10.4.25

O Euro (não) tem as costas largas

Turnstile, “Never Enough”, in https://www.youtube.com/watch?v=Nfk1Su1Q8SI

“O Euro foi criado contra o Dólar.” 

José Manuel Fernandes, Rádio Observador, 08.04.25

A imputação de culpas é uma tarefa eivada de subjetividade. Mesmo quando estão estabelecidos parâmetros de análise que intuem uma carga objetiva de modo a travar a subjetividade da análise (que, neste caso, será entendida como um óbice). Há alguma abertura para a flexibilidade hermenêutica; quando a matéria em análise é permeável a contributos de diferentes ciências, a falta de consenso ajuda a perturbar a objetividade, mas ganha-se em riqueza por fermentarem diferentes abordagens e pontos-de-vista. É sempre melhor do que o pensamento único, ou a sua derivação, o pensamento dominante.

Quando ouvi as palavras de José Manuel Fernandes (JMF), citadas no início deste artigo, apanhei o raciocínio a meio. Ao que pude perceber, JMF procurava ajudar no entendimento destas palavras proferidas por Trump: “a União Europeia formou-se para nos prejudicar, para criar uma situação de monopólio, uma força unificada contra os EUA no comércio” (Público, 08.04.25, p. 3). Para ajudar a contextualizar, JMF afirmou, perentoriamente, que o Euro foi criado contra o Dólar dos EUA (USD), parecendo mimetizar o argumentário de Trump, deslocando-se da vertente comercial para a vertente monetária. Talvez por perceber, um pouco a destempo, que a comparação era descabida, JMF apressou-se a apresentar o registo de interesses: as políticas de Trump são indefensáveis, Trump faz mal ao mundo, e etc. Mas logo depois voltou à sua ideia: “vamos por água nos pulsos”, sugeriu, para reconhecermos que a moeda única europeia foi criada com o propósito de antagonizar o USD.

Pese embora ser favorável ao debate que enriquece com a concorrência de ideias (ganhamos muito em tomar conhecimento das ideias diferentes das nossas, com as quais possamos discordar), aproveito este espaço para elucidar o(a) leitor(a), e contribuir para o esclarecimento de JMF, pois o seu juízo de valor do Euro é manifestamente descontextualizado. Até a literatura que sempre foi cética em relação à moeda única não reconhece qualquer laivo de hostilidade dos arquitetos do Euro relativamente ao USD. 

Talvez um pouco de História ajude o(a) leitor(a) e JMF a sopesar os acontecimentos. É preciso recuar ao Acordo de Bretton Woods (JMF invocou-o) para perceber o papel de âncora do USD. Esta era a única moeda convertível em ouro. Era em relação ao USD (e ao ouro) que as demais moedas do Sistema Monetário Internacional (SMI) podiam oscilar no máximo 1% (no sentido da revalorização ou da desvalorização). Para perceber o alcance dos privilégios dos EUA, aconselho o(a) leitor(a) (e JMF) a ler um livro do mal-amado Varoufakis sobre o privilégio exorbitante detido pelos EUA enquanto o USD foi a moeda-âncora do SMI. Todavia, o SMI sofreu contratempos a partir de meados da década de 60 do século XX. Foi o presidente Nixon que ateou o rastilho da falência do SMI quando, em 1973, decretou a inconvertibilidade do USD em ouro. Foi o golpe fatal no SMI, terminando uma duradoura era de estabilidade cambial necessária para facilitar o comércio internacional e a prosperidade da economia mundial. Os EUA não conseguiram (ou não quiseram) suportar o ónus do privilégio exorbitante. Não foram atacados por ninguém, economicamente falando. A decisão partiu das autoridades dos EUA, que abdicaram do papel atribuído ao USD.

Ao nível europeu, a estabilidade cambial era exigível para materializar as livres trocas intrínsecas à união aduaneira. A partir de 1973, com a elevada volatilidade cambial, o “não-SMI” perturbou o funcionamento da união aduaneira. A liberdade de comércio, e o clima concorrencial que lhe é inato, estavam em causa: por mais que as fronteiras estivessem abertas e importações e exportações entre Estados membros das (então) Comunidades Europeias circulassem livremente, as flutuações cambiais entre as moedas europeias comprometiam o objetivo. A livre concorrência pressuposta na união aduaneira estava sequestrada pelas flutuações cambiais entre as moedas dos Estados europeus: alguns Estados ganhavam competitividade artificial com a desvalorização, outros perdiam-na com a revalorização. Era compreensível que a Europa procurasse uma solução para resolver esta tensão que punha em causa o funcionamento da união aduaneira. A tentativa gorada de criar uma união monetária até 1980, com base no Plano Werner, foi disso sintoma.

O avanço para a União Económica e Monetária (UEM) concretizou-se com a aprovação do Tratado de Maastricht, em 1992. A experiência precursora – o Sistema Monetário Europeu, instituído em 1979 – tinha limitações e foi alvo de ataques especulativos que revelaram as suas fragilidades enquanto acordo cambial. Internamente, as condições políticas atuavam a favor de desenvolvimentos politicamente ambiciosos. É neste contexto que se enquadra a UEM e a criação de uma moeda única e do Banco Central Europeu. Não era aceitável que a autonomia da Europa fosse hipotecada em função dos interesses dos EUA.

É despropositado enquadrar estas iniciativas num contexto de hostilização dos EUA. Tanto mais que os EUA eram, então (mas não certamente por ora), o maior aliado da Europa comunitária. A criação do Euro orientou-se para a salvaguarda das trocas comerciais no interior da União Europeia e para a afirmação da UE como potência económica. Algumas instituições da União e certos governos nacionais foram transparentes ao desejarem que o Euro assumisse um papel internacional, sem que tal ambição pudesse ser entendida como um ataque ao USD. A concorrência monetária no plano internacional era desejável para que a estabilidade cambial não dependesse das variações de uma só moeda e dos humores das autoridades políticas que sobre ela exercem influência. Rivalizar não significa antagonizar. 

Da forma como JMF se situou perante a questão, parece que a Europa estava condenada a gravitar eternamente na órbita dos EUA. Como está à vista, tantos anos depois, a permeabilidade da UE a tamanho estatuto de dependência está a colocá-la contra as cordas. Olhando pelo espelho retrovisor, diga-se: ainda bem que a UE tem o Euro!

9.4.25

Sande de jesuíta

Viagra Boys, “Uno II”, in https://www.youtube.com/watch?v=9kWgvEKIo4c

1

Reparações furtivas no santuário onde as boas almas aprendem a nadar: as conspirações acendem os faróis feéricos e ferem o faro dos faraós do bom comportamento. Zelosos, uns embaixadores da previdência arranjam um plano de contingência para ultrapassar a contingência em que esbarram. São mestres em deixar as contingências à solta e desertos de efeitos os planos de contingência amanhados em cima do estirador da espontaneidade.

2

Ela povoava as ruas por onde passava – dizia-se, sem se ter a noção que as ruas são constantemente povoadas por quem as povoa. Sempre houve gente sobrestimada – é do domínio da História e da injustiça dos Homens. Na rua mais comercial, ela não disfarçava o olhar que se inclinava para as vidraças das lojas impecavelmente flamantes. A cada dia que passava, demorava uns segundos mais, tornando vagaroso o passo para ter tempo para se autocontemplar. Ninguém lhe disse que as montras dos diversos comércios são uma passerelle de ilusões.

3

O clero não podia ter opiniões. Corria à boca pequena. Não podia ter gostos pessoais como as pessoas outras, não clérigas, têm. E ainda há quem proteste contra os privilégios eclesiásticos. Do outro lado, sentiam-se próximos dos sacerdotes castrados de opinião e de gostos pessoais os que têm pudor em os confidenciar. Abdicar dessa cortina era como uma nudez congestionada. Só não foram para padres.

4

 No meio da canícula, o cão vadio procurava água. A rapariga, à saída da escola, foi a única pessoa a dar conta da agonia do cão. Improvisou um recipiente com a tupperware onde levara o almoço e verteu a única garrafa de água que tinha na mochila. Um adulto que passava nas imediações deu um ralhete à menina: “que mau exemplo, menina, deixa o cão sarnento seguir o seu caminho.” A menina não se intimidou e retorquiu que sarnento era sua excelência. Paredes-meias, o cão, em bravo ato de solidariedade com a menina, completou a gratidão mordendo a barriga da perna do homem desapiedado.

5

O artista de cinema tinha muitas rugas, ele estava ali ao lado, em carne e osso. Não era assim nos filmes mais recentes em que participou. Os filmes são isso mesmo: encenações da realidade. E os atores, como bons atores que são, são ótimos a fingir o que não são. Nesse dia, ele perdeu o medo da rugas. E admitiu: valha-nos o cinema para fazer de conta que o mundo lá fora pertence a uma galáxia longínqua.

