21.1.25

Não há mitos, é a toponímia

Max Richter, “Movement, Before All Flowers”, in https://www.youtube.com/watch?v=MuWkgLc7N_0

Vai cheio, o rio, portanto caudaloso, que engorda com o beneplácito da chuva. Não vale a pena inventar teorias: é a chuva abundante que alimenta o caudal, não são rezas pagãs que convocam a chuva quando os espíritos inquietos as encomendam para esconjurar um longo estio.

Vai a eito o rio caudaloso, quando atravessa as margens e coloniza o chão que não lhe pertence. Às vezes, nem os ardis do Homem, quando constrói barragens para domesticar rios que ficam fora de si quando a chuva é copiosa, servem para amansar os rios. E os rios saltam as margens, entram em casas limítrofes, os terrenos de cultivo ficam alagadiços, aprisionados num paradoxal destino: essas veigas são férteis porque estão nas imediações do rio, que é o manadeiro da sua fecundidade; mas quando o rio se zanga e fica fora de si, destrói toda essa fertilidade de que foi inspirador. Não há deuses que conspiram contra o sossego das pessoas que vivem à volta do rio. É a ação da natureza, no complexo novelo que transporta as tempestades do mar até terra e combina para engordar o caudal dos rios sem que as barragens consigam ser uma medida de efeito contrário.

Não há sortilégios que fundamentem a ação da natureza. A ordem dos mitos fica por conta de imaginações férteis e de uns quantos céticos que talvez disfarcem a ignorância atrás do ceticismo. É como na toponímia: os nomes de gente normalmente mortal que encorpa a toponímia não personificam mitos (tirando um punhado deles que, por decreto de pedagogos ao serviço do “interesse nacional”, entram em panteões, existentes ou imaginários). São apenas gente-gente, tão normal como eu e tu, tão mortais como eu e tu, descontando a elevada probabilidade de eu e tu não ficarmos imortalizados na toponímia de um lugar. 

Tu e eu somos levados por um rio quando se extingue a existência e passamos a ser memória em vias de extinção, assim que o tempo, na forma de um rio que passa com a cadência dos dias consecutivos, invade o nosso espaço vital e nem sequer memória passamos a ser. A menos que fiquemos emoldurados na toponímia. O que, para os ousados e os que de si têm uma medida acima do espelhado, é preferível a serem condenados a mitos impossíveis.

20.1.25

O estamento dos indiferentes

Explosions in the Sky, “Moving On”, in https://www.youtube.com/watch?v=jTv8-DWWW3I

Somos párias (dizem) se formos indiferentes ao meio e nenhum for o pronunciamento sobre o estado da cidade. Somos acusados de apatia se o rosto estiver alinhado com outra bússola e os lugares onde temos presença forem apenas lugares, materializados por pessoas que os desfiguram. A indiferença, de acordo com este imperativo categórico de participação, deve ser retratada.

E se a nosso favor invocarmos o largo tempo de desagrado pela governação da cidade? E se olharmos em redor e os que se propõem dar continuidade ou escolher mudança não forem confiáveis pela fraca linhagem que ostentam? Devemos interromper a indiferença para escolher um mal menor? A participação nivelada pelo menor denominador comum safa-nos da acusação de indiferença? E que contas prestamos à consciência? Deve a consciência inclinar-se perante o dever de não alienação? E se a indiferença for um luto sem forma típica, um período de nojo pelas adversidades que também atingem os indiferentes?

O dever a ser gregário continua a comandar os mandamentos. É por eles que se seguem os comportamentos aceitáveis. Os que descaem para laivos de indiferença são chamados à razão, instados a resgatar os laços de pertença para não serem contaminados pela indiferença, que depois avança sem ser possível rasgá-la. Os que já estão imersos na indiferença são casos perdidos. O resgate de indiferentes para o tabuleiro da cidadania benigna não costuma acontecer. São os intérpretes da cidadania maligna pela demissão da cidadania.

Os argumentos podiam ser virados do avesso. Os indiferentes convocam a seu favor o direito de serem quem são sem intrusão dos outros, convocando um dever de reciprocidade: eles não se importam com o que os outros pensam, não fazem juízos de valor das escolhas dos que participam na cidadania benigna. Na lógica da indiferença assenta o não pactuar com a imperícia, o arrivismo, o discurso vazio e todavia gongórico (“engana-me com palavras”), o exercício do poder enquanto finalidade, o sistemático passo em falso quando assinam diagnósticos e apresentam prescrições. Através da indiferença, recusa-se essa corresponsabilidade.

O estamento dos indiferentes não é uma coutada de párias. A indiferença é o somatório da observação cuidada do passado e a caução para a indiferença do presente. Os indiferentes não devem ser condenados: o que se costuma dizer de quem sofre na carne as duras penas que o consome e repete a dose na primeira ocasião disponível?

17.1.25

Porta-aviões ao fundo (metáfora do sistema político)

New Order, “Leave Me Alone” (live 1983), in https://www.youtube.com/watch?v=J7rkHi6scBw

O sistema político é um porta-aviões, daqueles muito americanos em que cabem cidades inteiras. Na semântica militar, os porta-aviões são fortalezas itinerantes deslocadas estrategicamente para um certo lugar quando a potência detentora quer impor a sua presença, nem que seja pela via da dissuasão. São um esteio, portanto. Como o sistema político.

O sistema político em que vivemos tem dois alicerces (para além das fundações constitucionais): a supressão do autoritarismo; e a desmilitarização da política, quando a transição para a democracia foi completada com a extinção do MFA e a devolução da tropa aos quarteis. O primeiro alicerce é um fundamento axiológico do sistema político, o húmus de onde medrou uma democracia alinhada pelos parâmetros da democracia ocidental. O segundo tem um fundamento simbólico. 

Há interpretações divergentes sobre o papel dos militares na conturbada transição para a normalização democrática. Uns consideram que os militares foram determinantes para a deposição da ditadura e exerceram um papel importante na configuração da democracia civilizada, governada por civis. Outros são mais céticos, lembrando as derivas totalitárias de certos militares durante o PREC e de como a Constituição de 1976 foi uma dádiva para a democracia ao selar a guia de marcha dos militares para os quarteis. Quem perfilha esta abordagem não deixa de atribuir um significado importante ao alicerce simbólico do sistema político. Muito embora o General Eanes tenha sido presidente da república no período da normalidade constitucional, esse foi o último estertor dos militares no atual sistema político que, julga-se, está consolidado ao fim de quase meio século.

As circunstâncias dos presente exigem a mudança do tempo verbal da frase anterior para o passado: julgava-se que Eanes tinha sido o último enxerto militar no sistema político. A subida a palco do almirante (retirado) Gouveia e Melo veio lembrar que nada é eterno, até nos sistemas políticos. Não está em causa a castração cívica do almirante. Os seus direitos cívicos são os mesmos dos meus ou do(a) leitor(a); ele, eu e o(a) leitor(a), desde que tenhamos mais de trinta e cinco anos e um registo criminal imaculado, podemos ter a ambição de concorrer às eleições presidenciais. O problema da (ainda putativa) candidatura do almirante é outro e não pode ofender o princípio da igualdade de direitos a que o almirante tem direito de invocar a seu favor. 

O problema da candidatura do almirante também não está no receio (de quem o tenha) de vir a ser eleito presidente da república, a crer nas pré-sondagens divulgadas. Se o almirante não estivesse tão bem colocado nas sondagens, a sua candidatura não passava de uma nota de rodapé. Mas esta é uma candidatura problemática – para o sistema político, bem entendido. Da mesma forma que ninguém pode castrar os direitos cívicos do almirante, não era má ideia avivar o significado de cidadania como um feixe de direitos e deveres que se correspondem mutuamente. O almirante devia reconhecer o seu dever cívico de não perturbar o sistema político com uma candidatura “disruptiva” (palavra que ganhou moda) do sistema político. A bem do segundo alicerce, o tal que tem um simbolismo todavia marcante para a definição do sistema político: os militares nas casernas, a política aos civis.

