vendedor de um automóvel de que eu não seria comprador. Uma impossibilidade matemática, portanto.

17.7.19

Pneu sobressalente (short stories #129)


Einstürzende Neubauten, “Stella Maris” (Soulwax Remix), in https://www.youtube.com/watch?v=74bT4wVqyXs
          Diz-se das joias que são coisas raras. É a sua raridade que as distingue, que as torna inacessíveis. Os mercados conferem-lhe valor a preceito. Não se diz que os pneus sobressalentes obedecem à mesma lógica. O adjetivo é mortífero (para as possíveis ambições de grandeza valorativa do pneu sobressalente). Qualquer coisa a que se atribui o papel de substituto tem, à partida, a mácula da desvalorização. E, todavia, está errado o juízo de desvalor. Ao pneu sobressalente não se atribui importância enquanto permanece armazenado no sossego da bagageira. Os outros quatro pneus cumprem a função. Ninguém se lembra do pneu sobressalente. O oblívio mandata o desvalor do pneu sobressalente. Até que um contratempo irrompe e, por anomalia num dos quatro pneus rolantes, é preciso deitar mão do pneu sobressalente. Suponha-se que antes o pneu sobressalente foi preciso e a condição preguiçosa impediu que fosse reposto em seu lugar. Não é difícil pressagiar o raciocínio estulto: ao recorrer ao pneu sobressalente, à personagem não ocorreu reparar o pneu destroçado, ou substituir o pneu sobressalente. Não terá configurado o devido valor do pneu sobressalente, nem quando dele precisou para o veículo continuar locomovível. À segunda, o contratempo foi doloroso. Por ausência do pneu sobressalente, o veículo ficou imobilizado. Só então a personagem terá atribuído valor ao pneu sobressalente. Por causa da sua ausência. Num golpe do acaso, um objeto irrelevante, e só irrelevante porque atua como sucedâneo, torna-se mais valioso do que uma joia preciosa. Se a personagem visse interrompida a viagem e a algo de muito importante não pudesse acorrer, os cálculos mentais não só desfraldariam a inútil bandeira do arrependimento, como adestrariam a conclusão de que um pneu sobressalente não tem preço estimado. Sobretudo quando é preciso usá-lo. É como acontece com todas as coisas a que se atribui valor. A sua impossibilidade faz crescer, e exponencialmente, o seu valor. (Há quem diga, com maior carga negativa, que é quando estão em falta que as coisas ganham o seu valor justo.)

16.7.19

Vinil (ou: sobre a inutilidade do revivalismo)