8.4.25

A casta casta

Royal Blood, “Mountains at Midnight”, in https://www.youtube.com/watch?v=ak-xJYNWfzE

Qual é a métrica da controvérsia? – perguntava, introspetiva, como quem imita o pensador de Rodin, o queixo como balaustrada do pensamento que irradia na direção da mão que procura amparo no queixo profilático. 

Não sei. Ou melhor: sei que a controvérsia é um lábio que contém as impressões digitais de cada um. Algo que te provoca rejeição pode ser indiferente para mim. E o contrário. – respondeu, sem mostrar grande interesse pelo objeto da conversa, que estaria condenado a ser um solilóquio.  

Não te importa que as pessoas destapem a sua intimidade, que anunciem, em forma de fotografias e vídeos, publicados em modernos areópagos da democracia da comunicação, o que dantes estava sob reserva da privacidade? – insistiu, procurando inverter um certo desinteresse no objeto da conversa que notara na resposta à pergunta inicial.

As pessoas fazem o que querem com as suas vidas. Se as expõem, têm de estar preparadas para a publicidade. Devem ser capazes de aguentar a usura dos outros em cima de fragmentos das suas vidas privadas. O que tu chamas – como disseste? modernos... e ela completou: “areópagos da democracia da comunicação” – são uma faculdade que as pessoas usam como entendem. Que não fiquem à margem das consequência do uso: se for parcimonioso, reservam o essencial da sua privacidade; se for extravagante, as suas vidas são expropriadas pelo público que as consumir. E não se diga que a expropriação é indevida. É parte da vontade de quem a expõe. – perante tão prolixa resposta, ela ficou contente: o objeto da conversa já não era indiferente.

Fico abismada com o grau de exposição pública. Até as crianças são mostradas como trofeus voluntários dos progenitores, contra as advertências do mau uso que depois possa ser feito dessas imagens. As pessoas não se contentam em viver as suas vidas. Querem-nas objeto de uma coletivização que se confunde com um grande espaço público onde as vidas deixam de ser privadas para serem objetos. – acrescentou, para manter acesa a conversa.

Não te deves importunar com isso. As pessoas fazem-no no estreito cumprimento da sua autonomia. Usam os instrumentos que agora existem. Não são obrigadas. Dir-me-ás que muitas deles não medem as consequências. Pior para elas. A autonomia tem ser levada aos limites. Não se pode esconder atrás de uma pueril demanda por proteção contra os mastins que se comportem como canibais das vidas alheias. – ripostou, num tom que intencionalmente arrefeceu a conversa, não escondendo um certo enfado por o objeto ainda não ter sido encerrado.

Esta alienação, todavia, deixa-me perplexa. A apatia perante as consequências de as vidas aparecerem nuas diante dos outros é um retrocesso, corresponde à dissolução de uma parte importante da liberdade e da dignidade que tanto custaram a conquistar. As pessoas deixam de ser viáveis como indivíduos. – no seu rosto, as cicatrizes da dor alheia avivavam-se, como se fosse uma súplica para manter viva a conversa.

Não falemos de impossibilidades. Ou de coisas que são atiradas para a irrelevância, porque não as conseguimos controlar; tu e eu não conseguimos, e acrescento, eu não quero, ter mão na vontade que os outros manifestam em relação a si próprios. – e como notou que ela ia retorquir, atalhou caminho: não insistas, pareces aqueles tutores da moralidade coletiva que querem salvar a humanidade de si mesma. Não queiras ser embaixatriz de uma casta muito casta.

7.4.25

Para além da Economia Política do protecionismo trumpiano

Beastie Boys, “Sabotage” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=Z6xsKsJqVyg

Não há um dia que passe sem notícias ou comentários sobre os previsíveis efeitos económicos da corrida aos direitos aduaneiros iniciada pela administração Trump. Essa é uma dimensão da escalada protecionista que não pode ser menosprezada. Os efeitos da aplicação de direitos aduaneiros não escapam ao cálculo económico: quem perde, quem ganha, que perdas terão as economias nacionais, quem retalia contra quem, possivelmente desfazendo as contas anteriores, e assim sucessivamente. A maré alta protecionista é o pressentimento da maré baixa económica. Por mais que Trump e os seus conselheiros económicos queiram iludir o conhecimento científico e a confrontação com a realidade, se o rastilho do protecionismo não for apagado o mais certo é todos ficarem a perder quando forem apurados os efeitos do sismo protecionista. 

A guerra comercial planetária contempla outros efeitos que escapam ao radar da Economia. O principal problema talvez nem seja a abjuração do multilateralismo que, com altos e alguns baixos, foi axial após a Segunda Guerra Mundial. Os seus efeitos, longe de estarem consensualizados na literatura, costumam ser reconhecidos como a causa de um longo período de prosperidade económica. Todavia, o que pretendo demonstrar escapa à alçada da Economia, o que me leva a mudar o ângulo de análise para os efeitos até agora anonimizados pela análise dominante.

Em primeiro lugar, a demissão do multilateralismo corporiza um retrocesso na frágil concórdia internacional inaugurada após a Segunda Guerra Mundial. A negação do isolamento e a promoção do entendimento internacional são fundações em que se alicerça a ordem mundial contemporânea. Essa ordem transcende, e em muito, o comércio internacional. Mas esta é uma parte importante da ordem internacional contemporânea. A partir do momento em que um país com as responsabilidades internacionais dos EUA se socorre do arsenal de direitos aduaneiros, hipoteca a lógica do multilateralismo. As feridas abertas não ficam confinadas ao comércio internacional. A desconfiança que rima com o protecionismo pode ter o efeito de um tsunami. O dealbar de uma era protecionista põe em causa a lógica do multilateralismo e contamina outras áreas sensíveis da ordem internacional. Os direitos aduaneiros trazem consigo a desconfiança e a semente da instabilidade, até por partirem de quem não se pode demitir das suas responsabilidades internacionais. A História prova que a instabilidade não é compatível com a prosperidade.

Em segundo lugar, a insensibilidade da administração Trump perante a estabilidade internacional convoca um lugar diferente para os EUA no teatro das Relações Internacionais. Sendo precursores do protecionismo, na ostentação garbosa (mas fátua) da grandeza americana que precede as responsabilidades do país como garante da estabilidade internacional, os EUA perfilam-se como pária. Investem num ensimesmar (“make America great again” – MAGA) que traduz um egoísmo indisfarçado e a indiferença pelos outros países e pela ordem internacional. Só interessam os interesses nacionais e a cooperação é atropelada por ser um obstáculo àqueles interesses. O unilateralismo está em vias de substituir a ordem internacional baseada na cooperação e no multilateralismo. Nesta altura, os mais cínicos sobem a palco para lembrar a ambiguidade internacional dos EUA: em seu favor, argumentam que os EUA sempre privilegiaram os interesses nacionais, que o ensimesmar trumpista é mais do mesmo – só que sem filtros nem máscaras, o crime perpetrado em plena luz do dia e sob o olhar atónito do mundo inteiro. 

Em terceiro lugar, ao assumir o papel de pária internacional, os EUA demitem-se do papel de âncora da ordem internacional. O que traz consequências para a natureza da ordem internacional, com um possível caos resultante da orfandade de liderança como sintoma visível. O futuro dirá se esta demissão de responsabilidades foi intencional a partir do momento em que Trump se virou para o umbigo dos EUA, ou se é um efeito colateral e não previsto da retórica MAGA. A influência dos EUA na ordem internacional está suspensa enquanto a administração Trump dedicar tanta indiferença à estabilidade internacional.

Em quarto lugar, há toda uma simbologia associada ao protecionismo que tem repercussões importantes. Uma das motivações dos direitos aduaneiros é a penalização da competitividade internacional dos produtos importados. Trump não o esconde: quer castigar as importações, tornando-as mais caras no mercado dos EUA, para incentivar os consumidores a comprarem “made in USA”. Esta estratégia é explícita nos propósitos: um desvio de comércio, das importações para os produtos locais; com ela, o reconhecimento de que a competitividade dos produtos fabricados nos EUA depende da aplicação de direitos aduaneiros. É como se o desportista só conseguisse levar a palma aos concorrentes porque se muniu de substâncias dopantes. Foi o próprio presidente dos EUA a admitir a fragilidade da economia do país, ao ponto de admitir que a sua reabilitação depende da punição das importações.

