7.3.25

Pezinhos de lã (short stories #479)

The Hard Quartet, “Lies”, in https://www.youtube.com/watch?v=pahCJlZuMgc

          As mãos batem ao de leve, mas batem, como só as palavras conseguem bater. Quase sem dar conta, o pé-ante-pé que se insinua, dissimulado: quando é para dar conta, a invasão está consumada. Sem pré-aviso – mas quem acredita que as invasões devem obedecer a um aviso de receção, se nestes despreparos das almas não há código de conduta nem cavalheiros? E lá aterram eles, os pezinhos de lã, que entram sem bater à porta, a salto, como os salteadores. Não se sabe ao que vêm. Talvez notifiquem depois de materializada a agressão; tem de haver uma lógica para a agressão, por mais ilógica que seja. Talvez não apreciem a cor dos olhos. Ou a estatura. Ou as ideias. Ou talvez tenham ido aos arquivos para resgatar textos malditos que merecem punição ditada pelo desejo da maioria. Estes são crimes que não prescrevem. Nem que os textos subjacentes tenham sido expurgados, pois os diligentes censores têm meios de os extrair ao esquecimento. Nem que sejam textos entretanto renegados, que um bom censor (há-os, censores bons?) não transige com o arrependimento que pode ser apenas a colheita de um fingimento, oportunista. Os pezinhos de lã são um misterioso assomo de silêncio. Nem que o chão seja de madeira e a podridão semeie o ranger irremediável, os pezinhos de lã são como os prestidigitadores que conseguem proezas admiráveis, aquelas que deixam a audiência de queixo no chão. Os pezinhos de lã alcançam o mesmo sortilégio dos que passam pelos pingos da chuva sem se molharem. Quando aterram, findam o silêncio farsante e despejam toda a ira com uma voz tonitruante, que amedronta até vultos experimentados. As vítimas só sabem que são vítimas quando já o estão a ser. Em abono da civilidade, deviam inventar uma lei para proibir a venda de pezinhos de lã. 

6.3.25

Eu sei que não tenho uma estrela Michelin

The Comet Is Coming, “Slammin”, in https://www.youtube.com/watch?v=QbNgv0RCF0g

Deviam acabar com a ditadura da excelência, o produto acabado de um logro que contraria a moda democrática de que todos usufruímos a igualdade pela mesma medida. Quando a realidade cai na vertical e sabemos que não somos aceites entre o escol, acusamos os outros, os que andaram a prometer a usura sobre a igualdade metódica, de terem fracassado na empreitada. 

Como não há uma caça a bodes expiatórios, o que menos interessa é alinhavar as culpas e distribuí-las de acordo com a quota-parte dos ideólogos da modernidade. A culpa será deles; precede-a a nossa responsabilidade: não somos desprovidos de inteligência e de capacidade hermenêutica, habilitamos as teorias que se aformoseiam para serem candeias que nos devolvem a luz guia, mas não podemos deixar de as comparar com o espelho que retemos do mundo. Se forem apenas especulativas, ou um retrato distorcido, rejeitamo-las.

Da procura incessante pela excelência irradia uma angústia duradoura, a concessão aos outros porque só seremos embaixadores da excelência se formos reconhecidos por eles. Ficamos à sua mercê, numa inversão da misantropia desaconselhada pelos curadores da vida em sociedade. Ah!, se o que interessasse fosse apenas o juízo que fazemos de nós mesmos, se não nos hipotecássemos aos juízos dos outros, talvez fôssemos um pouco mais o eu entretanto abdicado. 

E, contudo, não cessamos de cair num logro, alegremente iludidos por uma contradição que nasce em nós e é finalizada pela estocada dos outros. Temos de abdicar do eu para obtermos o reconhecimento que precede o elevador do mérito. Ao fazê-lo, a humildade de quem se ajoelha diante do escrutínio dos outros é uma intencionalmente forjada: os que se projetam no púlpito onde a excelência é reconhecida, depressa se desprendem da humildade e abraçam-se à arrogância autorizada pela excelência autorizada pelo escol. 

Se não estivéssemos dependentes deste ambíguo mealheiro feito de humildade e arrogância intelectual, o mundo seria menos irrespirável. Não seríamos escravos do dizer dos outros e não teríamos de esconder uma humildade que estamos prontos a desmatar assim que a excelência nos seja reconhecida. Se a muitos fosse concedida franquia para habitar na excelência, a excelência deixaria de o ser – e isso teria o efeito paradoxal de impedir a um numeroso grupo de tocar na coroa da excelência.

Se não desossássemos a humildade com o pretensiosismo de querer estar acima dos demais, seria mais fácil habitar o espaço vital. Não teríamos a mania das grandezas e ficaríamos interiormente gratos ao saber que tínhamos colocado o melhor de nós em cada empreitada. A tirania dos outros impede-o.

5.3.25

Estilhaços e epopeias

The Sugarcubes, “Hit”, in https://www.youtube.com/watch?v=Z5fAWpv_axs

A devastação consome a serenidade. Abatem-se sombras, malignas. Um odor pestilento atravessa as veias, a sórdida contaminação que desabastece o mundo de claridade. Os muros voltam a ser património, envergonhando os semelhantes que são reeducados como se apenas fossem diferenças. As manhãs crescem como se já fossem o anúncio da noite – e a noite transfigurou-se num palco que hospeda pesadelos, medonhos.

O mundo não se recomenda. Está entulhado por ideias que prescreveram e, todavia, entram pela porta dos fundos, reabilitadas, até se estabelecerem. As palavras são adulteradas para traduzirem hostilidade, agravo, falsificação, desconfiança, represália, desverdade. O sangue ferve e, ao mesmo tempo, parece hibernar. Diante deste espetáculo atroz somos presas fáceis se o silêncio for o mote. Sendo cúmplices pela apatia, deixando sem resposta as injúrias que estilhaçam um código de valores, uma pertença civilizacional tomada de assalto pelo medo que temos do medo infundido pelos mastins arregimentados. A falta de memória histórica é aterradora. O défice de interesse ajuda a branquear a falta de memória histórica.

A capitulação não pode ser a palavra de ordem. Nem a confortável posição em que ficamos quando endossamos a responsabilidade aos outros, à medida que os outros a vão endossando sempre para o vizinho do lado, e assim sucessivamente. O mundo está a precisar de heróis – de heróis modernos, que usem a palavra para demolir a agressividade que derrama sobre nós o abismo da hostilidade, numa beligerância geral que ameaça tomar conta do tempo. De heróis que não sejam feitos de bravura destemida e de demenciais atos de desprendimento do eu. Os heróis que são precisos querem-se vivos. Pois são os vivos que conseguem recolher os estilhaços e transformá-los numa cidade remoçada.

Esta é a epopeia que prometemos. Contra os filisteus que só se mantêm enquanto o mundo estiver do avesso, contra a desconfiança ilegítima que perfura a pleura da humanidade, contra os despojos intencionalmente vertidos sobre os nossos olhares entretanto desatentos, uma epopeia. Para não sermos cúmplices do avançado estado de decomposição dos códigos de conduta prescrito por aqueles que a História sentenciou. 

Ainda vamos a tempo dessa epopeia.

4.3.25

Vigília

Sigur Rós, “Fljotavik”, in https://www.youtube.com/watch?v=sW3LIMRh3C8

Corria depois do tempo para saber se a gramática herdada se prestava a um inventário demorado. A servidão insinua-se em gestos discretos, quase impercetíveis, empilhados num paradeiro que toma conta de muitos lugares. Entre os haveres despojados, a desesperança: parecia domado pela angústia que se fazia ao tempo como se fosse uma maré a crescer, imparável. Era tempo de travar a angústia e a desesperança.

Aos que protestam contra a colonização pela tremenda atualidade, retorquia que se somos presas do que nos amedronta temos um dever irrecusável de atalaia. Somos as vítimas prediletas dos predadores que se atiram à nossa vontade. Não podemos fazer concessões à desatenção para a vontade não ser colonizada por outros que dela se querem apoderar.