Sean Riley & the Slowriders, “Intro: Flying Back”, in https://www.youtube.com/watch?v=LC29_fq05yY
A música é fermento recorrente de revivalismos. Às vezes, uma banda que se julgava extinta reúne-se para um punhado de concertos. Outras vezes, a banda de antanho nunca deixou de existir, mas deixou de comparecer em palco com a frequência de outrora e a veia criativa deixou de singrar ao ponto de não ser conhecida música nova há umas décadas. 
Quando uma banda dos outros tempos anuncia o regresso ao palco, agiganta-se uma onda de revivalismo. Os nostálgicos marcam presença, numa fidelidade acrítica. Quando uma banda dos outros tempos é convocada para um festival de música, coexistindo no cartaz com outras bandas contemporâneas, nota-se um interessante fenómeno. No recinto, coabita um público de diferentes gerações. Os mais novos estão atualizados com a música moderna, mas talvez não estejam ao corrente do catálogo da banda dos outros tempos. Os mais velhos dizem presente pelas exigências de fidelidade (e pelo apelo de nostalgia) à banda dos outros tempos. Em regra, estes públicos dividem-se, sem se tratar de um espartilho hermético, com os mais velhos no palco onde atua a banda dos outros tempos e os mais novos ausentes, à espera de um músico que seja destes tempos (ou a assistir a um concerto noutro palco). 
Os mais velhos limpam a poeira acumulada nas memórias e conservam-se conhecedores íntegros do repertório da banda dos outros tempos. Recuperam indumentária a preceito, que, entretanto, deixaram de usar porque os imperativos da responsabilidade, e um certo sentido de madurez, não quadram com a irreverência de outrora. É a ocasião para recuar no tempo, como se fosse possível trazê-lo de volta pela mão da música que ouviam na juventude e que agora retomam (música e a reminiscência da juventude) graças aos favores da banda dos outros tempos. Voltam atrás no tempo, público e banda. Uma música ressoa a uma recordação, outra música convoca uma outra lembrança e, por conjunto, é como se conseguissem mandar o relógio para as trevas onde estão registadas as memórias. Como se revivessem esse tempo, graças à música contemporânea desse tempo.
Na minha cinquentenária condição, não me revejo no acrisolado estertor dos meus contemporâneos (ou por volta disso, alguns uns passos para trás, e outros uns passos para a frente). Recuso-me a admitir que o tempo parou na exata medida da falta de atualização de conhecimentos sobre o que vai sendo publicado no mercado musical. Prefiro, mil vezes, ouvir música que se produz agora e ver concertos de bandas destes tempos. Não recuso um concerto de uma banda dos outros tempos, se tiver boas razões para considerar que o concerto não vai ser um fiasco. 
(Já tive más experiências no registo de bandas dos outros tempos que regressam do mutismo. Não é por essa razão que recuso o revivalismo, pois a deceção não teve outros efeitos se não os próprios de uma deceção; os efeitos secundários podem ser dolorosos para os intensamente nostálgicos, a menos que a sede de revivalismo seja tanta que, por ela turvados, nem dão conta da mediocridade da performance e de como os artistas arrastam em palco a sua decadência.)
Mete-me impressão (má impressão) que haja quem intua o resgate do tempo, mercê das memórias recuperadas no regaço da música que voltam a ouvir e ver em palco. O tempo avança. Não fica enquistado (entre outros aspetos) na música que perdeu foros de atualização. 
Paradoxalmente, noto nesta pulsão nostálgica de cinquentenários (ou aproximados, por defeito ou excesso) uma certa ironia imberbe.

15.7.19

Fiadeiro


Madness, “Baggy Trousers”, in https://www.youtube.com/watch?v=Dc3AovUZgvo
Evocação: as mulheres tomavam nos antebraços as fiadas de lã e, com a paciência dos artesãos, fiavam o têxtil em novelos. Era um gesto mecânico e veloz. O desembaraço com que as artesãs fiavam os novelos era admirável. O que mais despertava a atenção era a sua paciência. Estavam horas sentadas a repetirem à exaustão o mesmo movimento, fiada atrás de fiada, novelo após novelo. Não exibiam o menor esgar de extenuação.
Diagnóstico: dessa altura guardo a impressão que não servia para tarefas monótonas. Os mais velhos advertiam-me, quando formalizei o juízo analítico, que era cedo para fazer juízos antes do tempo, que as circunstâncias podiam jogar-se a favor de meter as mãos a uma tarefa repetitiva. Aprendi que a precipitação não é boa conselheira na avaliação das capacidades próprias. É meio caminho andado para ficar sitiado por uma sobre-representação de si mesmo. Mal que acomete numerosa gente, dos que não se intimidam com o papel aumentado de si mesmos, que apenas acontece no teatro íntimo em que medram.
Promessa: não voltaria a cair no disparate dos imperativos categóricos, muito menos quando eles estavam aprazados no tempo vindouro. 
Lição: a imagem das fiadeiras, outra vez a povoar a memória. As pernas inchadas, as mulheres todas anafadas, as pernas mostrando varizes, os antebraços marcados pela pressão das fiadas depostas nos antebraços. Impassíveis, as artesãs não suspendiam a função. (Talvez seja apenas a representação que interiorizei depois de meia hora de visita à fábrica. Uma extrapolação, apenas.) Aprendi que a paciência é um trunfo. Derrota os contratempos que cavalgam na vontade da rendição. Era do foro da disciplina mental.
Projeção: nunca tive de fazer as vezes de fiadeiro. 
(Pausa para refletir.)
Retificação: por frequentes vezes, fui fiadeiro. Do meu próprio caminho. Meticulosamente dobrando os cabos que se desenhavam em horizontes. Terçando a paciência metódica para acrescentar todas as peças necessárias para o puzzleficar completo. Desembraçando os nós que ameaçavam travar o passo. A paciência é que o estugava, mal fossem desembaraçados os nós. 
Conversão: no vocabulário, a palavra perseverança não foi inventada em vão.