Não sejamos ingénuos: a ordem internacional que promoveu as livre trocas internacionais, com a redução e a abolição de direitos aduaneiros e de outras restrições ao comércio, nunca conseguiu banir a hipótese de os países recorrerem ao arsenal protecionista. Na maior parte das vezes, faziam-no alegando circunstâncias excecionais que justificavam a utilização de medidas protecionistas. A diferença não é de somenos importância: primeiro, esse recurso era excecional e não, como é o caso atual, o início de uma nova era de protecionismo generalizado, com uma guerra comercial sem precedentes; e, segundo, o rastilho foi ateado pelo país com mais responsabilidades na promoção da estabilidade internacional, o que é representativo de um novo estatuto dos EUA e da própria ordem internacional.

Como em tempos sombrios, dominados pelo pessimismo, é de bom tom dissidir e exibir confiança no futuro, pode ser que Trump se arrependa e enterre o machado da guerra comercial para a tornar uma espécie em vias de extinção.

4.4.25

A monstra e o belo

Sharon Van Etten & The Attachment Theory, “Trouble” (live from the Chruch Studies London), in https://www.youtube.com/watch?v=jUiLrV5AC_g

A opulência do mundo esbarrava no avesso de que se compõe. Insistia-se em desafiar o prescrevido, as convenções rombas avançavam no desmedo da decadência. Já não se sentia o aroma a capitulação como ensaio dos mandantes para tutelarem suseranos amordaçados. Se havia petições, não tinham princípio: elas emasculavam os nós górdios que impediam o pensamento de levantar voo. As grilhetas tinham sido estroncadas. Cheirava a liberdade; a uma liberdade como nunca dantes fora sentida.

De fora dos estribilhos, as palavras vagueavam sem regras. Eram usadas como uma apoteose do momento. Prósperas promessas de literatura, mesmo que não viessem a ser guardadas em páginas tatuadas por letra de forma. Uma certa fala não contrabandeada, como se suas fossem as regras omissas como fundamento de não se tornar puída, o arremessar de palavras tornadas ambíguas por se tornarem numa caixa de Pandora gongórica.

Era neste mar de avessos que se terçavam os desafios heurísticos. Um planisfério de opostos, jogando as mordaças de outrora contra a apneia dos sentidos, contra a hibernação forçada como esteio da obediência que era uma casta medida para o interesse dos mandantes. As farsas eram apenas a encenação visível que subia à cena, na teatralização necessária para escapar aos logros visíveis. Era neste palco que contracenavam a monstra e o belo.

O belo não se atinha à linhagem habitual que servia de formato à beleza. A monstra também dissidia dos cânones: por mais que se protestasse contra a dominação masculina, por mais que estivesse enraizado o fermento da desigualdade em desfavor do feminino, os monstros eram habitualmente masculinos. 

O belo e a monstra dialogavam nos interstícios da filosofia. Falavam como se estivessem a declamar poesia. Não fugiam das demandas, por mais exigentes que fossem no estipêndio envolvido. Diluam-se no seus papeis: a monstra mostrava a faceta bela e o belo não escondia a feiura que secretamente contrastava com a beleza.  Até se diluírem as diferenças, à mercê das falas de ambos. Até serem diferentes, pelo avesso que de si erigiram.

3.4.25

Louvor às costas largas

Ryuichi Sakamoto, “Self Portrait”, in https://www.youtube.com/watch?v=xxL0F5xyx9M

Do proveito da generosidade em proveito alheio, medram largas as costas a preceito. A insalubridade da culpa é a ignição para esta generosidade. Diz-se: são as costas largas que recurvam as responsabilidades de outrem, mas que os outros se demitem de corresponder.

Diz-se: a expatriação das culpas assumidas pelos mecenas da inculpação em nome alheio perfuma a espécie com um odor que contraria a implosão de fétidas substancias que a possam infetar. Oferecer as costas como se fossem um largo estuário onde cabem, bem repartidas, as culpas inadmitidas por outros, é um desprendimento ímpar que ajuda a contemplar a humanidade por uma lente opaca; ajuda a tolerar a espécie, contrariando o mortuário de pessimismo antropológico que espuma pela boca da escotilha.

Às costas, que têm de ser largas, repousam as responsabilidades enjeitadas. São elas que esconjuram a irresponsabilidade num simulacro de fingimento que apenas esconde a intenção de iludir as culpas que têm de aterrar algures. Louvem-se os mecenas que se oferecem, com seus dorsos musculados, para partilhar as responsabilidades que assim não desvivem solteiras. Saber que num ancoradouro se encontra o paradeiro de umas largas costas é o dicionário onde se esconde a salvação. Desmontam-se as conspirações espúrias que endossam as culpas de pessoa em pessoa, como se o processo de transmissão acabasse por dissolver os átomos da culpa e ela findasse exangue, entregue à sua sindicância irresponsável.

Os portadores de largas costas vivem imersos num injusto anonimato. A eles são devidas as maiores comendas que, todavia, são apostas em quem muito menos deu de contributo para a ascese. Não protestam, nem se intimidam com o despropósito que os desvincula de condecorações merecidas; não alquebram, prostrados ao irreconhecimento. Faz parte das largas costas com que se apresentam ao mundo. Estas são as singulares credenciais que são as mudas garantias de sobrevivência. 

Não fossem por todas as costas largas, daríamos à costa como casta errante. Distantes de qualquer salvação reconhecida ou idealizada; apenas embaixadores potenciais da decadência irremediável. 

2.4.25

Hiroxima salvou a humanidade?

Kim Gordon & Kim Deal, “Little Trouble Girl” (live at Everybody’s Live with Jonh Mulaney), in https://www.youtube.com/watch?v=KFyUV4gwCas

Um chão queimado, para sempre. Pôr mais que digam que já não está contaminado – por mais que os olhos sejam testemunhas de uma cidade que, se não fosse o peso arqueado da História, se diria intacta. Mas é um chão sepultura, onde são feitas as exéquias da humanidade inteira. Um lugar que teve o azar de ser a sorte dos outros. Duas exibições da demência humana foram a prova necessária para que tamanha mortandade não tivesse repetição. 

Hiroxima é um lugar paradoxalmente queimado: o som de um gongo da paz reverbera, como se as ondas do som entrassem na ossatura da espécie inteira, evocando as memórias do terror, acertando as contas com o futuro. Dizendo, para memória futura: não queremos voltar a ser testemunhas de barbáries nucleares. Consulto as estatísticas: duzentos e dez mil mortos, sobreviventes a prazo à espera da morte dolorosa por exposição à radiação, a devastação total num raio de dois quilómetros quadrados. Essas são as vítimas que exigem o agradecimento de hoje, a gratidão de todos os que vieram depois deles e deles aproveitaram a anexação do horror como garantia de que o horror não seria repetido. 

As vítimas de Hiroxima foram as cobaias inventariadas em nome de uma paz mítica, muito embora pobre e frágil. Foram as vítimas sacrificadas para que depois não houvesse outras vítimas como eles. É a sina da humanidade: uns sofrem para o benefício de muitos outros. Hiroxima é uma cidade de duas caras. As homenagens sucedem-se no epicentro; são dos outros lugares que foram salvos da barbárie porque o apocalipse murmurou aos ouvidos de todas as paredes desfeitas em cinzas, de todos os corpos que nunca chegaram a ser sepultados.

Hiroxima oferece esse lado lunar risonho: foi preciso a humanidade mostrar a sua pior têmpera para nunca mais a voltarmos a ver. Dela sabemos o seu paradeiro, apenas. Isso não apaga o ar sinistro que parece levitar até dos amores-perfeitos sentados com o beneplácito de cidades de todo o mundo. Todos os outros lugares do mundo prestam homenagem às vítimas de Hiroxima que os salvaram de semelhante destino. 

Essa é uma dívida que não prescreve e de que sente o telintar perpétuo dos juros em falta. 

1.4.25

Anónimos

The Limiñanas, “Tu viens Marie?”, in https://www.youtube.com/watch?v=GpeX_n7X-4g

Se fosse na fronteira da fala, ninguém ficava sem o arreio da liberdade. Todos somos anónimos mesmo tendo um nome. As meadas que se abatem sobre os campos vastos são como termómetros de cidadania: as várias camadas sobrepõem-se numa gramática de direitos e de deveres.  

E nós, anónimos de nova cepa, somos esteios dessa fala que se quer interminável. Porque sabemos que a mudez seria suicida, um pacto atroz contra o sangue efervescente que nos corre nas veias. Em vez da capitulação, que se encene um fingimento, ao menos. A encenação é a recusa da apatia. Se a teatralização subir à boca de cena, é a criatividade que fala por nós. Em nosso nome. 

