Ativem os alarmes, decrete-se o estado de emergência, com suspensão de direitos a preceito. Soem as sirenes para os cidadãos ficarem de atalaia. Corram os castrenses aos quarteis e tomem toda a artilharia inventariada nos arsenais. Faça-se regressar os espiões que estejam em serviço em terras forasteiras. Informe-se os reservistas que passaram ao ativo, a emergência nacional assim o justifica. Suspenda-se o parlamento, as demais instituições e a democracia, concentrando toda a autoridade nas armadas forças e nas polícias. As televisões só podem passar música marcial, entrecortada por boletins noticiosos lidos por jornalistas ao serviço das autoridades dando conta da evolução dos desacontecimentos. A população deve aguardar no interior das habitações até ordem em contrário. Suspendam-se as artes até ser reposta a normalidade. Os cidadãos que aguardem com paciência até ser definida a normalidade.
Pausa para respirar fundo – muito fundo, uma quase apneia ditada pela demora em enformar a paciência no devido lugar.
Foi falso alarme. As instituições possivelmente tinham sido atacadas por um pó possivelmente letal guardado dentro de envelopes devidamente anónimos e possivelmente sem impressões digitais para apurar identidades possivelmente deixada ao acaso do anonimato. No mesmo dia, como se o correio tivesse sido meticulosamente invadido por um ataque concertado às instituições, à democracia, ao poder do Estado, à segurança dos cidadãos, à estabilidade assim hipotecada. O pó, guardado dentro de saquetas escrupulosamente iguais de tamanho e peso, estava exposto diante da brigada perita em agentes nocivos, dos cientistas doutorados em venenos e afins, dos especialistas em “terrorismo híbrido”, de um ou outro diretor-geral enviado em representação dos ministros diligentemente reservados num bunker(dizem) à prova de armas nucleares e catástrofes com o pior dos apocalipses incontidos. Todos lividamente à espera do mais corajoso para abrir um invólucro e testar o conteúdo.
Foi: falso alarme. O pó não era uma substância letal, terrificamente deformadora dos corpos a ela expostos, uma morte terrível (dizem os peritos). Não era antrax, ou coisas ainda piores que os agentes do apocalipse andam a congeminar. Era apenas preparado para pudins instantâneos, com sabor a baunilha.
O primeiro-ministro, com o ar solene e grave e, ao mesmo tempo, aliviado, veio a público informar que a normalidade estava restabelecida. Censurou com veemência os desordeiros de serviço, avisando-os que seriam identificados e levados ao pelourinho. Pois não se brinca com coisas sérias, disse, para gáudio dos prosélitos da normalidade. Possivelmente aliviados, estes, por não serem submetidos a demorada anormalidade castradora de direitos.
As expressões idiomáticas cristalizam expressões que se popularizaram na fala popular e que recorrem a figuras de estilo ou a diligentes jogos de palavras. São o menor denominador comum que facilita a comunicação da comunidade; quando alguém diz “não sair da cepa torta”, os destinatários sabem do que se está a falar: muito embora a cepa não seja identificada, só de se saber que é torta é revelador de alguém que não medra além da mediocridade. Ao menos podiam identificar a cepa – é “autóctone”, é importada, resultou de em enxerto?
As “forças vivas” fazem parte das expressões idiomáticas. A expressão participa de um sentido aristocrático que ainda trespassa a sociedade e os códigos semânticos que cimentam a comunicação entre as pessoas. Um eufemismo de “forças vivas” remete para aquele escol que se faz conhecer como “notáveis”. Quase sempre, o reconhecimento deste estatuto parte dos próprios, ou de alguém que é nomeado seu testa-de-ferro. Não devia ser credor de reconhecimento público.
Quando a expressão “forças vivas” é usada, querem-nos convencer que as pessoas que coabitam no oráculo das “forças vivas” são as que inovam, as que carregam os demais às costas por serem visionários, ou apenas as que catalisam vontades. Querem-nos convencer que estes “notáveis” são as locomotivas da sociedade, os átomos em constante frémito que transmitem a energia heurística de que a sociedade precisa para não ficar condenada à letargia.
Se estas são as “forças vivas”, os anónimos, que são a vasta maioria, estão excluídos das “forças vivas” e constituem, por antinomia, as forças mortas – ou, sendo generoso no tratamento, amortecendo o mal para se tornar num mal menor, as forças amorfas. Não é um tratamento digno da retórica de igualdade que a filosofia política entronizou e que os procuradores da política progressista cuidaram de elevar à condição de dogma. Alguém devia denunciar o atavismo da expressão “forças vivas” – da mesma maneira que deviam peticionar a favor da extinção do bolo-rei (não da iguaria, mas do seu nome).
A colonização da semântica por termos aristocráticos não condiz com os tempos modernos e desempoeirados em que vivemos. Abaixo as “forças vivas”, longa vida às “forças mortas”!
Não é por o aforismo certificar que somos todos um pedaço de médicos: a ser confirmado o juízo popular, não se entenderia a tanta competitividade para entrar nas escolas onde se aprende a arte; e menos se entenderia que só a nata da nata seja admitida nos estudos para esculápio. A ideia (certamente também do povo) é que os esculápios são um escol entre o escol. Daí o seu imenso poder corporativo: a nossa saúde está nas suas mãos, não se equivoque o paciente ao tresler a arrogância habitualmente despendida por esculápios de diversas gerações.
A ordem de trabalhos deste texto não é sobre o poder oligárquico dos esculápios. É para trazer à colação uma incongruência entre o conhecimento como o temos por adquirido e a imagem popular que assegura, com a intermediação de um provérbio, que não há ninguém que não seja um pouco esculápio. Assim o confirma a propensão para a automedicação e para o autodiagnóstico, depressa estendido ao diagnóstico dos outros feito de “saber feito” (ainda está por definir os termos deste conceito), um muito “não vás ao médico que ele/ela vai dizer o que acabei de te dizer”. A serem seguidos os conselhos periciais de afamados esculápios educados na escola do “saber feito”, é sempre um entesouramento que o bom cidadão consegue (por deixar de dispendiosos estipêndios a esculápios certificados).
A vocação para o diagnóstico inspirado no método em que os esculápios são treinados depressa se contagia a outros domínios. Gabe-se a coerência metodológica: analisa-se o problema, é identificada a sua origem e isolados os fatores que concorreram para a emergência do problema, e o “saber feito” prescreve uma solução para erradicar o problema. É um processo cheio de lisura e coerência epistemológica. Muitos são, assim, esculápios de artes variegadas.
O método não engana. Já a bagagem de conhecimentos exigíveis para o pôr em ação merece algumas, e fundadas, reticências (se for permitido o eufemismo). Por mais partidários que tenha e lhe seja associada a veia democrática à prova de quaisquer suspeições, o “saber feito” não foi recebido pelos cânones das ciências. O empirismo atira-se em forma de bumerangue para quem o ativou: quantos esculápios de si mesmos erraram no diagnóstico e, por arrastamento, erraram na prescrição? Quantos, de piorarem o seu estado à custa de serem néscios (pois não se diz por aí que a pior ignorância é a não reconhecida?), tiveram de recorrer a esculápios a sério?
Para fim de conversa, devo dizer de minha justiça que ficaria encanitado se o anexim fosse confirmado em relação aos poetas. Ninguém haveria de querer tamanha banalização da poesia.
A carestia dos dias arrasta-se em cima do papel onde depostas são as palavras que a boca emoldurou. Uma folha em branco, talvez. Ou uma folha disfarçadamente amarrotada, um protesto contra a altura em que a página era translúcida e todas as palavras eram palavras espontâneas. O mundo não está disposto para esses preparos. É alérgico a essa liberdade.
