20.11.24

Traumatismo democrático

Death Cab for Cutie, “Black Sun” (live on David Letterman), in https://www.youtube.com/watch?v=o9o8jYRAmaI

(Para que este texto não seja treslido à medida da conveniência dos que vão ser criticados, eis o registo de interesses: causa-me perplexidade e preocupação a popularidade dos extremistas de direita que têm vindo a subir a pulso na paisagem eleitoral. São uma excrescência da democracia, mas não pode ser vedada a sua participação em eleições se e enquanto não manifestarem a intenção de terminar a democracia. No passado recente, alguns destes credenciados exemplares tomaram conta do poder por terem ganho eleições. Por mais entorses que tenham causado à democracia, não lhe puseram termo. Merecem o benefício da dúvida, por mais que causem náusea – nestes tempos, ainda mais do que a extrema-esquerda.)

Brecht dizia que se devia dissolver o povo quando o povo é ingrato e não vota “como deve ser”. Eis o drama existencial da democracia, esse regime que, de acordo com alguns iluminados, uns ascetas que aspiram a pastorear o bom povo que precisa de orientação, é o melhor desde que o povo eleja os que são devem ser eleitos. Há alguém que, na senda do sofisma de “quem decide quem decide?”, instrui o bom povo para saber os candidatos ou os partidos recomendáveis e os que devem ser impedidos de ganhar. 

A triagem feita pelos iluminados é um exercício de denegação da democracia. Eles próprios, ao recomendarem os eleitos recomendáveis aos eleitores, atropelam o jogo da democracia. Este exercício esbarra noutro que é intrínseco à democracia: o direito de escolher entre as listas ou os candidatos que se apresentam a concurso eleitoral. Não é exagerado adivinhar que se um acaso levasse os “certificadores” de candidatos à titularidade da batuta do regime, excluiriam certos candidatos e partidos que, de acordo com a sua visionária sentença, não respeitem os mínimos de aceitabilidade democrática. 

Para seu imenso desgosto, o Estado de direito tem superioridade e funciona como uma importante mnemónica: a vontade intransigente de quem inspira as massas que precisam de aconselhamento não se torna letra de lei. Por muito que interiormente aspirem a ser condutores das massas e acreditem que ditam as leis (como se houvesse um ordenamento jurídico seu que suplanta as leis existentes), esse não é o caso. 

Para seu pesar, o sistema político tem regras que aceitam aqueles que os condutores de almas já condenaram ao desterro político. Para sua grande mágoa – e para o pior que se possa imaginar –, estes abencerragens de um passado deplorável têm cativado cada vez mais votos. Alguns, homessa!, chegam a ganhar eleições. Outros, dantes ausentes da paisagem política, conseguem ter um contingente numeroso de representantes parlamentares. Os donos da verdade assentam nos pergaminhos antidemocráticos destes populistas, esquecendo a temerosa linhagem de outros populistas que gravitam na assimetria ideológica dos que são atirados para o lodo autocrático.

O pior é quando os juízes da moralidade impante animam as hostes a saírem à rua em protesto contra eleições ganhas pelos “fascistas” – o rótulo tão fácil, tão banalizado e tão esvaziado de significado que não seja a sua adulteração como vexame dos que ousam ser nossos opositores. Ou quando efabulam sobre a qualidade do voto dos que escolhem estas personagens de má rês, atropelando flagrantemente o princípio do voto individual e de como todo o voto, até o que mais lamentarmos (de preferência no nosso íntimo), conta por igual. Estes juízes do politicamente correto escorregam para o anátema do que dizem defender em público, a igualdade de todos e a incontestabilidade do voto popular. O que dizer destes lídimos representantes “da verdade” (como se fosse possível objetivar a verdade) quando se investem no papel de guardiães da democracia e convocam manifestações de rua que exibem desprezo perante os resultados de uma eleição? O que dizer da linhagem destes “democratas” quando atacam deste modo um esteio da democracia?

Estes autoinvestidos embaixadores da moralidade política, que se elevaram a mecenas da democracia, exibem um traumatismo democrático: não sabem aceitar o resultado de eleições quando os que as vencem saem da sua órbita de aceitabilidade. Mas pior do que aparecerem com os seus traumas democráticos, é o traumatismo que, sem darem conta (prefiro acreditar nesta hipótese benigna), causam na democracia.

19.11.24

Nó cego

PZ feat Joe Zé, “The Day Taylor Swift Became Legit”, in https://www.youtube.com/watch?v=t7dgg3kuRQ8

A vizinhança do medo, um grama acima do abismo, só para ficar de atalaia. Um grama acima do abismo, e o abismo pendido no espaço que o separa do chão onde se despenharam ramos de árvores arrematados pelo vento que pertenceu a uma tempestade qualquer. O arnês é obrigatório. Até para os que não forem ousados e apenas se abeirarem do precipício. Nunca se sabe se um golpe de vento inesperado os atira para o medo irremediável.

O arnês precisa de nós firmes. A negligência não participa na linguagem do arnês. O medo que se acerca do palco não transige com a negligência. Até aos mais distraídos não fica esquecida a diligência. Se o zelo fosse uma formalidade, e não fosse atendido com o cuidado exigível, o arnês seria só um disfarce. Os nós têm de ser exigentes como o arnês, para o arnês não ser inútil. É preciso fazer nós de marinheiro, com a cautela de quem se mete com o medo sem medo de ter medo.

Os nós de marinheiro não são um monopólio dos marinheiros. Há gente que nunca foi ao mar e aprendeu a dar nós de marinheiro. Tiveram de lidar com o medo e os nós de marinheiro são a vacina contra o medo. O engenho tece os milagres que deixam de o ser quando às mãos chegam empreitadas inesperadas. Os nós diligentes formam a armadura necessária. Se o medo for substituído pela audácia, e na audácia houver apenas uma intrepidez insensata, os nós prontificam-se ao desaperto. Para que o medo não seja final, os nós do arnês devem ser feitos por peritos. Como se fosse preciso garantir uma caução infalível para o medo não ser final.

Na falta de destreza para acondicionar os nós de marinheiro, o arnês é afivelado por nós cegos. São nós indestrutíveis, mesmo que seja à custa da corda depois puída. Porque um nó cego não se desfaz. Nem todos são marinheiros para atarem nós de marinheiro. Mas o nó cego passa no teste do medo. 

18.11.24

O piano em que tocou Sakamoto

Ryuichi Sakamoto, “Aqua”, in https://www.youtube.com/watch?v=gSuHD4jzNJ0

O piano tinha direito a um pequeno púlpito, meia dúzia de degraus acima do chão do átrio do hotel. Estava impecavelmente polido, como se alguém tivesse acabado de engraxar um par de sapatos. As pessoas abeiravam-se do piano. Circundavam o piano. Algumas tocavam levemente o piano com uma mão, extasiadas pelo instrumento que era centrípeto. 

Não se podia dizer que o piano atraía as pessoas por causa das luzes feéricas do lugar. A gerência do hotel preferiu que as luzes fossem baças, o que causava ainda mais admiração nas pessoas que visitavam o piano: se houvesse luzes mais pujantes, imagine-se a cintilação que o piano emitiria.

Perto da cauda do piano, uma pequena placa continha informação para os interessados: 

Ryuichi Sakamoto tocou no piano durante a sua estadia neste hotel. 

Para quem soubesse quem era Sakamoto, o piano tornava-se um ícone. Não era de estranhar que a gerência do hotel tenha promovido o piano a um lugar de destaque. Mas o piano não estava naquele lugar quando Sakamoto desceu do quarto, numa noite de insónia, e abriu a tampa do piano para dedilhar umas notas, ao início, ganhando a confiança no piano ao ponto de ter estado meia hora a falar com ele através da música. Era noite funda. Apenas um punhado de funcionários que estavam de serviço e alguns hóspedes que chegaram a más horas ouviram a récita improvisada e improvável de Sakamoto. Não se soube quantos deles saberiam quem era o pequeno japonês que tratava o piano do átrio do hotel por tu.