Os esteiros são parecidos em todos os lugares, exceto quando um rio se abre em braços múltiplos e entra no mar em forma de delta. Somos dessa linhagem: ora estendemos o anonimato que precata os nomes subentendidos, ora multiplicamos os braços por várias meadas para não ficarmos à margem da novas do mundo. Não somos o enxofre que liquida as formas de vida; somos o seu manancial, a vibrante fachada que contrasta com a luz efémera que desponta num nascer do sol. Costuramos as bainhas do anonimato na perfeita lucidez dos nomes que guardamos para dentro de nós. 

Os mesmos que se desinteressam são os que protestam claridade. Não se desinteressam; nem são apátridas da cidade, apenas disfarçam sob a capa do desinteresse o cansaço da desmemória, a litania que sobre eles se abate pela mediocridade que toma conta da cidade. Só serão presas fáceis se se deixarem abater pela plêiade de vozes que concorrem num murmúrio incessante. A sua apatia é o combustível da mediocridade.

Deixamos a sindicância das almas para a noite. Não seremos nós os juízes empossados. Os sonhos talvez sejam os magistrados brasonados que apuram o anonimato. Não mendigamos por visibilidade: somos os estetas maiores do anonimato que nos resguarda dos olhares que tudo açambarcam.

31.3.25

Arnês (short stories #486)

Ryuichi Sakamoto and David Sylvian, “Forbidden Colours”, in https://www.youtube.com/watch?v=x1YkHJJi-tc

          Um salto sem chão pede um respaldo que só o arnês pode dar. E quantos são os passos dados sem se saber do sobrevoo de um precipício? As costas largas ajudam a decifrar a seráfica curvatura da vida. Quem pende para a irrisória ilusão não contempla o risco; fica aquém do complexo choque frontal com as montanhas russas inesperadas. Ou pode ser apenas que os dados sejam atirados e os segundos limítrofes sejam uma suspensão do tempo à espera do resultado do acaso. Há vidas que são vividas com a faca visível sempre a premir a jugular, como se fosse possível adivinhar que os sortilégios jogam a favor. É um arnês simbólico que se levanta sobre o dia consecutivo, como se ele dependesse da indeterminação prévia à ocorrência do futuro. As montanhas não se levantam sozinhas; o resguardo dos contratempos não depende de hipóteses nem se fundeia na apatia. Podemos contratar a apólice que resgata do abandono dos deuses eufemísticos, o arnês diligentemente envergado sacrificando a viabilidade dos contratempos. Na posse do arnês, o precipício não convoca o medo. Desembaraça-se dele, investe numa heroicidade que de outro modo seria o equivalente ao sangue trémulo, envidraçado num labirinto inescrutável, à conta do arnês que é um salvo-conduto. Toda a angústia é desmatada com o simples gesto de forrar o arnês. O risco que possa lapidar o sono sereno traduz a conspiração de uns vultos perenes, ou apenas a tendência suicida para escolher, entre as alternativas que se perfilam, a que é a pior. E nem a desorientação avalizada pela ausência de astrolábio consome os rudimentos dessa serenidade: o arnês deve andar sempre a tiracolo, como se dispõe o cinto de segurança ao entrar num carro. E quem sabe se o arnês está no prazo de validade?

21.3.25

Hortas extra (uma cidade rural) (short stories #485)

Max Richter, “Tranquility Base” (Kelly Lee Owens Remix), in https://www.youtube.com/watch?v=BwEOMrUSsq8

          Falava-se de desanexação: uma espécie de PDM ao contrário: os prédios devolutos seriam demolidos e os terrenos declarados impróprios para construção. O município era liderado por um esquerdista caviar que decretou guerra ao grande capital e, por tabela, aos construtores civis que fazem crescer as cidades ao alto e alastrar a mancha de betão armado. As terras resgatadas ao imobiliário teriam de ser convertidas em hortas urbanas. As hortas seriam distribuídas pelos cidadãos que se candidatassem. Ao fim de dois mandatos do progressista edil, uma conferência de imprensa para apresentar o relatório de atividades: o edil mostra dois mapas, o antes e o depois da assim cunhada “política das hortas extra”. A mancha verde a alastrar de ano para ano. De acordo com o edil: mais 30% de hortas desde que tomou conta da cidade. Um jornalista – avençado de um partido da oposição, de acordo com o autarca – pergunta se a política das “hortas extra” não é demagógica. O edil pede um esclarecimento ao amanuense. Anui: 30% de hortas a mais empurraram sabe-se lá quantos habitantes potenciais para fora da cidade. É mais gente a ter de usar transporte quando vem trabalhar para a cidade. Mais danos no meio ambiente. Conclui: o senhor presidente da câmara é um demagogo que não conta a história toda, omite a seu favor os detalhes que não lhe são favoráveis. O edil enrubesce de raiva. Em voz alterada, acusa o jornalista de estar a soldo “da direita” e dos interesses da construção civil. O jornalista protesta o uso da palavra para se defender. O presidente da câmara: “isto não é a assembleia municipal, nem o senhor é um deputado para pedir a defesa da honra”. A imprensa devia ser amestrada, para ser devidamente grata – descaiu-se o presidente, em murmúrio para o vereador delfim sentado à sua direita.  

20.3.25

Se proibirem o pão duro, como fazemos açorda? (short stories #484)

Sugarcubes, “Regina”, in https://www.youtube.com/watch?v=Qfd5srbPUlo

           Cuidado com os bolores. Não são da estirpe de que é feita a penicilina. Os modernos déspotas, que só não se chamam déspotas porque vivem sob a tutela da democracia, estão de atalaia. Cuidam da nossa saúde. Proíbem a eito e regulamentam de outro modo, quanto proibir sai do raio de ação. Só vem para as bancas dos mercados o que passar no exigente crivo das credenciais devidas pelos cuidadores da saúde pública. Os fungos descontrolados podem ser perigosos para a saúde: ele há cogumelos mortalmente venenosos, queijos perigosamente apetitosos mas feitos de podridão, vinhos que adocicam à mercê de umas uvas quase podres e com bolores. E há o pão duro, que depressa ganha bolor. Proíba-se o pão duro para se pouparem idas desnecessárias às urgências dos hospitais de pessoas emaciadas e com desarranjos interiores. O pão duro passou o prazo de validade. Enrijeceu e pode ser danoso para a dentição dos loucos que se agarrarem a uma côdea de pau endurecido. Banir o pão duro e fora de prazo é, todavia, um golpe baixo contra a gastronomia tradicional: os melhores manuais gastronómicos recomendam o uso de pão muito seco para confecionar açordas. Os cuidadores da saúde pública andam distraídos. Deviam ter estendido a proibição às açordas. Porque uma açorda com pão fresco é um duplo desperdício: do fresco pão, que tem serventia melhor; e uma açorda à base de pão acabado de sair da padaria não cumpre os preceitos do preparado e perde qualidade. Ou então, as açordas são uma idiossincrasia e os habilitados tutores da nossa saúde desconhecem-nas. Temos direito a uma exceção. O pão duro está proibido pelos higienistas radicais. Mas podemos continuar a fazer açordas. Supõe-se, com o mesmo pão duro que foi declarado proibido. 

19.3.25

Tirar a sorte ao perímetro da sorte (short stories #483)

Destroyer, “Hydroplaning Off the Edge of the World”, in https://www.youtube.com/watch?v=AGWMUSs42M8

          Os otimistas cavalgam na sorte atendida. São irrepreensíveis no criterioso espelhar do sol radioso que esperam no porvir. São desmentidos por dissidentes que contestam as convenções e desafiam o lugar-comum do bom tempo que anda de braço dado com dias soalheiros. Dizem: está bom tempo quando chove. De acordo com esta dissidência, a sorte de uns é o azar de outros (para confirmar o anexim popular). Não é preciso esfacelar tanto a filosofia. Os provérbios arranjam uma métrica para serem imperiais – mas os provérbios são uma lei geral com o selo de aprovação popular. Os incorrigíveis otimistas aproveitam-se do dia soalheiro para carregar as pilhas de otimismo. Como se fossem os veraneantes que passam longas temporadas sob o sol abrasivo até ficarem com um bronzeado digno de estrelas de cinema. Contemplam o sol e ganham boa disposição. Atravessam o dia sob o efeito dos raios de sol para acreditarem que a existência diária não é uma tortura – como dão a entender quando os dias são repetitivamente plúmbeos, chuvosos e cheios de vento iracundo. Aproveitam o sol para extrair a matéria-prima da sorte. Amealham a sorte, porque não sabem se os dias de invernia se vão estabelecer por uma demorada temporada e, se for o caso, precisam de toda a sorte armazenada para a debitarem contra os amuos de infortúnio que vêm amparados no mau tempo. É uma concorrência feroz. Os seguidores do deus-sol competem por um quinhão de sol para desmatarem os baldios que os separam da sorte. O sol chega para todos – é dos poucos recursos que, contrariando os economistas habituais, não é escasso. A menos que esteja a chover e o sol tenha ficado escondido sob os auspícios de uma superfície frontal fria. Tiram à sorte o seu próprio quinhão da sorte. Depois, esperam.