As ambições não se medem aos palmos e, nesse domínio, a prestação de contas obedece ao sentido único da consciência. O almirante tem o direito de exercer a sua ambição política e a saltar da vida castrense para o palco político para coroar a carreira profissional com a máxima sinecura da república (tudo indica, a fazer fé nas sondagens). Como tem direito a ser narcisista, característica que se banalizou com a democratização da opinião e da imagem permitida pela exposição sistemática do eu nas várias redes sociais. 

O almirante ganhou palco quando geriu a estratégia da vacinação contra o COVID-19 (depois de substituir um banal funcionário do PS que, no curto mandato que exerceu, se limitou a passear a sua incompetência). Ao pânico do início da pandemia seguiu-se a euforia habilitada pelo restabelecimento da normalidade. Há muitos cidadãos que estabelecem uma relação causal, como se tivesse sido o almirante Gouveia e Melo a inocular pessoalmente cada cidadão vacinado. Confunde-se gratidão ao gestor e estratega com o perfil para a presidência da república. Se isto é um programa político, o sistema político já estava em crise antes de o almirante ter espigado como personagem política.

Há outra dimensão do sistema político hipotecada pela candidatura do almirante: o seu fundamento axiológico. A democracia inaugurada pela revolução de abril de 1974 afastou o fantasma do autoritarismo. Contudo, ao longo dos cinquenta anos da democracia temos sido testemunhas de como ainda pesam certos tiques salazarentos que são transversais à sociedade. Um desses sinais é a sedução por políticos com uma retórica dura, exibindo pulso firme, prometendo uma política musculada para “pôr as coisas na ordem”. A herança de Salazar estava na ossatura de Sócrates, o primeiro-ministro que de si dizia ser um “animal político”. Gouveia e Melo tem a mesma atitude de bravura, oferece um sebastianismo em potência que é do agrado de uma sociedade que não vê para além do nevoeiro.

Se as ideias políticas do almirante são uma incógnita, sabe-se da sua propensão para o autoritarismo. Dirão os mais condescendentes que o autoritarismo coincidiu com a liderança da marinha e que os militares obedecem a uma lógica diferente dos civis, sendo mais importante a cadeia de comando e a obediência hierárquica. O exemplo da reprimenda pública dos marinheiros que se recusaram a embarcar num navio que estava constantemente a avariar é todo um programa de autoritarismo latente.  

Aceito que a maioria dos cidadãos queiram “ordem na casa”, estão no seu direito. Inquieta-me a possibilidade de o almirante ser eleito por desafiar os fundamentos axiológico e simbólico do sistema político. E talvez diga muito da qualidade dos rivais do almirante que estão na rampa de lançamento. O que, de si, é tradutor de uma crise do sistema político. A menos que estejamos a dar importância de mais à eleição para o presidente da república.

16.1.25

Valha-nos a Galp, tão ciosa da moral e dos bons costumes

The Hard Quartet, “Our Hometown Boy”, in https://www.youtube.com/watch?v=LAMWAzo_Y4k

O CEO de uma empresa cotada em bolsa foi demitido porque tinha uma relação “amorosa” (chamemos-lhe assim, para fazer o favor ao pudor reinante) com uma diretora da empresa que, portanto, era sua subordinada. As notícias e a Galp (não necessariamente por esta ordem) fizeram a questão de enfatizar que o CEO demitido violara o código de conduta da empresa. De acordo com o código de conduta, uma relação “amorosa” (ou do género) entre duas pessoas com responsabilidades de gestão não está vedada, mas deve ser reportada. O CEO e a diretora não o fizeram. Ato contínuo, depois de uma denúncia (obviamente anónima, pois então...), o CEO foi exonerado. As notícias e a Galp foram omissas quanto ao destino da diretora.

Do ponto de vista legalista, a empresa limitou-se a seguir os trâmites e a aplicar as medidas previstas para o incumprimento do código de conduta. Lá diz o povo, no adágio conceituado, “quem anda à chuva, molha-se”. As responsabilidades internas do CEO são incompatíveis com o desdém pelo código de conduta. Como deve dar o exemplo – estou a seguir o raciocínio puramente legalista e dos que cuidam da moral e dos bons costumes com zelo – foi o CEO, com a ajuda solícita do anónimo que participou o caso, que abriu a porta de saída da empresa. Omitir também é mentir, ora essa. Se apenas contasse a perspetiva legalista, este seria só um caso com interesse para a comunicação social porque era preciso saber as razões da demissão do CEO de tão importante empresa para a economia nacional. A bolsa de valores agradece o obséquio da transparência.

No plano ético, é legítimo perguntar se o CEO estava obrigado a cumprir o código de conduta. É aqui que os imperativos interiores de consciência se desviam da abordagem legalista. De acordo com o noticiado, o CEO da Galp deu umas facadas no matrimónio ao manter a dita “relação amorosa” com a diretora sua subordinada. Como este país ainda traz a parelha Salazar-Cerejeira agarrada às saias, o fantasma dos comportamentos moralmente censuráveis começou a adejar. Ora essa, senhor CEO, vossa excelência cometeu adultério; e o adultério vai contra as boas normas de conduta social, pois, assim como assim, a poligamia não é credora de reconhecimento social (e, por conseguinte, legal) e pode afetar “o valor em bolsa” de tão conceituada empresa. O CEO não foi exonerado por incompetência; foi por ter cometido um atentado à moral e aos bons costumes.

O CEO estava obrigado a comunicar a “relação amorosa” com a diretora? Legalmente falando, sim. Mas o cumprimento das leis não é uma matéria estéril do ponto-de-vista ético. Às vezes, há conflitos interiores entre as obrigações que resultam da observância da lei e os imperativos éticos que concorrem no sentido da sua inobservância. Se o CEO da Galp estava envolvido com uma diretora num arranjinho extramatrimonial, é compreensível que tenha guardado segredo. Se queria guardar segredo da relação carnal com a diretora, corria o risco de a revelar mal comunicasse essa relação ao abrigo dos mandamentos do código de conduta. Toda a gente passaria a saber e a relação extramatrimonial viria também a ser do conhecimento da consorte do CEO e da demais família. Talvez tenha sido por isso que a Galp oficializou a partida do CEO invocando “razões familiares”. Nunca um eufemismo foi tão verrinoso.

O julgamento moral dos outros é uma modalidade com ampla popularidade nacional que, todavia, me causa perplexidade e embaraço. Por desconfiança sistemática, mantenho reservas profundas quando a público se apresentam os curadores da moralidade alheia. São exímios julgadores dos padrões morais em vigor quando os aplicam aos comportamentos dos outros. Desconhecem-se os resultados dos exames de consciência dos membros desta zelosa patrulha. Muito embora não tenha vocação para reproduzir anexins, neste texto abro uma segunda exceção para evocar o famoso “olha para o que digo, não olhes para o que eu faço”.

A polémica do caso mostra, por um lado, que há um ar “cor-de-rosa” a colonizar a comunicação social. Afinal, os folhetins amorosos, com adultérios e traições a tiracolo, constituem o sonho molhado até da imprensa de referência. Por outro lado, fica à mostra o tribunal coletivo que é ativado quando para as notícias vêm casos que metem o que as pessoas andam a fazer debaixo dos lençóis (ou em qualquer outro lado) e, sobretudo, se essas práticas são à revelia do matrimónio, excitando-se com um incontido clamor que acusa de adultério os protagonistas do folhetim. Faltaria indagar, junto das consciências inescrutáveis dos que não reprimiram comentários disfarçadamente censórios, quem nunca teve o seu deslize extramatrimonial e o guarda para memória futura (ou, vá lá, para confissão ao padre de serviço) em segredo exclusivo e inviolável.

Eis a sociedade em que vivemos: uma sociedade muito ciosa dos deveres de consciência que fermentam nas convenções estabelecidas; uma sociedade que tutela com diligência os bons costumes e a moral enraizada, pois há sempre um sacerdote em nós pronto a cumprir o serviço público de quem aviva a memória dos infratores que são punidos com a vergonha social; uma sociedade que adora tomar conhecimento do que acontece às escondidas, debaixo dos lençóis ou em quartos de motel, não reprimindo a sua faceta de voyeur: o sexo dos outros interessa e importa muito mais do que o sexo destes algozes amadores; e se, ao meterem o nariz entre a genitália em ação dos outros, descobrirem um adultério, a sensação de embriaguez é ainda melhor: vamos lá destruir famílias!