O gerente do hotel soube no dia seguinte. Ninguém soube dizer se o pianista era de circunstância, um amador todavia com dedos destros no piano, ou um pianista profissional. O gerente, que fizera formação em música clássica, correu os dados dos hóspedes. Encontrou o nome de família “Sakamoto”, seguido do nome próprio “Ryuichi”. 

O gerente do hotel não se perdoou ter trocado o turno da noite com o subgerente. Devia ter sido ele a fazer o turno, mas estava cansado e pediu ao subgerente que ficasse na sua vez. Perguntou na receção se alguém se tinha ido ao piano depois de Sakamoto. Disseram que não. O gerente encaminhou-se para o piano, puxou discretamente o banco atrás enquanto levantava o tampo do piano com a mão livre. Os dedos passearam pelas teclas que horas antes tinham sido massajadas por Sakamoto. E o gerente, quase por osmose, sentiu-se Sakamoto por uns instantes. O Sakamoto que não conseguiu ser, antes de ter feito carreira na hotelaria. 

Quanto ao piano, foi entronizado. Ao gerente do hotel ainda passou pela cabeça a ideia de tornar inacessível o piano, para que as pessoas não dissipassem os restos de Sakamoto que ficaram a fazer parte do ADN do piano. Mudou de ideias. As pessoas que soubessem quem era Sakamoto tinham o direito de tocar no piano onde o músico tinha tocado.

15.11.24

Voto de desconfiança

Beirut, “Caspian Tiger”, in https://www.youtube.com/watch?v=aaQLHfuXF2A

À prova de bala, exibem a gongórica exaustão de si mesmos. O falatório é fecundo, as realizações sobram na cortina de fumo das promessas miríficas em constante ebulição. As poucas que beijam a luz do dia esbarram no avesso das benesses. Às vezes, é melhor política não fazer nada.  

Os mecenas da situação estabelecida, gravitando na órbita do fazer público, contestam o juízo. Consideram-no um pré-juízo, grávido de ideias feitas. Desafiam os descontentes a entrarem no palco público, a serem proponentes das maneiras alternativas. Como se fosse imperativo estar por dentro para a crítica ganhar legitimidade. Mal-amanhados, os eriçados astronautas da coisa pública passam ao lado de um direito fundamental de que ninguém pode ser privado: ser cidadão começa pela admissão de um erário de direitos, os deveres pertencem à consciência de cada um. Um dos direitos é de sermos os soberanos avaliadores dos que sobem a palco e desenham, com a diligência possível, o esboço do presente e do futuro. Mal iria a liberdade se aos descontentes fosse vedada a liberdade da crítica. Se a vontade fosse feita aos censores disfarçados, assimétrica seria a liberdade, uma regalia exclusiva dos seus aduladores e dos que aceitassem castrar a liberdade de expressão.

Os embaixadores da situação ficam indignados quando sobre eles se abate um voto de desconfiança. Parece que estão ungidos com o barbante da perfeição e sua é a infalibilidade reinante. Quando esbarram na crítica, reagem com hostilidade. Porque a crítica é uma adversidade. Escondem-se sob o verniz muito epidérmico, os salazarentos entranhados. Ah, se pudessem prescindir, ou ao menos temporariamente suspender a democracia, não ficariam à mercê do povaréu impreparado e tremendamente ingrato. Até ser levantada a suspensão, podiam concluir a sua missão e – acreditam, tão seguros das suas capacidades (e reféns de um espelho de ilusões) – imortalizar o seu nome nos livros que selam a História conjunta. Pois é isso que importa.

A recompensa que merecem é um voto de desconfiança. Não é a escolha dos rivais; é a escolha para que os mandantes não continuem a desmandar. 

14.11.24

“Mercedes velho arranca depois de horas submerso” (das notícias)

The Smiths, “Well I Wonder”, in https://www.youtube.com/watch?v=7J-oqCZ3wyc

Do espectro dos milagres – porque as pessoas sossegam os espíritos, quando os espíritos tendem para o sobressalto contínuo, ao serem anunciados milagres. Os milagres contrariam os padecimentos que assaltam as vidas com uma frequência superior à desejada. Invertem o curso dos acontecimentos quando as vidas esbarram em contrariedades e não avançam no curso cobiçado. Um milagre é o tira-nódoas que as vidas das pessoas precisam, porque uma vida enodoada fica aquém da vida que merece ser.

Quando há inundações e os carros ficam submersos, depois a água deixa de ser invasora e os carros já não são submarinos. Mas eles não voltam à vida sem uma reparação do motor. Um carro não foi feito para ser submarino. A mecânica não é à prova de água. Quando a água lodacenta invade o motor, o carro fica fora de combate. Saber que um carro – um Mercedes, com a licença da publicidade gratuita, só para confirmar o mito de que os Mercedes “nunca mais acabam” – esteve submerso e quando foi retirado das águas respondeu à chamada da ignição, é do domínio do milagre.

É como se as pessoas que vivem agarradas à ideia de milagre pudessem desconfiar que o seu afogamento não é fatal. Aventurem-se mais audazmente no mar, no rio, na albufeira, na lagoa, na piscina, na banheira. Se a aventura se saldar por um afogamento, serão como o resistente Mercedes à prova de água: retiradas do afogamento, feita a manobra de reanimação – exigindo a presença de um perito no assunto, o que não pode ser garantido no cenário do milagre –, o afogado regressa à vida para contar como é estar uns minutos do lado da morte.

As pessoas devem saber medir as circunstâncias. Elas não são feitas da mesma fibra dos Mercedes que podiam ser submarinos. Os pulmões não foram feitos para respirar debaixo de água. Muito embora os Mercedes sejam projetados por pessoas e fabricados por algumas pessoas (em parceria com robots), as pessoas são feitas de outro material. Que não é impermeável. 

Os milagres não foram feitos para todos. As pessoas não devem imitar o Mercedes que passou por submarino. Correm o risco de já cá não estar para saberem do ocorrido. Já o Mercedes que ressuscitou da submersão, anda por aí. Pronto para as curvas.

13.11.24

Vende-se: passados

Massive Attack, “Live With Me”, in https://www.youtube.com/watch?v=o_mi7rD-_9c

Aos interessados, gente não órfã de passado e, todavia, ambicionando exibir um, magnífico e exemplar, que seja diferente do seu; gente arrivista que não saiu da cepa torta e, insatisfeita com o que lhe foi reservado pelo destino (ou pela indolência; ou por uma conjugação de circunstâncias que jogou a seu desfavor, real ou imaginada), quer ostentar pergaminhos só possíveis com a reconstituição do seu passado; gente que se acusa vítima de injustiças avulsas, ou atingida por várias marés de infortúnio; e gente já instalada mas grávida de ambição, com uma sede irreparável de craveira que os eleve a outro patamar. Aos interessados, estes e de outras linhagens elegíveis, o anúncio altissonante: vendem-se passados.

Vendem-se passados de gente desinteressada no passado seu; de gente que deixou de existir e lavrou em testamento a vontade de transmissão de parte ou de todo o seu passado; de gente, ora altruisticamente motivada para melhorar a vida dos outros, ora mercando o passado em fragmentos ou na totalidade contra um pagamento correspondente.