18.3.25

Pedestal (short stories #482)

Death Cab for Cutie, “I Will Possess Your Heart” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=tFnYlkDtz00

          A alma noturna desembaraça-se de fronteiras, voa sobre o mapa desenhado pelas mãos contumazes. Voa ainda mais alto, como se o vento tivesse degraus e as vozes desmaiassem na lonjura da terra. Assim se mantém, imperatriz, de atalaia ao mundo. Não sabe distinguir os limites que se encenam através de diligentes procuradores que dão voz aos medos comuns. À noite, as sombras açambarcam as delimitações, é como se todas as terras fossem contíguas e das fronteiras se perdesse rasto. À conta das asas imaginadas leva a patente do desassombro, dissolve os vultos errantes que ao acaso adoecem as vítimas prediletas. Quando atinge a altitude de cruzeiro, descansa, planando sobre os lugares imersos no sono. Este é o seu pedestal. Desconta as indulgências sufragadas no oráculo dos pesares; rejeita a comiseração orquestrada como sinal de redenção; esconjura as comendas prometidas, as oportunistas genuflexões que fingem um respeito sem curadoria; abstém-se de tomar partido, que todas as causas são alheias e não foi entronizado juiz. Mantém-se no pedestal, a soberania máxima de onde elide os acasos que espelham a angústia promitente. Desde o pedestal não governa, não se envaidece, não distribui perdões sob encomenda, não ajuramenta confissões nem costura arrependimentos. Limita-se a contemplar a paisagem desde o promontório a que se elevou. Intui que a distância do chão é medicinal. Tem consciência que não se pode eternizar como embaixador do céu. Esse tem outra conotação que não é da sua lavra. O pedestal é um embrião de finitude, a que se projeta nos sonhos que não cessam de existir, como se os sonhos se emancipassem do sono e fossem cúmplices do dia em que mandam os sentidos. Quando desce do pedestal, é como se nunca tivesse de lá saído. É o seu segredo bem guardado: o pedestal é onde soubermos ser a plenitude de nós. 

17.3.25

Etc. (short stories #481)

Royal Blood, “Out of the Black” (live From Brighton on the Beach), in https://www.youtube.com/watch?v=t3JWiZlQpQo

          E depois as consequências perderam-se no emaranhado de pensamentos avulsos antes que anoitecesse e o sono se moldasse aos pesadelos contíguos que arrancavam do luar a luz estrénua que precisavam para assaltar as consciências mudas. E depois as mãos sentiam-se suadas, percutidas pela fogueira que salvava a casa do frio do Inverno antes que a geada tomasse conta dos poros das paredes e do chão e a hibernação fosse apenas o fingimento da morte. E depois os animais despenhavam-se num momento lúdico como se nada mais importasse e os contratempos do mundo fossem uma competência exclusiva dos Homens que com as suas luvas de maldade preenchiam os espaços deixados em branco. E depois havia um depois ainda alinhado sob as copas das árvores, o estuário que pressentia o mar largo, as estações de comboio onde as pessoas são intrusas e a mortalha que resguarda as pessoas contra a sindicância dos outros. E depois faltava o medo entretanto emudecido pelo assalto desbocado às palavras como se em falta estivessem por suspeita de embargo nos dias que estavam para vir. E depois nem as cordas todas do mundo davam para amordaçar as almas destemidas que eram viradas do avesso enquanto as estrofes eram terçadas contra o enxovalho limítrofe. E depois, ainda à espera de outro ainda, media-se a temperatura da confiança depois de as pessoas terem sido atiradas umas contra as outras num esboço de conspiração que invadira o lugar. E depois o céu noturno acendeu-se com o rabear de um cometa que as pessoas não puderam contemplar por culpa do sono convencionado para a noite. E depois, antes que voltasse a ser depois, as páginas recuavam por força do vento que as adestrava para a melancolia irrisória, própria dos que se refugiam num tempo amuralhado mas impossível. E depois, ficaram apenas à espera do etc. 

14.3.25

Reembolso

Ólafur Arnalds & Loreen, “SAGES”, in https://www.youtube.com/watch?v=4OTd2qBH6jQ

O livreiro já não tinha espaço para passar nos corredores onde se amontoavam os livros. Comprava-os compulsivamente, mesmo sabendo que nem a hipótese de longevidade o salvava de não conseguir ler todos os livros. Dizem que há uma doença para esta compulsão, uma palavra japonesa. Não queria saber: se fosse o caso, autodeclarava-se doente um primeiro grau, viciado em livros, incorrigivelmente. Mesmo que soubesse que não conseguiria ler todos os livros anarquicamente espalhados pelas estantes, pela sala, pelos corredores, pelos quartos – até na cozinha havia livros.

Não fosse ele livreiro. Amador, mas livreiro. Não era alfarrabista, porque não estava no negócio e se algum houvesse, o dele era unilateral: dedicara-se a comprar livros, de todos os feitios e géneros, no idioma nacional e noutros idiomas, até os que eram ininteligíveis, antigos e atuais, técnicos e de literatura, poesia ou prosa, muitos. Não podia estar no negócio porque se sentiria estropiado se vendesse exemplares da sua coleção. Ainda pensou afixar um letreiro à porta de casa com o dizer “biblioteca”, mas ainda se importa com o que os outros dizem e os outros são vizinhos a que não é indiferente. 

Todos os dias lê pelo menos cento e cinquenta páginas. Pode ser do mesmo livro ou ser um caminheiro, livro para cá, livro para lá. Lê a qualquer hora do dia, em qualquer lugar. A mochila é sempre o logradouro temporário que recebe livros que escolheu para acompanhar o dia. Tanto gosta de ler um livro quase sem respirar, da primeira à última página, como trazer um punhado de livros por companhia durante uns dias, arrastando a leitura pelos dias fora. As mesinhas de cabeceira foram colonizadas por livros. Eles são o seu ansiolítico. Quando acorda, não se levanta sem ler um poema de um livro criteriosamente selecionado de véspera.

Um amigo assustou-se com a desarrumação da casa. Protestou contra o caos (“isto faz-te mal, há sítios da casa em que mal se consegue passar”). Advertiu-o da compulsão. Com algum desdém à mistura, disparou: “ainda por cima, não tens tempo de vida para ler tudo o que ainda não leste”. 

Ficou indiferente a tantos reparos. Sabia do seu amor aos livros, que crescera na medida diametralmente oposta do desamor às pessoas. Ou melhor: os livros ainda eram o último reduto onde conseguia encontrar pessoas recomendáveis. Mesmo que, no auge de um dilema moral, esbarrasse em pessoas execráveis e repletas de maldade: é com essas que aprendemos a não ser como elas. 

Sentia que a cada página ultrapassada a sua vida era reembolsada. Não havia melhor recompensa da e para a vida.

13.3.25

Nadar às cegas

Death Cab for Cutie, “Black Sun” (live on David Letterman), in https://www.youtube.com/watch?v=o9o8jYRAmaI

O que seria de nós se não houvesse placas nas estradas a indicar a direção das localidades, a toponímia nas ruas das cidades, a ciência da cartografia, se os satélites não adejassem sobre nós para que não nos percamos nas demandas? O que seria de nós se andássemos constantemente de olhos vendados?

Somos tiranizados pelos sentidos. Feitos de uma entrega voluntária aos sentidos que são a bússola que ajuda a dar sentido. Às vezes, diz-se: temos de encontrar um sentido para a vida. E não vamos atrás de placas indicativas, da sinalética que povoe uma orientação, nem possuímos um sofisticado software para desenredar as incógnitas que se esmagam contra o peito das dúvidas. Não temos mapas interiores que ajudam a desatar os nós das circunstâncias. E nunca perdemos nada, a não ser a oportunidade para voltar a cometer erros num tempo mais tardio.

A diligência dos mapas, o grosseiro imperativo dos roteiros para tudo e mais alguma coisa, a dependência de meticulosos planos – tudo o que aparentemente confere um sentido de organização das vidas joga-se num acaso quando apenas se confia no autojulgamento, na lucidez, ou na falta dela, que se combinam para às vezes conspirar contra nós, outras vezes para ajudar a desatar os nós existenciais. Nadamos às cegas, como os antepassados navegaram por estima, perpendiculares à costa para não perderem os azimutes. Nadamos às cegas, num labirinto desprovido de luz, por tentativa e erro, vagarosamente tateando as paredes, temerariamente avançando um pé de cada vez para evitar os passos em falso. Como se estivéssemos intencionalmente dotados de uma cegueira salvífica.