Se as pessoas não fugissem dos rostos, se elas não fossem enganadas pelos fingimentos, era mais fácil resgatar as páginas claras, sem vincos, e nelas verter as palavras que traduzem a boa-fé. Mas isso era se os termos em que são proferidas as palavras não fossem adulterados. Se não fossem os espelhos os únicos a decantar as veias amordaçadas contra as tempestades que deflagram nas intenções. Pode-se dizer que são contingências a mais e que é humano fazer de conta que são domadas por fora, como se chegasse verter uma camada de verniz para representar toda uma feição interior.
Mas são feitas de papel desbotado todas essas páginas. São feitas de dissimulação as palavras que se entretecem na mudez embuçada. No papel desbotado que as recebe, as palavras entontecem como se alguém as tivesse embriagado. Dizem o que de outro modo não teriam dito. Assim que são tatuadas no papel, ele entra em apressada decadência. No auge da metamorfose, deixa de ser papel amarrotado e enquista-se como papel amarelecido. Nesse papel, as palavras ganham a ferrugem que vai contaminar o papel hospedeiro. A vantagem de sermos espécie exposta ao envelhecimento é que as palavras que forem sendo inventariadas não se perdem nessa metamorfose. São intemporais, à custa da memória que é obliterada.
Ainda está por saber se as palavras embuçadas respondem à demanda do papel desbotado, ou se é por o papel ser desbotado que as palavras se adulteram no fingimento do que deviam ser. Isso é o menos importante: as palavras continuam a ser o passaporte da (nossa) existência.
Por junto, os garfos desfalecidos não fazem um conjunto. As intenções esfaceladas passam a escombros com a altivez do dia, a estirpe façanhuda que consome a lucidez. A cada mutação da maré, os olhos testemunham a embrionária estranheza que trata a geografia por forasteira.
Digo: serei procurador das intenções benignas quando as raízes das árvores se esportularem e elas ficarem nuas ao luar. As mãos subirão as árvores até ficarem lisas, magnificamente abertas para o esplendor do mundo. Não se cansam, umas mãos deste modo açoradas.
Ou posso ser apenas embaixador das intenções modestas, aceitar que tudo se possa acertar pela craveira do quase. É o modo diferente de receber as imperfeições que acompanham as vidas inteiras. Aceitar que a luz pode ter arestas e os dias sucedem-se com a impressão de que podiam ter acabado por ser uma safra melhor. É imperativo gratificar os dias que assim sejam. Quase tudo pode ficar a léguas da inteireza. Mas é melhor do que os dias que ficam reféns do medo.
As canetas anotam os bocejos do pensamento. Mesmo o sono, que parece ter ficado em dívida à lucidez por falta de quem o interprete, contribui para o palco onde desfilam pessoas, palavras, indecisões, certezas que escondem fragilidades, um anoitecer que dissolve a luz clara do dia, as ondas amargas que endurecem os penedos, a altivez que esbarra na humildade, os sonhos, enfim, que ganham autonomia na vasta planície onde se congemina o pensamento. Sobram palavras avulsas, poços fundos que titulam as trevas de que sou liberdade, o penhor da vontade costurada com o avesso do pretérito. Até que todos os quase sejam entronizados e deles se faça a maré monarca por dentro do sangue em espera.
Quase tudo não fica pela metade. Não fica por proporção nenhuma, nem deixa à mostra a fragilidade de quem não subiu ao promontório para dar acabamento ao inacabado. Quase tudo é a medida da perfeição (possível).
À sorte dedica-se a trégua. Os olhos não se querem consumidos pela irradiação que os adultera. Não são as vítimas inocentes que se resguardam de injustiças, quase sempre atrozes. Somos todos, hoje fora desse perímetro, mas incógnitas perante o tempo ausente.
Se apenas fossem sufragadas as sílabas serenas que compõem frases à prova de convulsões, seríamos poemas em forma de pessoa. Não devíamos nada aos medos, não teríamos de espreitar para trás hipotecados pelas investidas de vultos perenes. Como prova de desembaraço, convocaríamos a beleza inteira das palavras como modo de estar, deixando atuar a doçura das sílabas arrancadas com a diligência de quem sabe ter gentis gestos no trato. Não desconfiamos das metáforas se elas não forem espelhos baços de desvirtudes. Chamamos os nomes inteiros sem represálias e os dedos sondam os destroços que são o inventário do passado.
Não são os relógios que medem o tempo, é uma cortina de espelhos que reverbera as palavras ditas, angariadas na espuma da memória que não se rende. Às vezes são memórias ardilosas, prolongam momentos que pertencem ao inventário das memórias em crédito; mas hipotecam o tempo passado a resgatá-las da sua coutada. Outras vezes, talvez por uma qualquer torpeza de espírito, a memória atraiçoa flagrantemente o seu espírito: são as recordações desbotadas que, todavia, se avivam como se assentassem em carne viva, deixando feridas à mostra. As tréguas são interrompidas.
O tremor do passado pode ser um poema daninho. Não se propõe que o pretérito seja adulterado para dissolver da memória os daninhos instantes, mesmo que venham em forma de poesia. O tempo não se apaga. Podemos condená-lo ao esquecimento, se aos fragmentos daninhos regressarmos e os quisermos anulados. Se a memória se entregar a um jogo, que seja benigno.
Até os melhores poetas ganharam fama à custa de estrofes daninhas. Não devemos nada ao medo se à superfície assomarem poemas daninhos.
O sal que segue a estrada vazia orquestra os sentidos. Não são as sepulturas ao longe que intimidam, são as convulsões da alma quando ela se estilhaça contra os tiranetes que tomam conta da floresta. Não passam de vultos, carregados com as sombras que os avalizam como preces medonhas a enfeitar o dia arrastado. Se não fossem as páginas acumuladas, não seríamos a lava que guardamos dentro de nós. Não fruam as ameaças contra a vontade; não proclamem os determinismos avulsos para de seguida açambarcarem o que sobra da dignidade. Prescindimos dos véus que continuam a ser a marca registada de quem julga ser nosso tutor. Não damos como trunfo o pressentimento da identidade que acompanha o sangue em ebulição. Como as árvores se dividem em ramos limítrofes, somos toda a geografia percorrida em pessoa ou em sonhos. Selamos essa contingência absoluta, um nomadismo sem opção: pois múltiplas são as identidades que se entrecruzam de outras identidades, como se uma amostra dos vários mundos possíveis habitasse em nós. Esse é o nosso grupo sanguíneo. O indeferimento das identidades por exclusão, a prescrição das ramagens apodrecidas, deixadas para trás como simples memória futura. Viramos a página de rosto. A segunda página está sempre em branco. Mesmo quando hoje depomos a favor da página, coabitando as palavras com a página que deixou de estar em branco. Amanhã, a segunda página aparece outra vez em forma inaugural. Podemos selar diversos prefácios, eles apreciam a excomunhão do futuro para não sermos dele reféns. É por isso que a segunda página é uma sortilégio inacabado, um penhor que não deixamos de ativar para não sermos esquecidos na matéria nobre do tempo. Uma hagiografia habilitada por exceção. Pois é na segunda página que dedicamos as palavras florais que ornamentam os calendários por que nos regemos.
Temos as mãos, as quatro mãos, acamadas no piano. Alisamos as teclas com o peso suave dos dedos, como se fôssemos credores dos sortilégios. Acompanhamos o rumor da chuva que se despedaça contra a janela. As mãos entrelaçam-se, deixam a melodia por conta do vínculo entre a chuva e o vento. Lá fora, a tempestade dita os seus termos. Mas nós estamos refugiados cá dentro, somos presságio da vontade que fazemos subir ao mastro mais alto em que se calam as nossas bocas.