Esta é a sociedade que nunca “mijou fora do penico” (se me é permitida a expressão coloquial) e que puxa pelos galões para exercer a dolorosa censura moral sobre os que são descobertos pela inquisição do adultério. Estamos reféns desta moral victoriana de antanho, e isso não augura um futuro auspicioso.

15.1.25

Antologia dos estupores

The Horrors, “Sheena Is a Parasite”, in https://www.youtube.com/watch?v=Qqo3yR109wE

Biltres a rodos não é singularidade da paisagem habitada. Língua corrompida pela falsidade, malsãos personagens que ocupam espaço excessivo, como se por serem obnóxios tivessem direito a uma obesidade gratuita e não reprimida. Dizem que têm o coração na boca, mas convém não amesquinhar o coração pela diarreia improfícua que fazem desabar a partir da sua falaz facúndia. 

Terra de fracos costumes – diz-se que é esta, habitada. Talvez a preceito dos miseráveis disfarçados de escol que abastardam o espaço público. Por mecanismos que só os generosos dirão insondáveis, ocupam tronos diversos e passeiam a imodéstia na inversa proporção dos pergaminhos que ficam à mostra de eventuais síndicos. Entretecem teias robustas que alimentam a ascensão (primeiro) e a manutenção (consecutivamente) no erário que cativa a atenção de todos estes que, por dever de se manterem atualizados com as sinuosas curvas do país e do mundo, consomem informação.

Os farsantes mentem com diligência, indiferentes ao lamentável espetáculo de quem insulta a inteligência dos outros. Contam com o mínimo denominador comum que alcatifa a inteligência geral e com a apatia dos outros que se desimportaram da coisa pública e, por exigência interior de sanidade mental, deixaram de passar cartão aos estupores que adejam com a constância do tempo e o maleplácito (palavra acabada de inventar) dos seus pares, que se amparam uns aos outros na bordadura de uma oligarquia sem disfarce.

São filhos da puta encartados, sem ofensa às progenitoras, por força de uma força de expressão. Os genes estão em contínua combustão iniciática por se locupletarem com sinecuras a eito e proventos materiais a tiracolo. São a imagem de quem os sustenta por estes manterem uma atenção, às vezes uma devoção, pelo que dizem e falam. Beócios que não privam com as massas de que dizem ser representantes, não fizeram a escola de um supremo magistrado que preencheu os mandatos a conviver excessivamente com a “ralé” e a distribuir autorretratos a eito. 

Esta é a antologia dos estupores que nunca saem de cena, nem mesmo quando são atirados para uma terapêutica sabática, pois acabam sempre por regressar ao lugar do crime. Eles diriam, insensíveis às necedades entranhadas, que estão a precisar de uma hagiografia. Que a façam uns aos outros. 

14.1.25

Não se diga ao elefante para caçar a baleia

Deftones, “Street Carp”, in https://www.youtube.com/watch?v=hbknq6azohw

O elefante e a baleia desafiam-se, apesar de viverem em ecossistemas diferentes. Disputam o trono do animal mais poderoso. Dentro do seu ecossistema, seu é um monopólio não contestado, sob pena de os contestatários pagarem com a integridade física, no limite, com a vida extinta por um golpe não misericordioso.

O elefante e a baleia não se contentam com o domínio que exercem. Sabem que há um rival à altura que domina um ecossistema que não é o seu. A sede de poder não os limita. É a sede do irrefreável poder que querem estender para além do domínio do ecossistema que dominam. A ambição trava um módico de humildade. O poder é muito, mas pode ser mais. Cada um não esconde a ousadia de desafiar o rival e açambarcar a porção do poder que lhe pertence. Os dois enredam-se na mesma pergunta: para quê partilhar o poder se o pode assumir sozinho, sem um rival a adejar na divisão do poder?

O elefante e a baleia podem atear uma luta fratricida. Cegados pela avareza, embriagados pela possibilidade de serem o imperador de todos os ecossistemas, vociferam ameaças recíprocas. Cada um exibe as credenciais para amedrontar o outro, mesmo sabendo que o outro não vai tremelicar de medo. O elefante e a baleia começam-se a aproximar do abismo. As injúrias, as humilhações periciais que enfraquecem psicologicamente o outro, a ostentação dos meios que podem arrasar o adversário, a retórica que o transforma em inimigo, são os atos da encenação. Apesar de todas as manobras pré-beligerantes, a baleia e o elefante sabem que o outro dispõe de um poder semelhante e que se subissem a um campo de batalha o resultado seria apocalíptico. Seria uma luta de morte. E mesmo que um fosse derrotado com a morte, o outro estaria fatalmente enfraquecido, ele também no estertor da morte. 

O elefante e a baleia provocam-se porque precisam de exibir a sua força. Precisam de a manter no reduto do seu ecossistema, para manter possíveis aspirantes sob a sua alçada. E precisam de acender a retórica beligerante apenas como mnemónica para o outro, não vá a inércia causar o deslaçar do precário equilíbrio em desfavor daquele que não responder às provocações. 

Quanto ao demais, são efabulações sinistras, um foguetório de ameaças sem rastilho, um teatro lamentável que alimenta uma teia de micro conflitos de que se alimenta um ecossistema global de desconfianças. O poder sempre foi inimigo da concórdia.

13.1.25

Uma boa ideia (é uma boa ideia, é uma boa, é uma, é)

The Comet is Coming, “Pyramids” (live at the Bowery Ballroom), in https://www.youtube.com/watch?v=hpXsBC8uOBQ

Quem dita a toponímia das almas?

O sangue é o campeão dos contrarrelógios, avança destemido contra o paredão onde as águas são retesadas. Dizem que precisamos de boas ideias, sem elas somos órfãos nas mãos de madraços diletantes que arrematam as alcavalas. Ninguém adianta os predicados de uma boa ideia. Ficamos à espera que sejam paridas e depois, só depois, tiramos conclusões sobre os seus pergaminhos. 

Há quem estranhe que assim tenha de ser: uma ideia só pode ser contrasteada depois de se mostrar a quem de interesse. Devia ser o contrário: devia existir um compasso que orientasse as ideias que estão para nascer, ou que podem nem chegar a ver a cor do mundo e o tempo do tempo, para serem banidas as experiências em cima do joelho que às vezes, mas só às vezes, são profícuas. Muito embora não seja contestável o recurso à improvisação como princípio geral, o exagero do improviso pode-nos desguarnecer: ficamos expostos à contingência e sabemos que a contingência é implacável quando se insurge contra o nosso fado.

Também não se diga sistematicamente mal das pessoas que têm um joelho idóneo e nele tudo preparam, o joelho como o alfobre das ideias. Não precisam de mobiliário, estes peritos em ideias ficam baratos. Se vier do joelho milagroso uma ideia que venha a ser compensada com uma mais-valia não tributável, teremos de agradecer à presciência do joelho. Não sejamos tribunos assanhados contra a perspicuidade da improvisação.

Improvisar pode ser uma boa ideia. Da improvisação pode nascer uma boa ideia. Se não for boa, que seja ao menos ideia. Não podemos ser constantemente exigentes com as ideias se não o somos connosco e, ainda menos, com os nossos semelhantes. Venham as ideias – e não interessa se são cinco, cinquenta ou cinco milhões; elas que venham, que umas são aproveitáveis e outras não encontram paradeiro e estão destinadas ao desaproveitamento. Há um museu de ideias e uma imensa lixeira onde são depostas as ideias sem proveito. Sempre foi assim, não se percebe por que terá de ser diferente quando levantamos o véu do futuro.

Que tenhamos a lucidez para aplicar às ideias o mesmo padrão que nos ajuda a medir os vinhos. Então estaremos mais próximos de descobrir os arquitetos da toponímia das almas e os critérios por que se movem.

10.1.25

Situacionismo

Mogwai, “Fanzine Made of Flesh”, in https://www.youtube.com/watch?v=hKFvvSE4SCo

Esta é a situação. E nós, aprisionados a ela, somos a água levada na eira onde fermenta um situacionismo que hipoteca a vontade. Toda ela dada como dote às alvíssaras da situação enformada. Mas somos nós que deixamos hipotecar a vontade que cede ante uma situação; somos nós a congeminar a situação, ela não existe sem curadores, nós que, com a passividade, atamos os nós que nos prendem à situação que fabricamos.