Desejamos que a cortina desça sobre o palco para se transfigurar num labirinto dedicado às sombras tutelares. Impõe-se a candidatura à rebeldia, a recusa das luzes que, de tão flamantes, corrompem o olhar com as cicatrizes que um mundo malparado apurou em forma de condenação. Até ser preferível mergulhar nas trevas que são o resgate da metamorfose forçada pelo mundo malparado. Esconjuramos esse mundo que se torna malparido ao nadar no escuro. 

Estamos a precisar de paradoxos para sentirmos que é possível um exílio por dentro do lugar onde estamos.

12.3.25

Invisibilidade (short stories #480)

The Hard Quartet, “Action for Military Boys” (live at WFUV), in https://www.youtube.com/watch?v=vsyt7u1-4us

          Os rostos públicos são um saque de identidade, dizia, enquanto rodava o dedo indicador na aresta do copo. A identidade deixa de ser privativa, uma expropriação que, todavia, muitos não se importam de acautelar quando se dão à visibilidade pública. Dizia: detestava ter de esconder o rosto, vertê-lo na direção do chão para não me sentir acossado pelas pessoas que se cruzassem comigo se fosse uma personagem entregue ao conhecimento público; detestava ser interpelado na rua, fosse o motivo que fosse, dos bons à conta de elogios, ou dos maus à conta da acerba que me fosse contemplada. À medida que abanava o copo, observando o refluir lento da bebida, como se as ideias fossem centrifugadas no vascolejar da bebida contra o gelo, consagrava a invisibilidade. Quando saísse do bar e fosse para casa (ou para o próximo bar), não seria a noite a caucionar a invisibilidade. Não era um vulto errante, embrulhado num disfarce de roupas negras encimadas por um chapéu com largas abas que ocultassem o rosto. Todo ele era visibilidade, no compasso acertado das roupas claras que as noites tépidas de Verão pediam, sempre sem o adereço do chapéu. Uma voz interna subiu ao palco e sussurrou, contumaz: estás convencido de que és invisível porque já bebeste umas quantas bebidas, não estás em ti. A voz desmancha-prazeres continuou a saga: mergulhas no álcool para fazer de conta que és invisível. Acreditou que estava na hora de entrar no bar que se seguisse. Até lá, extraiu o rosto da sepultura voluntária em que o afundava sempre que saía à rua. Para confirmar se a voz gutural que invadira o pensamento tinha razão. Mas não estava lúcido. Não podia acertar o tira-teimas. Se fosse confirmado o diagnóstico da voz interior, ao menos tinha o que muitos ambicionavam e não alcançavam. Não era grande compensação. Mas era um frágil sinal de lucidez.

11.3.25

Peritos em nada

Idles, “Well Done” (live at SXSW), in https://www.youtube.com/watch?v=z9W3-PKDzWw

Fecunda esta força que se evade da tentação de saber o muito que se pode saber e depois esmagar tamanha sabedoria nos súbditos, os que andariam à toa não fosse a caritativa diligência dos embaixadores da sapiência. 

E eles, todavia, dissidiam. Não sabiam do paradeiro das respostas. Fugiam das perguntas, não por as temerem, mas porque quem as fazia estava à espera de um imperativo de resposta. Não queriam essa responsabilidade. Primeiro, não eram missionários por conta dos outros. E depois refugiavam-se na (pelo menos) aparente subjetividade do conhecimento. Não tinham nascido para serem educadores. Que responsabilidade voluminosa seria essa, a de aprestar respostas prontas a cada decibel de perguntas a zuir por dentro da cabeça. 

São, para seu grande gáudio e orgulho, peritos em nada. Nadam nesse conhecimento insubstancial, no borbulhante lago onde as incógnitas soçobram com o entardecer e não voltam a emergir quando a luz madruga e se ergue num fugaz sinal que se agiganta com o andamento dos minutos. Quando é preciso, defendem-se com agressividade quando as demandas se atiram a eles, numa consanguinidade inventada que não reconhecem. A agressividade é uma autodefesa, legitimada. Dos assuntos mais singelos aos que exigem perícia só ao alcance de talentosos, as perguntas esbarram na indiferença. Numa indiferença metódica que se ergue como cortina de fumo para dissolver as perguntas numa nuvem crepuscular.

Os perguntantes vão aprendendo. Dali não levam respostas, não adianta a dirigirem perguntas. Os interrogatórios serão sempre alheios, ficam desertos. Vão procurar conhecimento aos artistas que o dirimem. Ao contrário destes, os peritos de nada juram que só sabem nada. Ainda uns quantos arriscam perguntar sobre o nada e eles retorquem que sobre “o nada” sabem nada.

Poderiam, no máximo das possibilidades, perguntar-lhes sobre nada. Disso teriam nada a dizer. Já o empate das circunstâncias desfeitearia as incompatibilidades que tivessem sido agigantadas.

10.3.25

Quem quer ser primeiro-ministro por sete minutos?

Trentemøller, “Moan” (Trentemøller Remix ), in https://www.youtube.com/watch?v=5vkj-t1ytzo

(Inspirado numa série de debates organizados pela Universidade de Coimbra)

Uma espécie de Speakers’ Corner para candidatos a candidatos a primeiro-ministro: subam a palco os proponentes, tomem conta do microfone, têm direito a sete minutos bem contados sem direito a interrupção. Sete minutos para propor reformas que têm o condão de sepultar um atraso congénito – ou sete minutos para perpetuar a ilusão de um adiamento imorredoiro. Só não têm tempo para o diagnóstico, sem o qual as propostas de mudança (e, aos que assim forem ainda crentes, de continuidade) parecem amputadas de sentido. Mas sete minutos é melhor do que o silêncio voluntário ou involuntário. Venham a palco os candidatos para avivarem o palco da cidadania.

O que se quer são ideias. Entre as ousadas e as conservadoras (no último caso, só para medir a temperatura do conservadorismo – dando o desconto que os conservadores serão propensos a não sair de casa, o que prejudica a representatividade da amostra); entre as lunáticas e as que repetem o receituário conhecido (de aquém e além-fronteiras); entre as risíveis e as complexadas; entre as que assumem uma grandeza entretanto esquecida e as que dependem do auto amesquinhamento; entre as viradas para a pluralidade do mundo e as que se ensimesmam num paroquialismo diletante; entre as que desconstroem o património havido (de políticas) e as que pisam o palco da inovação (nem que seja lunática); entre as que são proclamadas com um discurso elegante e as que se enredam na confusão discursiva de quem não nasceu para orar em público; entre as herdadas do futuro e as mergulhadas no passado. 

E depois dos sete minutos de fama, que saibam ouvir nos outros blocos de sete minutos o que os alternativos candidatos recomendam. Saber ouvir os outros é uma virtude em perda. Saber aprender a partir do que se ouve dito pelos outros é a humildade que devia ser ensinada desde os bancos da escola. Saber reconhecer o mérito das ideias dos outros é da mais elementar justiça. 

Ao cabo da maratona de sucessivos blocos de sete minutos, de tantos aspirantes a primeiro-ministro um punhado se há-de destacar. Levem as suas ideias à assembleia onde parlamentam os oficiais representantes em nosso nome, sem esquecer de convocar para a sessão o governo inteiro. Sua será a vez de aplicar os pilares do conhecimento que são requisito de admissão dos proponentes a primeiro-ministro que peroram dentro do limitado quadro de sete minutos. Que os oficiais representantes na casa da democracia saibam multiplicar por muitos outros sete.

7.3.25

Pezinhos de lã (short stories #479)

The Hard Quartet, “Lies”, in https://www.youtube.com/watch?v=pahCJlZuMgc

          As mãos batem ao de leve, mas batem, como só as palavras conseguem bater. Quase sem dar conta, o pé-ante-pé que se insinua, dissimulado: quando é para dar conta, a invasão está consumada. Sem pré-aviso – mas quem acredita que as invasões devem obedecer a um aviso de receção, se nestes despreparos das almas não há código de conduta nem cavalheiros? E lá aterram eles, os pezinhos de lã, que entram sem bater à porta, a salto, como os salteadores. Não se sabe ao que vêm. Talvez notifiquem depois de materializada a agressão; tem de haver uma lógica para a agressão, por mais ilógica que seja. Talvez não apreciem a cor dos olhos. Ou a estatura. Ou as ideias. Ou talvez tenham ido aos arquivos para resgatar textos malditos que merecem punição ditada pelo desejo da maioria. Estes são crimes que não prescrevem. Nem que os textos subjacentes tenham sido expurgados, pois os diligentes censores têm meios de os extrair ao esquecimento. Nem que sejam textos entretanto renegados, que um bom censor (há-os, censores bons?) não transige com o arrependimento que pode ser apenas a colheita de um fingimento, oportunista. Os pezinhos de lã são um misterioso assomo de silêncio. Nem que o chão seja de madeira e a podridão semeie o ranger irremediável, os pezinhos de lã são como os prestidigitadores que conseguem proezas admiráveis, aquelas que deixam a audiência de queixo no chão. Os pezinhos de lã alcançam o mesmo sortilégio dos que passam pelos pingos da chuva sem se molharem. Quando aterram, findam o silêncio farsante e despejam toda a ira com uma voz tonitruante, que amedronta até vultos experimentados. As vítimas só sabem que são vítimas quando já o estão a ser. Em abono da civilidade, deviam inventar uma lei para proibir a venda de pezinhos de lã. 