Desenganem-se os conservadores que advertem, agarrados às convenções que funcionam como sua boia salvadora, que o passado é pessoal e intransmissível. Insistem: o passado está colado à pessoa que o titula, não pode ser transferível para outra pessoa. Estes conservadores têm de ser repudiados: ele há tanta gente que aspira a ser diferente de quem é, que a sua vontade só se autentica se conseguir vestir um passado que lhes foi transmitido por ato, gratuito ou oneroso, de outrem. Não podem travar as ambições dos que querem ser maiores do que o seu próprio espelho anuncia.

As pessoas têm legitimidade para não estarem contentes com quem são. Devem poder ambicionar a ter outra, maior, estatura da que arcam. Dantes, falsificavam-se credenciais, materializando mentiras negras que arrastavam consigo o ónus do indesculpável. Retificar a propensão para esta mentira grave consegue-se através da legitimação de uma mentira que tem uma gravidade menor: merquem-se passados, que deixam de ser pessoais e intransmissíveis, e seja saciada a teima de muitos serem de uma grandeza que o seu passado não caucionou. 

A seguir, mude-se o nome deste lugar para república popular da mentira.

12.11.24

O direito a dizer coisas sem importância e de não ser julgado por isso

LCD Soundsystem, “Bela Lugosi’s Dead” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=Iix7JmtArJw

“(...) dizer coisas inúteis resume bem a atitude essencialmente moderna.” 

Fernando Pessoa

                  (Em defesa da banalidade)

Quanto mais é a palavra escrita, a palavra dita, maior a probabilidade do que se diz emergir com a cola da irrelevância. Os autores desta sentença estão sentados num pedestal e, empossados de um juízo crítico acima da vulgaridade das massas, avaliam o que é útil e inútil. Tendo dotes especiais de sindicância (sobretudo quando a mesma se dirige aos outros; outro tanto não se diria se fizessem um autoexame), a exigência com que exercem o mandato leva-os a incluir no património da inutilidade parte substancial da cacofonia que integra a fala e a escrita.

Não será critério decisivo defender a convocatória da democracia, e a acessória garantia de igualdade, para recusar o solipsismo dos que, sentados no seu alto trono, condenam grande parte do que é dito e escrito a ser património da inutilidade. Às vezes, a acrimónia com que se desfaz um texto ou as palavras proferidas por alguém explica-se pelo antagonismo pessoal: é um método, e desleal, de atacar alguém pelo alguém que é e não pelo que o que acabou de dizer ou de escrever. A acrimónia é reveladora das motivações dos tais juízes das palavras alheias. 

Outros são os casos que escapam ao diletantismo da acrimónia e selam a avaliação sistemática e eivada de rigor sobre-humano: os avaliadores são tão exigentes que sentenciam a desqualificação geral das palavras ditas ou escritas. Como se estivessem a condenar uma parte significativa da humanidade ao silêncio, talvez para ficarem eles, e um escol sob sua caução, a falar sozinhos.

Por menor que seja a qualidade das palavras ditas e escritas, incomodam mais os próceres que sentenciam a desqualificação da grande maioria. Esse princípio aristocrático, só justificável por um devaneio interior de quem ousa avaliar a qualidade dos outros, concorre para a morte da concorrência da palavra dita em público ou dada à estampa. É mais danosa a arrogância dos autoinvestidos aristocratas do que a pobre qualidade do muito que se diz e que se escreve. É mais lesiva a oligarquia da palavra que preconizam do que a palavra gongórica, irrelevante e, tantas vezes, refém de ardis gramaticais e sintáticos. 

Porque, como advertiu Montaigne, “mesmo no mais alto trono do mundo estamos sempre sentados sobre o nosso rabo”. 

11.11.24

A morte heurística

The Cure, “Alone”, in https://www.youtube.com/watch?v=sx9SVAtMkJM

A morte, essa cabra, não desiste. Subtrai as pessoas à vida, umas cedo de mais. A morte, façanhuda, conspira contra os que querem saber que em vida têm muitos mares a cultivar. A morte, quando nos é próxima, é filosófica. Obriga a pensar. Leva a juras que se antepõem a mudanças sentadas no astrolábio do futuro. Até à morte que nos é próxima, vamos esquecendo o valor incalculável da vida. Esquecemos que nós, os que ainda não fomos vítimas da morte filha-da-puta, somos a vida que se emoldura em sublimes fragmentos poéticos. Esquecemos o fio frágil da vida e atiramo-nos às angústias, às quezílias, às coisas que nos desenamoram da vida, como se andássemos à procura dos vultos facínoras que estão de atalaia, à espera da nossa vez. A morte próxima, a morte que vem sem aviso de receção, é um profundo abalo sísmico. Não disfarçamos se plantamos outra jura no caminho: a morte ensina a fragilidade da vida, ensina a sua efemeridade. E se queremos ser cultores da vida, como se ela dependesse de cada um e não contrário, temos de a tomar pelas rédeas e fazer dela aquilo que vier ao estuário por força da nossa vontade. A morte é heurística. Não para fazer de conta que não ficámos tristes; é heurística porque ensina a projetar outro olhar sobre a vida. Vamos tomá-la como se fosse uma pega de caras. Vamos esquecer os mesquinhos motivos que nos forçam a desperdiçar tempo, a deitar fora pedaços da vida que depois, à vinda da morte, já não podemos resgatar. A morte intimida: para um agnóstico, a morte não é um parágrafo; é o ponto final, a página derradeira que já não vai ser virada, por falta de comparência. A morte intimida muito. Mas a morte próxima, a que ronda de perto a nossa existência, dá o ânimo de sermos vida plena caso tenhamos esquecido que a vida pela metade é a pior forma de a merecermos. À homenagem merecida da pessoa próxima que partiu, juntamos a jura de sermos vida inteira. É a homenagem viva que podemos deixar ao amigo que foi agarrado pela morte.

8.11.24

Dezasseis mandamentos para fugir da atualidade

Mogwai, “Lion Rumpus”, in https://www.youtube.com/watch?v=msqM3QGU92A

#1 – Foge sem fingires se a fuga for exílio voluntário, mas irrecusável, do atual estado das coisas.

#2 – Atravessa a maresia que se levanta no zimbório da madrugada, que o tempo a essa hora é feito de ausências.

#3 – Convoca a claridade para o teu olhar, preenche-o com uma página em branco que espera por uma fotografia onde tudo se apura na sua lhaneza, sem os equívocos fabricados por farsantes e a armadilha em que são apanhados os seus antagonistas.

#4 – Nunca saias à rua sem a poesia que fala em teu nome.

#5 – Dá-te à imaginação que se congemina a favor no palco sem espinhos a que sobes sem medo dos caçadores que não se desamparam da estultícia.

#6 – Aprecia as flores que vicejam nos arbustos da montanha, nota como elas compõem a paleta de cores que depõe a favor do arco-íris.

#7 – Desinteressa-te dos que, em pose grave, exercitam os seus oráculos. A atualidade a que viras costas será ainda pior com o desenho dos prefaciadores do porvir.

#8 – Mergulha nas teclas de um piano, por mais que sejas amador.

#9 – Desamarra os medos que sobem pelas costas dos dias e deixa-te estar como embaixador do tempo presente que se esconde da sua medida.

#10 – Sepulta os fantasmas num lugar avulso e ermo e esquece-te do seu paradeiro.

#11 – Consagra-te aos vícios que te apetecer sem receio do olhar acutilante e densamente moralista dos outros. Ensina-lhes que as vidas deles são indiferentes.

#12 – Combina números de memória com as estrofes de um poema arrancado de uma página ao acaso.

#13 – Exalta a música que te isola do resto como um idioma à prova de regras.

#14 – Adormece por dentro dos sonhos de que já não tens inventário, eles sussurram o roteiro magno do dia estilhaçado.

#15 – Comparece na praça deserta, fecha os olhos, e submerge no labirinto que se entretece no tempo furtivo.