A noite não está desacompanhada. Dizes-me: com esta tempestade, as ruas estão órfãs. Respondo: só se nós quisermos, podemos ser as almas audaciosas que desafiam a intempérie, com agasalhos à sua prova, para arremetermos contra a chuva que ensaia uma coreografia temível sob os auspícios do vento tempestuoso. Somos nós a ditar os termos em que se entrança a noite válida.
Por mais que esteja assentido que somos todos plágio uns dos outros, desafiamos as convenções. Digo: esse é um simplismo atroz, uma intencionalidade que diminui o valor de cada vida. Não se aceite a proclamação de um escol enredado na soberba que estabelece a distinção entre um “nós” e um “eles”, pois depressa os termos da contenda se invertem e o escol passa pelo batismo de um “eles” que se confunde com o “eles” que inventariam para serem um escol. Digo: que sejam recusados os propósitos de quem se alinhava pela craveira da desigualdade, denunciados por ultraje às suas próprias criações.
Não somos iguais, mas as vidas que se entrecruzam no imenso palco em que quase todos somos indiferentes são pedaços de singularidade. É suficiente para as carregarmos no regaço da humanidade. O plágio insidioso não quadra com a singularidade das vidas permanentes. Por mais que a morte deponha sucessivamente vidas (é um registo diário), há vidas que são legadas ao mundo em cada dia que ele se inventaria. As vidas permanentes, que se sobrepõem à mácula da morte, essa tremenda luva que se abate com o sabre da injustiça.
Todas as vidas esbarram em nós. Não é preciso ter a destreza de um marinheiro para desenredar os nós, vincendos ou por vencer. Temos em nós a argúcia para ultrapassar os nós que se sublevam contra nós. Somos destemidos para converter esses nós, firmemente atados, numa meada que transfiguramos no caudal por onde fazemos ecoar a vida. Nós que são desafiados por nós na incindível vontade que acende os princípios da vida conduzida pela singularidade.
“(...) Tudo na moral é dúbio e subjetivo (...) tudo quanto é prazer é paliativo.” Valério Romão, “O estripador”.
No pesadelo que seria se houvesse um dia que o poder aterrasse em minhas mãos, uma das poucas proibições que não resistia a decretar: proibido seria fazer julgamentos morais dos outros (sob pena – eu lá sei – de o autoinvestido juiz perder direitos cívicos, como o direito de voto da próxima vez que houvesse eleições). O exórdio é importante para emprestar contexto, pois o texto é sobre comportamentos morais que são devolvidos à procedência; e é importante para apresentar credenciais: longe de mim o propósito de julgar moralmente os outros, até quando eles entram em tão flagrante contradição que, diria a voz do povo, se põem a jeito.
Contexto: a esquerda radical e o ódio a tudo que ressoe a capitalismo e capitalistas (ou os ricos, por apanhado). É uma espécie de racismo classista que prospera na esquerda caviar. As manifestações de capitalismo são execradas. O consumismo e, em particular, a preferência por sinais exteriores de aburguesamento, integram o património genético do capitalismo. Insurgem-se contra o efeito-imitação: os endinheirados consomem marcas de renome e engordam os proventos dos capitalistas que detêm essas marcas. Esses aburguesados são os idiotas úteis do capitalismo. Quanto mais popular a marca, mais a procura pelos seus produtos, que assim encarecem. A marca firma créditos e atinge o pináculo onde só têm lugar as marcas de prestígio. Estas marcas só estão acessíveis a uma casta.
No fim deste processo, os que o alimentam nem dão conta da sua alienação enquanto consumidores, despindo-se de uma cidadania substantiva que devia ser o axioma da sua participação na sociedade. Para denunciar estes comportamentos desviantes, a esquerda caviar está sempre de atalaia, sempre pronta a emitir juízos de valor que encostam às cordas os que cedem ao enamoramento do consumismo.
Mas há privados vícios que colonizam a vontade das pessoas e adulteram os imperativos éticos, sublevando-se contra a retórica que desfila em público. Quando os vícios privados não transcendem a esfera privada, ficam a coberto dos julgamentos morais dos outros. Quando se tornam públicos, numa nacionalização inadvertida da sua feição privada, ficam expostos ao julgamento fácil dos outros. Sobretudo daqueles que são agredidos pela pose arrogante de quem aparece em público como instrutor contínuo dos comportamentos dos outros e, na hora H, falha clamorosamente, sendo enleado na mesma teia de pecados e pecadilhos em que alicerça a sua tão pública superioridade moral.
Volto ao início do texto: nem nestas circunstâncias os julgamentos de comportamentos alheios por défice de obediência a padrões de moralidade deviam ser admitidos. A punição maior de quem é apanhado a desdizer toda uma retórica moralista – e a ironia do destino, que desaba fragorosamente em cima das suas cabeças – é a contradição que os deslegitima para continuarem a ser eméritos julgadores da moralidade dos outros. Por cada sacerdote destes que seja substituído por um julgador de moralidade de sinal contrário, o resultado é uma soma nula. A sociedade não fica melhor quando exonera um julgador da moral que é substituído por outro que veio julgar o seu passo em falso.
Esta é a litania do capitalismo em que vivemos. Os pequenos vícios não devem ser censuráveis. Antes a sua existência, pois nela levita o império da vontade. O que é sempre preferível, por mais que dite a corrupção das almas, a uma alternativa castradora da vontade. Por isso, não me incomoda que um ícone da esquerda caviar seja apanhado nas ruas de Budapeste a enriquecer-se culturalmente enquanto se passeia dentro de uma camisola Lacoste. A Lacoste agradece a pessoal incongruência e nós deixamos de dar importância a esse julgador da nossa moralidade.
Não quadra com o vulto, tanta visibilidade, tanto alvoroço à sua passagem, tanto esbracejar que até parece um totem com seguidores. Mas não é robusto ao ponto de causar sismos só à sua passagem. A voz não se distingue pela gravidade. Não se conhecem proezas, ou cometimentos que o tenham alcandorado a um pináculo. A modesta personagem presta-se ao anonimato – ou à indiferença que, afinal, é o estalão a que quase todos somos destinados no meio de uma multidão.
E insiste: instala a vozearia e as palavras são debitadas sem métrica, apenas ao sabor da conveniência do que assoma à boca, irrefreáveis e imponderadas. Vai distribuindo insultos pelo caminho. Uns ostensivos, não temendo uma reação impensada que pode aleijar a integridade física; outros apenas insinuados, só ao alcance dos que têm capacidades hermenêuticas acima da média.
Para corporizar o papel intencional do elefante na loja de porcelanas, derruba uma jarra que estava num móvel dentro do estabelecimento comercial. Foi de propósito. Os decibéis acima da conta não eram suficientes para armar a tenda. Quando a jarra se estilhaçou no chão, partindo-se em mil porções, ninguém ficou indiferente. Os que não queriam dar palco ao intérprete da baderna enquanto se cingiu à voz tonitruante, não puderam evitar a reação instintiva de quem desloca os sentidos para o lado de onde ecoou o estampido.
Agora já tinha a atenção de toda a gente nas imediações. Elevou ainda mais a voz. Protestou contra muitas coisas: o mundo em geral (“está cada vez mais irrespirável”), a hipocrisia das pessoas (“deve ser o juro que pagamos pela desconfiança recíproca”), a burocracia que tudo retarda (“há burocratas que se onanizam quando congeminam os tentáculos ainda mais apertados da burocracia”), a frivolidade que campeia (“acordem, não são apenas os que gravitam no estrelato e dizem, de si mesmos, que influenciam a turba; é a turba inteira, a reboque ou não destes ‘influenciadores’”), a mesquinhez de quem não cabe dentro de si e se envaidece por causa de pequenos feitos, porque não há ninguém neste mundo a enaltecê-lo (“é uma reação tão primeva, tão canhestra, um produto dos tempos coalhados”), os mentirosos compulsivos que dão a cara pelas convenções (“são adestrados na arte corrompida de enganar as pessoas, levam a à agua ao moinho à custa da indiferença de quase todos, ou de muitos deles serem incorrigivelmente beócios”).