12.7.19

O risco do risco


Andrew Bird, “Manifest”, in https://www.youtube.com/watch?v=mcPDgWMkEiM
- O que pensas do risco?
- Não o tomo como medicina.
- Nunca foste seduzido pelo risco?
- Uma ou outra vez, em casos limite, ou quando não estava na posse de todas as minhas faculdades. Não deve ter sido importante. Mal me lembro.
- Eu só lamento que seja tão arriscado cair no risco.
- É um jogo. Podes descontar o risco quando sentes a pulsão de nele cair. Depende das prioridades e da hierarquia de valores.
- É um punhal afiado que ameaça ir fundo à carne. O sangue vertido não volta para as veias.
- Nesse caso, convém fazeres os cálculos com precisão. Receias as dores pungentes que podem resultar de um risco mal calculado. Na tua hierarquia, a segurança e a certeza sobrepõem-se ao risco.
- Não tenho a certeza. Há dias em que acordo com uma terrível vontade da irreverência. Uma vontade de desmontar tudo, desde os alicerces. Depois, acalmo. Termino o dia e faço um saldo modesto. O dia termina como começou. O risco foi omitido.
- E sentes arrependimento?
- É uma sensação estranha. Sinto algum desagrado a tomar conta de mim, só pode ser por ter sido timorato e não ter caucionado o risco. Ao mesmo tempo, sinto a incógnita a pesar sobre o palco onde se sopesam as hipóteses.
- Porventura calculas mal o que é o risco. Serás muito exigente contigo mesmo. A insatisfação com o presente pode não representar um malogro do que és, do que andaste para aqui chegar. Tens de interpretar todas as variáveis. 
- Não tenho particular orgulho do que me possa ser atribuído como proeza. Deixo isso para o exterior de mim. Tudo o que deixei para trás é um inerte, só conta como história. Não garante nada no tempo presente.
- Como compulsas isso com o risco?
- A convocatória para a mudança – pequena ou grande, não importa – exige algum risco. Não sabemos dos humores do futuro. Aos que são hostis ao risco, convém não perturbar o estado atual das coisas. O risco é retirado da equação.
- Não necessariamente: podes mudar sem tocar no rosto do risco. O mais difícil é aceitar uma mudança que interiorize a modéstia. O problema é que estamos formatados para a mudança significar sempre ousadia. 
- Admitias essa possibilidade?
- Não fui eu que tergiversei perante o risco do risco. Não fui eu que admiti o descontentamento com o estado atual das coisas. 
- O problema do risco não se coloca?
- Coloca-se a todos. Podemos ser arrastados para o dilema do risco sem ser através de uma mudança de vida. Essa é uma análise monotemática. O risco tem muitos gradientes. Serve-se em palcos diferentes. É sujeita-se ao ângulo da subjetividade: pessoas diferentes têm diferentes grelhas para medir o risco e em que medida ele comporta um risco que transpõe a fronteira do aceitável.
- Estás a desvalorizar o risco.
- O simples ato de viver é um risco. O que faz com que o risco seja mundano. 