#16 – Acorda com o suor pendido na testa, os sonhos ilegítimos proscritos, e uma vontade irreparável de sair sem roteiro, preso pelo peso do acaso, furtivamente à revelia da atualidade.

7.11.24

Os peões só se movem uma casa de cada vez (ou: o xadrez é antidemocrático)

Bonobo, “Shadows” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=qPn1FBvQh-k

Viram? O peão avançou uma casa. Se quisesse saltar umas casas pelo caminho, não podia, as regras não deixavam. Já o cavalo move-se três casas, desde que uma seja numa direção e as outras duas noutra direção. Um cavalo vale mais do que um peão.

Ou então desmistifica-se a comparação. É apenas um jogo de xadrez, não é preciso chegar a conclusões impróprias. O xadrez pode ser uma metáfora, mas é só uma metáfora. As metáforas são exercícios estilísticos que podem ajudar a perceber o que se passa à nossa volta, mas não reproduzem o contexto como se fossem um padrão fidedigno. Ou podia-se amortecer a rudeza da comparação – quem é que se lembraria de trazer um cavalo para o palco onde a pessoa quer ser comparada? – lembrando que o cavalo tem uma passada mais comprida do que a pessoa. Por isso, três casas de cada vez.

Se à metáfora se regressar, tanto é possível sugerir que o xadrez é profundamente antidemocrático como desvalorizar o jogo como representação do mundo em que nos movemos. Em abono desta posição, não é legítimo extravasar de um jogo para o mundo, pois um jogo é apenas um jogo. Se se alinhar pela primeira posição, anotam-se as limitações aos movimentos dos peões, compara-se com os movimentos do cavalo, e a tempestade perfeita aterra no horizonte: ao povo não se deixa avançar mais do que ao cavalo. O cavalo tem mais direitos do que o povo.

O xadrez é o selo das desigualdades que continuam a tatuar a pele social. Os bispos podem-se mover na diagonal num número de casas que só depende da sua vontade. As torres – a personificação do exército – movem-se quase como os bispos, só que não podem saltar casas na diagonal. Só a rainha se move quantas casas quiser, na diagonal, na vertical, ou na horizontal. Quem inventou o xadrez era clerical e a favor da monarquia.

É quando se observam as movimentações do rei que o diagnóstico que a democracia inerente ao xadrez sofre um retrocesso – e um retrocesso destes representa um avanço social. O rei só se movimenta uma casa de cada vez na diagonal, na horizontal, ou na vertical. Ou o rei está obeso e anafado e, cansado de tanto exercício que implica avançar uma casa, senta o abundante corpo na primeira casa à mercê. 

Afinal, o xadrez não é antidemocrático. Acolhe um rei sedentário e os peões também sedentários. Quanto à latitude dos movimentos, não há grande diferença entre o rei e os peões. O rei desce do pedestal para celebrar a soberania do reino junto dos anónimos peões. E estes, nem que seja por um dia, convivem com o rei descido às ruas. O xadrez ensina que as peças de um lado do tabuleiro são gregárias e falam umas com as outras. Mas não falam com as peças do outro lado do tabuleiro. 

O xadrez pode não ser antidemocrático, mas é um livro aberto onde os beligerantes encontram casa para se guerrearem.

6.11.24

O banquete dos beócios

Interpol, “Barricade”, in https://www.youtube.com/watch?v=Fjm4Bvx3ZU0

Atribulados tempos os hodiernos, em que a moderação entrou em retração e a razoabilidade está em vias de extinção. A causa radica na radicalização em curso. Acusam-se os populistas de uma certa extração, que passam por cima das lições da História e cuidam de a reinventar quando é conveniente. Segundo a proposta apocalítica dos que se apressam a atribuir esta titularidade ao grotesco desfilar de radicais, é a vingança sobre a História. À sua conta, um discurso que perdeu o pudor de usar certos temas dantes tabu, não hesitando em recorrer a uma retórica excessiva que não é compatível com o debate civilizado. 

Do lado contrário, cada vez mais acantonado no singular (dantes era mais fácil observar a pluralidade deste lado da trincheira), situam-se os que sempre hostilizaram esta extração de radicais, os que os repudiam por atentarem contra o código de conduta da convivência democrática, e os que, não se situando em nenhum dos dois sectores anteriores, se demarcam dos radicais com a marcação de um perímetro de segurança. Dantes, eram os primeiros que se socorriam de uma retórica desaforada para resistirem à emergência dos que outrora foram combatidos muitas vezes com o preço de vidas. Os demais assenhoreavam-se da moderação. 

O tempo atual reconfigurou a paisagem. A polarização tomou conta do palco onde competem visões concorrentes. Responde-se com discurso grotesco ao discurso grotesco dos radicais. Como o discurso grotesco é todo ele grotesco, não se admita que há o grotesco bom, que se abriga sob a nossa asa, e outro grotesco que deve ser categoricamente denunciado. Sobretudo se a imoderação que tem tomado conta dos que nunca foram radicais derreter a razão que possam ter. Da mesma forma que a violência coalha a razão, e não há razão que se alicerce no bastião da força, responder ao discurso imoderado com reações imoderadas traz os moderados para a casa dos radicais. Para combater os radicais e as ameaças que eles possam representar, há muito quem defenda que deve ser usada metodologia afim. 

Só que o radicalismo e a imoderação em que se debate não podem ser a caução de uma imoderação de sinal contrário, porque se trata de imoderação. Quando se objeta ao discurso soez de um radical com palavras também agressivas e em contramão com o código de conduta dos moderados, passamos a não ser diferentes dele. Alguns dirão, em defesa da derrapagem intencional para o discurso extremado, que é por um imperativo de resposta aos radicais a que nos opomos. É a gramática que eles conhecem. Se assim nos comportarmos desde o outro lado da trincheira, começamos a falar a mesma gramática que é característica deles. Começamos a ser parecidos com eles, pelo menos no modo como falamos com eles. Começamos a adulterar a nossa identidade.

Para continuar a haver uma linha de demarcação, não nos podemos sentar à mesa do banquete dos beócios. A convivência contagia-se e, de começarmos a recorrer a uma retórica grotesca, usando os mesmos métodos e figuras de estilo dos radicais, passamos a falar numa gramática igual. Contribuímos para o empobrecimento do debate público quando devolvemos, sem o sangue de aracnídeo que devíamos ter, acusações tão torpes como as que são típicas das provocações encenadas pelos radicais.

O argumento válido não é o da palavra imperativa para desmontar o radical ameaçador, se essa palavra nos nivela pela sua estatura. O argumento válido é deixá-lo a falar sozinho, enredado na puída língua de trapos em que articula o primitivo pensamento, deixando por sua exclusiva conta a procissão de mentiras, de ideias perigosas, de insultos gratuitos, de boçalidade que trespassa os seus corpos. O argumento deixa de ser válido se descemos ao seu nível, pois legitimamos a sua retórica, o seu modo de estar, a hostilização contínua. Não queremos ser como ele, mas agimos como se fossemos um deles. 

Esta é uma das possibilidades mais aviltantes da polarização, a que parte da radicalização de uns e termina com a radicalização dos outros como reação aos primeiros: o nivelamento é feito por baixo. Ao ódio não se responde com ódio, porque é ódio na mesma. Responde-se com indiferença. Que é o prémio merecido dos radicais que ateiam o fogo da acrimónia constante.