6.3.25

Eu sei que não tenho uma estrela Michelin

The Comet Is Coming, “Slammin”, in https://www.youtube.com/watch?v=QbNgv0RCF0g

Deviam acabar com a ditadura da excelência, o produto acabado de um logro que contraria a moda democrática de que todos usufruímos a igualdade pela mesma medida. Quando a realidade cai na vertical e sabemos que não somos aceites entre o escol, acusamos os outros, os que andaram a prometer a usura sobre a igualdade metódica, de terem fracassado na empreitada. 

Como não há uma caça a bodes expiatórios, o que menos interessa é alinhavar as culpas e distribuí-las de acordo com a quota-parte dos ideólogos da modernidade. A culpa será deles; precede-a a nossa responsabilidade: não somos desprovidos de inteligência e de capacidade hermenêutica, habilitamos as teorias que se aformoseiam para serem candeias que nos devolvem a luz guia, mas não podemos deixar de as comparar com o espelho que retemos do mundo. Se forem apenas especulativas, ou um retrato distorcido, rejeitamo-las.

Da procura incessante pela excelência irradia uma angústia duradoura, a concessão aos outros porque só seremos embaixadores da excelência se formos reconhecidos por eles. Ficamos à sua mercê, numa inversão da misantropia desaconselhada pelos curadores da vida em sociedade. Ah!, se o que interessasse fosse apenas o juízo que fazemos de nós mesmos, se não nos hipotecássemos aos juízos dos outros, talvez fôssemos um pouco mais o eu entretanto abdicado. 

E, contudo, não cessamos de cair num logro, alegremente iludidos por uma contradição que nasce em nós e é finalizada pela estocada dos outros. Temos de abdicar do eu para obtermos o reconhecimento que precede o elevador do mérito. Ao fazê-lo, a humildade de quem se ajoelha diante do escrutínio dos outros é uma intencionalmente forjada: os que se projetam no púlpito onde a excelência é reconhecida, depressa se desprendem da humildade e abraçam-se à arrogância autorizada pela excelência autorizada pelo escol. 

Se não estivéssemos dependentes deste ambíguo mealheiro feito de humildade e arrogância intelectual, o mundo seria menos irrespirável. Não seríamos escravos do dizer dos outros e não teríamos de esconder uma humildade que estamos prontos a desmatar assim que a excelência nos seja reconhecida. Se a muitos fosse concedida franquia para habitar na excelência, a excelência deixaria de o ser – e isso teria o efeito paradoxal de impedir a um numeroso grupo de tocar na coroa da excelência.

Se não desossássemos a humildade com o pretensiosismo de querer estar acima dos demais, seria mais fácil habitar o espaço vital. Não teríamos a mania das grandezas e ficaríamos interiormente gratos ao saber que tínhamos colocado o melhor de nós em cada empreitada. A tirania dos outros impede-o.

5.3.25

Estilhaços e epopeias

The Sugarcubes, “Hit”, in https://www.youtube.com/watch?v=Z5fAWpv_axs

A devastação consome a serenidade. Abatem-se sombras, malignas. Um odor pestilento atravessa as veias, a sórdida contaminação que desabastece o mundo de claridade. Os muros voltam a ser património, envergonhando os semelhantes que são reeducados como se apenas fossem diferenças. As manhãs crescem como se já fossem o anúncio da noite – e a noite transfigurou-se num palco que hospeda pesadelos, medonhos.

O mundo não se recomenda. Está entulhado por ideias que prescreveram e, todavia, entram pela porta dos fundos, reabilitadas, até se estabelecerem. As palavras são adulteradas para traduzirem hostilidade, agravo, falsificação, desconfiança, represália, desverdade. O sangue ferve e, ao mesmo tempo, parece hibernar. Diante deste espetáculo atroz somos presas fáceis se o silêncio for o mote. Sendo cúmplices pela apatia, deixando sem resposta as injúrias que estilhaçam um código de valores, uma pertença civilizacional tomada de assalto pelo medo que temos do medo infundido pelos mastins arregimentados. A falta de memória histórica é aterradora. O défice de interesse ajuda a branquear a falta de memória histórica.

A capitulação não pode ser a palavra de ordem. Nem a confortável posição em que ficamos quando endossamos a responsabilidade aos outros, à medida que os outros a vão endossando sempre para o vizinho do lado, e assim sucessivamente. O mundo está a precisar de heróis – de heróis modernos, que usem a palavra para demolir a agressividade que derrama sobre nós o abismo da hostilidade, numa beligerância geral que ameaça tomar conta do tempo. De heróis que não sejam feitos de bravura destemida e de demenciais atos de desprendimento do eu. Os heróis que são precisos querem-se vivos. Pois são os vivos que conseguem recolher os estilhaços e transformá-los numa cidade remoçada.

Esta é a epopeia que prometemos. Contra os filisteus que só se mantêm enquanto o mundo estiver do avesso, contra a desconfiança ilegítima que perfura a pleura da humanidade, contra os despojos intencionalmente vertidos sobre os nossos olhares entretanto desatentos, uma epopeia. Para não sermos cúmplices do avançado estado de decomposição dos códigos de conduta prescrito por aqueles que a História sentenciou. 

Ainda vamos a tempo dessa epopeia.

4.3.25

Vigília

Sigur Rós, “Fljotavik”, in https://www.youtube.com/watch?v=sW3LIMRh3C8

Corria depois do tempo para saber se a gramática herdada se prestava a um inventário demorado. A servidão insinua-se em gestos discretos, quase impercetíveis, empilhados num paradeiro que toma conta de muitos lugares. Entre os haveres despojados, a desesperança: parecia domado pela angústia que se fazia ao tempo como se fosse uma maré a crescer, imparável. Era tempo de travar a angústia e a desesperança.

Aos que protestam contra a colonização pela tremenda atualidade, retorquia que se somos presas do que nos amedronta temos um dever irrecusável de atalaia. Somos as vítimas prediletas dos predadores que se atiram à nossa vontade. Não podemos fazer concessões à desatenção para a vontade não ser colonizada por outros que dela se querem apoderar.

A vigília deve ser contínua. Nesse tempo contínuo, ao sono de uns corresponde a vigilância de outros. Ninguém quer ser vítima do acaso, ou condenado à irreparável decadência de quem se entregou à desatenção. Mal o arrependimento entre em cena, é sintoma dos acasos que poderiam não o ter sido se estivéssemos de vigilância. Temos de aprender com a experiência. Da contingência medra uma desconfiança metódica. Não é a desconfiança gratuita, como quem se sente acossado sem conseguir nomear os vultos opressores; é a desconfiança que se legitima nos socalcos da incerteza que tornam o devir tão fortuito. 

Acautelemos o modo de viver em que somos figurantes. Não interessa a posição em que subimos a palco. É a humildade profícua que converge para o papel de figurante. O que interessa é sermos o eu que de genuíno for possível – somos permeáveis ao contacto com os outros. Não nos deitemos à subjugação voluntária pela concessão à apatia. Sem um módico de vontade, ficamos à mercê das vontades outras que se congeminam. 

A vigília não é a oposição aos desacertos que parecem conspirar a nosso desfavor. É o salvo-conduto para guardarmos um lugar próprio do palco em que contracenamos. Conservemos a chave que franqueia a vigília, para não sermos meros vultos condenados a destroços sem serventia. Para não sermos os sujeitos passivos de uma servidão constante.

3.3.25

Cavalo sem freio

Paul Weller, “I Woke Up”, in https://www.youtube.com/watch?v=yvKjGf5g9Z8

Nem a noite aquietava o sangue ebuliente. Esperneava entre as veredas que abria com o focinho, como se fugisse de tudo, sem medo dos arbustos altos que cobriam o caminho. Perdera conta dos montes subidos e depois descidos, dos riachos atravessados, dos lugares por que passou sempre a evitar povoados humanos. Sentia o cansaço nas patas mas não podia parar. Às vezes abrandava, o corpo mandava respirar mais devagar, era a pausa necessária para carregar forças. 