11.7.19

E terminas o texto com o título do texto



Björk, “Crystalline” (Omar Souleyman Remix), in https://www.youtube.com/watch?v=ypfOCg4oqbc
A conversa estava difícil. Convencionou-se que tinha de haver conversa, mas estava um cabo dos trabalhos arranjar um assunto. Alguém tinha de dar o mote. Uma mudez intranquila açambarcava as palavras, tingindo os ecos do silêncio.
Mas alguém tinha de dar o mote. Podia ser sobre a canícula que, até que enfim (para os adoradores de temperaturas exóticas), se fazia anunciar. Podia ser sobre um tema qualquer da atualidade – mas ninguém estava ao corrente da atualidade ou, se estava, não garantiu que os temas da atualidade, lidos nos jornais diários, eram credores de comentário. Podia ser sobre uma dúvida existencial – mas estava muito calor para torturar o pensamento com pensamentos exacerbados e ontológicos. Podia ser sobre a moda, ou o desporto, ou um escândalo que sobressalta os meios sociais, ou a corrupção, ou as manobras que se congeminam em antevéspera larga de campanha eleitoral, ou um filme. Nada disto era atrativo. E a conversa continuava postergada, todos ali juntos e reféns de um silêncio aflitivo.
Se o silêncio era um constrangimento, por que motivo um deles não inaugurava a conversa? Não seria por temerem que a conversa podia ser enfadonha, nem por não se conhecerem de lado algum. A páginas tantas, o silêncio era tão punitivo que a conversa, por mais opressiva que fosse, seria o mal menor. A conversa continuava em procrastinação porque nenhum deles sabia do mote. Disfarçavam o embaraço: um, projetando o olhar para o horizonte, como se o olhar estivesse propositadamente perdido na vastidão onde se encerra o horizonte; outro, refugiava-se no telemóvel, um refúgio larvar de quem se enfeuda num ecrã afinal vazio de conteúdo; outro, batia o pé ritmadamente e rodava os dedos polegares que se entrecortavam; outro, sentado, enfiava a cabeça entre os joelhos, sem se saber se fora por uma noite mal dormida ou por não ter posição para fingir o embaraço do silêncio persistente; e outro estava junto da janela a apreciar o movimento da rua apressada.
Na sala de espera, o silêncio foi derrotado. A funcionária de turno irrompeu pela sala, com a imponência do seu farto porte, e acendeu a televisão. Não perguntou se queriam ver televisão. Os outros ficaram a salvo. Já nenhum tinha de dar o mote para a conversa. Podiam deixar o título do texto para o seu final. O texto, que se esgotava no seu título – na exata medida do silêncio imperador.

10.7.19

Match-point (short stories #128)


Propellerheads ft. Miss Shirley Bassey, “History Repeating”, in https://www.youtube.com/watch?v=yzLT6_TQmq8
          O que podiam contar os moinhos dispostos na paisagem? Não seria preciso chegar aos embaraços que travam a voz gutural do vento. Os moinhos recebem em suas pás o muito vento antecedente que vem carregado de vidas. As vidas de todas as pessoas que se expõem ao vento. E o vento, agente que testemunha as vidas tão díspares, transfigura-se em repositório de todas as vulnerabilidades, das angústias, das alegrias emolduradas, das promessas, dos fracassos, das incompreensões, dos feitos para os quais não há orgulho como medida capaz. O vento que os moinhos recebem é um pouco de tudo isso, uma constelação raiada com as cores todas do arco-íris como se da variegada textura das pessoas se tratasse. Os moinhos comungam-na com o vento. As pás vogam furiosamente quando um vento destemperado vem dominado por estados de alma iracundos, merecidamente iracundos, talvez produto de injustiças injustificadas. (Como são todas as justiças, já o sabiam os moinhos.) Outras vezes, os moinhos parecem o chão aveludado de um mar precoce, o pressentimento de um sossego que merecia ser semente perene. Na maior parte das vezes, não é clara a definição dos ventos. Não havia uma manga de vento que apurasse o quadrante de onde se acende o vento; se houvesse, na maior parte das vezes seria uma manga de vento evasiva, sem se perceber o vento dominante. É nessas alturas que o empate persistente é apalavrado. Inseguros, os moinhos decaem numa hesitação que os consome. (E, afinal, que não se consome no altar das hesitações?) Ficam reféns dos empates em que se agiganta a variedade que é o néctar sublime da humanidade. Os moinhos acabavam por não se importar de estarem sitiados por ventos erráticos. Consideravam a dissemelhança um bálsamo ímpar. Quando era preciso desempatar, os moinhos tomavam o match-pointnas mãos. Decidiam. Sem apelo. Os vultos conservadores sempre justificaram a “ordem natural das coisas”. (O que isso seja, na sua vaga definição.) Se soubessem dos moinhos e de como decidem os match-points, ninguém os calava.