É falso arrematar as bainhas de uma situação pela denúncia formal da nossa vontade. Dirão: só a apatia habilita uma situação que arrasta consigo um situacionismo de que somos sujeitos passivos. Diga-se em réplica: mas isso só é possível porque deixámos silenciar a vontade, foi da nossa anemia que medrou a situação. Por mais que venhamos a protestar (moderadamente) contra a situação que cerceia a nossa vontade, ela emergiu por demissão da vontade que podia ter obstado à sua emergência.

O situacionismo não é antidemocrático. Não é um ferrolho que inativa a nossa vontade. A situação a que aderimos é a soma das construções nesse sentido e da apatia que se estende por um largo mar de gente. Só os que se mantêm vocais contra a situação é que têm legitimidade para estar na trincheira de onde se movimenta a oposição ao situacionismo. Esses são os heróis a consagrar. Por mais que tencionem substituir o situacionismo por outro de diferente linhagem, por pior que possa ser julgada a alternativa que propõem, não deixam de ser heróis. São eles que falam contra o discurso único que se imporia caso não tutelassem a sua vontade em sentido contrário ao da situação vigorante. 

O situacionismo não revoga a imunidade dos que dele se afastam. Seria um contorcionismo intolerável se a situação se estendesse como um império irrevogável, fulminando as alternativas com o degredo próprio que é sentenciado pelos déspotas. Para ser situacionismo, tem de ser democrático. Na linhagem da tolerância que admite que um situacionismo seja reposto por outro situacionismo de diferente linhagem. O situacionismo, qualquer que seja, só não é democrático quando resulta da vontade unilateral de um déspota ou de um escol que compõe uma oligarquia.

A existência de um situacionismo é uma constante.

9.1.25

Delegação de competências

R.E.M., “Orange Crush”, in https://www.youtube.com/watch?v=_mSmOcmk7uQ

A despesa maior é alguém ser tão indispensável que não acredita em nada, nem na sobrevivência das coisas, após o seu decesso.

Pode ser apenas um caso de nepotismo embrulhado na desconfiança dos outros, pois nenhum há que seja tão capaz para tomar conta das coisas que pertencem ao déspota. Uma espécie de direito divino, a coberto da presciência com cabimento na mesma larva, faz com que tudo seja chamado à sua decisão, ele, o único imprescindível até que a natureza das coisas trate de desmentir a sua perenidade.

Se a lógica fizesse o seu caminho, a descentralização seria a palavra de ordem. A delegação de competências assenta na escassez de tempo e na impossibilidade de um só concentrar todas as pendências que compõem o quotidiano, sem esquecer a estratégia alinhavada para os amanhãs que se seguem. Ninguém é capaz de dar conta de tudo; fingir uma delegação de competências que transfere assuntos menores, a burocracia que assoma na espuma dos dias, e depois exigir que seja enviado de volta para ratificação superior, é a prova da infalibilidade do déspota e da desconfiança dos que disfarçadamente recebem as poucas competências delegadas. 

Num ambiente destes não há um módico de confiança, nem sequer dos que estão nos degraus inferiores da hierarquia e, a certo momento, recebem fingidas competências delegadas. Começa a medrar um sistema que alimenta a desconfiança recíproca. O déspota dirá que é devedor de uma desconfiança sistemática, sob pena de o poderem enganar. Os que são escolhidos para exercer uma disfarçada delegação de competências apercebem-se da concentração de poderes e da desconfiança que o alimenta, sendo tomados por uma reserva mental que ateia a desconfiança perante o déspota e de uns pelos outros. A bola de neve, imparável, alimenta desconfiança atrás de desconfiança. A entropia passa a ser a palavra de ordem. O déspota é a primeira vítima da desconfiança sistemática.

Se o déspota não fosse déspota, era o primeiro curador do seu bem-estar. Delegar competências é inventar tempo para tratar de outras coisas. É acreditar nas suas próprias escolhas, investindo um capital de confiança para que os escolhidos sejam credores da confiança e diligenciem o seu melhor. Todos têm a ganhar. A começar pelo déspota que aprendeu a deixar de ser déspota a partir do momento em que confiou, com autenticidade, na delegação de competências – e aprendeu a confiar em pessoas, ultrapassando a mal disfarçada desconfiança de si mesmo. 

Acreditar em heróis – sobretudo se é o próprio que autoatribui essa condição – tem dado maus resultados. A História está aí para avivar a memória.

8.1.25

Um salto no escuro

Wilco, “War on War” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=G5vocx74XS8

As bocas amortalhadas esbracejam verbos penosos – não querem ser acusadas de fala gongórica. E, todavia, ficam cercadas pelo chão espinhoso onde as palavras se consomem, cansadas de si mesmas. Por enquanto, dançam em equações arbitrárias, atiram-se sem medo ao fundo de um poço, talvez de lá resgatem um módico de ânimo.

Não são cintados os moldes dos corpos, eles fogem à silhueta e exacerbam as formas. Não devia vir grande mal ao mundo: na bolsa dos valores admitida a concurso, o estribilho da modernidade, é proibido escarnecer da corpulência extravagante das silhuetas disformes que parecem um rio fora do leito. Em vez disso, os olhares deviam ser criteriosamente síndicos dos meandros em que se debatem para não serem reféns da frivolidade que não se despega da moldura onde o tempo se tutela.

Se um salto no escuro fosse a solução, ninguém seria temerário. Ninguém teria medo de precipícios, arrastando-se audazmente entre as viperinas litanias que se antepõem no pressentimento dos nomes hipotecados. Um salto no escuro deixaria de ser um verbete da louca aposta no nada à espera de uma paga em forma de juros. As olimpíadas do desmedo como poesia convexa, algumas estrofes viradas do avesso para não serem o espelho centrífugo onde as almas se lavam do passado. 

A acompanhar, uma banda sonora. Para uns, escolhida ao acaso. Para outros, os mais metódicos, escolhida com critério, para não ser exaurida pelo diálogo dos surdos subidos a palco. Dizem que a música não é um pano de fundo para as palavras arquitetadas; mas pode ser a sua tradução, sopesando-as numa gramática feita de colcheias e notas averbadas numa pauta. Ressarcindo o extenuado corpo que se aventurou no salto no escuro e lambe as escoriações em forma de tatuagem. 

Não se demora, o salto no escuro. É uma questão de segundos. Depois, fica um tempo que se arrasta à medida que o remoinho de pensamentos dá lugar a estrofes intemporais. Saboreando o paradoxo de paladares que sobem à boca, os corpos extasiados pela novidade inaugurada na sequência do salto no escuro. Cantando o seu hino privativo ao desmedo.

7.1.25

Soro da mentira

Explosions in the Sky, “Wilderness” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=f-8RhsXP6qY

Autoadministrado em doses decerto não homeopáticas, o soro da mentira predispõe-nos para o contexto. Não há outro modo de lidar com o palimpsesto de logros pespegados com o impassível rosto de quem está convencido de uma verdade entranhada. O soro é o ar do tempo em que nos consumimos.

Não é do trono da moralidade que observo como o soro da mentira se tornou o soro fisiológico que higieniza as relações sociais. Dir-se-á: a colonização ditada pela mentira subjacente, estrutural e entranhada, paga-se com a mesma moeda: para uma mentira, mentira-e-meia. E assim sucessivamente, numa progressão geométrica de mentiras que, a páginas tantas, oblitera a distinção entre mentira e o seu antónimo. 

Verdade seja dita que a verdade anda em concubinato com a subjetividade. A verdade não se objetiva, tantas as possíveis lentes através das quais os fenómenos observados são decantados, tantos e tão diferentes os pressupostos que servem de alicerce a uma análise. Verdade seja dita que esta é uma expressão que devia ser banida do léxico que orienta a comunicação, para manter a integridade da verdade subjetiva. 