5.11.24

Iodo

The The, “Some Days I Drink My Coffee by the Grave of William Blake” (live at Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=ReMPhU4Wp94

É cedo. O horário de trabalho pode esperar. O torpor arrasta-se pelas ruas, diante da luz inaugural. Um homem passeia o cão no jardim. Outro corre pelas ruas da cidade (e como é possível alguém correr àquela hora?). Se chegar atrasado quinze minutos, não acontece nada. E se o atraso for de meia hora?  Nunca se sabe o estado de humor do chefe. Como se diz, “é de luas”. No escritório, especula-se com o estado de humor do chefe de acordo com uma linguagem cifrada, para ele não entender. E depois especula-se sobre o que poderá ter motivado um humor lunar ou um estado pré-depressivo. Nunca tem humores moderados, o chefe.

Na carruagem do metro, alguns dos rostos habituais. A maioria dos rostos são anónimos – ele há muita gente a habitar a cidade grande. Há quem dormite, aproveitando os solavancos do metro para embalar o derradeiro sono (ou o sono que ficou por dormir), apesar da estridência das rodas ao friccionarem os carris. Uma rapariga lê literatura de cordel, um daqueles autores consagrados sem ser pela qualidade literária (autores da moda, portanto). Outra vai imersa nos auriculares, esboçando uma coreografia agitada só com a cabeça e a perna direita. Passa um cego a mendigar, tateando com a bengala para abrir caminho entre os passageiros que não arranjaram lugar sentado. A voz feminina e radiofónica anuncia a próxima estação, em versão bilingue: “Braço de Prata”. 

Quem teria tido um braço de prata, que prótese rara teria sido entranhada no seu braço decepado? Sabe: o braço de prata é um lugar, não é sobre uma pessoa. É aquele lugar do estuário que se alarga, como se o rio se desdobrasse num braço longo que fica à mercê do sol e ganha a forma de um espelho prateado quando o vento faz tréguas e o caudal fica açudado. Para passar o tempo e obliterar dos sentidos os solavancos da carruagem, não faz mal fantasiar. Ninguém pode ser acusado de delírios criativos.

Por ser segunda-feira, a vontade de ir para o escritório é menor. Seria assim se trabalhasse noutro lugar? E se mudasse de ramo e não trabalhasse num escritório, para passar a jornada de trabalho como se fosse um nómada? A especulação ajuda a matar o tempo (que expressão mal inventada!). Ajuda a fingir que o tempo fugiu entre os dedos, só para ter um pretexto para os quinze minutos de atraso que nunca são contados como tal.

Os passos arrastados estão por conta do arranque cambaleante da semana. Na rádio, logo pela manhã, o locutor tecia o habitual lamento quando inaugura a semana (“temos uma longa semana pela frente”), mas lembrou, para o caso de a alguém ficar esquecido, que a meio da semana havia um feriado. “Assim custa menos a semana”, vaticinou, com o habitual desdém pelo trabalho. 

Nunca entendeu estes comprimidos de iodo que uns tomam para só saberem trabalhar e outros tomam como vacina do sacrifício que é ir para o trabalho. Ele só queria ter direito a meia hora de atraso aceitável sem ter de aturar os humores variáveis do chefe. Sempre considerou que se satisfaz com pouco.

4.11.24

Ganhar por falta de comparência

Max Richter, “November”, in https://www.youtube.com/watch?v=FPKgk5_YmpA

O segredo é deixar alguém a falar sozinho quando se pressente que o contrário agride a lisura mental. Há pendências que devem ficar desertas, por falta de comparência. A demissão de falar não é uma capitulação. 

Invoca-se um risco de assim proceder: a soez voz monopolista ocupa todo o espaço, sem contraditório que possa desmontar essa voz ruidosa. Quando alguém monopoliza com a sua voz, a audiência não tem como escolher; a escolha está feita à partida, por falta de comparência ou omissão intencional das vozes que podiam quebrar as pernas à voz monopolista. 

A infantilização da audiência é exagerada. É preciso confiança na diligência das pessoas, não as atrair para um canto onde são tratadas como se não pudessem forcejar a sua própria autonomia. A falta de comparência não é um desencorajamento interior colhido do medo de falar com o outro. É um critério de sanidade: se o outro é sócio da desonestidade intelectual e enxameia o discurso com truques de retórica rasteiros, e se perpassa a leve desconfiança que a discussão será invadida por golpes baixos e pela lama onde gravita o outro, o melhor é não lhe dar o palco que ambiciona. Ou, o que é pior, e sem ele conseguir perceber que é, que lhe seja dado o palco em regime de monopólio, para que mais ninguém suba a cena enquanto estiver em palco.

A falta de comparência é em proveito de quem falta e de todos os outros. O faltoso não tem de lidar com o canhestro. Não cai no logro de quem defende que é imperativo contrariar o canhestro, correndo o risco de dele ser a única voz que chega aos destinatários. A audiência que pensa pela sua cabeça não tem de assistir a uma discussão em que participa apenas um, por falta de comparência dos outros.

Há ocasiões em que a falta de comparência é a prova de sensatez.

1.11.24

Perna longa

Ólafur Arnalds & Alice Sara Ott, “Reminiscence”, in https://www.youtube.com/watch?v=hffMLTmRe9A  

A meio do assunto, perdem as rédeas. A distração subiu ao sangue e ficaram enredados numa pendência. Sitiados por uma teia onde se emaranha o pensamento, confuso. São vítimas das múltiplas solicitações que fermentam a distração e os desviam de um assunto. Às vezes, com grande perda para esse assunto, que não é retomado.

É como se os ventos tivessem influência em nós. Os ventos que passam pelo nosso lugar já estiveram noutros lugares, já foram respirados por outras pessoas. Esses são ventos que trazem a respiração das pessoas que foram por eles atravessados num momento anterior. São ventos que reúnem uma constelação de influências ao sabor das muitas pessoas que os inspiraram e que, com a sua expiração, serviram a conduta do vento. Não é de estranhar que seja adestrada a distração como inspiração máxima da sucessão de assuntos que passam pelo crivo das pessoas. Ainda bem. A rotina é das piores condenações que se pode conceber.

Os metódicos, que odeiam ser desviados dos assuntos que têm entre mãos, recusam a desorganização mental. Ficam desorientados se uma revoada de temas desfilar sem organização, suplantando a sua vontade – colonizando a sua vontade. Querem ordem no pensamento. É o pensamento que alinha a ordem dos assuntos. Admitem suspender temporariamente um assunto para se dedicarem a outro que de repente exige atenção, mas mantêm o assunto suspenso numa mnemónica que organiza a ordem interior sem a qual se sentem errantes. Os metódicos são os que mais sacrificam a sua liberdade interior. Têm perna curta na disciplina do pensamento.

Quem anda ao sabor do vento, saltitando de assunto em assunto, quase sempre deixando coisas por terminar, é o perna longa que alcança muito mais mundo. Não se atém à mordaça da disciplina interior que alinha tudo criteriosamente num ensaio de perfeição que, todavia, fica sempre por cumprir. Só os perna longa têm ossatura para abrir os braços e contemplar uma miríade de assuntos. Podem soçobrar ao caos interior que os habita. Mas não os podem acusar de monotonia.

31.10.24

O machista improvável e o gene neoliberal

Beastie Boys, “Make Some Noise”, in https://www.youtube.com/watch?v=WdgLMslbDuY

Uma estrela da extrema-esquerda espanhola, Iñigo Errejón, caiu em desgraça por acusações de assédio sexual e maus-tratos a mais de uma dúzia de mulheres. Ao ler os relatos das vítimas, o quadro é assustador: é um psicopata que joga psicologicamente com as mulheres e que abusa do poder porque se comporta como se fosse deus. Confrontado com a controvérsia, no momento de se demitir atirou as culpas para o neoliberalismo

Isto não soa a novo. Um sociólogo coimbrão, com um numeroso séquito espalhado todo o mundo, atrapalhado com os casos de assédio sexual e de extrativismo que despontaram pela voz de investigadoras que foram suas orientandas, invocou a vetusta idade como circunstância desculpabilizante, atirando a responsabilidade para um marialvismo enraizado que é geracional. No caso de Boaventura, como no caso de Errejón, a culpa tenderia a morrer solteira. 