9.7.19

Os lamentos que tinham estrada atapetada


The Chemical Brothers, “Believe”, in https://www.youtube.com/watch?v=7f2wg1pqQDs
Fugia das sombras. Tinha medo que atrás das sombras viesse um vulto que se apoderasse dele, tomando em suas mãos a vontade dele retirada. Não queria que o vulto se transfigurasse na sua pessoa, passando a ser uma marioneta do seu próprio fingimento, incapaz de dosear a sua vontade. Os sobressaltos subiam a cena e temia que depois nem os lamentos tivessem fala própria.
Era evasivo. Não se comprometia com ideias. Dele não se sabia a adesão a uma causa, nem daquelas que, por serem tão politicamente corretas, recolhem apoio massivo. Ninguém sabia em que partido votava. Não se pronunciava sobre uma peça de teatro, ou um filme, ou um disco, ou um livro. Até os amigos sabiam que não podiam contar com ele. Parecia ter alergia à tomada de posições que o comprometessem. 
Um dia, anuiu na explicação para a inata precaução, o silêncio que era o critério para não ser apanhado em falso. Dizia que não queria, mais tarde, como consequência de uma tomada de posição, ser apanhado no lado errado da maré. E, ato contínuo, que sentisse a necessidade de expirar o arrependimento em forma de lamento. Não acreditava no poder heurístico do lamento. Prantos assim não resolviam nada, a não ser mostrar a tremenda fragilidade em que mergulhava quem levava o lamento a cena. O que o incomodava não era a fragilidade exposta aos olhos de toda a gente. A fragilidade não é motivo de vergonha. Se existe, tem de ser representada. O que o importunava era o lamento que pode convocar a comiseração dos demais, como se a piedade fizesse voltar o tempo atrás e apagasse do palco, onde desfilam os sucessivos atos, o ato que depois motivara o lamento. Não concebia a hipótese de coçar os olhos chorosos com um lamento, por causa da humilhação a que se expunha.
Alguém contrapôs que um lamento pode não traduzir a convocatória pela comiseração dos outros. Pode ser apenas um ato interior, uma contrição que se esgota, no seu efeito útil, na esfera de quem a exerce. Ele estava equivocado em considerar que um lamento era a expiação que fazia subir o ato errado ao planalto do esquecimento. O lamento – disseram-lhe, pedagogicamente – pode ser só um exercício interior, que ninguém precisa de testemunhar. Com estes predicados, o lamento deixava de lado os óbices que ele trouxera como explicação.
Aparentemente convencido que o lamento não era uma doença que desnudava quem o proferia, continuou evasivo, não se comprometendo com ideias, não aderindo a causas, não confessando em que partido votava, não se pronunciando sobre uma peça de teatro, ou um filme, ou um disco, ou um livro, não se comprometendo nem com amigos quando estes dele precisavam. Continuava a ter alergia à tomada de posições. Não seria por ter medo de se expor a um lamento. Nunca se soube por que insistia em ser um membro esterilizado da sociedade. Talvez não tivesse posição sobre assunto nenhum. Ou não soubesse tê-la. 
(O que é preferível a tomar partido sem saber porquê.)

8.7.19

Teoria do apocalipse permanente (ou: teoria permanente do apocalipse)


Nils Frahm, “My Friend the Forest”, in https://www.youtube.com/watch?v=d99p-SPn5Tc
(Mote: Mão Morta e Inês Jacques, “No Fim Era o Frio”, Teatro Aveirense, 29.06.19)
Será mais confortável imaginar cenários distópicos, o pressentimento do apocalipse com prazo de validade no horizonte, do que insistir na ladainha que é a vida, que para uma multidão não passa de vidinha?
O descontentamento com a humanidade no seu estado contemporâneo, e a ideia de que os vícios são fundos e incorrigíveis, fornece o substrato para o presságio do apocalipse. Há toda uma arte que parte da premissa do falhanço da atualidade (na sua transfiguração de modernidade) e que, assente na descrença do potencial de mudança necessário para corrigir este estado de coisas, alinhava os rudimentos de um mundo hediondo, um mundo que se encaminha para a extinção. Não são confortáveis as distopias assim narradas. Elas alimentam-se da intensa propensão para a autofagia. Ao mesmo tempo, funcionam como um choque térmico. Servem para apoquentar as consciências – as que ainda não estão apoquentadas e as que, já estando, se sobressaltam mais uma vez no pressentimento do que poderá vir a ser o último dia do mundo e o processo trágico que nos conduzirá a essa fatalidade.
A distopia tem conotação com o frio. Do frio que penetra até à medula, ao ponto de anestesiar as pessoas refugiadas num último reduto à espera do dia derradeiro. O frio insensibiliza-as para as coisas terríveis que destroem o mundo metro a metro, inexoravelmente. Configurando as dores excruciantes que seriam sentidas caso não houvesse o frio como anestesiante, até o amor se joga num jogo de contrários com o pressentimento do fim do mundo. Do amor ausente, desconfigurado, do amor extraído ao catálogo de emoções e do vocabulário. Como pode uma distopia condensar o cenário funesto com a prodigalidade do amor? Só se for para dar ênfase ao palco onde ambos se jogam, contraditórios: os ventos, que sussurram o apocalipse que não demora, não deixam espaço para o amor. A extinção do amor é um ingrediente do pressentimento do apocalipse.
Interiorizo o enredo medonho, agravado por uma narrativa que se serve de recursos estilísticos que exageram a distopia – os detalhes macabros, a orgia de violência, assim consagrada como sinal do fim dos tempos, a morte vista do exterior do sujeito num aparatoso cenário que se embebe nas golfadas de sangue que jorram do corpo mutilado por uma criatura extraterrestre e que termina com a decapitação do sujeito, e a sua confissão, ainda incrédulo, de ter a impressão de ter morrido. 
Tinha quase a certeza de que ia ter pesadelos densos durante a noite.
Afinal, os pesadelos desviaram a rota. A teoria permanente do apocalipse pode ser uma manifestação de esperança que um cético lavra para memória futura. Será mnemónica não acidental ao cuidado de mandantes e de poderosos, os que podem evitar que se acentuem as terríveis imperfeições que nos conduzem para um abismo sem retrocesso. É, nesta medida, um paradoxal pulsar de esperança. Se a distopia encenada servir como aviso que caia fundo nas consciências de mandantes e de poderosos e, ato contínuo, eles se lembrem que ainda vão a tempo de salvar o mundo. O nosso mundo, que é também o mundo deles.