Defender a verdade como conceito subjetivo não franqueia as portas da mentira sistemática. Fazê-lo, é tresler a lógica não necessariamente binária da dicotomia verdade-mentira. É possível contar uma mentira à verdade apenas para temperar as circunstâncias que enfeitam o fenómeno observado. Se a ocultação da mentira leva a suportar uma dor duradoura, mentir sobre a verdade – o que se julga ser a verdade – pode ser uma válvula de escape, como se interiorizássemos que é melhor viver na hibernação da realidade. É uma mentira piedosa, uma autoindulgência, sem efeitos colaterais se não houver vítimas no processo.

Mas há a mentira por sistema, a mentira compulsiva, a mentira por exigências estratégicas, a mentira porque passou a ser padrão considerar que os fins justificam os meios, a mentira propositada para atacar um adversário, a mentira arregimentada com o fito de enganar intencionalmente os destinatários, a mentira pela mentira. Estes casos de mentira trazem vítimas a tiracolo. Servem-se do insofismável soro que alimenta a mentira, que a trata como cura de uma doença maior: a mentira é o recurso estilístico para reagir à mentira que lhe antecede, estendendo o império da mentira assimilado numa cascata de mentiras sucessivas. 

Com o soro da mentira a legitimá-la, a dicotomia deixa de fazer sentido e só se fala em diferentes graus de mentira. Paz à alma da verdade.

6.1.25

Esconderijo

Fontaines D.C., “Bug”, in https://www.youtube.com/watch?v=NtEFQLB7Vds

Efémeros olhares vertem-se sobre as cicatrizes do mundo. As cortinas descem sobre o entardecer, congeminam a ossatura cansada que começa a preparar o desligamento. O dia começa a extinguir-se, abate-se sobre a hibernação temporária a que se dá o nome de sono. 

O sono não deixa que os sonhos sejam párias. Podem assomar na forma de pesadelos, precipitando-se como convulsões sobre a cama do corpo, colonizando-o, domando a sua vontade. Os sonhos são o esconderijo de quem somos. E mesmo que se fundamentem em vestígios conhecidos, ou fragmentos da realidade, são como um poço sem fundo que nos traz um esconderijo não convocado. 

A mitologia dos sonhos cerca-nos com a sua vontade própria, irrefreável. É como uma maré que ninguém consegue parar e toma conta do areal limítrofe, adulterando-o, e nós não passamos de espectadores, tão passivos quanto é devido ao papel de um espectador. Os sonhos ocupam as omissões involuntárias como se deixassem vir ao de cima um terreno baldio de que não sabemos o paradeiro. 

Como esconderijo indisfarçável, aos sonhos compete trazer uma geografia que se joga num plano intermédio. Não é a representação da vida traduzida pelos sonhos, mas também não é uma fantasiosa ilustração de uma vida como sua imagem alternativa. Os sonhos, sem perderem contacto com o palco onde decorre a vida, juntam-lhe a lírica dimensão do irreal, a fantasia em barda que parece querer desdobrar a vida em várias camadas. 

Os sonhos como esconderijo não se entranham num desagrado da vida. Deles sabemos que também podemos ser heterónimas vidas projetadas numa lente difusa, rarefeita, onde os sentidos se confundem numa baça aridez. Ou são uma exigente demanda, fazendo com que a inauguração do dia pareça o seu prematuro ocaso; ou são uma planície fértil onde se fecunda uma vida diferente, esconjurada das angústias que a preenchem.

Às vezes, os sonhos são a paredes onde se desenham os esconderijos não intencionais. Um retrato diferente, as pinceladas gotejando dos dedos amorfos domados por Morfeu.

3.1.25

Em lugar certo (short stories #475)

Cocteau Twins, “My Truth”, in https://www.youtube.com/watch?v=bMWUa-IoQoA

          Percorre a cumeada com os dedos que não se escondem da alvorada. Encontrarás uma enseada no meio do pensamento. Não te amedrontes: o pensamento quer transbordar, não o reprimas e espera pelos juros futuros. A História reza a favor dos audazes, os que atiram flechas ateadas pelo combustível da alma contra os algozes que os querem anémicos. As pessoas querem o conforto de um lugar certo para não serem reféns da incerteza de um paradeiro por determinar. Se não for destra a cumeada, não desistas; do dia largo podes colher réditos opulentos se souberes tutelar a paciência metódica. A água tingida pelo âmbar não te devolve um oráculo; não peças ao tempo incerto o apeadeiro onde encontras um lugar certo. Se soubesses que as metáforas compensam os temores pelo estertor que se cinge ao tempo meteórico, escreverias tu próprio os termos do dicionário para tutelares as metáforas. Encontrarias refúgio nas metáforas para compensar a indeterminação dos lugares incertos que povoam os medos refratários. Nessa altura, não serias senão o fingimento escadeado nos fulgurantes socalcos que anestesiam as pessoas. Em vez de obstáculos no penhor de um lugar, encontras o teu centro no fogo da vontade que te apalavra. Fica a memória do caos quando te doíam os dias que rasavam a pele. Rasgas as entranhas dessa dor e no seu pranto liquidas o império que lhe foi património. Saberás então o que é ser de um lugar certo. O lugar certo que não rima com o sedentarismo de que não tens medo; o lugar certo é plural, irradia de múltiplas geografias, como se tua fosse uma pertença variegada. A pele fica tatuada com os diferentes lugares que esconjuram o medo da diversidade. Nessa altura, serás tu, desanexado da rigidez que te aprisionou num lugar certo, mas exíguo.   

2.1.25

Andamos todos no lugar do morto (contingência)

The White Stripes, “We’re Going to Be Friends” (live at SNL), in https://www.youtube.com/watch?v=hgJ-nb9GEJs

Na lógica dos predadores, não somos íntegros na tutela dos direitos que nos ensinam a ter. Somos meros objetos. Sacrificados, em última instância, em nome de um “bem maior”, por muito que sejam indeterminados os critérios de fixação a que o “bem maior” obedece. Despidos de nomes, somos só números cuidados como súbditos, cadastrados em frias estantes onde contamos como peças indiferentes manipuladas como candidatos ao estertor.

Andamos todos no lugar do morto, por mais que estejamos convencidos que não. À mercê da contingência, a sorte ou o azar combinados num jogo de acasos em que são sempre de outros as deliberações que sobre nós se abatem. A nossa vontade é irrisória. Só contam as vontades dos outros que se congeminam num jogo de acasos em que somos apanhados como afortunados sobreviventes ou como presas fáceis. 

É parecido com a irrelevância que nos persegue quando somos transportados num veículo conduzido por outro; não é muito diferente do que acontece quando somos apanhados, como vítimas diletas, no sortilégio das decisões dos governos, nacionais ou de outros países, ou dos oligarcas que conspiram no silêncio do seu poder não sindicável. Não é muito diferente das decisões tomadas por outros que são tangentes à nossa vontade, sem que seja possível interferir com a vontade deles. Seguimos no banco do lado, espectadores passivos, observando o despacho da vontade de quem tem o volante nas mãos. Hibernados, na posição de quem assiste aos acontecimentos mas está paralisado pela impossibilidade de atuar, a nossa vontade apeada. 

A contingência cobre uma parte importante das vidas. Por mais que seja exaltada a vontade própria, o direito a ter direitos com solene consagração jurídica, nacional e internacionalmente, e o princípio da dignidade humana que nos eleva à utopia da igualdade, a posição em que seguimos é de apatia interessada. 

É como se fôssemos participantes numa peça de teatro sem sairmos da plateia. Pedem-nos para sermos atores sem sairmos do lugar. A latitude da nossa participação resume-se a uma fina camada de teoria que depressa se estilhaça ao primeiro contacto com os acontecimentos.

1.1.25

Veni, vidi, vici

Massive Attack ft. Azekel, “Ritual Spirit”, in https://www.youtube.com/watch?v=fhI5T_NKYxc

Passou uma temporada longa longe das luzes da ribalta. A pele esbranquiçada era prova irrefutável. Gente assim não consegue estar muito longe dos holofotes onde transitam os aspirantes e aqueles que os inspiram – toda uma fauna que deixa o pensamento em trajes esqueléticos. E o que importa o pensamento?