Ou talvez não: no caso do Prof. Boaventura, a culpa está na indeclinável propensão para o aproveitamento sexual das mulheres, contrariando uma temática que foi extensivamente teorizada pelo sociólogo coimbrão: a denúncia do patriarcado nas relações sociais. O assédio seria algo de inato aos homens da sua geração, que não o seriam a sério se conseguissem resistir aos apelos carnais na presença de mulheres sensuais. O problema dos deslizes do Prof. Boaventura é ter nascido quando nasceu e de não conseguir domar a mãozinha marota e o falo irrequieto.

No caso de Errejón, a culpa não morre solteira porque decidiu torcer a realidade com a proficiência de um mitómano compulsivo, vindo a público culpar o neoliberalismo pelo seu comportamento hediondo com as mulheres. Errejón tem algumas gerações de desvantagem em relação ao Prof. Boaventura (metade da idade), o que o inibe de recorrer ao mesmo pretexto do teorizador da epistemologia do sul. Ocorreu-lhe o óbvio, atirando-se ao neoliberalismo. Talvez por ter passado toda a sua carreira política (que, espera-se, tenha terminado) a combater o neoliberalismo.

O que incomoda nestes dois exemplos é a fuga em frente e a demissão das responsabilidades próprias. Se acreditarmos na lengalenga de ambos, teremos de aceitar, com a condescendência que se impõe para salvar uma figura pré-deificada, que o Prof. Boaventura estava contaminado com o vírus demoníaco do marialvismo e que, por mais que se tenha esforçado, não conseguiu combatê-lo. Daí à mãozinha marota na perninha da investigadora júnior e ao pénis inquisitivo, foi um passo. Sem culpa a imputar ao Prof. Boaventura, que tanto se autoflagelava por ter nascido na geração errada. E teremos de acreditar que Errejón seduzia e depois maltratava as mulheres porque estava possuído pelo gene do neoliberalismo, o que deve ser medonho para quem tanto combateu o neoliberalismo. Ou então, o Prof. Boaventura é um lídimo expoente do patriarcado e Errejón um neoliberal da pior cepa. Assim caem as máscaras que escondem fingimentos.

No fundo, Boaventura & Errejón são duas pobres almas atormentadas que não conseguem controlar os instintos primários e cedem ao ambiente, socialmente construído, em que são meros peões e não atores que o influenciam. E todas as mulheres que caíram nas armadilhas dos dois abusadores deviam continuar caladas e perpetuar as delícias de Boaventura & Errejón – em nome das lutas que não se podem questionar. O contexto, há que não esquecer, explica tudo. Até reconhecermos a privação de livre arbítrio a que somos conduzidos pela retórica malsinada de ambos.

Já se sabia que o neoliberalismo tem as costas largas. Mas não tanto.

30.10.24

Sempre em direto

The Comet Is Coming, “Blood of the Past”, in https://www.youtube.com/watch?v=ore8IypVT4k

(Isto não é o manifesto de um Velho do Restelo)

Não passa o tempo senão como vertigem de si mesmo. As pessoas desajudam. Incendeiam a privacidade no lugar indigente onde tudo é trespassado em direto. Os emissários das novas tecnologias convenceram as pessoas que o acesso democrático reforçou o contingente da igualdade. Só os que voluntariamente se excluem do gongórico espetáculo em direto das suas vidas é que parecem ficar à margem da orgia de democracia e de igualdade. 

É o contrário. Eles é que ficam protegidos do olhar sindicante dos outros sem caírem no logro do festim de democracia que é o frenético espetáculo em direto que condenou a privacidade à extinção. Os emissários que vendem as regalias das novas tecnologias não advertiram que o seu uso excessivo trouxe às pessoas a nacionalização do seu espaço privado. 

Com a exposição pública à escala planetária, as pessoas deixaram de ter fronteiras. É o império da partilha global. Talvez os procuradores do comunitarismo estejam contentes com o avanço, que para outros contém um retrocesso. Tudo se mostra, tudo fica à mostra, desde os banais pensamentos, aos profundos devaneios; desde os mecenas do narcisismo, aos estetas da angústia que medra na omissa autoestima como narcisismo ao contrário; desde os que se amesquinham, sem contudo darem conta, quando peroram sobre as perorações dos outros, aos que não se escondem da indigência em direto e oferecem uma mistura de ignorância disfarçada de opinião, abrilhantada por erros de sintaxe e ortográficos; desde os corpos que querem espelhos nos olhares dos outros, num voyeurismo virado do avesso, aos olhares intrusos que laboram na incessante busca de corpos alheios despidos de pudor.

Tudo em direto, obliterando a dignidade. Em nome de uma partilha que parte da nossa gregária condição, mesmo que não se perceba que ali não há causa e consequência. Em direto, oprimindo as sombras tutelares que já foram a caução da privacidade. Numa atroz, corrosiva procissão em que se confunde a extinção da dignidade com a democracia global e instantânea. Já não há futuro, porque apenas interessa a voracidade do instante. O passado, consumido como instante efémero, desgasta-se no rastilho da desmemória intencional. 

Só falta passar o pensamento em direto.

29.10.24

O silêncio é o melhor elogio fúnebre

Tv on the Radio, “Happy Idiot” (live at KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=pObFyqXj2II

“O melhor que disseram de mim foi quando estiveram calados.” 

Herberto Helder

É preciso a morte para deixarmos de ser bestas e passarmos a bestiais. Incomoda-me esta hipocrisia dos vivos. Só elogiam os mortos quando eles já não estão em carne viva para ouvirem os elogios. Os peritos em carpir lágrimas a destempo cumprem a pior homenagem do morto. Lembrar uma vida inteira, ou fragmentos dessa vida, apenas quando ela deixou de existir, é atropelar o conceito de vida, uma ofensa à sua dignidade. 

Podiam inventar uma derivação do testamento vital para que os interessados pudessem ditar a sua vontade no momento das exéquias. Para que pudesse ser imposto o silêncio quando a vontade do então falecido fosse passada à prática, proibindo quaisquer palavras elogiosas que alguém quisesse proferir na ocasião. Pegando nas palavras de Herberto Helder como mote, ficaria lavrado no testamento vital: “já que em vida não me elogiaram, estejam calados, agora que morri.” E todos estariam calados, que a última vontade do defunto é para cumprir.

Talvez se caminhasse para a destituição da hipocrisia que é a desonra que se comete sobre a pessoa cuja vida se extinguiu. Em vez de palavras condoídas e trespassadas pela emoção, proclamações poéticas que mais parecem um exercício de autocomiseração, ou de auto-glorificação dos dotes do vate de pé de urna, em vez de sentidos elogios que traduzem o defunto como modelo de virtudes, o silêncio. Apenas o silêncio. O silêncio como manifestação do respeito que o defunto merece. Em vez das palavras gongóricas de peritos em perorar em funerais que tantas vezes correm o risco de serem inverdadeiras, ou de fazerem um último retrato que se desvia de quem o falecido foi, apenas o silêncio. Pois é de silêncio que se compõe o respeito pela memória de quem recebe a derradeira homenagem.

Às vezes, diz-se que as palavras são um logro, que contêm em si a negação do que proclamam. Por melhores que sejam as intenções, um elogio fúnebre acaba por ser exagerado, descontextualizado, imerecido. Não é a morte que justifica que os mortos sejam exaustivamente elogiados só porque acabaram de morrer. Sem que os elogiadores percebam, é um ultraje à vida do defunto e às vidas de todos os que escutam o elogio fúnebre. É um ultraje à própria vida.