A vigília deve ser contínua. Nesse tempo contínuo, ao sono de uns corresponde a vigilância de outros. Ninguém quer ser vítima do acaso, ou condenado à irreparável decadência de quem se entregou à desatenção. Mal o arrependimento entre em cena, é sintoma dos acasos que poderiam não o ter sido se estivéssemos de vigilância. Temos de aprender com a experiência. Da contingência medra uma desconfiança metódica. Não é a desconfiança gratuita, como quem se sente acossado sem conseguir nomear os vultos opressores; é a desconfiança que se legitima nos socalcos da incerteza que tornam o devir tão fortuito. 

Acautelemos o modo de viver em que somos figurantes. Não interessa a posição em que subimos a palco. É a humildade profícua que converge para o papel de figurante. O que interessa é sermos o eu que de genuíno for possível – somos permeáveis ao contacto com os outros. Não nos deitemos à subjugação voluntária pela concessão à apatia. Sem um módico de vontade, ficamos à mercê das vontades outras que se congeminam. 

A vigília não é a oposição aos desacertos que parecem conspirar a nosso desfavor. É o salvo-conduto para guardarmos um lugar próprio do palco em que contracenamos. Conservemos a chave que franqueia a vigília, para não sermos meros vultos condenados a destroços sem serventia. Para não sermos os sujeitos passivos de uma servidão constante.

3.3.25

Cavalo sem freio

Paul Weller, “I Woke Up”, in https://www.youtube.com/watch?v=yvKjGf5g9Z8

Nem a noite aquietava o sangue ebuliente. Esperneava entre as veredas que abria com o focinho, como se fugisse de tudo, sem medo dos arbustos altos que cobriam o caminho. Perdera conta dos montes subidos e depois descidos, dos riachos atravessados, dos lugares por que passou sempre a evitar povoados humanos. Sentia o cansaço nas patas mas não podia parar. Às vezes abrandava, o corpo mandava respirar mais devagar, era a pausa necessária para carregar forças. 

Os cursos de água que apareciam pelo caminho vinham a calhar. Dessedentava-se. Sentia a água que descia pela garganta como o alívio da febre interior que o levou à fuga. A água fresca acalmava o coração. Ao chover, lembrava-se porque fugiu. As gotas da chuva que se recolhiam no dorso avivavam as feridas ainda abertas, os lanhos perpendiculares atravessavam as costas de um lado ao outro. Fugira há dois dias mas já tinha como distante a memória daquele circo onde era maltratado. Tão cedo não queria ver rostos humanos. Ganhou uma desconfiança metódica das pessoas. Mesmo daquela gente sem relação com o circo, cúmplices por omissão por continuarem a frequentar o circo.

Não sabia nada de geografia, nem sabia para onde ia. Continuava a trotear sem destino, errando no avesso da memória. Ainda se lembrava do chicote em riste quando o tratador o queria domar. Nunca percebeu a maldade: sempre foi dócil, nunca se insurrecionou contra as pessoas do circo. A violência do tratador tornou-se insuportável, insultuosa. Como se podia dizer que aquele homem era o seu tratador se o que ele fazia era destratá-lo?

Só não se queixava da comida: havia ordens no circo para os animais serem bem alimentados, não queriam que o circo passasse vergonha à custa de animais macilentos e adoentados. As pessoas estão cada vez mais atentas aos maus-tratos a animais, até há leis que castigam aqueles que castigam os animais. Tirando a alimentação (e o cuidado com o pelo, porque tinha de aparecer em público com o pelo sedoso), o resto eram maus-tratos. Dormia sob a égide das tempestades porque os trabalhadores do circo não queriam acordar a meio da noite para recolher as bestas. Os deveres periódicos de consulta com um veterinário eram esquecidos, as contas do circo estavam apertadas e a ameaça de falência pairava.

Quando teve oportunidade rasgou o arreio que o prendia a uma árvore com toda a força dos dentes. Não olhou para trás e correu com toda a força que as pernas tinham. Podia não saber de geografia, mas sentia que uma bússola interior o levava para os antípodas do lugar onde estava estacionado o circo. Não sabia o que seriam os amanhãs consecutivos. Mas não se importava com isso.

Agora, era um cavalo selvagem. Furtivo, mas livre. Longe de humanos, que o trauma dos humanos era uma ferida aberta enquanto a memória não se esvaísse. As montanhas em redor não tinham povoados por perto. Era capaz de encontrar refúgio para dormir e o lugar era pródigo em bagas, frutos silvestres e feno espontâneo. Não sabia quando ia morrer. Mas sabia que podia morrer sem sentir o sobressalto contínuo de uma mão a agredi-lo.

28.2.25

Sai um almirante para escanteio

Nils Frahm, “Hammers” (live at Montreux Jazz Festival), in https://www.youtube.com/watch?v=ycA7FtTX4CM

O almirante, o ainda não candidato à presidência da república que, todavia, está-se mesmo a ver que vai ser, é só fumaça. Na sexta-feira passada deu à estampa, no mais conceituado semanário da praça lusa, um manifesto. Mas depressa veio esclarecer que não era um manifesto. Dando seguimento às tergiversações mal fingidas que enfeitam a postura como candidato a candidato, o almirante reformado destapou o véu do seu “pensamento político” (as aspas não são por acaso).

Para sossego da mole que gravita no albergue centrípeto da paisagem política (o centrão), o almirante anunciou que está entre a social-democracia do maior partido do governo e o socialismo do maior partido da oposição. Tamanha equidistância revela um desejo tão ardente de seduzir essa multidão de eleitores (anda à volta de dois terços dos votos em sucessivas eleições) que o almirante, se der um passo em falso, cai para dentro do seu próprio abismo, pois situar-se tão diligentemente ao centro do centro faz com que não haja precipícios naturais que o queiram sobressaltar. 

Se era para revelar esta centrista precisão cirúrgica, melhor seria que o tivesse exteriorizado antes, quando foi despontando para o mediatismo ao gerir as vacinas contra a peste e ao aparecer em público como o disciplinador chefe da armada, pois o histrião centrista não é uma personagem convincente. Ademais, o almirante labora numa confusão intelectual que deixaria o seu nome na pauta dos reprovados se tivesse ido a exame de “Ideias Políticas”: a correspondência de ideologias entre os dois partidos que se situam dois milímetros à esquerda e à direita do almirante é a prova manifesta da desatualização ideológica do candidato (a candidato).

Não era o único exame que levaria o almirante a repetir uma disciplina no ano letivo seguinte. Ficaria aquém dos dez valores em “Direito Constitucional” e em “Fundamentos do Sistema Político”. O almirante forneceu umas notas hermenêuticas sobre o papel do presidente da república. Esse naco de conhecimento entra em choque frontal com as regras constitucionais e o sistema político vigente. Sem querer – ou talvez não, que no meio de tanta ambiguidade não é fácil perceber ao que vem o almirante quase candidato –, foi deixando cair umas palavras sintomáticas sobre o que deve fazer o futuro presidente da república no pressuposto que seja ele a ocupar a sinecura. Essas revelações quadram com os excessos de voluntarismo que gosta de exteriorizar em público, juntamente com a propensão para se dar a conhecer com homem providencial. Que interessa que as suas pessoais interpretações constitucionais sejam má doutrina por ser uma doutrina que nenhum perito subscreve? Ainda bem que o almirante anunciou ao que vem: se vier a ser eleito, será um ator de instabilidade.

O almirante desconfia das sondagens – e tem legítimas razões para desconfiar, tantos os abalos sísmicos eleitorais que têm desconstruído sondagem atrás de sondagem, ao ponto de sossegarem os espíritos que desconfiam de oráculos proclamando “é a sondagem, estúpido”, mas em versão alternativa que elimina a vírgula entre o substantivo e o adjetivo e transforma este em feminino. O almirante desconfia das sondagens que o elevam ao pedestal das preferências dos inquiridos por larga vantagem em relação à concorrência perfilada. De outro modo, não se entende como se situou cirurgicamente ao centro do próprio centro. Centro mais ao centro é impossível. Não parece que o excesso de centrismo do almirante seja genuíno, pois não corresponde à linguagem que o notabilizou. Este posicionamento é uma guinada oportunista, não vão as sondagens reveladas pecar por excesso quanto ao número de cidadãos que se manifesta favorável a que o almirante seja o sucessor de Marcelo. Daí o amor assolapado ao centrismo radical.