Chegaram as autoridades e acabou o comício. Os circunstantes não perdoavam o desassossego causado e a catadupa de lugares-comuns e anexins a tiracolo do discurso esbraseado. Depois de algemado, enquanto era encaminhado para o carro-patrulha, cabisbaixo e talvez já arrependido do acesso de loucura, ouviu as palavras murmuradas de um circunstante: “anda lá, palerma, mete a viola no saco, que nunca de lá devia ter saído. Julgavas que isto é o Speakers’ Corner?”
Vai cheio, o rio, portanto caudaloso, que engorda com o beneplácito da chuva. Não vale a pena inventar teorias: é a chuva abundante que alimenta o caudal, não são rezas pagãs que convocam a chuva quando os espíritos inquietos as encomendam para esconjurar um longo estio.
Vai a eito o rio caudaloso, quando atravessa as margens e coloniza o chão que não lhe pertence. Às vezes, nem os ardis do Homem, quando constrói barragens para domesticar rios que ficam fora de si quando a chuva é copiosa, servem para amansar os rios. E os rios saltam as margens, entram em casas limítrofes, os terrenos de cultivo ficam alagadiços, aprisionados num paradoxal destino: essas veigas são férteis porque estão nas imediações do rio, que é o manadeiro da sua fecundidade; mas quando o rio se zanga e fica fora de si, destrói toda essa fertilidade de que foi inspirador. Não há deuses que conspiram contra o sossego das pessoas que vivem à volta do rio. É a ação da natureza, no complexo novelo que transporta as tempestades do mar até terra e combina para engordar o caudal dos rios sem que as barragens consigam ser uma medida de efeito contrário.
Não há sortilégios que fundamentem a ação da natureza. A ordem dos mitos fica por conta de imaginações férteis e de uns quantos céticos que talvez disfarcem a ignorância atrás do ceticismo. É como na toponímia: os nomes de gente normalmente mortal que encorpa a toponímia não personificam mitos (tirando um punhado deles que, por decreto de pedagogos ao serviço do “interesse nacional”, entram em panteões, existentes ou imaginários). São apenas gente-gente, tão normal como eu e tu, tão mortais como eu e tu, descontando a elevada probabilidade de eu e tu não ficarmos imortalizados na toponímia de um lugar.
Tu e eu somos levados por um rio quando se extingue a existência e passamos a ser memória em vias de extinção, assim que o tempo, na forma de um rio que passa com a cadência dos dias consecutivos, invade o nosso espaço vital e nem sequer memória passamos a ser. A menos que fiquemos emoldurados na toponímia. O que, para os ousados e os que de si têm uma medida acima do espelhado, é preferível a serem condenados a mitos impossíveis.
Somos párias (dizem) se formos indiferentes ao meio e nenhum for o pronunciamento sobre o estado da cidade. Somos acusados de apatia se o rosto estiver alinhado com outra bússola e os lugares onde temos presença forem apenas lugares, materializados por pessoas que os desfiguram. A indiferença, de acordo com este imperativo categórico de participação, deve ser retratada.
E se a nosso favor invocarmos o largo tempo de desagrado pela governação da cidade? E se olharmos em redor e os que se propõem dar continuidade ou escolher mudança não forem confiáveis pela fraca linhagem que ostentam? Devemos interromper a indiferença para escolher um mal menor? A participação nivelada pelo menor denominador comum safa-nos da acusação de indiferença? E que contas prestamos à consciência? Deve a consciência inclinar-se perante o dever de não alienação? E se a indiferença for um luto sem forma típica, um período de nojo pelas adversidades que também atingem os indiferentes?
O dever a ser gregário continua a comandar os mandamentos. É por eles que se seguem os comportamentos aceitáveis. Os que descaem para laivos de indiferença são chamados à razão, instados a resgatar os laços de pertença para não serem contaminados pela indiferença, que depois avança sem ser possível rasgá-la. Os que já estão imersos na indiferença são casos perdidos. O resgate de indiferentes para o tabuleiro da cidadania benigna não costuma acontecer. São os intérpretes da cidadania maligna pela demissão da cidadania.
Os argumentos podiam ser virados do avesso. Os indiferentes convocam a seu favor o direito de serem quem são sem intrusão dos outros, convocando um dever de reciprocidade: eles não se importam com o que os outros pensam, não fazem juízos de valor das escolhas dos que participam na cidadania benigna. Na lógica da indiferença assenta o não pactuar com a imperícia, o arrivismo, o discurso vazio e todavia gongórico (“engana-me com palavras”), o exercício do poder enquanto finalidade, o sistemático passo em falso quando assinam diagnósticos e apresentam prescrições. Através da indiferença, recusa-se essa corresponsabilidade.
O estamento dos indiferentes não é uma coutada de párias. A indiferença é o somatório da observação cuidada do passado e a caução para a indiferença do presente. Os indiferentes não devem ser condenados: o que se costuma dizer de quem sofre na carne as duras penas que o consome e repete a dose na primeira ocasião disponível?
O sistema político é um porta-aviões, daqueles muito americanos em que cabem cidades inteiras. Na semântica militar, os porta-aviões são fortalezas itinerantes deslocadas estrategicamente para um certo lugar quando a potência detentora quer impor a sua presença, nem que seja pela via da dissuasão. São um esteio, portanto. Como o sistema político.
O sistema político em que vivemos tem dois alicerces (para além das fundações constitucionais): a supressão do autoritarismo; e a desmilitarização da política, quando a transição para a democracia foi completada com a extinção do MFA e a devolução da tropa aos quarteis. O primeiro alicerce é um fundamento axiológico do sistema político, o húmus de onde medrou uma democracia alinhada pelos parâmetros da democracia ocidental. O segundo tem um fundamento simbólico.
Há interpretações divergentes sobre o papel dos militares na conturbada transição para a normalização democrática. Uns consideram que os militares foram determinantes para a deposição da ditadura e exerceram um papel importante na configuração da democracia civilizada, governada por civis. Outros são mais céticos, lembrando as derivas totalitárias de certos militares durante o PREC e de como a Constituição de 1976 foi uma dádiva para a democracia ao selar a guia de marcha dos militares para os quarteis. Quem perfilha esta abordagem não deixa de atribuir um significado importante ao alicerce simbólico do sistema político. Muito embora o General Eanes tenha sido presidente da república no período da normalidade constitucional, esse foi o último estertor dos militares no atual sistema político que, julga-se, está consolidado ao fim de quase meio século.
As circunstâncias dos presente exigem a mudança do tempo verbal da frase anterior para o passado: julgava-se que Eanes tinha sido o último enxerto militar no sistema político. A subida a palco do almirante (retirado) Gouveia e Melo veio lembrar que nada é eterno, até nos sistemas políticos. Não está em causa a castração cívica do almirante. Os seus direitos cívicos são os mesmos dos meus ou do(a) leitor(a); ele, eu e o(a) leitor(a), desde que tenhamos mais de trinta e cinco anos e um registo criminal imaculado, podemos ter a ambição de concorrer às eleições presidenciais. O problema da (ainda putativa) candidatura do almirante é outro e não pode ofender o princípio da igualdade de direitos a que o almirante tem direito de invocar a seu favor.