Quando as palavras podem ser um logro, que arremeta o silêncio austero. O recolhimento do momento exige o silêncio, não as palavras desmedidas que povoam os elogios que o elogiado já não consegue ouvir.

28.10.24

Caricatura

Explosions in the Sky, “Peace or Quiet”, in https://www.youtube.com/watch?v=YhspFqdTU64

Benditas, as caricaturas. Ajudam a desalfandegar as angústias colhidas à custa da fealdade que o espelho insiste em devolver e o próprio em aceitar a devolução. A autoestima lida mal com a feiura autorretratada. Se ao menos houvesse a hipótese de o espelho pecar por excesso e os detalhes devolvidos fossem uma representação exagerada, talvez estivesse uns degraus abaixo na escala da feiura. E assim resolvia uma dúzia de pendências que cavavam o fosso onde gravitava a angústia.

Ao passar na rua pedonal, reparou num desenhador que tomava a seu cargo as caricaturas que fossem encomendadas pelos transeuntes. Atrás do cavalete onde desenhava as feições desproporcionadas de uma menina turista, desfilavam alguns exemplos do portfolio do artista. Personalidades, logo, gente conhecida do público, sob o traço extravagante do caricaturista. Eram todos muito mais feios do que em carne viva, ou pelo menos nos ecrãs da televisão. 

(Não vale a pena comentar os retratos de políticos-candidatos em campanha eleitoral. Abusam do recurso aos efeitos mágicos de programas informáticos que retocam a imagem e tiram, de uma assentada, uma década ou mais, e uma quinzena de quilos, aos candidatos assim fingidos. Ou não são imediatamente reconhecidos quando fazem as vezes de transeuntes, ou têm de ouvir o desastrado comentário de um anónimo qualquer, surpreendido pelo desfasamento: “parece mais velho do que nos cartazes, o senhor candidato”.)

Candidatou-se ao banco onde os retratados posam diante do artista. Teve de esperar que terminasse a caricatura da menina turista. Depois foi a sua vez. Nunca pensou que podia ser modelo. Mesmo que não estivesse arregimentado como modelo profissional, estava no lugar do modelo para ter em mãos uma caricatura sua. Modelo! – as voltas que a vida dá, não deixou de refletir em silêncio, enquanto esboçava um sorriso sardónico que devolvia a todos os que no passado escarneceram da sua fealdade. 

Meia-hora depois teve autorização para se levantar do banco e espreitar a caricatura. O artista, que aprendeu umas lições de marketing e as aplica na arte de mercar a sua arte, fez como os cabeleireiros quando terminam o corte de cabelo: perguntou se estava contente com a caricatura, ou se queria mudar algum detalhe de que não gostava. Olhou com vagar para a caricatura e não demorou a reconhecer-se no desenho. Como acontece com as caricaturas, havia traços do rosto que estavam exagerados. Uma caricatura é isso, exacerba os traços faciais dos caricaturados, ou não é caricatura. 

Por ele, a caricatura estava perfeita. Podia emoldurá-la no lugar do espelho habitual. Aquele fora uma dia muito proveitoso: de acordo com a caricatura, podia ser mais feio. 

25.10.24

Peixe fora de água

The Limiñanas ft. Bobby Gillespie, “Prisoner of Beauty”, in https://www.youtube.com/watch?v=LjGvdFggjhw

Não descia o olhar sobre as cortinas fendidas do nevoeiro que dominava a manhã. Ao ciciar um idioma ao acaso vestiu o papel de forasteiro. Repetia o exercício com frequência: gostava de ser forasteiro na sua cidade. Tinha provas: em zonas de movimentação turística, passeava com o vagar de um forasteiro, o olhar fingidamente alçado para cima, a cabeça movimentando-se ora para um lado, ora para o outro, e os empregados de mesa que acenavam instrutivamente as ementas dos restaurantes para cativarem clientela dirigiam-se em inglês à sua passagem. 

Esse prazer não era uma declinação do fingimento. E ainda que fosse, esse é o estado natural das pessoas durante grande parte do tempo. As reservas em admitir o fingimento vinham de dentro, como se fosse uma cal estrutural a instruir deveres morais a que só ele podia responder. Não tinha projeção exterior. Quanto ao demais, não devia ser muito diferente das outras pessoas: a descorrespondência entre princípios e prática ficava reservada aos domínios da consciência, vedados à sindicância exterior. Não chegava para compor uma angústia.

Postas de parte estas considerações, filiava o fazer de conta de forasteiro na falta de identificação com a cidade que veio a crescer com a idade. Era importunado pelos diagnósticos inapeláveis dos meirinhos que atestavam que a cidade era a melhor-disto-e-daquilo-e-do-mundo-inteiro. Deixara de ter paciência para provincianismos e para a falta de mundo adjacente. (Esses meirinhos que tivessem um cheiro de mundo para serem os primeiros a desmentir os seus provincianos diagnósticos.)

Não era tanto pelo divórcio de identidade com a cidade – em abono do rigor, com as pessoas que habitam a cidade e que dela fazem o que é, que a cidade, sem as pessoas que a habitam, não tem culpa de ser quem é. O fingimento da forasteira condição era um prazer interior, talvez inexplicável. Era uma sede de ser constantemente nómada sem sair de casa. Como se andasse atrás de mundo sem ter de emalar os pertences. E pela gratificação de passar por forasteiro na sua própria cidade. Uma vez apanhou um táxi. Sem ser ele a começar a conversa, o taxista falou sempre em inglês. 

Não precisava de outro atestado que confirmasse que era um peixe fora da água na sua cidade.

24.10.24

Régulo (e esquadro)

The Cure, “The Drowning Man”, in https://www.youtube.com/watch?v=VHwm9pUdkGI

Os pequenos poderes, ostentados por pequenos reis sem trono, são como esquadros à procura de papel. São pequenos, os poderes, e os régulos convencidos que são imperadores romanos, a sua manápula estendida sobre os domínios vastos que um olhar diligente não alcança. Ufanamente encarando os súbditos a partir de um púlpito todavia apenas ideado.

Os régulo em apreço anda sempre com o esquadro a tiracolo. É arbitrário: regula por vontade própria, sentinela único de si mesmo, conjugando os verbos que aprouver e no tempo verbal que for preferido. Não aceita contestação. Nem as suas decisões podem ser escrutinadas por um tribunal de recurso. O régulo profere a primeira palavra e detém a última, é um monopolista impenitente. 

A tiracolo, o esquadro rege-se pelos mais recentes humores, ou por interesses que não tem de confessar – os registos de interesses só se aplicam aos súbditos que obedecem ao régulo, para o régulo saber com quem pode contar se for preciso contar espingardas. Sentado num estatuto acriticamente reconhecido pelo séquito, torna-se sujeito de uma hagiografia. Convive bem com a idolatria – vem-se a confirmar, é senhor de um ego colossal. O culto da personalidade exacerba o abismo entre o régulo e os seguidores (já nem se mencionam os outros, autênticos apóstatas que têm o topete de não reconhecer a autoridade do régulo). Com o ego inflacionado, sobe a parada da arbitrariedade. Extingue as ordenanças, até as que tinha sido autor em páginas do passado. As ordenanças serão determinadas no apuro das circunstâncias, para o régulo sobre elas exercer a sua polida análise e proferir sentença a calhar.

Por causa da idolatria, o régulo foi apanhado numa curva traiçoeira e entrou em despiste. Foi apanhado a praticar, às escondidas e sob a égide da sua incomensurável autoridade intelectual e de um estatuto imbeliscável, o que durante décadas jurou combater. Culpou os adversários, imputando-lhes uma conspiração para o destituir da sua perene autoridade. 