As insinuações de ativismo presidencial vertidas nas palavras publicadas pelo almirante confirmam-no como um inequívoco equívoco. Desconhece os fundamentos do sistema político e os sedimentos da Constituição, ou deles faz uma tresleitura (deixo ao critério do leitor concluir qual das duas hipóteses é a pior, suspeitando que as considera ambas más). Se o almirante vier a ser o próximo inquilino do Palácio de Belém, temos prometido um mandato marcado pelo ativismo histérico que, decerto, será do agrado dos seus constituintes (e aqui incluo apenas os que contribuírem para a sua eleição). 

Estamos perante um empate de desqualificações: escolher alguém que se distinguiu pelas capacidades de gestão no contexto de uma tarefa meramente burocrática (sem desvalorizar a tarefa numa época tão conturbada) para ocupar a presidência da república coloca ao mesmo nível o almirante e quem o eleger. Um presidente da república não é gestor de nada, nem o cargo remete para o poder executivo. É o caso típico de um “erro de casting”, como agora está na moda dizer-se: eleger um candidato por atributos que não correspondem ao exercício do cargo para o qual é eleito. 

Presumo que muitos eleitores têm o sonho molhado de ver o almirante a destratar políticos conceituados, como destratou em público os marinheiros que esboçaram um ato de rebeldia quando se recusaram a embarcar numa embarcação que estava sempre a avariar. Eles que sejam postos em sentido e para isso precisamos do espírito disciplinador do almirante. É preciso, pois então, arrumar a casa e pôr em ordem os desordeiros que desgovernarem o país. Quanto à separação de poderes, ela que seja mandada às malvas pela conceção original de ativismo presidencial que o almirante prometeu, e não apenas nas entrelinhas, aos seus seguidores e aos militantes e simpatizantes dos partidos que se situam “entre o PSD e o PS”.

Este primeiro ato do almirante como pré-candidato a candidato assemelha-se a um coito interrompido. Não na conotação pornográfica da expressão, pois o coito não foi voluntariamente interrompido, mas como resultado de um notório – para tomar de empréstimo uma palavra inexistente no léxico mas popularizada por uma ex-presidente da Assembleia da República – “inconseguimento”. 

27.2.25

Devolver-te-ei em metade aquilo que me roubaste

Sigur Rós, “Fall”, in https://www.youtube.com/watch?v=_p050iNdREc

Das notícias: um francês foi vítima de roubo. Entre os haveres roubados estava a carteira e dentro da carteira estavam os cartões de débito e de crédito. Os “amigos do alheio” aproveitaram a conveniência do dinheiro eletrónico e fizeram umas compras. Situam-se entre os viciados em jogos de azar, pois os agentes do furto compraram um bilhete da lotaria. Ou então, os meliantes estavam a acautelar o futuro: já que a sorte ajudou no pé-de-meia do furto, quem sabe se com um cartão de crédito platina denotativo de elevado plafond mensal, podiam tentar a sua sorte. Estavam a investir no futuro usando uma porção dos objetos furtados.  

O bilhete da lotaria foi premiado com meio milhão de euros. Por uma série de circunstâncias que não é revelada na notícia, os ladrões não tiveram acesso ao prémio. Especulo: talvez a lotaria em França seja num formato virtual e os prémios são creditados na conta do titular do cartão bancário usado na transação. Continuando a laborar no universo das hipóteses, absurdo foi os ladrões terem completado a transação, pois não foi devolvida a prova da compra do bilhete da lotaria. O meio milhão de euros foi parar, sem desvios pelo meio, à conta bancária da vítima do furto.

Se os “amigos do alheio” tivessem deitado mão à cautela premiada, dir-se-ia que este era dinheiro sujo, ilegítimo? Se eles tivessem ficado com uma prova física da lotaria, seriam os legítimos titulares do prémio. Teriam feito uma pequena fortuna à custa de um ato ilegal e censurado pela sociedade. Seria à boleia do dinheiro alheio que teriam enriquecido meio milhão de euros. Isso não interessava à empresa que organiza a lotaria. O dinheiro que circula nestas operações comerciais não tem nome. Se não fosse pela conjugação de acasos (ou pela ignorância dos ladrões), este seria um caso paradigmático de redistribuição da riqueza com conotações ilegítimas, mas só se fosse possível rastrear o dinheiro que pagou o bilhete premiado. Não sendo o caso, ninguém podia objetar à redistribuição de riqueza operada.

Ainda mais insólito é a vontade da vítima do roubo, que quer dividir o prémio da lotaria com os ladrões. A vítima argumenta que se não fosse a iniciativa dos ladrões ele não tinha a conta bancária empolada em meio milhão de euros. Por isso, anunciou a intenção de mear o prémio com quem o conseguiu, muito embora ele tenha sido o financiador involuntário da transação. 

Este comportamento não quadra com o comportamento padrão. A vítima habitual teria esfregado as mãos de contentamento ao saber-se abastada em meio milhão de euros. Teria condenado o furto e os seus autores e não descansaria enquanto a justiça não os perseguisse e concluísse o processo com exemplar punição em lei prevista. Não teria agradecido aos criminosos por o produto do furto o ter enriquecido. Teria rematado o raciocínio, deliberando sobre a ilegitimidade do ato que o fez meio milhão de euros mais rico. Atribuiria importância à ilegitimidade dos meios e não ao resultado alcançado. Tudo escorreito, de acordo com os padrões que correspondem às boas normas de conduta nos orientam.

A vítima do roubo entrou em rota de colisão com a boas normas de conduta. Reconheceu que não teria aumentado o seu pecúlio em meio milhão de euros se não tivesse sido assaltado. Este foi um assalto em proveito próprio, ainda que a ligação entre a causa e o efeito seja acidental. Para a vítima, não importa avaliar a legitimidade dos meios. Ateve-se ao resultado, reconhecendo que não seria possível se naquele dia e naquele lugar os “amigos do alheio” não tivessem deitado a mão à carteira que não era deles. A intenção de devolver metade do prémio aos ladrões é o ponto de chegada deste raciocínio. Um quarto de milhão de euros é suficiente para a vítima do furto. O outro quarto de milhão de euros compensa a diligência dos ladrões, que tiveram a perspicácia de apostar um quinhão do furto num jogo que, desta vez, foi de sorte.

Os desconfiados e os que não aceitam o comportamento altruísta da vítima do furto dirão, à procura da conspiração do momento, que a boa vontade é a fingir. Tudo não passa de uma encenação combinada entre a polícia e a vítima para atrair os autores do furto que, entretanto, estão em paradeiro incerto. Seduzidos pela possibilidade de serem recompensados com duzentos e cinquenta mil euros – como se o produto do furto fosse esse valor e, ainda por cima, com a caução de quem foi roubado –, os ladrões foram convocados para receberem a maquia prometida. Assim que se chegarem à frente, lá estarão as autoridades para julgarem a ilegalidade do ato que deu origem ao acontecimento. 

Este comportamento é típico de gente aprisionada nos padrões e que não tem elasticidade intelectual para, à semelhança da vítima do furto, compensar uma injustiça (a ilegalidade de que foi vítima) com uma justiça devida por ter beneficiado do resultado do assalto. É a diferença entre não ter sido roubado e não ter meio milhão de euros na conta bancária e ter sido roubado e, por esse motivo, estar meio milhão de euros mais rico. Dividir os ganhos ao meio com quem os proporcionou é da mais elementar justiça. Nem que essa justiça esbarre na ilegitimidade dos meios e no choque psicológico dos cidadãos padronizados.

26.2.25

Atravessar as pontes é o contrário de definhar mergulhado sobre o umbigo – e o bem que isso faz!