O problema da candidatura do almirante também não está no receio (de quem o tenha) de vir a ser eleito presidente da república, a crer nas pré-sondagens divulgadas. Se o almirante não estivesse tão bem colocado nas sondagens, a sua candidatura não passava de uma nota de rodapé. Mas esta é uma candidatura problemática – para o sistema político, bem entendido. Da mesma forma que ninguém pode castrar os direitos cívicos do almirante, não era má ideia avivar o significado de cidadania como um feixe de direitos e deveres que se correspondem mutuamente. O almirante devia reconhecer o seu dever cívico de não perturbar o sistema político com uma candidatura “disruptiva” (palavra que ganhou moda) do sistema político. A bem do segundo alicerce, o tal que tem um simbolismo todavia marcante para a definição do sistema político: os militares nas casernas, a política aos civis.
As ambições não se medem aos palmos e, nesse domínio, a prestação de contas obedece ao sentido único da consciência. O almirante tem o direito de exercer a sua ambição política e a saltar da vida castrense para o palco político para coroar a carreira profissional com a máxima sinecura da república (tudo indica, a fazer fé nas sondagens). Como tem direito a ser narcisista, característica que se banalizou com a democratização da opinião e da imagem permitida pela exposição sistemática do eu nas várias redes sociais.
O almirante ganhou palco quando geriu a estratégia da vacinação contra o COVID-19 (depois de substituir um banal funcionário do PS que, no curto mandato que exerceu, se limitou a passear a sua incompetência). Ao pânico do início da pandemia seguiu-se a euforia habilitada pelo restabelecimento da normalidade. Há muitos cidadãos que estabelecem uma relação causal, como se tivesse sido o almirante Gouveia e Melo a inocular pessoalmente cada cidadão vacinado. Confunde-se gratidão ao gestor e estratega com o perfil para a presidência da república. Se isto é um programa político, o sistema político já estava em crise antes de o almirante ter espigado como personagem política.
Há outra dimensão do sistema político hipotecada pela candidatura do almirante: o seu fundamento axiológico. A democracia inaugurada pela revolução de abril de 1974 afastou o fantasma do autoritarismo. Contudo, ao longo dos cinquenta anos da democracia temos sido testemunhas de como ainda pesam certos tiques salazarentos que são transversais à sociedade. Um desses sinais é a sedução por políticos com uma retórica dura, exibindo pulso firme, prometendo uma política musculada para “pôr as coisas na ordem”. A herança de Salazar estava na ossatura de Sócrates, o primeiro-ministro que de si dizia ser um “animal político”. Gouveia e Melo tem a mesma atitude de bravura, oferece um sebastianismo em potência que é do agrado de uma sociedade que não vê para além do nevoeiro.
Se as ideias políticas do almirante são uma incógnita, sabe-se da sua propensão para o autoritarismo. Dirão os mais condescendentes que o autoritarismo coincidiu com a liderança da marinha e que os militares obedecem a uma lógica diferente dos civis, sendo mais importante a cadeia de comando e a obediência hierárquica. O exemplo da reprimenda pública dos marinheiros que se recusaram a embarcar num navio que estava constantemente a avariar é todo um programa de autoritarismo latente.
Aceito que a maioria dos cidadãos queiram “ordem na casa”, estão no seu direito. Inquieta-me a possibilidade de o almirante ser eleito por desafiar os fundamentos axiológico e simbólico do sistema político. E talvez diga muito da qualidade dos rivais do almirante que estão na rampa de lançamento. O que, de si, é tradutor de uma crise do sistema político. A menos que estejamos a dar importância de mais à eleição para o presidente da república.
O CEO de uma empresa cotada em bolsa foi demitido porque tinha uma relação “amorosa” (chamemos-lhe assim, para fazer o favor ao pudor reinante) com uma diretora da empresa que, portanto, era sua subordinada. As notícias e a Galp (não necessariamente por esta ordem) fizeram a questão de enfatizar que o CEO demitido violara o código de conduta da empresa. De acordo com o código de conduta, uma relação “amorosa” (ou do género) entre duas pessoas com responsabilidades de gestão não está vedada, mas deve ser reportada. O CEO e a diretora não o fizeram. Ato contínuo, depois de uma denúncia (obviamente anónima, pois então...), o CEO foi exonerado. As notícias e a Galp foram omissas quanto ao destino da diretora.
Do ponto de vista legalista, a empresa limitou-se a seguir os trâmites e a aplicar as medidas previstas para o incumprimento do código de conduta. Lá diz o povo, no adágio conceituado, “quem anda à chuva, molha-se”. As responsabilidades internas do CEO são incompatíveis com o desdém pelo código de conduta. Como deve dar o exemplo – estou a seguir o raciocínio puramente legalista e dos que cuidam da moral e dos bons costumes com zelo – foi o CEO, com a ajuda solícita do anónimo que participou o caso, que abriu a porta de saída da empresa. Omitir também é mentir, ora essa. Se apenas contasse a perspetiva legalista, este seria só um caso com interesse para a comunicação social porque era preciso saber as razões da demissão do CEO de tão importante empresa para a economia nacional. A bolsa de valores agradece o obséquio da transparência.
No plano ético, é legítimo perguntar se o CEO estava obrigado a cumprir o código de conduta. É aqui que os imperativos interiores de consciência se desviam da abordagem legalista. De acordo com o noticiado, o CEO da Galp deu umas facadas no matrimónio ao manter a dita “relação amorosa” com a diretora sua subordinada. Como este país ainda traz a parelha Salazar-Cerejeira agarrada às saias, o fantasma dos comportamentos moralmente censuráveis começou a adejar. Ora essa, senhor CEO, vossa excelência cometeu adultério; e o adultério vai contra as boas normas de conduta social, pois, assim como assim, a poligamia não é credora de reconhecimento social (e, por conseguinte, legal) e pode afetar “o valor em bolsa” de tão conceituada empresa. O CEO não foi exonerado por incompetência; foi por ter cometido um atentado à moral e aos bons costumes.
O CEO estava obrigado a comunicar a “relação amorosa” com a diretora? Legalmente falando, sim. Mas o cumprimento das leis não é uma matéria estéril do ponto-de-vista ético. Às vezes, há conflitos interiores entre as obrigações que resultam da observância da lei e os imperativos éticos que concorrem no sentido da sua inobservância. Se o CEO da Galp estava envolvido com uma diretora num arranjinho extramatrimonial, é compreensível que tenha guardado segredo. Se queria guardar segredo da relação carnal com a diretora, corria o risco de a revelar mal comunicasse essa relação ao abrigo dos mandamentos do código de conduta. Toda a gente passaria a saber e a relação extramatrimonial viria também a ser do conhecimento da consorte do CEO e da demais família. Talvez tenha sido por isso que a Galp oficializou a partida do CEO invocando “razões familiares”. Nunca um eufemismo foi tão verrinoso.
O julgamento moral dos outros é uma modalidade com ampla popularidade nacional que, todavia, me causa perplexidade e embaraço. Por desconfiança sistemática, mantenho reservas profundas quando a público se apresentam os curadores da moralidade alheia. São exímios julgadores dos padrões morais em vigor quando os aplicam aos comportamentos dos outros. Desconhecem-se os resultados dos exames de consciência dos membros desta zelosa patrulha. Muito embora não tenha vocação para reproduzir anexins, neste texto abro uma segunda exceção para evocar o famoso “olha para o que digo, não olhes para o que eu faço”.
A polémica do caso mostra, por um lado, que há um ar “cor-de-rosa” a colonizar a comunicação social. Afinal, os folhetins amorosos, com adultérios e traições a tiracolo, constituem o sonho molhado até da imprensa de referência. Por outro lado, fica à mostra o tribunal coletivo que é ativado quando para as notícias vêm casos que metem o que as pessoas andam a fazer debaixo dos lençóis (ou em qualquer outro lado) e, sobretudo, se essas práticas são à revelia do matrimónio, excitando-se com um incontido clamor que acusa de adultério os protagonistas do folhetim. Faltaria indagar, junto das consciências inescrutáveis dos que não reprimiram comentários disfarçadamente censórios, quem nunca teve o seu deslize extramatrimonial e o guarda para memória futura (ou, vá lá, para confissão ao padre de serviço) em segredo exclusivo e inviolável.