O regresso – come back, na língua de trapos de que se servem – foi preparado com critério. Reativou conhecimentos e contactos (há que saber diferenciar os estatutos). Sabendo que nada é gratuito nestes tempos, foi prometendo compensações. Endividava-se antes do tempo, sem ter a garantia de poder restituir os favores com os juros esperados. Acontece amiúde com gente assim: fogem em frente, contornando os contratempos através da sua eliminação do dicionário. Nunca são vítimas da usura dos outros.

Foram muitos almoços pagos por conta. Vernissages frequentadas e beija-mãos cirúrgicos. Genuflexões oportunistas. Conversas com fotógrafos das revistas coloridas onde o social comunica em circuito fechado, conversas untadas com envelopes preenchidos com notas gordas, convites para lugares de acesso reservado, vales válidos para bens consumíveis que costumam habilitar dependências variegadas. Para os fotógrafos não se esquecerem de escolher um pano de fundo onde ele se encontrava. Tudo na passadeira da notoriedade, sem a qual ninguém passa do anonimato.

Não escondia a excitação do momento. Afinal, o seu nome não caíra em saco roto. Ninguém se escondia dele – a controvérsia que ditara o seu afastamento voluntário dera resultados, é fraca a memória de gente assim que labuta na dificuldade do pensamento. Um corredor de fundo não tem de estar sempre na vanguarda. Sabe esconder-se. O esconderijo ajuda a travar as fragilidades. 

Veio o dia retumbante, amanheceu a agenda que ditaria o sim-ou-sopas. Acordou confiante. Vestiu a melhor fazenda. Visitou o coiffeur (ele há palavras que não podem sere ditas no idioma nativo, para não se ser possidónio). A limousine alugada esperava, à hora marcada. À entrada do plateau (outra), procurou a passadeira vermelha que o conduziria à plataforma onde os notáveis posam a pose milimetricamente estudada para as câmaras dos paparazzi. Fez a sua melhor pose – a escola de manequins deixa embebidos na alma os ensinamentos passados aos modelos, o máximo culto do fingimento. 

Não sabia descrever a euforia que o percorria. Não cabia dentro de si. Festou imenso. Parlamentou frivolidades com notáveis encartados e com outros em via de o serem. Bebeu, muito. Inalou a droga dos famosos. Não cabia dentro de si. Tanto, que no dia seguinte, quando acordou no exíguo apartamento sito à periferia da grande cidade, não conseguiu reprimir o vazio que o ocupava. 

Chegar, ver e vencer pode não passar de um eufemismo.

31.12.24

A nossa responsabilidade perante os imigrantes: contra a visão utilitarista da imigração

The Murder Capital, “More Is Less”, in https://www.youtube.com/watch?v=2SmnKIjCnlk

O deputado Fabian Figueiredo explicava, com a paciência de um pedagogo, por que não podemos fechar as portas aos imigrantes. O deputado falava numa manifestação que protestava contra a rusga musculada da polícia no Martim Moniz que, estigmatizando os imigrantes, habilitou comparações com episódios de má memória histórica. Fabian Figueiredo fez o trabalho de casa (como compete aos deputados da nação) e mostrou como os imigrantes são indispensáveis para a nação. Justificou com dados estatísticos que provam como os imigrantes contribuem para a riqueza nacional, para a segurança social (a sua sustentabilidade futura), para o equilíbrio do tecido económico (porque ocupam empregos que são os nativos deixam desertos) e como não são um ónus para o SNS. 

Fabian Figueiredo tem razão. Mas a razão de Fabian Figueiredo vai muito além da argumentação que expôs com a paciência que é exigível para contrariar a boçalidade da extrema-direita (e da direita que vai a seu reboque, perdendo o paradeiro da moderação) que investe na correlação entre imigrantes e criminalidade para exigir o controlo apertado da entrada de imigrantes. O deputado Fabian Figueiredo ficou, paradoxalmente, preso a argumentos de ordem material. Paradoxalmente, porque não seria de esperar de um deputado bloquista, atenta a sua linhagem ideológica, uma tão clara identificação entre os benefícios da imigração e as vantagens sobretudo socioeconómicas. 

Defender a imigração em Portugal não deve estar dependente desta linha argumentativa. Deve abraçar uma visão holística que transcenda os aspetos materiais invocados, e bem, pelo deputado Fabian Figueiredo. A História de Portugal serve de fundamento para maximizar o entendimento da imigração no Portugal do primeiro quartel do século XXI. Se fomos conquistadores e dominámos povos conquistados, não devemos ser hostis aos que fogem dos seus países, por necessidade ou por imperativos de segurança, e escolhem Portugal para continuar as suas vidas com um módico de decência. Este padrão dúplice é uma ofensa à História. Com a agravante de que os dois movimentos (a expansão colonial de antanho e a imigração coeva) não são comparáveis, e não apenas por serem muito diferentes as épocas em que se materializaram, mas, sobretudo, porque os que entram em Portugal no dealbar do segundo quartel do século XXI não usam a coerção para nos subjugar nem nos são hostis. 

Uma visão holística da imigração não pode olhar para o fenómeno apenas pelos benefícios socioeconómicos. Essa posição deixa vir à superfície uma visão utilitária da imigração. A mensagem é clara: abrimos as portas aos imigrantes porque o futuro de Portugal depende deles, já que não somos sensíveis à regressão do inverno demográfico e não desatamos a procriar como coelhos. Basear as vantagens da imigração nesta linha argumentativa, e ter uma visão liberal sobre a entrada de estrangeiros, é um oportunismo indecente. É indecente, por um lado, porque instrumentaliza os imigrantes: abrimos as portas porque precisamos deles. E daqui decorre a segunda camada de indecência, que atropela as responsabilidades históricas de Portugal: das entrelinhas percebe-se que se dominasse esta abordagem utilitarista, não seríamos generosos com os imigrantes. Eis o lema: imigrantes, sejam bem-vindos porque precisamos de vós. Caso contrário, não vos queríamos por cá. Esta é a forma errada de tratar a imigração.

A responsabilidade histórica projeta-se do passado para o presente. Portugal tem muita responsabilidade histórica pelo peso que assumiu na História da colonização. Não entro no debate sobre a responsabilidade criminal dos descobridores portugueses. É uma matéria sensível, e terreno propício ao contributo de historiadores. E é um tema arregimentado por visões heterodoxas que ambicionam um revisionismo histórico para condenar Portugal no presente por atrocidades humanas e materiais cometidas no passado, semeando ressentimentos. Invoco a responsabilidade histórica como exigência especial do país quando se pensa no tratamento dispensado aos imigrantes que nos procuram. É por termos sido protagonistas das descobertas e da colonização que sobre nós impende uma responsabilidade aumentada. Trata-se de uma exigência que se situa ao nível do direito humanitário que, em tese, se desliga de contextualizações como a acima mencionada. É um direito, e um dever, básicos. É um dever que se abate sobre os países que podem acolher imigrantes e, desse modo, contribuir para que essas pessoas possam ter vidas condignas. Deve ser a prioridade dos Estados de acolhimento dos imigrantes. As vantagens socioeconómicas são um ganho colateral, não a prioridade que norteia a política de imigração.

Devia ser dispensável fornecer argumentos de outra ordem – cosmopolitas – para defender a imigração, onde quer que seja. O medo do outro é a prova máxima de ignorância. A desconfiança em que medra diz muito dos que desconfiam – aprendi que quem muito desconfia não é de confiar. O muito que temos a aprender com o outro e como o outro pode assimilar traços da sociedade que o acolhe devia ser o pressuposto da imigração. Porque podemos conviver respeitando as diferenças e aprendendo com elas. Porque uma idiossincrasia não é violentada quando o tecido social se torna heterogéneo, podendo dessa heterogeneidade resultar a reinvenção da idiossincrasia (desde que seja consentida e emirja das relações sociais). E podíamos deixar os soezes, que ainda acreditam num passado que já não existe, a falar sozinhos quando a personificação do medo irracional dos imigrantes berra aos nossos ouvidos. 

Ter uma posição construtiva sobre a imigração não pode partir de dentro para fora, não se pode basear na condição de os imigrantes serem úteis para o país que os acolhe. Quase sempre são pessoas que fogem ora da miséria, ora da guerra, ora de perseguições de variada ordem que põem em causa a sua sobrevivência. Estes são valores que devem preceder os valores meramente socioeconómicos. Esses valores integram-se na responsabilidade histórica indeclinável que pesa sobre os escombros da História de Portugal. 