The Mysterines, “Dangerous” (Live at Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=F2q3C1Vj3pY

Os covardes é que têm medo que um elefante pegue numa arma e comece a disparar balas sem critério. Os covardes deviam saber que é o elefante que tem medo de nós, apesar do tamanho e da força que tem. Os covardes só o são porque se apequenam no seu mundo exíguo. As fronteiras são uma proteção contra a alteridade; ser diferente é uma estranheza que não deixam entranhar, reagindo com agressividade à aproximação do outro. Definham na estreiteza das fronteiras mentais, que são mais pequenas do que as fronteiras com marcos.

Soubessem ser maiores de pensamento, tivessem a curiosidade de cursar as pontes que se levantam para terminar com a separação das terras diferentes, e talvez perdessem a força para serem covardes. Ao contrário do que pensam os lugares-comuns, é preciso ter força para ser covarde. É uma força que deles faz porta-estandartes de uma geografia dependente de estremas. Uma força que se transfigura em fraqueza: o somatório de raias que distinguem terras deseduca as pessoas, que recusam partilhar um devir com os outros que estão em territórios contíguos. E até com os outros, mais distantes e com uma identidade ainda menos afim.

As barreiras mentais são desconstruídas de cada vez que atravessam pontes que aproximam o que dantes, quando o tempo estava mergulhado nas suas trevas, era a força motriz da diferença abjurada. As pontes levam as pessoas a outros lugares. Quanto maior for a distância percorrida e mais as pontes atravessadas, menos afins são as pessoas. E maior é o crescimento interior dos que se atiram de cabeça à aventura de dar a saber a existência de outros mundos e outros outros. 

Quem tem medo dos outros e reage com agressividade, como se os outros fossem um agravo à coutada onde se enquista a identidade fechada dos covardes, é refém de um labirinto em circuito fechado. O pensamento não chega à maioridade. Desfalece quando se aproxima da porta que o separa do outro. Estes são os conservadores que se refugiam em fortalezas interiores. Fogem, cheios de medo, da versão atual, e cosmopolita, do mundo. Para mergulharem sobre o umbigo, a apequenar. 

25.2.25

O avesso do mundo

The Smile, “Don’t Get Me Started” (James Holden Remix), in https://www.youtube.com/watch?v=jploYl1mL2M

              Que juros levamos aos vultos que se sobrepõem aos sonhos?

Desde os bancos do jardim, onde é possível contemplar o tempo no seu vagar (afinal, o tempo corre a velocidades diferentes), as nuvens que alisam o céu parecem pequenas vírgulas que se sobrepõem num pano límpido. O olhar não está refém da atualidade. Libertou-se das suas amarras. Tem de haver tempo, entre o tempo que nos está destinado, para nos exilarmos do planeta grotesco que insiste em desfigurar o mundo heurístico que a espécie continua a despovoar com a sua insidiosa mão apocalíptica.

Não se compõem os versos capazes ao sufragar cada linha que se adiciona ao inventário do mundo – o que virá a ficar conhecido como História. De vez em quando, olhares conspiradores averbam o lado mau. Fazem um favor feito a quem quer saber das compensações que o mundo, apesar de tão agredido, continua a legar. Devia ser levantado um tratado monumental à prodigalidade do mundo. Mesmo sendo tão vilipendiado, não escapa ao dever que ninguém lhe imputou. Ninguém se pode queixar de tamanha generosidade. 

As vozes que dançam não perturbam o sono dos tutores da bondade sobrante. Toda a fealdade que se abate sobre o horizonte, como se tratasse de retratar, numa tela baça, o circunspecto e plúmbeo cenário que encerra em formol uma cidade que exacerba a decadência industrial, surge como um bouquet de flores flácidas e descoloridas. A essa fealdade devia ser atribuída uma autoria, para que fossem dissolvidas as dúvidas que adejam sobre os mais céticos: os mastins seriam identificados. Uma trovoada pode não ser o palco medonho onde se arrebatam os medos; pode ser uma tela esplêndida, os flashes irradiando ao acaso, interrompendo a escuridão que costura a noite. Desde que os mastins estejam inventariados.

Não se pergunte pelo paradeiro das recompensas se não elas não forem inteligíveis. As marés sucedem-se, espaçadas pela regra do tempo. Os olhares que se encantem com a dádiva do luar, o sortilégio da alvorada, a coreografia de diferentes luzes que se desembaraçam da escuridão. As mãos ungidas pelos versos que são o úbere da inspiração vestem-se no disfarce do tempo. 

O mundo não é aquilo que vem nas notícias. É o que está no seu avesso.

24.2.25

O teu nome é uma pergunta

Fontaines DC, “It’s Amazing to be Young”, in https://www.youtube.com/watch?v=MjI1L0dBAVI

A cordilheira não assusta quando a vemos ao longe. Parece um oásis. A distância que emagrece ao correr da ilusão de ótica arrefece a intimidação. Ou talvez não: nós é que tutelamos a métrica dos lugares, nós é que arranjamos o astrolábio que nos devolve os quilómetros que distam dos lugares desejados. Para depois sabermos nomear todas as maratonas feitas.

Não se aformoseiam os nomes na doutrina efémera que os distingue por camadas. Os nomes levitam, desprendem-se das pessoas que passam nas ruas sem serem um nome concreto. Não lhes é dedicada indiferença, pois não nos despojamos do cais da humanidade e as pessoas, por mais que se encubram no anonimato, continuam a ser pessoas. 

Devia ser dever perguntar o nome de todas as pessoas que viessem de frente. No enredo ensaiado, tomo como garantido que as pessoas não se refugiavam no anonimato; e não invocariam leis que conferem a reserva de identidade a quem quisesse esconder o nome. A demanda seria emulsionada com uma pergunta. Para depois poder dizer que os nomes das pessoas interpeladas são a pergunta maior que se pode imaginar.

Na escola devia ser obrigatório aprender a fazer perguntas. Melhor dizendo: aprender a saber fazer perguntas. Para afivelar os estilhaços colhidos com as mãos enquanto o crepúsculo se demora ao ser o verso do entardecer. Para a intuição ajudar a terraplanar as colinas aguardadas que desencorajam as empreitadas apalavradas. Para inventariar os nomes que ficam por contar e emoldurar os outros que se alistam no labirinto da alma. 

O teu nome é uma pergunta. Não espero uma resposta. Não quero uma resposta. Deixo às perguntas o sortilégio do teu nome, se a ele vier beber uma vida sentida por dentro, sem capatazes nem procuradores à espera de arrematar o magma em ebulição. Se a ele vier beber a minha boca.

21.2.25

O cavalo de Troia, não a caixa de Pandora

Kim Deal, “Big Ben Beat”, in https://www.youtube.com/watch?v=f-rFrdF6NzQ

Dantes as guerras não passavam na televisão. As revoluções, também não. Mas dantes era quando não havia televisão. As duas hipóteses nem deviam ser lembradas, por manifesta impossibilidade. Seria como trazer do futuro as condições vigentes para o presente, mas ninguém pode reivindicar profecias, a menos que seja displicente.

Agora que as televisões narram em direto as atrocidades em que alguns humanos se empenham, nem assim se aplica um código de conduta às guerras – é o que protestam alguns ingénuos, convencidos que a espécie é credora de confiança. Devia ficar estabelecido que as guerras não obedecem a códigos de conduta, pois uma guerra é, para os devidos efeitos, uma desconduta. É como chamar “civil” a uma guerra, das mais hediondas contradições de termos em que a semântica beligerante é pródiga.

Outros, padecendo de miopia intelectual (para não levantar hipótese ainda menos simpática para as respetivas capacidades cognitivas), metem o avesso na análise e decretam a vítima como algoz, ilibando o algoz, depressa constituído em manso carneiro que nunca praticou o mal nos outros (sobretudo quando estão perigosamente no sopé de um arranha-céus a dançar com o precipício). 

Às vezes, o sucedâneo da justiça divina passa à prática. Ou pelo menos, espera-se que assim seja – escorregando para as tremendas profecias autorrealizáveis que poucas vezes se confirmam quando o futuro beija o apeadeiro. As muitas caixas de Pandora podem conter o inesperado. Por exemplo, um cavalo de Troia. Esplêndido, majestático, deixando inebriados os transeuntes da cidadania que andem nas digressões diárias pelos palcos que contam. Eles e os mandantes, habituais peritos em tresler a verdade, escorregando para uma procissão de mentiras que se encavalitam fazendo com que a mentira minta a si mesma, que seja mentira da própria mentira.