Eis a sociedade em que vivemos: uma sociedade muito ciosa dos deveres de consciência que fermentam nas convenções estabelecidas; uma sociedade que tutela com diligência os bons costumes e a moral enraizada, pois há sempre um sacerdote em nós pronto a cumprir o serviço público de quem aviva a memória dos infratores que são punidos com a vergonha social; uma sociedade que adora tomar conhecimento do que acontece às escondidas, debaixo dos lençóis ou em quartos de motel, não reprimindo a sua faceta de voyeur: o sexo dos outros interessa e importa muito mais do que o sexo destes algozes amadores; e se, ao meterem o nariz entre a genitália em ação dos outros, descobrirem um adultério, a sensação de embriaguez é ainda melhor: vamos lá destruir famílias!
Esta é a sociedade que nunca “mijou fora do penico” (se me é permitida a expressão coloquial) e que puxa pelos galões para exercer a dolorosa censura moral sobre os que são descobertos pela inquisição do adultério. Estamos reféns desta moral victoriana de antanho, e isso não augura um futuro auspicioso.
Biltres a rodos não é singularidade da paisagem habitada. Língua corrompida pela falsidade, malsãos personagens que ocupam espaço excessivo, como se por serem obnóxios tivessem direito a uma obesidade gratuita e não reprimida. Dizem que têm o coração na boca, mas convém não amesquinhar o coração pela diarreia improfícua que fazem desabar a partir da sua falaz facúndia.
Terra de fracos costumes – diz-se que é esta, habitada. Talvez a preceito dos miseráveis disfarçados de escol que abastardam o espaço público. Por mecanismos que só os generosos dirão insondáveis, ocupam tronos diversos e passeiam a imodéstia na inversa proporção dos pergaminhos que ficam à mostra de eventuais síndicos. Entretecem teias robustas que alimentam a ascensão (primeiro) e a manutenção (consecutivamente) no erário que cativa a atenção de todos estes que, por dever de se manterem atualizados com as sinuosas curvas do país e do mundo, consomem informação.
Os farsantes mentem com diligência, indiferentes ao lamentável espetáculo de quem insulta a inteligência dos outros. Contam com o mínimo denominador comum que alcatifa a inteligência geral e com a apatia dos outros que se desimportaram da coisa pública e, por exigência interior de sanidade mental, deixaram de passar cartão aos estupores que adejam com a constância do tempo e o maleplácito (palavra acabada de inventar) dos seus pares, que se amparam uns aos outros na bordadura de uma oligarquia sem disfarce.
São filhos da puta encartados, sem ofensa às progenitoras, por força de uma força de expressão. Os genes estão em contínua combustão iniciática por se locupletarem com sinecuras a eito e proventos materiais a tiracolo. São a imagem de quem os sustenta por estes manterem uma atenção, às vezes uma devoção, pelo que dizem e falam. Beócios que não privam com as massas de que dizem ser representantes, não fizeram a escola de um supremo magistrado que preencheu os mandatos a conviver excessivamente com a “ralé” e a distribuir autorretratos a eito.
Esta é a antologia dos estupores que nunca saem de cena, nem mesmo quando são atirados para uma terapêutica sabática, pois acabam sempre por regressar ao lugar do crime. Eles diriam, insensíveis às necedades entranhadas, que estão a precisar de uma hagiografia. Que a façam uns aos outros.
O elefante e a baleia desafiam-se, apesar de viverem em ecossistemas diferentes. Disputam o trono do animal mais poderoso. Dentro do seu ecossistema, seu é um monopólio não contestado, sob pena de os contestatários pagarem com a integridade física, no limite, com a vida extinta por um golpe não misericordioso.
O elefante e a baleia não se contentam com o domínio que exercem. Sabem que há um rival à altura que domina um ecossistema que não é o seu. A sede de poder não os limita. É a sede do irrefreável poder que querem estender para além do domínio do ecossistema que dominam. A ambição trava um módico de humildade. O poder é muito, mas pode ser mais. Cada um não esconde a ousadia de desafiar o rival e açambarcar a porção do poder que lhe pertence. Os dois enredam-se na mesma pergunta: para quê partilhar o poder se o pode assumir sozinho, sem um rival a adejar na divisão do poder?
O elefante e a baleia podem atear uma luta fratricida. Cegados pela avareza, embriagados pela possibilidade de serem o imperador de todos os ecossistemas, vociferam ameaças recíprocas. Cada um exibe as credenciais para amedrontar o outro, mesmo sabendo que o outro não vai tremelicar de medo. O elefante e a baleia começam-se a aproximar do abismo. As injúrias, as humilhações periciais que enfraquecem psicologicamente o outro, a ostentação dos meios que podem arrasar o adversário, a retórica que o transforma em inimigo, são os atos da encenação. Apesar de todas as manobras pré-beligerantes, a baleia e o elefante sabem que o outro dispõe de um poder semelhante e que se subissem a um campo de batalha o resultado seria apocalíptico. Seria uma luta de morte. E mesmo que um fosse derrotado com a morte, o outro estaria fatalmente enfraquecido, ele também no estertor da morte.
O elefante e a baleia provocam-se porque precisam de exibir a sua força. Precisam de a manter no reduto do seu ecossistema, para manter possíveis aspirantes sob a sua alçada. E precisam de acender a retórica beligerante apenas como mnemónica para o outro, não vá a inércia causar o deslaçar do precário equilíbrio em desfavor daquele que não responder às provocações.
Quanto ao demais, são efabulações sinistras, um foguetório de ameaças sem rastilho, um teatro lamentável que alimenta uma teia de micro conflitos de que se alimenta um ecossistema global de desconfianças. O poder sempre foi inimigo da concórdia.
O sangue é o campeão dos contrarrelógios, avança destemido contra o paredão onde as águas são retesadas. Dizem que precisamos de boas ideias, sem elas somos órfãos nas mãos de madraços diletantes que arrematam as alcavalas. Ninguém adianta os predicados de uma boa ideia. Ficamos à espera que sejam paridas e depois, só depois, tiramos conclusões sobre os seus pergaminhos.
Há quem estranhe que assim tenha de ser: uma ideia só pode ser contrasteada depois de se mostrar a quem de interesse. Devia ser o contrário: devia existir um compasso que orientasse as ideias que estão para nascer, ou que podem nem chegar a ver a cor do mundo e o tempo do tempo, para serem banidas as experiências em cima do joelho que às vezes, mas só às vezes, são profícuas. Muito embora não seja contestável o recurso à improvisação como princípio geral, o exagero do improviso pode-nos desguarnecer: ficamos expostos à contingência e sabemos que a contingência é implacável quando se insurge contra o nosso fado.
Também não se diga sistematicamente mal das pessoas que têm um joelho idóneo e nele tudo preparam, o joelho como o alfobre das ideias. Não precisam de mobiliário, estes peritos em ideias ficam baratos. Se vier do joelho milagroso uma ideia que venha a ser compensada com uma mais-valia não tributável, teremos de agradecer à presciência do joelho. Não sejamos tribunos assanhados contra a perspicuidade da improvisação.
Improvisar pode ser uma boa ideia. Da improvisação pode nascer uma boa ideia. Se não for boa, que seja ao menos ideia. Não podemos ser constantemente exigentes com as ideias se não o somos connosco e, ainda menos, com os nossos semelhantes. Venham as ideias – e não interessa se são cinco, cinquenta ou cinco milhões; elas que venham, que umas são aproveitáveis e outras não encontram paradeiro e estão destinadas ao desaproveitamento. Há um museu de ideias e uma imensa lixeira onde são depostas as ideias sem proveito. Sempre foi assim, não se percebe por que terá de ser diferente quando levantamos o véu do futuro.