30.12.24

Babugem (e não é da deputada Matias)

Iggy Pop, “La Vie en Rose”, in https://www.youtube.com/watch?v=2USNek_tWjI

Pôr em sal, o corpo curvado: assim é a serventia da noite, a chave que encerra o dia que parecia não ter fim. Mas o fim do dia foi consumado. Com a simplicidade de anotar, no compêndio das satisfações interiores, que mais um dia tinha sido saldado. Esta devia ser a medida da ambição permitida.

Não é por falta de soldados que a empreitada foi desviada do seu curso. Para os devidos efeitos, os exércitos, por mais numerosos que sejam, são indiferentes à colheita das vidas. A rosa legada pelo dia, somos nós que temos de a encontrar. Os provérbios não contam. Os sinédrios são congeminações que disfarçam a inapelável propensão das pessoas para se desentenderem. Se não for dada caução ao princípio geral do desentendimento, e se as pessoas não o acolherem como a liberdade do desacordo como esteio da sua própria liberdade, ficam limitadas pela babugem que é apenas uma amostra do que os dias têm para oferecer.

Talvez a imagem das vidas que se entrecruzam, firmadas no conhecimento ou como exibições de anonimato, seja equivalente à representação de um icebergue. A parte submersa é muito maior do que a parte visível. E a temperatura glacial assemelha-se à letargia que coloniza as vidas que olham para diante com medo do passado de que procedem. Desvivemos muito mais do que vivemos. 

Somos vítimas dos martelos pneumáticos que cicatrizam a modernidade. Este é o anátema consumado que desfaz as costuras das vidas quando são perfiladas no seu objeto potencial: vivemos sempre em modernidade, e assim tem sido desde que os tempos ganharam presença nos dicionários. É tanta a sede de modernidade, e tão grande a necessidade de nos distinguirmos dos vários pretéritos, que acabamos reféns de um verniz acidental. A modernidade é o vento que não conseguimos prender com os dedos. Distraídos, os dedos esquecem-se de fabricar o futuro. Acabamos por ser um acaso do futuro.

Entretanto, as vidas passam a correr. Presos aos detalhes que nos anestesiam, seguimos fragilmente amparados pela babugem que se transforma num (ainda mais frágil) alicerce. À espera da menor convulsão para nos despenharmos. Pois a rosa legada pelo dia, somos nós que temos de a alimentar.

27.12.24

A partir do próximo ano, o Natal será woke (ou não será Natal)

The Murder Capital, “For Everything” (Tapetown Sessions), in https://www.youtube.com/watch?v=wkyMar1p2jA   

Tudo vai mudar, a partir do próximo Natal. A mudança insinuar-se-á, discreta mas irrecusável, mas contundente e à prova de bala. As ressonâncias de antanho, que evocam um patriarcado disforme e soez, mantendo à superfície nomes atávicos que perpetuam um passado que se quer esconjurado, vão ser dissolvidas por decreto e sem consulta à hierarquia eclesiástica. 

O Pai Natal vai ser deposto. Como não se pode mudar tudo de uma vez – a existência de uma figura natalícia, muito embora diminua, com a sua carga pagã, o empenho religioso das festividades, constitui um avanço na senda do progressismo, mas não é a etapa final –, o Pai Natal será substituído pela Mãe Natal. É o primeiro passo para o “empoderamento” das mulheres que continua a ser adiado atrás do disfarce das proclamações vazias que apenas mantêm a supremacia dos homens. Atrás virá, com umas décadas de preparação, o destino (por ora inconfessável) da extinção do Natal como meta intermédia de dissolução do capitalismo. O novo homem novo, prenhe de justiça e imune à usura dos capitalistas, assim o obriga.

A Mãe Natal será um rosto não ancião, desfazendo um anátema estabelecido: o Pai Natal é uma personagem envelhecida. A assimetria geracional tem de ser corrigida, sob pena de os mais jovens serem condenados a adiar as suas vidas, quando os mais velhos, já reformados ao cabo de uma vida profissional, continuam a açambarcar o papel de Pai Natal. O progressismo não pactua, não pode pactuar, com estas desigualdades, ou não será progressismo.

Outra mudança alinhavada é na gastronomia associada à época natalícia. O nome “bolo-rei” será banido. A monarquia foi destronada há mais de cem anos, não é aceitável que o bolo mantenha ligação com a figura de um monarca que não existe. O novo nome será o do presidente da república em exercício: bolo-Marcelo, a que se seguirá, eventualmente, bolo-Almirante. 

(Aproveitando a oportunidade e os ganhos de contexto, será feita campanha, a nível internacional, para mudar no xadrez os nomes das peças do rei e da rainha, apelando ao anacronismo da monarquia, uma peça museológica no palco mundial.) 

Por fim, a doçaria conventual que usar nomenclatura atávica, seja pela ligação a figuras da nobreza (D. Rodrigo), ou por evocar figuras do clero (Travesseiros de Santa Clara), terá de ser rebatizada (salvo seja). O princípio do Estado laico e o princípio da igualdade dos homens, sem estamentos ou castas reconhecidas por lei, o obrigam. Só então o Natal terá cumprido a sua função ao serviço do progressismo.

26.12.24

Episódio #2 (avalanche)

Beach House, “Wishes” (live at Jimmy Fallon), in https://www.youtube.com/watch?v=m8jjOXhzut0

                “Preço médio das casas já ultrapassa os 300 mil euros” (Público); “da aviação à recolha do lixo, há 18 greves anunciadas até ao final do ano” (Diário de Notícias); assaltantes de Valença suspeitos de 23 assaltos a ourivesarias” (Jornal de Notícias); “para Trump, compra da Gronelândia é uma prioridade” (ionline); “IGAI abre um processo administrativo sobre a operação da PSP no Martim Moniz” (Expresso); “naufrágio no Mediterrâneo: dois russos desaparecidos” (Observador); “Mercadona aumenta salários em 8,5%” (O Jornal Económico); “Japão e EUA acusam norte-coreanos de roubar 300 milhões de euros em criptomoedas” (Negócios); “Arcebispo de Braga exonera administração de um dos melhores colégios do país” (Correio da Manhã); “acompanhe aqui a guerra na Ucrânia” (Notícias ao Minuto); “rusga no Martim Moniz. Aguiar Branco iliba Governo de qualquer responsabilidade” (RTP); “como vai estar o tempo neste Natal?” (SIC); “’Manuel’ sofre de Christmas blues e não está sozinho. Afinal, porque é que o Natal provoca sofrimento a tanta gente?” (IOL); “vacinação contra a gripe bate recorde de adesão das pessoas com 85 anos e mais” (Lusa); explosão em fábrica de munições turca faz pelo menos 12 mortos. Eventual sabotagem excluída” (TSF); “o preço dos produtos determina a nossa alimentação?” (Antena 1); “pobreza energética. Portugal é o país da Europa com mais queixas” (Rádio Renascença); “vai às compras de Natal? Cuidado, comprar por impulso pode ser um alerta de transtorno” (Sábado); “Xi Jinping elogia Macau nas cerimónias do 25º [sic] aniversário do retorno à China” (Sol); “2024, o ano das mudanças radicais” (Visão); “por ti, Portugal, eu juro” (Divergente); “as pessoas só pensam no trabalho” (Jornal Mapa); “o Inverno Demográfico da Finisterra Lusitana” (O Diabo); “PCP insiste em salário mínimo nacional de 1000 euros já em janeiro” (Avante); “noite do Mercado do Funchal gerou 14,6 toneladas de lixo” (Diário de Notícias da Madeira); “ASAE apreende 661 brinquedos por incumprimento das regras de segurança” (Açoriano Oriental); “caças F-16 vão sobrevoar céus de Portugal no tradicional voo de Natal (Diário de Trás-os-Montes)”.

         E foi apenas a tiragem nacional. Quem arrisca a fazer um resumo deste resumo?  