Do opulento cavalo de Troia estará prestes a sair uma milícia à revelia dos poderes, equipada com o desassombro do método filosófico, só para interrogar os embaixadores da impostura sistemática e os fazer cair do pedestal. Haverão de saber que não compensa a usura que amanhece no matrimónio da ignorância com a mentira compulsiva. A opulência do cavalo entontece os incorrigíveis embaixadores da beligerância. Por um efeito quimérico, serão desapossados do arsenal de mentiras e aspersados com um módico de inteligência. 

Maquinalmente, encerrarão as caixas de Pandora e passarão a andar com o cavalo de Troia à lapela.

20.2.25

Razia

The Mysterines, “Stray”, in https://www.youtube.com/watch?v=4NquU--FL9Y

Não se aconselhavam com os (assim proclamados) procuradores das almas. Por mais que a ajuda fosse precisa, recusavam a intromissão. Preferiam a razia, a devastação total que encontravam nos corredores da alma. Ao menos, essa era a sua devastação. O resultado dos seus erros, até os que fossem intencionais, era da sua lavra. Noa fugiam dessa responsabilidade, não a fingiam, nem a endossavam para o lado. Se devia haver curadores das almas, que atuassem na interiorização da responsabilidade de que as pessoas não se podem exilar. 

Os escombros que sobejavam, depois de uma incursão metódica pelo erro, traziam à tona dores às vezes excruciantes. Mas eram as dores intrínsecas aos atos que ecoavam na linha de produção dos erros. Era uma razia: por mais que fossem as juras de não voltarem a frequentar o erro, passava uma temporada e o erro voltava a ser visitado. Como já tinham aprendido que o arrependimento não esconjurava os erros futuros, afastavam-no do palco a que subiam as decisões.

Uma vez, alguém (um talvez candidato a treinar almas dos outros, pela pose exposta) insinuou que o erro não existe. O que existe são as consequências dos atos, que não quadram com as intenções alinhavadas. Disse: não dominamos o que nos rodeia, as contingências podem fracassar os propósitos atribuídos a uma decisão. A decisão teria boas intenções, mas as circunstâncias, que não podemos domar, conspiraram contra a finalidade pretendida. Concluiu: isso não pode ser tido na conta dos erros. 

O pusilânime aspirante a guru das almas foi enjeitado – ficou a falar sozinho. Propunha uma farsa. Os atos têm consequências. Se forem determinados por uma conjugação de acasos, essa é uma contingência que não podemos encobrir. Se falhamos, assumimos a responsabilidade. Não procuramos expedientes para vestir uma máscara ao logro. Por mais que seja uma razia, a responsabilidade não se dissipa na vontade de nos exilarmos por dentro de nós. Falhamos, gloriosamente. E voltamos a falhar, se preciso for.

19.2.25

Dá-lhe com a alma!

Explosions in the Sky, “The Ecstatics”, in https://www.youtube.com/watch?v=iOwOUvdmsn8

Podiam ser os arrozes puídos a desembelezar as coisas próximas. O nevoeiro arrastava-se para horas impróprias. Era de propósito: enquanto o nevoeiro estivesse hasteado, só deixava ver as coisas pela sua volumetria baça. 

Era parecido com os comportamentos que fervilhavam de bandeira em bandeira, soezes e boçais, atirando toda essa gente para o estirador contra a sua vontade. Não havia como fingir. Na coutada de um arsenal implacável, insinuavam-se entre os poros da pele recolhida, como se fossem mastins a roer os ossos. 

Disseram, em tom paternal de conselho: deixa-os a falar sozinhos. Eles desmatam a sua própria indigência, almas errantes que porfiam os dias tauxiados nos mais fundos interstícios da pele – como é mester dos parasitas. Saberiam os conselheiros que de tão embebidos na carne podia ficar contagiado pela boçalidade e ser tão canhestro e pária como eles?

Recusou o conselho. Temia que os efeitos secundários não demorassem e acordasse o que sempre odiara nos outros. Tinha de contra-atacar. Enviou a convocatória: estavam suas excelências convidadas a comparecer no adro da igreja ao anoitecer, aproveitando a solidão a que destinam o adro quando as pessoas se encomendam à preparação do jantar. Podiam vir quantos quisessem, um exército inteiro. (Pensou em voz interiormente sussurrada; não o disse de viva-voz para não emprestar trunfos aos canhestros.) Havia de lhes dar com a alma com tanta força que se extinguiriam na bruma caudalosa deixada à sua passagem.

No dia combinado, a alma estava pronta a ser arremessada. Os demónios disfarçados compareceram em número assinalável. Podia ser pior se fossem mais. Alguns atiraram uma salva de boomerangs. Eram espertos: se não fosse atingido, os boomerangs regressavam à casa da partida (quem inventou os boomerangs estava na vanguarda da economia circular). Não se intimidou, desviando-se criteriosamente, com a destreza de um acrobata, de todos os boomerangs. Contra-atacou: atirou-lhes pedaços da alma que estavam em cultura, investidos com a diligência de quem pressente ter de se defender com a própria alma. 

Os mastins ficaram azamboados. Não estavam habituados a almas, não sabiam o que era ter uma. Cada grama de alma atiçado na sua direção enfraquecia-os, ficavam macilentos. A alma tinha uma qualquer propriedade que atuava como veneno que quebrava os vultos enraivecidos. A alma derrotista enfim tinha serventia: derrotara os mastins que mordiam nas canelas e queriam colonizar cada átomo da pele, e depois a carne restante, até deixar de ter alma, devorando-o de dentro para fora. 

Acabaram por provar do próprio veneno, os desgraçados. Deles não reza o passado.

18.2.25

Os inúteis

Sharon van Etten, “No One’s Easy to Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=cBBRTiE4p0s

Andrajos remexidos na vertigem do tempo, como assombrações que conduzem os navios e os levam, errantes, contra o império dos ventos dominantes, contra a vontade orquestrada na praia-mar do destino.

Conspiradores que não sabem o que fazer do tempo, a não ser emagrecê-lo.

Tiranetes disfarçados de querubins, com asas e tudo, e um rabo de palha tão extenso que lá caberiam os habitantes da pequena cidade encavalitada no dorso do demónio, choram convulsivamente bebendo as lágrimas que escorrem dos olhos até à boca para alimentar a hipocrisia que os apascenta.

Vulgares vozes curtidas pela ignorância despejam saliva fétida para cima de recém-nascidos, antes que eles retardem a prescrição da inocência e o mundo se arrependa da sua linhagem.

Forcados em desespero vociferam pregões gastos enquanto os déspotas costuram as bainhas da angústia.

Sereias espalmadas, como se fossem chicotes à espera dos degredados, embebem-se nas manhãs arrependidas enquanto os olhos insaciáveis respondem às preces limítrofes.

A salva desenferrujada da prata consumida, adornada por espelhos que não deixam mentir, está sempre de atalaia.

A procissão de mentiras é o medicamento contra a inviabilidade do mundo.

Há vozes que tartamudeiam idiomas sobrepostos e as pessoas fogem da solidão que se acastela quando a noite beija o céu.

O propósito é questionado, como se as peças se movessem no tabuleiro com o repto da imortalidade, o equilíbrio precário que não deixa o corpo despenhar-se no vazio.

Às mãos que procuram mãos, a nunca inútil demanda perfumada pela voz cavernosa que murmura os segredos que pressentem o carinho.

As bandeiras içadas no avesso da madrugada, soltas como antídotos contra os sobressaltos telúricos.

Poemas, sempre poemas, a gramática gorda disfarçada na lhaneza das palavras, como étimo dos povoados de onde foram exilados os déspotas.

Provérbio como refúgio, ou apenas o eufemismo da banalidade – e quem deixa de ser colonizado pela auto-organização do pensamento para evitar, com critério, o recurso aos provérbios?

Aos inúteis: que não disfarçam a sua condição e amoedam a humildade no constante avesso dos príncipes que esgotam o stock de tolerância.