Que tenhamos a lucidez para aplicar às ideias o mesmo padrão que nos ajuda a medir os vinhos. Então estaremos mais próximos de descobrir os arquitetos da toponímia das almas e os critérios por que se movem.
Esta é a situação. E nós, aprisionados a ela, somos a água levada na eira onde fermenta um situacionismo que hipoteca a vontade. Toda ela dada como dote às alvíssaras da situação enformada. Mas somos nós que deixamos hipotecar a vontade que cede ante uma situação; somos nós a congeminar a situação, ela não existe sem curadores, nós que, com a passividade, atamos os nós que nos prendem à situação que fabricamos.
É falso arrematar as bainhas de uma situação pela denúncia formal da nossa vontade. Dirão: só a apatia habilita uma situação que arrasta consigo um situacionismo de que somos sujeitos passivos. Diga-se em réplica: mas isso só é possível porque deixámos silenciar a vontade, foi da nossa anemia que medrou a situação. Por mais que venhamos a protestar (moderadamente) contra a situação que cerceia a nossa vontade, ela emergiu por demissão da vontade que podia ter obstado à sua emergência.
O situacionismo não é antidemocrático. Não é um ferrolho que inativa a nossa vontade. A situação a que aderimos é a soma das construções nesse sentido e da apatia que se estende por um largo mar de gente. Só os que se mantêm vocais contra a situação é que têm legitimidade para estar na trincheira de onde se movimenta a oposição ao situacionismo. Esses são os heróis a consagrar. Por mais que tencionem substituir o situacionismo por outro de diferente linhagem, por pior que possa ser julgada a alternativa que propõem, não deixam de ser heróis. São eles que falam contra o discurso único que se imporia caso não tutelassem a sua vontade em sentido contrário ao da situação vigorante.
O situacionismo não revoga a imunidade dos que dele se afastam. Seria um contorcionismo intolerável se a situação se estendesse como um império irrevogável, fulminando as alternativas com o degredo próprio que é sentenciado pelos déspotas. Para ser situacionismo, tem de ser democrático. Na linhagem da tolerância que admite que um situacionismo seja reposto por outro situacionismo de diferente linhagem. O situacionismo, qualquer que seja, só não é democrático quando resulta da vontade unilateral de um déspota ou de um escol que compõe uma oligarquia.
A despesa maior é alguém ser tão indispensável que não acredita em nada, nem na sobrevivência das coisas, após o seu decesso.
Pode ser apenas um caso de nepotismo embrulhado na desconfiança dos outros, pois nenhum há que seja tão capaz para tomar conta das coisas que pertencem ao déspota. Uma espécie de direito divino, a coberto da presciência com cabimento na mesma larva, faz com que tudo seja chamado à sua decisão, ele, o único imprescindível até que a natureza das coisas trate de desmentir a sua perenidade.
Se a lógica fizesse o seu caminho, a descentralização seria a palavra de ordem. A delegação de competências assenta na escassez de tempo e na impossibilidade de um só concentrar todas as pendências que compõem o quotidiano, sem esquecer a estratégia alinhavada para os amanhãs que se seguem. Ninguém é capaz de dar conta de tudo; fingir uma delegação de competências que transfere assuntos menores, a burocracia que assoma na espuma dos dias, e depois exigir que seja enviado de volta para ratificação superior, é a prova da infalibilidade do déspota e da desconfiança dos que disfarçadamente recebem as poucas competências delegadas.
Num ambiente destes não há um módico de confiança, nem sequer dos que estão nos degraus inferiores da hierarquia e, a certo momento, recebem fingidas competências delegadas. Começa a medrar um sistema que alimenta a desconfiança recíproca. O déspota dirá que é devedor de uma desconfiança sistemática, sob pena de o poderem enganar. Os que são escolhidos para exercer uma disfarçada delegação de competências apercebem-se da concentração de poderes e da desconfiança que o alimenta, sendo tomados por uma reserva mental que ateia a desconfiança perante o déspota e de uns pelos outros. A bola de neve, imparável, alimenta desconfiança atrás de desconfiança. A entropia passa a ser a palavra de ordem. O déspota é a primeira vítima da desconfiança sistemática.
Se o déspota não fosse déspota, era o primeiro curador do seu bem-estar. Delegar competências é inventar tempo para tratar de outras coisas. É acreditar nas suas próprias escolhas, investindo um capital de confiança para que os escolhidos sejam credores da confiança e diligenciem o seu melhor. Todos têm a ganhar. A começar pelo déspota que aprendeu a deixar de ser déspota a partir do momento em que confiou, com autenticidade, na delegação de competências – e aprendeu a confiar em pessoas, ultrapassando a mal disfarçada desconfiança de si mesmo.
Acreditar em heróis – sobretudo se é o próprio que autoatribui essa condição – tem dado maus resultados. A História está aí para avivar a memória.
As bocas amortalhadas esbracejam verbos penosos – não querem ser acusadas de fala gongórica. E, todavia, ficam cercadas pelo chão espinhoso onde as palavras se consomem, cansadas de si mesmas. Por enquanto, dançam em equações arbitrárias, atiram-se sem medo ao fundo de um poço, talvez de lá resgatem um módico de ânimo.
Não são cintados os moldes dos corpos, eles fogem à silhueta e exacerbam as formas. Não devia vir grande mal ao mundo: na bolsa dos valores admitida a concurso, o estribilho da modernidade, é proibido escarnecer da corpulência extravagante das silhuetas disformes que parecem um rio fora do leito. Em vez disso, os olhares deviam ser criteriosamente síndicos dos meandros em que se debatem para não serem reféns da frivolidade que não se despega da moldura onde o tempo se tutela.
Se um salto no escuro fosse a solução, ninguém seria temerário. Ninguém teria medo de precipícios, arrastando-se audazmente entre as viperinas litanias que se antepõem no pressentimento dos nomes hipotecados. Um salto no escuro deixaria de ser um verbete da louca aposta no nada à espera de uma paga em forma de juros. As olimpíadas do desmedo como poesia convexa, algumas estrofes viradas do avesso para não serem o espelho centrífugo onde as almas se lavam do passado.
A acompanhar, uma banda sonora. Para uns, escolhida ao acaso. Para outros, os mais metódicos, escolhida com critério, para não ser exaurida pelo diálogo dos surdos subidos a palco. Dizem que a música não é um pano de fundo para as palavras arquitetadas; mas pode ser a sua tradução, sopesando-as numa gramática feita de colcheias e notas averbadas numa pauta. Ressarcindo o extenuado corpo que se aventurou no salto no escuro e lambe as escoriações em forma de tatuagem.
Não se demora, o salto no escuro. É uma questão de segundos. Depois, fica um tempo que se arrasta à medida que o remoinho de pensamentos dá lugar a estrofes intemporais. Saboreando o paradoxo de paladares que sobem à boca, os corpos extasiados pela novidade inaugurada na sequência do salto no escuro. Cantando o seu hino privativo ao desmedo.
Autoadministrado em doses decerto não homeopáticas, o soro da mentira predispõe-nos para o contexto. Não há outro modo de lidar com o palimpsesto de logros pespegados com o impassível rosto de quem está convencido de uma verdade entranhada. O soro é o ar do tempo em que nos consumimos.
Não é do trono da moralidade que observo como o soro da mentira se tornou o soro fisiológico que higieniza as relações sociais. Dir-se-á: a colonização ditada pela mentira subjacente, estrutural e entranhada, paga-se com a mesma moeda: para uma mentira, mentira-e-meia. E assim sucessivamente, numa progressão geométrica de mentiras que, a páginas tantas, oblitera a distinção entre mentira e o seu antónimo.