Caído em desgraça, disparou em todos os sentidos. Desabituado dos pequenos poderes que transfigurou em alta autoridade, começou a inventar tábulas de salvação. Não percebeu que se exaurira a outrora quase incontestável autoridade. 

Os deuses com pés-de-barro também se abatem. O régulo já só o é na sua ainda inflacionada cabeça. Vai-se a ver, e acredita na sua imortalidade.

23.10.24

República da felicidade

Metronomy, “The Bay”, in https://www.youtube.com/watch?v=9PnOG67flRA

Tirando os cegos, ninguém conseguia descobrir a república da felicidade. 

Uns, sombrios, não acreditavam que pudessem ser cercados pelo arco-íris da felicidade; era um conceito estranho, externo, uma impossibilidade concreta. Outros eram indiferentes, estavam convencidos que a felicidade era contingente e eram tantas as variáveis que a tornavam um domínio do acaso. 

Havia aqueles que perseveravam: sabiam conjugar a felicidade e, mesmo sabendo que era entrecortada com a sua antítese e com outros momentos de neutralidade, era sazonal, mas irregular. Estes podiam ser inventariados como testemunhas abonatórias da felicidade. Se estivessem na posse de todas as faculdades e não fossem atraiçoados por um juízo que acabaria por ser um logro. 

Ainda havia aqueles que celebravam a felicidade no estrito domínio pessoal, levantado uma cortina de ferro para não misturarem o mau andamento do mundo, um princípio geral de que não abdicavam, com o domínio pessoal. Refugiavam-se na soberania do amor, na fortaleza da família mais chegada e nos afetos afins, embainhando uma coutada fechada ao exterior. Viviam numa república exígua da felicidade, mas conseguiam-na descrever se fossem desafiados a fazê-lo. Descreviam-como um ente formidável, uma grandiosidade feita de pequenos saltos no escuro. 

Eram acusados de individualismo, pela fortaleza intencional que os tornava insensíveis aos males do mundo. Não se importavam. Fizeram o seu caminho das contrariedades, tiveram de descobrir modos de se protegerem contra os punhais potenciais que o mundo exterior, e as pessoas que o habitam, estão prontos a assestar nos ingénuos, os que não cuidaram de vestir uma couraça contra o meio exterior. 

Eram suseranos destas micro repúblicas da felicidade, como se, no que à felicidade diz respeito, o feudalismo não tivesse sido extinto. Erguiam-se contra o terreno lunar, inóspito, dos que negavam provimento à felicidade e dos ingénuos que continuam a acreditar em receitas milagrosas sobre a fruição de algo que não passa de uma miragem aos olhos dos prescrevem aquelas receitas. 

Sabiam que a felicidade é feita de passos modestos e ela própria é um módico. Regrada, com critério e sem a soberba da embriaguez de quem finge um estado que não consegue alcançar. 

22.10.24

O embaixador das manhãs

Patti Smith, “Smells Like Teen Spirit”, in https://www.youtube.com/watch?v=_ohayGCVWZY

Ia para a varanda, ainda a noite tutelava o céu. Pelo andar do relógio, era só um passo até à alvorada. A escuridão começava a capitular, levemente cerzida por um clarear que respirava a véspera do sol. 

Até lá, o céu despojava-se vagarosamente da escuridão, tudo à volta se emancipava da noite e começava a ganhar formas nítidas. O próprio corpo emancipava-se do torpor herdado do sono, do sono talvez terminado a destempo. Era como se as veias se dilatassem para o sangue começar a aquecer. Para o dia o ser.

Não havia nuvens no céu. Não levaria muito tempo até se processar a alquimia da madrugada: o despontar dos primeiros raios de sol antes de o sol colonizar o horizonte e crescer no estuário do dia. Os únicos vestígios do sol eram as irradiações que coloriam o céu em tons alaranjados. Ajudavam à metamorfose do céu, que num curto intervalo de tempo haveria de passar da bruma da noite para a luz clara do céu alimentado pelo sol que sobe com o desvagar próprio dos dias que são sempre apressados. 

Pelo meio, os feixes alaranjados que são o prefácio do sol: o céu fica num limbo, sem saber se se despede da noite terminal ou se endossa o cumprimento ao dia que se inaugura. Se o começo do dia for condecorado com um céu composto por finas nuvens, a tela ateia o êxtase: os lampejos de luz alaranjada irradiados por um sol ainda à distância embebem-se nas nuvens, que passam a ser novelos de algodão tingidos com diferentes cambiantes de cor de laranja. Até que, com o crescimento do dia, o sol se torne próximo e os raios projetados perdem a timidez. A tonalidade laranja perde a validade. 

Na varanda, a contemplar a alquimia da madrugada, pergunta se o tempo de um dia devia ter uma contagem diferente: em vez de o dia começar formalmente à meia-noite, o minuto primeiro devia ser a hora e o minuto em que o sol se anunciasse no horizonte. Hoje seria às sete horas e cinquenta e cinco minutos. Amanhã seria às sete horas e cinquenta e seis minutos.  Se o dia começa com o clarear, os relógios deviam estar acertados pelo ciclo de vida do dia e da noite. Até para se prestar homenagem à obra de arte que é a alvorada.

21.10.24

A caligrafia dantes

The Limiñanas, “Au début c’était le début” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=OoIM7EC_mXM&list=RDOoIM7EC_mXM&start_radio=1

Lembrar-se-ão – e não precisam de ser veteranos – as vezes que velhos do Restelo, nostálgicos de apurada cepa e outra gente viciada no passado começavam frases extasiados com os benfeitorias do passado: “dantes é que...” 

Açambarcados pelo medo do presente e pelo pânico do futuro, estruturalmente conservadores (porque pressentem que a mudança é a rima consequente do futuro), sobressaltam-se quando intuem que o dia consecutivo vai abolir alguns verbetes que compõem o situacionismo em vigor. Eles, que até preferiam o situacionismo de antanho, e quanto mais de antanho melhor soa, querem limitar os danos da incerteza. Se pudessem, adiavam o dia consecutivo; os mais ousadamente passadistas fariam, se também pudessem, um golpe de Estado. Só para extinguir o futuro, ou remodelar o tempo para que ele passasse a ser a preceito das suas preferências. Sem contemplarem as consequências, como impõem os cânones: se o futuro deixasse de existir, o amanhã teria prescrito antes do tempo, uma injustiça atroz por não se conceder uma oportunidade ao dia consecutivo. 

Os saudosistas já morreram e ainda não deram conta.

Ou então, são apenas velhos que convivem mal com a senescência. Amargos por dentro, fustigam as novidades em que estão constantemente a tropeçar. São coisas novas a mais. Como não fazem esforço para inventariar as mudanças, resistem. Ficam agarrados às saias puídas do passado, ao bolor inconsequente que a nostalgia concretiza. Escrevem todo o seu protesto com uma caneta Bic. Tem de ser Bic. A manuscrita é um dever irrecusável para não serem acusados de transigir com os sacerdotes da modernidade a quem acusam de se cansarem depressa com o tempo que têm entre mãos.

A caligrafia, impecavelmente estética, sem gatafunhos nem emendas, protesta contra a voracidade do tempo. Estão convencidos que o tempo anda mais depressa do que no tempo em que o tempo obedecia às convenções. Querem convencer o bom povo que é vítima de uma conspiração. Ou talvez não: o seu pessimismo antropológico certifica a necessidade de fazer o tempo correr depressa. As vidas deixam de ser torturas que se alongam num tempo que parecia não ter fim, mas afinal voa a uma velocidade supersónica. 

Os mecenas da nostalgia têm de rever a caligrafia.