17.2.25

O rabear de Bukowski

Morgan Nadler, “Cradle the Pain”, in https://www.youtube.com/watch?v=d91xdIax-xw

À altura da lucidez, um tirada sem corpete, a aliança certa com um estado demencial. Poderá ser apenas provocação, a vontade de desafiar os que se habituam a levar uma vida desinteressante e que nunca interrogam a existência – e dizem: é um favor que lhes fazem, se eles tiverem a lucidez de soltar as amarras que os condenam à apatia. Ou poderá ser mesmo critério, um apelo interior de rebeldia a atravessar as avenidas instaladas que odeiam os que se sublevam contra os costumes. 

À altura dos artistas rebeldes que nunca sossegaram a não ser na morte: deles é a licença amortalhada que tudo deitou a perder nas vezes em que o ar parecia combinar com um módico de estabilidade. E eles, insatisfeitos, incapazes de empunhar uma clepsidra de estabilidade, voltavam tudo do avesso. Pois o avesso é a sua ordem desordenada, ou o caos organizado, uma miríade de contradições intencionalmente terçadas num concurso de figuras de estilo. 

As biografias póstumas não escondem a ambiguidade: génios que merecem admiração, mas que se fossem pessoas comuns eram enjeitadas como párias. Só esta contradição já fermentou muita prosa sobre a contaminação do artista com o seu espírito não recomendável, ou se a pessoa tem de ser desligada do artista para salvar a obra e salvar o artista da pessoa. À conta deste exercício que tem demorado os exegetas, os insurretos foram pródigos ao darem tanto que falar. 

A forquilha acena como se fosse um espantalho. Amedronta as pessoas comuns. Os desalinhados, mergulhados na misantropia, agarram-se à forquilha e confirmam-se espantalhos. Agem como se precisassem de um agente exterior, uma substância que seria evitada pelas pessoas comuns, para avivar a personalidade que os torna reprováveis. Reprováveis pelos mesmos que os pajeiam, desfazendo-se em genuflexões à altura da genialidade da obra. Gente que disfarça não sentir o desdém dos génios que louvaminham, fazendo de conta que não ouvem os impropérios que o génio profere sem cuidar de os disfarçar. Ainda agradecem, com o sorriso amarelecido de quem finge não ter sido ultrajado – tudo em nome da arte, o expediente sublime para tolerar o que nos outros seria intolerável. A arte ascende ao calabouço onde sepulta a igualdade.

Os génios industriam as artes a tiracolo do mau feitio. Há quem diga que é condição exigível para chegar ao púlpito de uma arte. O que serve para atear a centelha do otimismo antropológico, como se fosse entoada uma hossana à humanidade: se os génios são uma ínfima minoria, os outros todos são boas pessoas. Nem que Bukowski rabeie de raiva, a título póstumo.

14.2.25

O dia dos namorados segundo o profeta do desamor

The Comet is Coming, “All That Matters Is the Moments”, in https://www.youtube.com/watch?v=7KfenRxWWnY

Digo já: por mim, o calendário saltava de treze para quinze de fevereiro. Ajudava-me a saltar o dia dos namorados, esse interminável cortejo de exibições de amor pueris, ou do amor que não passa de um exercício laboratorial (como uma artificial encenação que encerra). Saltava a data para não ser agredido pela impostura dos que celebram o que não praticam, ou que confinam a celebração a esse dia porque o amor anda esquecido nos outros trezentos e sessenta e quatro dias.

Digo já: nunca fui pinga-amor, nem sou bota-de-elástico ao ponto de ter de disfarçar a inveja. O desamor que me abraçou dispensa a liturgia da efeméride. Prefiro não ser acusado de olvido da celebração, quando devia ter marcado mesa num restaurante que parece o casting de uma comédia romântica de quinta qualidade, ou adquirido a peça de lingerie que combinaria com a noite especialmente reservada num hotel especialmente de charme, ou que me esqueci do bouquet de flores, ou do frasco de água de colónia evocativa dos íntimos laços que exigem a demorada genuflexão que é outra maneira de aderir ao encantamento dos comerciantes, sempre na linha da frente na organização do dia mundial disto-e-daquilo só para arranjar um pretexto para convencer os alineados pelo consumo a engrossarem a patologia. O dia dos namorados é um franchising do comércio ávido de patos.

Aviso já: não me atirem o opróbrio da inveja pelo estado geral de enamoramento que adultera o ambiente com um céu exuberantemente cor-de-rosa. Por conta do meu cadastro, padeci umas quantas vezes no ninho do amor, que se transfigurou num antro de terrores que me trouxe à correspondência entre amor e pesadelo. À conta do proverbial desligamento do mundo (eu, que não sei quem é uma personagem chamada Bruno de Carvalho), fui vítima de iracundas reações por ter omitido os deveres amorosos que devem ser ativados, sobretudo, no dia que falsamente convoca a celebração do amor. Depois disso, fiquei noivo do desamor e vesti a definitiva viuvez do amor.

Era só um favor que me faziam, se saltassem de treze para quinze de fevereiro, para espantar a ausência de nostalgia que me coloniza quando sou testemunha dos juvenis devaneios de não juvenil gente aprisionada à tirania da data convencionada. Para misérias humanas, passo os olhos pelas páginas dos jornais ansiosamente à espera de preciosas prédicas de cronistas iluminados, com quem aprendo a defender o contrário do que escrevem – ou os olhos e os ouvidos contrariados por um artista da nova vaga que reabilita uma qualquer canção de protesto enquanto ergue o punho fechado sem saber de História das ideias políticas. 

Ao menos, aí, não há desamor que seja ameaçado pelo espectro do amor.

13.2.25

Não ponhas os ovos todos no mesmo cesto

The Chemical Brothers, “Block Rockin’ Beats”, in https://www.youtube.com/watch?v=iTxOKsyZ0Lw

Este cheiro constante a manicómio abate-se sobre a pele. Esse odor fica entranhado. Não me conto à conta dos naturais e contranaturais utentes de um manicómio. O pior é que se fala de autênticos orates; se fosse uma loucura apenas irresponsável, não desligada de alguma lucidez, uma loucura afinal sensata, o exílio necessário do ar irrespirável que asfalta os poros e arremata uma pertença insuportável, seria uma loucura afinal responsável. Uma metáfora de loucura que não dá direito a internamento preventivo num manicómio. A loucura como válvula de escape de uma loucura de piores proporções.

E, todavia, todas as engrenagens estão colonizadas por grãos de areia que exsudam a loucura maniqueísta, a loucura tremenda que se enraíza nos ossos até nos desumanizar. Talvez sejamos todos loucos. E aspiremos à finitude apenas enquanto somos titulares do tempo por conta. Fica por dizer: somos todos para sempre – e não se adultere a oração, pois o sempre só tem validade enquanto tivermos posse da vida. O sempre que permanece depois de as cinzas serem depostas no lugar prometido é um sempre sem lugar. Dizê-lo não é manifestação de loucura.

Somos meros figurantes no concurso demencial que participa dos dias. Sem sermos fiéis depositários dessa loucura, que se incrusta na medula como agente adormecido que porfia nos seu efeitos, que nos encomenda para uma hibernação não reconhecida. Cruzamo-nos uns com os outros com a indiferença tatuada no rosto. Só reconhecemos os loucos oficiais, os que habitam em manicómios. Não admitimos a concurso todos os outros que não foram convocados para o manicómio mas são cúmplices agravados da loucura instalada. O silêncio ativa a cumplicidade. Podemos ser todos loucos por omissão.

Melhor seria se não disfarçássemos. Sobre-humano é o esforço para fingir a loucura, ocultando-a atrás de um véu puído que vai deixando à mostra uns fragmentos através dos rasgões que se abrem na fazenda. Somos todos os ovos de um mesmo cesto, tributários da mesmice castradora que entranha os agentes ativos da loucura. Mas não sabemos. Ou fingimos que não sabemos, com a altivez de quem se leva muito a sério e fica sozinho a reconhecer a iconoclastia que floresce exuberantemente. Não sabemos: essa altivez é a contraprova da demência que é o agente genético da espécie. Ovos da mesma espécie, apodrecemos enquanto fingimos a nossa decadente exuberância.