Verdade seja dita que a verdade anda em concubinato com a subjetividade. A verdade não se objetiva, tantas as possíveis lentes através das quais os fenómenos observados são decantados, tantos e tão diferentes os pressupostos que servem de alicerce a uma análise. Verdade seja dita que esta é uma expressão que devia ser banida do léxico que orienta a comunicação, para manter a integridade da verdade subjetiva.
Defender a verdade como conceito subjetivo não franqueia as portas da mentira sistemática. Fazê-lo, é tresler a lógica não necessariamente binária da dicotomia verdade-mentira. É possível contar uma mentira à verdade apenas para temperar as circunstâncias que enfeitam o fenómeno observado. Se a ocultação da mentira leva a suportar uma dor duradoura, mentir sobre a verdade – o que se julga ser a verdade – pode ser uma válvula de escape, como se interiorizássemos que é melhor viver na hibernação da realidade. É uma mentira piedosa, uma autoindulgência, sem efeitos colaterais se não houver vítimas no processo.
Mas há a mentira por sistema, a mentira compulsiva, a mentira por exigências estratégicas, a mentira porque passou a ser padrão considerar que os fins justificam os meios, a mentira propositada para atacar um adversário, a mentira arregimentada com o fito de enganar intencionalmente os destinatários, a mentira pela mentira. Estes casos de mentira trazem vítimas a tiracolo. Servem-se do insofismável soro que alimenta a mentira, que a trata como cura de uma doença maior: a mentira é o recurso estilístico para reagir à mentira que lhe antecede, estendendo o império da mentira assimilado numa cascata de mentiras sucessivas.
Com o soro da mentira a legitimá-la, a dicotomia deixa de fazer sentido e só se fala em diferentes graus de mentira. Paz à alma da verdade.
Efémeros olhares vertem-se sobre as cicatrizes do mundo. As cortinas descem sobre o entardecer, congeminam a ossatura cansada que começa a preparar o desligamento. O dia começa a extinguir-se, abate-se sobre a hibernação temporária a que se dá o nome de sono.
O sono não deixa que os sonhos sejam párias. Podem assomar na forma de pesadelos, precipitando-se como convulsões sobre a cama do corpo, colonizando-o, domando a sua vontade. Os sonhos são o esconderijo de quem somos. E mesmo que se fundamentem em vestígios conhecidos, ou fragmentos da realidade, são como um poço sem fundo que nos traz um esconderijo não convocado.
A mitologia dos sonhos cerca-nos com a sua vontade própria, irrefreável. É como uma maré que ninguém consegue parar e toma conta do areal limítrofe, adulterando-o, e nós não passamos de espectadores, tão passivos quanto é devido ao papel de um espectador. Os sonhos ocupam as omissões involuntárias como se deixassem vir ao de cima um terreno baldio de que não sabemos o paradeiro.
Como esconderijo indisfarçável, aos sonhos compete trazer uma geografia que se joga num plano intermédio. Não é a representação da vida traduzida pelos sonhos, mas também não é uma fantasiosa ilustração de uma vida como sua imagem alternativa. Os sonhos, sem perderem contacto com o palco onde decorre a vida, juntam-lhe a lírica dimensão do irreal, a fantasia em barda que parece querer desdobrar a vida em várias camadas.
Os sonhos como esconderijo não se entranham num desagrado da vida. Deles sabemos que também podemos ser heterónimas vidas projetadas numa lente difusa, rarefeita, onde os sentidos se confundem numa baça aridez. Ou são uma exigente demanda, fazendo com que a inauguração do dia pareça o seu prematuro ocaso; ou são uma planície fértil onde se fecunda uma vida diferente, esconjurada das angústias que a preenchem.
Às vezes, os sonhos são a paredes onde se desenham os esconderijos não intencionais. Um retrato diferente, as pinceladas gotejando dos dedos amorfos domados por Morfeu.
Percorre a cumeada com os dedos que não se escondem da alvorada. Encontrarás uma enseada no meio do pensamento. Não te amedrontes: o pensamento quer transbordar, não o reprimas e espera pelos juros futuros. A História reza a favor dos audazes, os que atiram flechas ateadas pelo combustível da alma contra os algozes que os querem anémicos. As pessoas querem o conforto de um lugar certo para não serem reféns da incerteza de um paradeiro por determinar. Se não for destra a cumeada, não desistas; do dia largo podes colher réditos opulentos se souberes tutelar a paciência metódica. A água tingida pelo âmbar não te devolve um oráculo; não peças ao tempo incerto o apeadeiro onde encontras um lugar certo. Se soubesses que as metáforas compensam os temores pelo estertor que se cinge ao tempo meteórico, escreverias tu próprio os termos do dicionário para tutelares as metáforas. Encontrarias refúgio nas metáforas para compensar a indeterminação dos lugares incertos que povoam os medos refratários. Nessa altura, não serias senão o fingimento escadeado nos fulgurantes socalcos que anestesiam as pessoas. Em vez de obstáculos no penhor de um lugar, encontras o teu centro no fogo da vontade que te apalavra. Fica a memória do caos quando te doíam os dias que rasavam a pele. Rasgas as entranhas dessa dor e no seu pranto liquidas o império que lhe foi património. Saberás então o que é ser de um lugar certo. O lugar certo que não rima com o sedentarismo de que não tens medo; o lugar certo é plural, irradia de múltiplas geografias, como se tua fosse uma pertença variegada. A pele fica tatuada com os diferentes lugares que esconjuram o medo da diversidade. Nessa altura, serás tu, desanexado da rigidez que te aprisionou num lugar certo, mas exíguo.
Na lógica dos predadores, não somos íntegros na tutela dos direitos que nos ensinam a ter. Somos meros objetos. Sacrificados, em última instância, em nome de um “bem maior”, por muito que sejam indeterminados os critérios de fixação a que o “bem maior” obedece. Despidos de nomes, somos só números cuidados como súbditos, cadastrados em frias estantes onde contamos como peças indiferentes manipuladas como candidatos ao estertor.
Andamos todos no lugar do morto, por mais que estejamos convencidos que não. À mercê da contingência, a sorte ou o azar combinados num jogo de acasos em que são sempre de outros as deliberações que sobre nós se abatem. A nossa vontade é irrisória. Só contam as vontades dos outros que se congeminam num jogo de acasos em que somos apanhados como afortunados sobreviventes ou como presas fáceis.
É parecido com a irrelevância que nos persegue quando somos transportados num veículo conduzido por outro; não é muito diferente do que acontece quando somos apanhados, como vítimas diletas, no sortilégio das decisões dos governos, nacionais ou de outros países, ou dos oligarcas que conspiram no silêncio do seu poder não sindicável. Não é muito diferente das decisões tomadas por outros que são tangentes à nossa vontade, sem que seja possível interferir com a vontade deles. Seguimos no banco do lado, espectadores passivos, observando o despacho da vontade de quem tem o volante nas mãos. Hibernados, na posição de quem assiste aos acontecimentos mas está paralisado pela impossibilidade de atuar, a nossa vontade apeada.
A contingência cobre uma parte importante das vidas. Por mais que seja exaltada a vontade própria, o direito a ter direitos com solene consagração jurídica, nacional e internacionalmente, e o princípio da dignidade humana que nos eleva à utopia da igualdade, a posição em que seguimos é de apatia interessada.
É como se fôssemos participantes numa peça de teatro sem sairmos da plateia. Pedem-nos para sermos atores sem sairmos do lugar. A latitude da nossa participação resume-se a uma fina camada de teoria que depressa se estilhaça ao primeiro contacto com os acontecimentos.