5.7.19

Fundação da Esperança


Idles, Colossus (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=35NtjSFsMnI
Não sabia se era pueril invocar uma centelha que se despenha vertiginosamente sobre o porvir. Foi com esse ânimo que fundou a Fundação da Esperança. Uma pulsão incontida no peito que apetecia lavrar em ata, deixando para as gerações presentes um testemunho de regozijo pelo futuro que espreita no ocaso do dia presente.
Epicurista, talvez. Sabia que a tela onde desfila o presente, com âncora já dardejada para o futuro (que começa logo amanhã – convém não esquecer), era o esteio para o ceticismo militante de muitos. Com este pano de fundo, havia lugar a uma Fundação da Esperança? A pergunta não deixou de ecoar repetidas vezes antes de decidir avançar com a Fundação. A interrogação era, afinal, o substrato primeiro da Fundação da Esperança. Ele também dava o flanco e amiúde situava-se na trincheira dos céticos. O mundo é como é. Às vezes, estar na trincheira dos céticos não é uma capitulação. Nem contraditório com o espírito da Fundação da Esperança. Se estivesse sempre derrotado perante as circunstâncias do mau mundo, é que seria capitular. Se não tivesse encontrado forças para ser o fundador da Fundação da Esperança, é que seria desacreditar nos amanhãs que vêm a seguir. De outro modo, os amanhãs já estão feitos na macilenta cor do presente.
Ou então, seria apenas ingénuo. Ajoelhado perante todas as ignomínias de que o mundo é pródigo, com a estreiteza dos corredores mentais por onde segue a desmemória e a ocultação da História, a infâmia disfarçada de messianismo, a boçalidade reinante, a desconfiança como refúgio contra tudo isto que vem no dorso do mundo, a mitomania compulsiva que desacerta a bússola – deposto perante este rosto taciturno do mundo, faria sentido a Fundação da Esperança? Considerou que o retrato do presente era o móbil para a Fundação da Esperança. Não podemos fugir do tempo presente. Mas podemos contagiar o tempo vindouro com uma sementeira de esperança, para ultrapassar os contratempos que medram em todos os hoje que ateiam a fogueira onde apetece muita coisa incensar. Era o antónimo de ingenuidade. Um golpe de asa sobre as arcadas onde o tempo futuro está à espera.
A Fundação da Esperança não seria um lugar para todos. Não haveria lugar para os céticos que não encontram em si um módico de esperança.  Nem para os otimistas incorrigíveis, os perenemente bem-dispostos, com aquela alegria tão contagiante que soa a disfarce, ou a esconderijo de si mesmos. A esperança que os amanhãs funcionem no verso da diferença, e que esse seja um verso escrupuloso com a vertigem da mudança que mereça a diferença, não tolera uma embriaguez de esperança. Os perenemente embriagados de esperança perdem a medida das coisas. São os apóstolos de uma distopia. 