O mundo, esse, é um manicómio único, com a extensão do mundo inteiro. 

12.2.25

Como aprender a respirar dentro de água

Hinds, “Boom Boom Back” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=x1LAIfWNWpM

Barbatanas a jeito, óculos em riste, que a água pode ferir os olhos e o olhar clarividente não é dispensável. Lugar escolhido: o mar salgado, nunca teve empatia com águas doces. (Ao contrário, na gastronomia é um doceiro nato.) Não é um certame, mas não deixa de ser um desafio: mergulhar nas profundezas do possível (ou nas possíveis profundezas, o que alcançar primeiro) e hibernar subaquaticamente, sem precisar de treinar a apneia, sem levar oxigénio a tiracolo.

Lacrado o desafio em papiro solene, começou a pensar na empreitada. Respirar debaixo de água é para os peixes. Há humanos que se especializam na apneia, treinam a respiração para se aguentarem debaixo de água sem respirar. Há pescadores no Japão que conseguem aguentar um tempo impressionante, e muitos deles são septuagenários. Os corpos adaptam-se aos desafios do meio que os envolve. 

Mas não era de apneia que se tratava. Tinha sido desafiado a respirar dentro de água, como os peixes conseguem. As vozes, em surdina, não paravam de dizer, em registo ululante: “tu consegues, tu consegues! Manda-te ao mar, vai lá para dentro e respira como os peixes, respira dentro da água, não sejas covarde.” Ao início, desconfiou que as vozes lhe queriam mal. Não temos guelras como os peixes, respirar no meio subaquático era catastrófico, os pulmões encher-se-iam de água e a morte estava acertada.

Ou então, era só um pesadelo. Desfilando com o vagar próprio do meio subaquático, os corpos paulatinos como são os dos astronautas quando desfiam a gravidade zero. As pessoas respiravam, falavam com os peixes, mercavam impressões como se a linguagem fosse a mesma. Ninguém tinha a pele encarquilhada: talvez àquela profundidade a água escondesse uma característica que desenrugava a pele. Ainda alguém há-de ir a tempo de descobrir o secreto nutriente que preserva as células da pele e a desenrugam. 

Aprender a respirar dentro de água era um pretexto para encontrar um elixir da juventude para a pele. A menos que este fosse um sonho suicida e o mar não aceitasse o tirocínio dos humanos a respirarem dentro de água: era como se uma autoridade anti-concorrência fiscalizasse os mares, impedindo os humanos de concorrerem com os peixes dentro de água.

11.2.25

O justo beijo (short stories #478)

The Cult, “Painted on My Heart”, in https://www.youtube.com/watch?v=Ctyh2B3-I-0

          A boca traduz o belo livre do medo. Fala com a impedância da carne que se move como se resistisse ao naufrágio. Emerge noturna, pede à noite para ser sua testemunha – há que cuidar das palavras emolduradas, para memória futura (só para memória futura, sem ser para retaliações). À volta, as pessoas tartamudeiam os embaraços que as impedem de espreitar pela escotilha. Dizem que as vergonhas são como um castigo que se abate só para domar o que podiam ser as forças irrefreáveis, talvez a antítese do que as pessoas querem são gregárias. Não se diga que a coesão é o aval do arrependimento. O que se bebe do futuro fica por conta da sua verosimilhança. Dos anéis puídos que exauriram o ouro enquanto o luar embaciava os olhares anestesiados. O rosto macio oferece-se ao beijo. A boca não pode recusá-lo. Se não fossem estes pequenos gestos, não saberíamos tratar a grandeza por tu. As homenagens são dispensáveis: o que vem às mãos não é um corpo estranho, a malignidade do que se sente como forasteiro, quando o forasteiro soa a intruso. Os ossos descem pela coreografia que precede o dia caudaloso: a inspiração é uma sinédoque que toma conta do tempo, substituindo os dias por pactos sem a usura das convenções. O ar respirável não é o mínimo denominador comum; em cada gesto dócil sobem os verbos hauridos no idioma baço, convocam o beijo ideal que coloniza o palco onde as palavras se tecem sem animosidade. Abre-se a janela e o vento desorganiza o calendário, as páginas agitando-se como se quisessem soltar das algemas do tempo. A mão levanta-se para aconchegar o rosto adormecido. Com as pontas dos dedos, desenha palavras sortilégio. O tempo exila-se. E a boca ajusta o beijo que aquece o rosto. Com as sílabas emprestadas pelo vento.

10.2.25

Peito cheio contra o forte

Nine Inch Nails, “The Line Begins to Blur” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=MMliD9d_lHg

Podia ser o nome de um furação. Ou melhor: o refrão da ira, o sangue continuamente acelerado onde a combustão de tudo dispensava ajudas já não necessárias. A intrepidez era a tradução de uma audácia que muitas vezes se confundia com loucura – uma loucura todavia não doença, mas como estado de espírito de quem avança destemidamente contra os contratempos recrutados pelo acaso.

Carregava cicatrizes à custa desse destemor. Escondia-as o melhor que podia; as fragilidades devem ser ocultadas para não se dar parte de fraco. Incomodava-o a ideia de dar parte de fraco. A desconfiança em que medrava, a desconfiança sistemática alinhavada contra todos os outros, sufragava o temor de que os outros se aproveitassem dos primeiros sinais da sua fragilidade para o domar. Ai de quem o tentasse, sobre ele ou ela seria vertida uma ira implacável e colossal, encostado às cordas para começar a lamber as feridas abertas.

Não se pautava pela modéstia. Nem no trato, exteriorizando uma solenidade aristocrática que muitos entendiam como uma extravagante encenação e outros como um disfarce com o propósito de impedir os outros de franquearem o seu perímetro de segurança. Também não era modesto no comportamento, desfilando exageradamente uma coragem sem freio, como se fosse preciso intimidar os outros logo à partida para beneficiar de uma vantagem que o imunizasse contra a iniciativa alheia se fosse prévia à sua.

Não media os pleitos em que se metia. O rosário de cicatrizes podia moderar os ímpetos, mas não queria adjudicar significado aos transtornos pretéritos. Eram apenas isso, episódios isolados que não teriam lugar no futuro, apesar de alguns deles terem encontrado repetição em diferentes momentos. Sua era a demarcação do pessimismo, à conta de tanto voluntarismo frívolo.

Dele não se diria que aprendia com os erros. Era a sua linhagem – ou o fingimento de uma linhagem, apenas para materializar a afoiteza sem arnês. Mesmo que deparasse outra vez com os estilhaços à espera de recolha, enquanto desinfetava as feridas abertas durante a peleja quase sempre inconsequente.

Ainda bem que nunca entrou para o exército. Se subisse pelo elevador das patentes, seríamos um lugar com elevada propensão à beligerância gratuita.



7.2.25

Ano zero e mais

The White Stripes, “Dead Leaves and the Dirty Ground”, in https://www.youtube.com/watch?v=7OyytKqYjkE

Motivámos o dia na contrafação do tempo. Os nomes não são a estranheza embebida no índice dos anónimos. A indiferença deixou de ser a marca de água que trespassa os motivos vigentes. As pessoas já não dizem oxalá à desesperança. Os algarismos moveram-se no fino fio que os separa do precipício. Agora estão a salvo. São zero e mais.

Se contassem os arrependimentos, passávamos a tempo em preces que devolviam a paz estilhaçada – disseste. Não é dessa fibra que somos. Somos os espelhos dos contratempos de que fomos tutores e não fugimos dos mapas prescritos. Não nos escondemos das alfaias que povoaram sementeiras sem colheita. Se o tempo não souber ser a nossa absolvição, nós absolvemos o tempo. Ainda a tempo de voltar a um tempo madrigal.