Os cursos de água que apareciam pelo caminho vinham a calhar. Dessedentava-se. Sentia a água que descia pela garganta como o alívio da febre interior que o levou à fuga. A água fresca acalmava o coração. Ao chover, lembrava-se porque fugiu. As gotas da chuva que se recolhiam no dorso avivavam as feridas ainda abertas, os lanhos perpendiculares atravessavam as costas de um lado ao outro. Fugira há dois dias mas já tinha como distante a memória daquele circo onde era maltratado. Tão cedo não queria ver rostos humanos. Ganhou uma desconfiança metódica das pessoas. Mesmo daquela gente sem relação com o circo, cúmplices por omissão por continuarem a frequentar o circo.

Não sabia nada de geografia, nem sabia para onde ia. Continuava a trotear sem destino, errando no avesso da memória. Ainda se lembrava do chicote em riste quando o tratador o queria domar. Nunca percebeu a maldade: sempre foi dócil, nunca se insurrecionou contra as pessoas do circo. A violência do tratador tornou-se insuportável, insultuosa. Como se podia dizer que aquele homem era o seu tratador se o que ele fazia era destratá-lo?

Só não se queixava da comida: havia ordens no circo para os animais serem bem alimentados, não queriam que o circo passasse vergonha à custa de animais macilentos e adoentados. As pessoas estão cada vez mais atentas aos maus-tratos a animais, até há leis que castigam aqueles que castigam os animais. Tirando a alimentação (e o cuidado com o pelo, porque tinha de aparecer em público com o pelo sedoso), o resto eram maus-tratos. Dormia sob a égide das tempestades porque os trabalhadores do circo não queriam acordar a meio da noite para recolher as bestas. Os deveres periódicos de consulta com um veterinário eram esquecidos, as contas do circo estavam apertadas e a ameaça de falência pairava.

Quando teve oportunidade rasgou o arreio que o prendia a uma árvore com toda a força dos dentes. Não olhou para trás e correu com toda a força que as pernas tinham. Podia não saber de geografia, mas sentia que uma bússola interior o levava para os antípodas do lugar onde estava estacionado o circo. Não sabia o que seriam os amanhãs consecutivos. Mas não se importava com isso.

Agora, era um cavalo selvagem. Furtivo, mas livre. Longe de humanos, que o trauma dos humanos era uma ferida aberta enquanto a memória não se esvaísse. As montanhas em redor não tinham povoados por perto. Era capaz de encontrar refúgio para dormir e o lugar era pródigo em bagas, frutos silvestres e feno espontâneo. Não sabia quando ia morrer. Mas sabia que podia morrer sem sentir o sobressalto contínuo de uma mão a agredi-lo.

28.2.25

Sai um almirante para escanteio

Nils Frahm, “Hammers” (live at Montreux Jazz Festival), in https://www.youtube.com/watch?v=ycA7FtTX4CM

O almirante, o ainda não candidato à presidência da república que, todavia, está-se mesmo a ver que vai ser, é só fumaça. Na sexta-feira passada deu à estampa, no mais conceituado semanário da praça lusa, um manifesto. Mas depressa veio esclarecer que não era um manifesto. Dando seguimento às tergiversações mal fingidas que enfeitam a postura como candidato a candidato, o almirante reformado destapou o véu do seu “pensamento político” (as aspas não são por acaso).

Para sossego da mole que gravita no albergue centrípeto da paisagem política (o centrão), o almirante anunciou que está entre a social-democracia do maior partido do governo e o socialismo do maior partido da oposição. Tamanha equidistância revela um desejo tão ardente de seduzir essa multidão de eleitores (anda à volta de dois terços dos votos em sucessivas eleições) que o almirante, se der um passo em falso, cai para dentro do seu próprio abismo, pois situar-se tão diligentemente ao centro do centro faz com que não haja precipícios naturais que o queiram sobressaltar. 

Se era para revelar esta centrista precisão cirúrgica, melhor seria que o tivesse exteriorizado antes, quando foi despontando para o mediatismo ao gerir as vacinas contra a peste e ao aparecer em público como o disciplinador chefe da armada, pois o histrião centrista não é uma personagem convincente. Ademais, o almirante labora numa confusão intelectual que deixaria o seu nome na pauta dos reprovados se tivesse ido a exame de “Ideias Políticas”: a correspondência de ideologias entre os dois partidos que se situam dois milímetros à esquerda e à direita do almirante é a prova manifesta da desatualização ideológica do candidato (a candidato).

Não era o único exame que levaria o almirante a repetir uma disciplina no ano letivo seguinte. Ficaria aquém dos dez valores em “Direito Constitucional” e em “Fundamentos do Sistema Político”. O almirante forneceu umas notas hermenêuticas sobre o papel do presidente da república. Esse naco de conhecimento entra em choque frontal com as regras constitucionais e o sistema político vigente. Sem querer – ou talvez não, que no meio de tanta ambiguidade não é fácil perceber ao que vem o almirante quase candidato –, foi deixando cair umas palavras sintomáticas sobre o que deve fazer o futuro presidente da república no pressuposto que seja ele a ocupar a sinecura. Essas revelações quadram com os excessos de voluntarismo que gosta de exteriorizar em público, juntamente com a propensão para se dar a conhecer com homem providencial. Que interessa que as suas pessoais interpretações constitucionais sejam má doutrina por ser uma doutrina que nenhum perito subscreve? Ainda bem que o almirante anunciou ao que vem: se vier a ser eleito, será um ator de instabilidade.

O almirante desconfia das sondagens – e tem legítimas razões para desconfiar, tantos os abalos sísmicos eleitorais que têm desconstruído sondagem atrás de sondagem, ao ponto de sossegarem os espíritos que desconfiam de oráculos proclamando “é a sondagem, estúpido”, mas em versão alternativa que elimina a vírgula entre o substantivo e o adjetivo e transforma este em feminino. O almirante desconfia das sondagens que o elevam ao pedestal das preferências dos inquiridos por larga vantagem em relação à concorrência perfilada. De outro modo, não se entende como se situou cirurgicamente ao centro do próprio centro. Centro mais ao centro é impossível. Não parece que o excesso de centrismo do almirante seja genuíno, pois não corresponde à linguagem que o notabilizou. Este posicionamento é uma guinada oportunista, não vão as sondagens reveladas pecar por excesso quanto ao número de cidadãos que se manifesta favorável a que o almirante seja o sucessor de Marcelo. Daí o amor assolapado ao centrismo radical.

As insinuações de ativismo presidencial vertidas nas palavras publicadas pelo almirante confirmam-no como um inequívoco equívoco. Desconhece os fundamentos do sistema político e os sedimentos da Constituição, ou deles faz uma tresleitura (deixo ao critério do leitor concluir qual das duas hipóteses é a pior, suspeitando que as considera ambas más). Se o almirante vier a ser o próximo inquilino do Palácio de Belém, temos prometido um mandato marcado pelo ativismo histérico que, decerto, será do agrado dos seus constituintes (e aqui incluo apenas os que contribuírem para a sua eleição). 

Estamos perante um empate de desqualificações: escolher alguém que se distinguiu pelas capacidades de gestão no contexto de uma tarefa meramente burocrática (sem desvalorizar a tarefa numa época tão conturbada) para ocupar a presidência da república coloca ao mesmo nível o almirante e quem o eleger. Um presidente da república não é gestor de nada, nem o cargo remete para o poder executivo. É o caso típico de um “erro de casting”, como agora está na moda dizer-se: eleger um candidato por atributos que não correspondem ao exercício do cargo para o qual é eleito. 

Presumo que muitos eleitores têm o sonho molhado de ver o almirante a destratar políticos conceituados, como destratou em público os marinheiros que esboçaram um ato de rebeldia quando se recusaram a embarcar numa embarcação que estava sempre a avariar. Eles que sejam postos em sentido e para isso precisamos do espírito disciplinador do almirante. É preciso, pois então, arrumar a casa e pôr em ordem os desordeiros que desgovernarem o país. Quanto à separação de poderes, ela que seja mandada às malvas pela conceção original de ativismo presidencial que o almirante prometeu, e não apenas nas entrelinhas, aos seus seguidores e aos militantes e simpatizantes dos partidos que se situam “entre o PSD e o PS”.

Este primeiro ato do almirante como pré-candidato a candidato assemelha-se a um coito interrompido. Não na conotação pornográfica da expressão, pois o coito não foi voluntariamente interrompido, mas como resultado de um notório – para tomar de empréstimo uma palavra inexistente no léxico mas popularizada por uma ex-presidente da Assembleia da República – “inconseguimento”.