4.7.19

Jogos de azar (estes são)


Egyptian Blue, “Collateral”, in https://www.youtube.com/watch?v=wvav-OeEhJU
Onze horas e cinquenta e nove minutos. Tomado pelo sortilégio dos números, e sempre pronto a encontrar um significado oculto numa combinação de algarismos, concluiu, sem hesitação: “não é hora ideal para jogar”. E antes que as dores do azar requeressem uma morfina qualquer (normalmente, o ensimesmar que protelava o arrependimento), pôs-se a fazer cálculos complexos, no âmbito da sua privativa cabalística, para determinar a hora certa.
“Pelas minhas contas, às treze horas e sete minutos é a altura certa.” Saiu de casa, não fosse dar-se o caso de um trânsito inesperado barrar o caminho e não pudesse estar a horas no casino. Correu tudo bem. Até à porta da entrada do casino. Saiu cabisbaixo e com a conta bancária aliviada de umas centenas de euros. Estava cabisbaixo não pelo dinheiro perdido. Essa é a genética dos jogos de azar. Estava cabisbaixo, porque tinha quase a certeza de que os cálculos estavam certos (talvez um paradoxal oximoro, portanto). Naquele emaranhado que era a combinação de equações e significações enigmáticas para os algarismos, e com o seu domínio da matemática, como podia o jogo correr mal? Afinal, as equações e as significações não eram à prova de bala. “Nem podiam ser” – sussurrar-lhe-ia, num canto recôndito do seu eu, um alter ego, não fosse acontecer ele ser tão possessivo de si mesmo que não deixava espaço para as dores de consciência. Isso, e a teimosia numa matemática quase astrológica, ou onírica, explicava como esbanjara tanto dinheiro desde que se deitou aos jogos de azar. “Nem podiam ser”, insistia a suposta voz interior a fazer as vezes de incómoda consciência, “se não, ou os jogos de azar já tinham desaparecido, ou mais gente tinha feito fortuna à custa dos casinos.”
Interiorizou a expressão “jogos de azar”. Pela primeira vez. Como é que nunca olhou com atenção para a conjugação de palavras que compõe esta expressão? “Jogos de azar”. E disse-o, numa voz interior que se repetia à exaustão, até a expressão e as palavras integrantes começaram a perder sentido. “Como se pode chamar jogos de azar a jogos que dão fortunas a quem é afortunado? São jogos de sorte, essa é que é essa!”, numa exclamação que soava à necessidade de legitimar a pulsão pelo jogo. 
A caminho de casa, já só fazia contas de cabeça aos cálculos alimentados pelas equações de que fora arquiteto, assim como à grelha de análise que inventara para fazer corresponder significações aos algarismos. “Tem de haver um buraco negro no sistema”, insistiu na legitimação interior. E, em vez de perceber o significado da expressão “jogos de azar”, continuou a porfiar na sua quimera particular, julgando aperfeiçoar, de cada vez que saía vencido do casino, a miríade de equações que não era o segredo para a fortuna. 
Os jogos de azar eram mesmo de azar. E à prova de qualquer ensaio cabalístico.

3.7.19

Tenho uma janela nas mãos (short stories #127)