A luz desimpedida deixa o fundo do poço à mostra. Dizes: matámos a curiosidade. (Promovemos uma desinteressante e especulativa digressão sobre a etimologia da expressão “matámos o tempo” – afinal, temos de fazer tempo com o tempo que des-sobra). Usamos uma serra mal afiada para cobrar as arestas que tinham a mania de ativar as lágrimas. Regressámos às preces entontecidas, pois não somos avençados de catecismos e de bíblias entendemos nada. Mas não capitulávamos. Perguntavas: este é o ano zero? E eu dizia, para desencolerizar as cicatrizes herdadas, que este é ao ano zero mais qualquer coisa. E nós somos a parte maior dessa mais qualquer coisa.

E nós, que não fomos habilitados pela aritmética se não pela casuística, aprendemos a estar de atalaia ao luar para nele encontrarmos ao arnês diligente que nos salvou da conspiração urdida nos baldios. Não era o ano zero; mas se fosse, faríamos o favor de entronizar o zero como número pleno, só para contrariar a aleivosia dos apóstatas que contra nós apostaram. 

Estava confirmado por fontes seguras: era o ano zero e mais. Agarrámo-nos àquele mais, a retórica que viria a fazer a diferença.

6.2.25

As bolandas (short stories #477)

Cocteau Twins, “From the Flagstones” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=L8qqOBWKluM

          Uma montanha russa atrevida, o corpo numa constante convulsão, atirado de um lado para o outro como se os órgãos internos se deslocassem do lugar numa agitação sem peias. O navegar tumultuoso que fermenta na tempestade iracunda, uma cordilheira de ondas medonhas sucessivamente fendidas pelo navio exposto à tortura para que foi criado, os corpos dos marinheiros todavia indiferentes em virtude do hábito. As conversas interrompidas, argumentos encavalitados descontinuando o fio condutor do raciocínio de cada um, o fio condutor da conversa entre os convivas atiçados pela irritação, os corpos fervendo na impaciência que ganha um ponto de ebulição com a transgressão do código de conduta das conferências entre pares. Um repto sufragado nos corredores do labirinto interior, fazendo pulsar a angústia pelo tamanho da empreitada sem saber se vai ser cumprida, os corpos sitiados por uma apneia dos sentidos que os deixa no limiar da hibernação. Um insulto mal terçado, que não é insulto por quem o habilitou em palavras com outro significado, mas é desse modo interpretado por quem o ouve, num aquecimento global dos corpos que se encolhem de preconceitos no levedar da tresleitura das palavras ditas. O paradeiro incerto que tem cais na geografia sem lugar, como se todos os mapas tivessem sido extintos e as bússolas estivessem desativadas, os corpos órfãos de identidade, errantes, indiferentes aos abismos que apareçam no caminho. Os corpos que se tocam inadvertidamente, causando uma repulsa irreprimível como se tratasse de uma beligerante invasão de território, sem cuidar de se apurar se foi um raspão sem intencionalidade ou uma ação provocada por um voyeur da intimidade dos outros. Os corpos, ora transidos, ora indolentes, albergues dos outros na anónima procissão que se perfila no vetusto bordão do tempo. A matéria-prima das bolandas, o equinócio do contrabando das almas.

5.2.25

Por alturas do subsolo

Ólafur Arnalds, “Written in Stone”, in https://www.youtube.com/watch?v=wJRbjY8Hd6w

A matéria incansável ateia o encantamento pelos sortilégios que ganhamos ao acaso. Não são súbditos os que assumem a empreitada. Alguns tornam-se mecenas, despojam-se de haveres para que muitos possam fruir das criações que outros deixaram em legado para um futuro intemporal. 

É como os investimentos que não têm juros como paga. Ascendem como trunfos imateriais. Para se ter vocação, não se aceitam os modos habituais viciados no cálculo oportunista, numa aritmética estreita que não alcança tudo o que pelo caminho foi desmaterializado. Não é à toa que reumanização das pessoas é arbitrada. Não é criminoso supor a própria essência das pessoas, que parece errar por paradeiro incerto. 

Os fogos que se ateiam são mnemónicas para a memória não ser erradicada. A educação fugiu do seu pedestal; os interesses mutantes são tão válidos como outros quaisquer, do mesmo modo que ninguém pode ser censurado por escolher uma certa trincheira. Podíamos, talvez, reservar o olhar para o nosso interior. Fazer a síntese entre o devir gregário e um aceitável ensimesmar que recusa revistar os outros. Quem não quer ser atirado para o banco onde é sujeito à sindicância dos outros deve fugir da censura dos demais. A lisura fundeia-se na reciprocidade (amiúde esquecida).

Se usarmos as mãos para escavar o passado, o tempo gasto não é inútil. Somos uma linhagem do presente que não se dissolve no tempo passado, por mais que se diga que, por ser passado, prescreveu. Sermos devedores do passado não se confunde com nostalgia. A fina camada do tempo que interessa é aquela que depressa se inventaria como prescrita por ser titulada pelo passado. Há todo um subsolo escondido, mas cuja existência é fundacional para termos um chão robusto onde assentar a existência. Os diferentes tempos combinam-se numa constelação de contradições. 

As pessoas assustam-se com as suas próprias contradições. Por isso, são expeditas a denunciar as contradições dos outros. Devia haver uma lei geral a proclamar o direito irrenunciável às contradições – uma lei com força de Constituição. Era tanta a acrimónia que se poupava, tantos os recursos aforrados em empreitadas inúteis, que a confirmação da felicidade geral dispensava a execução de outras provas. 

Essa seria uma lei que dispensa a forma escrita. 

4.2.25

Pudim, pó de pudim, e não antraz

Nilufer Yanya, “Hey” (NTS Session), in https://www.youtube.com/watch?v=6EqGhU7U2H8

Ativem os alarmes, decrete-se o estado de emergência, com suspensão de direitos a preceito. Soem as sirenes para os cidadãos ficarem de atalaia. Corram os castrenses aos quarteis e tomem toda a artilharia inventariada nos arsenais. Faça-se regressar os espiões que estejam em serviço em terras forasteiras. Informe-se os reservistas que passaram ao ativo, a emergência nacional assim o justifica. Suspenda-se o parlamento, as demais instituições e a democracia, concentrando toda a autoridade nas armadas forças e nas polícias. As televisões só podem passar música marcial, entrecortada por boletins noticiosos lidos por jornalistas ao serviço das autoridades dando conta da evolução dos desacontecimentos. A população deve aguardar no interior das habitações até ordem em contrário. Suspendam-se as artes até ser reposta a normalidade. Os cidadãos que aguardem com paciência até ser definida a normalidade.

Pausa para respirar fundo – muito fundo, uma quase apneia ditada pela demora em enformar a paciência no devido lugar.

Foi falso alarme. As instituições possivelmente tinham sido atacadas por um pó possivelmente letal guardado dentro de envelopes devidamente anónimos e possivelmente sem impressões digitais para apurar identidades possivelmente deixada ao acaso do anonimato. No mesmo dia, como se o correio tivesse sido meticulosamente invadido por um ataque concertado às instituições, à democracia, ao poder do Estado, à segurança dos cidadãos, à estabilidade assim hipotecada. O pó, guardado dentro de saquetas escrupulosamente iguais de tamanho e peso, estava exposto diante da brigada perita em agentes nocivos, dos cientistas doutorados em venenos e afins, dos especialistas em “terrorismo híbrido”, de um ou outro diretor-geral enviado em representação dos ministros diligentemente reservados num bunker(dizem) à prova de armas nucleares e catástrofes com o pior dos apocalipses incontidos. Todos lividamente à espera do mais corajoso para abrir um invólucro e testar o conteúdo.

Foi: falso alarme. O pó não era uma substância letal, terrificamente deformadora dos corpos a ela expostos, uma morte terrível (dizem os peritos). Não era antrax, ou coisas ainda piores que os agentes do apocalipse andam a congeminar. Era apenas preparado para pudins instantâneos, com sabor a baunilha.

O primeiro-ministro, com o ar solene e grave e, ao mesmo tempo, aliviado, veio a público informar que a normalidade estava restabelecida. Censurou com veemência os desordeiros de serviço, avisando-os que seriam identificados e levados ao pelourinho. Pois não se brinca com coisas sérias, disse, para gáudio dos prosélitos da normalidade. Possivelmente aliviados, estes, por não serem submetidos a demorada anormalidade castradora de direitos.