Turnstile, “Never Enough”, in https://www.youtube.com/watch?v=Nfk1Su1Q8SI
“O Euro foi criado contra o Dólar.”
José Manuel Fernandes, Rádio Observador, 08.04.25
A imputação de culpas é uma tarefa eivada de subjetividade. Mesmo quando estão estabelecidos parâmetros de análise que intuem uma carga objetiva de modo a travar a subjetividade da análise (que, neste caso, será entendida como um óbice). Há alguma abertura para a flexibilidade hermenêutica; quando a matéria em análise é permeável a contributos de diferentes ciências, a falta de consenso ajuda a perturbar a objetividade, mas ganha-se em riqueza por fermentarem diferentes abordagens e pontos-de-vista. É sempre melhor do que o pensamento único, ou a sua derivação, o pensamento dominante.
Quando ouvi as palavras de José Manuel Fernandes (JMF), citadas no início deste artigo, apanhei o raciocínio a meio. Ao que pude perceber, JMF procurava ajudar no entendimento destas palavras proferidas por Trump: “a União Europeia formou-se para nos prejudicar, para criar uma situação de monopólio, uma força unificada contra os EUA no comércio” (Público, 08.04.25, p. 3). Para ajudar a contextualizar, JMF afirmou, perentoriamente, que o Euro foi criado contra o Dólar dos EUA (USD), parecendo mimetizar o argumentário de Trump, deslocando-se da vertente comercial para a vertente monetária. Talvez por perceber, um pouco a destempo, que a comparação era descabida, JMF apressou-se a apresentar o registo de interesses: as políticas de Trump são indefensáveis, Trump faz mal ao mundo, e etc. Mas logo depois voltou à sua ideia: “vamos por água nos pulsos”, sugeriu, para reconhecermos que a moeda única europeia foi criada com o propósito de antagonizar o USD.
Pese embora ser favorável ao debate que enriquece com a concorrência de ideias (ganhamos muito em tomar conhecimento das ideias diferentes das nossas, com as quais possamos discordar), aproveito este espaço para elucidar o(a) leitor(a), e contribuir para o esclarecimento de JMF, pois o seu juízo de valor do Euro é manifestamente descontextualizado. Até a literatura que sempre foi cética em relação à moeda única não reconhece qualquer laivo de hostilidade dos arquitetos do Euro relativamente ao USD.
Talvez um pouco de História ajude o(a) leitor(a) e JMF a sopesar os acontecimentos. É preciso recuar ao Acordo de Bretton Woods (JMF invocou-o) para perceber o papel de âncora do USD. Esta era a única moeda convertível em ouro. Era em relação ao USD (e ao ouro) que as demais moedas do Sistema Monetário Internacional (SMI) podiam oscilar no máximo 1% (no sentido da revalorização ou da desvalorização). Para perceber o alcance dos privilégios dos EUA, aconselho o(a) leitor(a) (e JMF) a ler um livro do mal-amado Varoufakis sobre o privilégio exorbitante detido pelos EUA enquanto o USD foi a moeda-âncora do SMI. Todavia, o SMI sofreu contratempos a partir de meados da década de 60 do século XX. Foi o presidente Nixon que ateou o rastilho da falência do SMI quando, em 1973, decretou a inconvertibilidade do USD em ouro. Foi o golpe fatal no SMI, terminando uma duradoura era de estabilidade cambial necessária para facilitar o comércio internacional e a prosperidade da economia mundial. Os EUA não conseguiram (ou não quiseram) suportar o ónus do privilégio exorbitante. Não foram atacados por ninguém, economicamente falando. A decisão partiu das autoridades dos EUA, que abdicaram do papel atribuído ao USD.
Ao nível europeu, a estabilidade cambial era exigível para materializar as livres trocas intrínsecas à união aduaneira. A partir de 1973, com a elevada volatilidade cambial, o “não-SMI” perturbou o funcionamento da união aduaneira. A liberdade de comércio, e o clima concorrencial que lhe é inato, estavam em causa: por mais que as fronteiras estivessem abertas e importações e exportações entre Estados membros das (então) Comunidades Europeias circulassem livremente, as flutuações cambiais entre as moedas europeias comprometiam o objetivo. A livre concorrência pressuposta na união aduaneira estava sequestrada pelas flutuações cambiais entre as moedas dos Estados europeus: alguns Estados ganhavam competitividade artificial com a desvalorização, outros perdiam-na com a revalorização. Era compreensível que a Europa procurasse uma solução para resolver esta tensão que punha em causa o funcionamento da união aduaneira. A tentativa gorada de criar uma união monetária até 1980, com base no Plano Werner, foi disso sintoma.
O avanço para a União Económica e Monetária (UEM) concretizou-se com a aprovação do Tratado de Maastricht, em 1992. A experiência precursora – o Sistema Monetário Europeu, instituído em 1979 – tinha limitações e foi alvo de ataques especulativos que revelaram as suas fragilidades enquanto acordo cambial. Internamente, as condições políticas atuavam a favor de desenvolvimentos politicamente ambiciosos. É neste contexto que se enquadra a UEM e a criação de uma moeda única e do Banco Central Europeu. Não era aceitável que a autonomia da Europa fosse hipotecada em função dos interesses dos EUA.
É despropositado enquadrar estas iniciativas num contexto de hostilização dos EUA. Tanto mais que os EUA eram, então (mas não certamente por ora), o maior aliado da Europa comunitária. A criação do Euro orientou-se para a salvaguarda das trocas comerciais no interior da União Europeia e para a afirmação da UE como potência económica. Algumas instituições da União e certos governos nacionais foram transparentes ao desejarem que o Euro assumisse um papel internacional, sem que tal ambição pudesse ser entendida como um ataque ao USD. A concorrência monetária no plano internacional era desejável para que a estabilidade cambial não dependesse das variações de uma só moeda e dos humores das autoridades políticas que sobre ela exercem influência. Rivalizar não significa antagonizar.
Da forma como JMF se situou perante a questão, parece que a Europa estava condenada a gravitar eternamente na órbita dos EUA. Como está à vista, tantos anos depois, a permeabilidade da UE a tamanho estatuto de dependência está a colocá-la contra as cordas. Olhando pelo espelho retrovisor, diga-se: ainda bem que a UE tem o Euro!