Xinobi, “Piano Lessons”, in https://www.youtube.com/watch?v=BCJ09PRg4-0
          Não digo que não sei das quimeras. Amanhece; tu e eu amanhecemos e damos a conhecer a manhã inteira. E eu sei que sou outro dia, como a luz ainda pálida da manhã, a luz promissora. Contenho nas mãos um mundo. Toco as mãos, como se em meu tato soubesse ler todas as paisagens retidas na cortina da memória. Elas passam, céleres. Atropelam-se em breves fragmentos que são parte de um também breve filme que desfila no palco da memória. E, todavia, não queremos ser reféns das memórias. Não queremos ficar contentes com o mundo que se entretece nos poros das nossas mãos, nem nos queremos saciar nas porções de paisagens que compõem a tela que se perfila no horizonte. Preferimos olhar para as mãos como a janela insaciável. A janela que porfia no alpendre onde há mais mundo, muito mais mundo, por cursar. São essas as quimeras que prosperam dentro do peito incontido. Um fósforo à espera de ser ateado. E a mão que o empunha, não embaciada pelo desejo irrefreável, congemina o fio condutor que arruma a chama na extremidade inflamável do fósforo. Tudo faz então sentido. É como se uma janela se desembrulhasse das mãos fechadas em concha e através dessa janela os olhos se banqueteassem nas paisagens avulsas, nas cidades que são o tempero da nossa madurez, dos caldos de cultura em que nos banhamos. Tenho uma janela nas mãos e não a quero escondida. E um repto insaciável que se sobrepõe aos contratempos, um móbil que é um poema andante, os lugares por nos onde apetece viandar, os lugares que se afidalgam à nossa passagem. Da janela entreaberta, já emancipada das mãos, ouvimos uma voz que murmura as estrofes que damos de memória ao álbum que reúne as fotografias que o tempo não desgasta. Talvez sejamos nómadas, o que não é ambição sem quartel. Da janela que se desembaraça das mãos, o mundo povoado por nós. E nós, seus lídimos embaixadores, trazendo mais fragmentos do mundo que são devolvidos às mãos, para enfim nos deitarmos com o peito cheio de tudo o que somos na maré-cheia do que a nós trouxemos. 

2.7.19

Escolha múltipla


Fat White Family, “Tastes Good With the Money”, in https://www.youtube.com/watch?v=VLTWNfyMS5Y
A rua tem fim estreito. Afunila, nessa altura. Dir-se-ia que não quer desistir de ser rua, apesar de os eruditos lhe dizerem que todas as ruas têm um fim, ou porque são meros afluentes de avenidas, ou porque entroncam noutras e com elas constituem encruzilhadas que os transeuntes têm de decifrar. A rua teimosa e ufana de sua condição não acreditava nestas sensatas palavras. Talvez quisesse ser avenida, ela mesma. Afinal, trazia consigo o nome de um emérito patriota que, em seu tempo, foi herói consabido. A rua tinha melhor patrono do que muitas avenidas, que não foram batizadas com nomes de gente tão importante na história coletiva, ou apenas carregam no dorso nomes que ressoam a valores hoje um pouco gastos. 
(Pelo menos se estiver certo o discurso do presidente russo, há dias, que garantiu ser o liberalismo um anacronismo.)
No fim estreito, a rua não desaguava numa avenida. E ela sentia-se confortável por não ser mero afluente de uma avenida porventura batizada com o nome de uma personalidade menos personalidade do que o nome do patriota que trazia a tiracolo, ou com o nome de um valor gasto com o tempo (liberdade, porventura). Era um braço de uma constelação de ruas, paralelas umas às outras. Não havia ali estatuto que diferenciasse as ruas que faziam parte desta rede. E os nomes das ruas em redor não se distinguiam pelos feitos que eram atribuídos às pessoas que eram suas tutoras, em comparação com a rua em apreço. Era uma rua que atribuía muita importância aos pergaminhos. Tinha a mania das grandezas.
Esta rua, como as outras que constituíam a miríade em rede, era transversalmente cortada por uma avenida. Por isso, a avenida chamava-se transversal, o que não era de grande garbo para a identidade da avenida que teve a incumbência de seccionar todas aquelas ruas em duas partes. A rua em si não se incomodava com esta barcelonização: não era por estar seccionada em duas partes por uma avenida que desenhava a cidade que lhe retirava identidade. O que a desassossegava era saber-se penhora de uma encruzilhada quando o seu término tinha lugar. O diagnóstico era um equívoco, contudo. No seu final, a rua dava origem a duas outras, como se estas fossem as filhas dadas em herança. Mas a rua, alarmada com os estipêndios das medalhas norankingdas ruas da cidade, passava ao lado desta que seria a questão relevante. Passava ao lado da sua têmpera, contudo escondida.
A rua tinha insónias só de saber como podiam os forasteiros, e os habitantes da cidade pouco treinados naquela zona, saber por onde iriam ao chegar ao término da rua. Este é o problema das encruzilhadas. As pessoas têm de escolher um dos caminhos. Saibam ou não por onde vão. E essa angústia, apesar de atingir terceiros, era um desassossego para a rua, na impossibilidade de se prolongar, talvez através de um viaduto, para além das duas ruas que dela dimanavam.