3.1.25

Em lugar certo (short stories #475)

Cocteau Twins, “My Truth”, in https://www.youtube.com/watch?v=bMWUa-IoQoA

          Percorre a cumeada com os dedos que não se escondem da alvorada. Encontrarás uma enseada no meio do pensamento. Não te amedrontes: o pensamento quer transbordar, não o reprimas e espera pelos juros futuros. A História reza a favor dos audazes, os que atiram flechas ateadas pelo combustível da alma contra os algozes que os querem anémicos. As pessoas querem o conforto de um lugar certo para não serem reféns da incerteza de um paradeiro por determinar. Se não for destra a cumeada, não desistas; do dia largo podes colher réditos opulentos se souberes tutelar a paciência metódica. A água tingida pelo âmbar não te devolve um oráculo; não peças ao tempo incerto o apeadeiro onde encontras um lugar certo. Se soubesses que as metáforas compensam os temores pelo estertor que se cinge ao tempo meteórico, escreverias tu próprio os termos do dicionário para tutelares as metáforas. Encontrarias refúgio nas metáforas para compensar a indeterminação dos lugares incertos que povoam os medos refratários. Nessa altura, não serias senão o fingimento escadeado nos fulgurantes socalcos que anestesiam as pessoas. Em vez de obstáculos no penhor de um lugar, encontras o teu centro no fogo da vontade que te apalavra. Fica a memória do caos quando te doíam os dias que rasavam a pele. Rasgas as entranhas dessa dor e no seu pranto liquidas o império que lhe foi património. Saberás então o que é ser de um lugar certo. O lugar certo que não rima com o sedentarismo de que não tens medo; o lugar certo é plural, irradia de múltiplas geografias, como se tua fosse uma pertença variegada. A pele fica tatuada com os diferentes lugares que esconjuram o medo da diversidade. Nessa altura, serás tu, desanexado da rigidez que te aprisionou num lugar certo, mas exíguo.   

2.1.25

Andamos todos no lugar do morto (contingência)

The White Stripes, “We’re Going to Be Friends” (live at SNL), in https://www.youtube.com/watch?v=hgJ-nb9GEJs

Na lógica dos predadores, não somos íntegros na tutela dos direitos que nos ensinam a ter. Somos meros objetos. Sacrificados, em última instância, em nome de um “bem maior”, por muito que sejam indeterminados os critérios de fixação a que o “bem maior” obedece. Despidos de nomes, somos só números cuidados como súbditos, cadastrados em frias estantes onde contamos como peças indiferentes manipuladas como candidatos ao estertor.

Andamos todos no lugar do morto, por mais que estejamos convencidos que não. À mercê da contingência, a sorte ou o azar combinados num jogo de acasos em que são sempre de outros as deliberações que sobre nós se abatem. A nossa vontade é irrisória. Só contam as vontades dos outros que se congeminam num jogo de acasos em que somos apanhados como afortunados sobreviventes ou como presas fáceis. 

É parecido com a irrelevância que nos persegue quando somos transportados num veículo conduzido por outro; não é muito diferente do que acontece quando somos apanhados, como vítimas diletas, no sortilégio das decisões dos governos, nacionais ou de outros países, ou dos oligarcas que conspiram no silêncio do seu poder não sindicável. Não é muito diferente das decisões tomadas por outros que são tangentes à nossa vontade, sem que seja possível interferir com a vontade deles. Seguimos no banco do lado, espectadores passivos, observando o despacho da vontade de quem tem o volante nas mãos. Hibernados, na posição de quem assiste aos acontecimentos mas está paralisado pela impossibilidade de atuar, a nossa vontade apeada. 

A contingência cobre uma parte importante das vidas. Por mais que seja exaltada a vontade própria, o direito a ter direitos com solene consagração jurídica, nacional e internacionalmente, e o princípio da dignidade humana que nos eleva à utopia da igualdade, a posição em que seguimos é de apatia interessada. 

É como se fôssemos participantes numa peça de teatro sem sairmos da plateia. Pedem-nos para sermos atores sem sairmos do lugar. A latitude da nossa participação resume-se a uma fina camada de teoria que depressa se estilhaça ao primeiro contacto com os acontecimentos.

1.1.25

Veni, vidi, vici

Massive Attack ft. Azekel, “Ritual Spirit”, in https://www.youtube.com/watch?v=fhI5T_NKYxc

Passou uma temporada longa longe das luzes da ribalta. A pele esbranquiçada era prova irrefutável. Gente assim não consegue estar muito longe dos holofotes onde transitam os aspirantes e aqueles que os inspiram – toda uma fauna que deixa o pensamento em trajes esqueléticos. E o que importa o pensamento?

O regresso – come back, na língua de trapos de que se servem – foi preparado com critério. Reativou conhecimentos e contactos (há que saber diferenciar os estatutos). Sabendo que nada é gratuito nestes tempos, foi prometendo compensações. Endividava-se antes do tempo, sem ter a garantia de poder restituir os favores com os juros esperados. Acontece amiúde com gente assim: fogem em frente, contornando os contratempos através da sua eliminação do dicionário. Nunca são vítimas da usura dos outros.

Foram muitos almoços pagos por conta. Vernissages frequentadas e beija-mãos cirúrgicos. Genuflexões oportunistas. Conversas com fotógrafos das revistas coloridas onde o social comunica em circuito fechado, conversas untadas com envelopes preenchidos com notas gordas, convites para lugares de acesso reservado, vales válidos para bens consumíveis que costumam habilitar dependências variegadas. Para os fotógrafos não se esquecerem de escolher um pano de fundo onde ele se encontrava. Tudo na passadeira da notoriedade, sem a qual ninguém passa do anonimato.

Não escondia a excitação do momento. Afinal, o seu nome não caíra em saco roto. Ninguém se escondia dele – a controvérsia que ditara o seu afastamento voluntário dera resultados, é fraca a memória de gente assim que labuta na dificuldade do pensamento. Um corredor de fundo não tem de estar sempre na vanguarda. Sabe esconder-se. O esconderijo ajuda a travar as fragilidades. 

Veio o dia retumbante, amanheceu a agenda que ditaria o sim-ou-sopas. Acordou confiante. Vestiu a melhor fazenda. Visitou o coiffeur (ele há palavras que não podem sere ditas no idioma nativo, para não se ser possidónio). A limousine alugada esperava, à hora marcada. À entrada do plateau (outra), procurou a passadeira vermelha que o conduziria à plataforma onde os notáveis posam a pose milimetricamente estudada para as câmaras dos paparazzi. Fez a sua melhor pose – a escola de manequins deixa embebidos na alma os ensinamentos passados aos modelos, o máximo culto do fingimento. 

Não sabia descrever a euforia que o percorria. Não cabia dentro de si. Festou imenso. Parlamentou frivolidades com notáveis encartados e com outros em via de o serem. Bebeu, muito. Inalou a droga dos famosos. Não cabia dentro de si. Tanto, que no dia seguinte, quando acordou no exíguo apartamento sito à periferia da grande cidade, não conseguiu reprimir o vazio que o ocupava. 

Chegar, ver e vencer pode não passar de um eufemismo.