25.12.24

Episódio #1 (sociedade da informação em abundância)

Vila Martel, “Amanhã Não Vou Ficar”, in https://www.youtube.com/watch?v=LdgfbdhlTtg

Uma torrente, imparável, insaciável, que se alimenta do nosso desejo de saber, de estar por dentro da História enquanto ela se faz de sucessivos presentes, e depois sentimos que estamos cercados por um sôfrego caudal de informação que nos consome as veias, que nos ateia o sangue numa perene insatisfação pelo estado do mundo, como um viveiro de sensações que inflaciona a angústia. Como se uma avalanche irrompesse, galopando pela montanha abaixo sem que nós, suas testemunhas diretas, pudéssemos travar a sua marcha. 

É uma sensação paradoxal: não vivemos sem informação (acreditamos, reféns de, possivelmente, um preconceito) e depois somos torpedeados incessantemente pela informação que nos assola a uma velocidade estrelar, numa altura em que a dependência é tal que desviar o manancial combina com uma doença de sinal contrário: a escassez, a caminho da ausência, contrasta com a abundância nociva de informação, sem que saibamos estar a não ser numa das extremidades.

A lucidez pode emparelhar com o desejo de ausência, forjando um desligar total da matéria-prima e dos meios que a trazem – como se fosse possível a uma pessoa informada depressa cair na trincheira oposta e fingir (porque um fingimento acaba por ser) que está alheia ao que a envolve, como se fizesse de conta que os cinco sentidos foram propositadamente desligados da corrente. Um estado comatoso, intencional, para separar a pessoa do mundo, levando-a a crer que paira sobre o mundo num estatuto de indiferença ao mundo. Mas é apenas uma anestesia.

Não passando de um fingimento mal apurado, a negação da anestesia como recurso que falsifica a ligação com a realidade exterior é a ignição para o irrecusável saber do presente. O remoinho dos acontecimentos é o cimento da clepsidra de tempos presentes que alimenta o desdobramento do mundo em múltiplas camadas. Receando a ignorância que se abate como anátema, como se a pessoa se demitisse de ser cidadã, abrem-se copiosas janelas, as visíveis e outras que se descobrem mais tarde, por onde entra o caudal da informação. É uma avalanche que se abate sobre nós, que nos sufoca e deixa desinformados pelo ónus de tanta informação. 

Com esta velocidade a que o tempo lega acontecimentos, precisávamos de ter cinco vidas simultâneas para não sermos ultrapassados pelo mundo à espera de reconhecimento. Quando assim nos comportamos, somos nós que queremos reconhecimento do mundo que cai sobre nós. De tanto queremos saber do mundo no seu estado presente, é o mundo que sabe coisas de mais acerca de nós. E esta assimetria nunca será corrigida, a menos que nos refugiemos no exílio do tempo presente.

24.12.24

Degelo

Mannequin Pussy, “Loud Bark” (Live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=ffBI5Zj9VDw

Foges pela silhueta do rio, enquanto observas o riso extático que acompanha a decadência à tua volta. A decadência é o lugar impróprio para uma pertença, murmuras. Não trazes o arnês – nunca trazes o arnês, essa audácia já trouxe dissabores no passado, mas não aprendes. Deixas a margem do rio e começas a subir. O chão pedregoso acentua a estrénua subida até à cumeada onde julgas aferir o exílio necessário. Dizes: não é do mundo que fujo, que há mundos plurais e não sei ao certo a qual deles pertenço. Sobrepõem-se algumas interrogações: temos – tenho – de definir uma pertença? Não comprometemos o nosso ser se lhe anteceder uma pertença como axioma? A pertença não é o sintoma máximo da decadência?

Atravessas um povoado antigo, desabitado. O lugar fantasma transformou-se num museu de ruínas. Há um certo sortilégio no silêncio quase absoluto. Se acreditasses em espíritos que vagueiam entre as pedras das casas tomadas pela corrosão do abandono, dirias que por ali passeiam vultos dos moradores do povoado. Não como fantasmas; o otimismo efémero, talvez circunstancialmente oportunista, segreda que os vultos apenas querem ser cicerones, não tencionam amedrontar os visitantes. Quantas vidas foram vividas e depois extintas, de quantas são testemunhas as paredes em escombros? Não é neste lugar medonho que queres fixar o exílio sabático.

Agora a subida é ainda mais inclinada. Já consegues ver, entre os traços de neblina matinal que perduram teimosamente, a sucessão de povoações que se espalham desordenadamente pela encosta e ao longo da planície, como serpenteiam ao longo do caudal do rio (estes aglomerados também são oportunistas). À medida que continuas a subir, estás mais próximo do céu e os vestígios da paisagem distante tornam-se imprecisos. Por um instante, estás arrependido de não ter trazido o arnês. 

Os primeiros sinais de neve aparecem, primeiro nos lugares que não se expõem ao sol, mais acima como mantas extensas que ocupam pedaços de chão. Nos lugares não abrigados do sol, a água escorre da neve acamada em gotas generosas. Já o suficiente para alimentar pequenos cursos de água que correm ao longo da berma improvisada. Aqui e ali, esses cursos de água transbordam da camisa-de-forças em que se transforma a berma, atravessam o caminho de terra e cavam sulcos desiguais. É o degelo que redesenha a paisagem, afoitando-se na terra dura e compacta do caminho para rasgar os sulcos, ora superficiais, ora mais fundos, que transfiguram o caminho por onde segues num caminho cheio de irregularidades.

Se não fosse o degelo, a tua vida (também) não tinha sido como foi.  

23.12.24

Comer o gelado com a testa

Black Keys (feat. Alice Cooper), “Stay in Your Grave”, in https://www.youtube.com/watch?v=M513zr-J5Cg

Às vezes, apetecia ir atrás do vento. Nem que parecesse tonto. Como se fosse errante e tivesse demitido qualquer possibilidade de planos – o vento seria o GPS efémero, o doutrinador de um destino ao acaso.

Outras vezes, dava-me para não especular. Talvez dissessem que levitar o corpo no meio do aluvião de fantasias não é um delito, que quase todos os poetas vivem pelo menos dez andares acima do solo, mais perto da lua. Talvez dissessem que não especular é um punhal assestado na criatividade e que, assim como assim, o mundo (aquele a que chamam a realidade) é tão execrável que contrabando não será se vivermos pelo menos meia dúzia de andares acima do rés-do-chão.

Por isso, cumpria os desprocedimentos e dedicava-me a delirar. Por exemplo: ontem um cão terá sido avistado a ostentar um colar de pérolas. Muito embora o saber popular advirta que não é boa política entregar pérolas a porcos, o prontuário é omisso quanto à possibilidade de um canídeo envergar um colar de pérolas. No caso do porco, é compreensível a precaução popular: dos suínos se diz que deglutem tudo o que lhes aparecer no caminho e as pérolas não são como as trufas que eles fuçam com diligência (muito embora as trufas estejam ao preço das melhores pérolas de viveiro).

 Ou, por exemplo, o rapaz pós-cueiros que já sabia de cor os nomes dos reis e dos presidentes da república mesmo antes de saber ler. Os progenitores ostentavam a criança com orgulho, como se a proeza lhes fosse creditada. A meio da exibição, apareceu um desmancha-prazeres. Questionou a criança sobre uma matéria banal (o número de habitantes do país), seguindo-se uma pergunta alternativa para o caso de falhar a anterior (o que diz a tabuada à multiplicação de seis por oito). A criança disse nada e o desmancha-prazeres atirou-se, com indisfarçável cinismo, ao diletantismo dos pais.

Na assistência, um castiço tentava levar à prática o desafio de comer um gelado com a testa. Teimoso, e incapaz de reconhecer que só os calvos podem ensaiar a demanda, apresentou-se (nome e ocupação: guarda-rios nas horas vagas) sem conseguir esconder o cabelo besuntado pelo gelado. Aos costumes disse nada, enquanto o gelado de baunilha pingava do cabelo, dando a entender que não estava por dentro da pendência entre os pais do falso prodígio e o desmancha-prazeres que acabara de desmascarar a insolência dos progenitores do rapaz – já ia a altercação a caminho de uma medição de força física entre os dois varões, pois então. Limitou-se a proclamar, com a dicção de um radialista, as sílabas devidamente entoadas para nenhuma ficar órfã, que amanhã era dia de estreias no cinema e que estava ansioso por saber os filmes a estrear.

Afinal, o Inverno só começava em janeiro.