As bocas amortalhadas esbracejam verbos penosos – não querem ser acusadas de fala gongórica. E, todavia, ficam cercadas pelo chão espinhoso onde as palavras se consomem, cansadas de si mesmas. Por enquanto, dançam em equações arbitrárias, atiram-se sem medo ao fundo de um poço, talvez de lá resgatem um módico de ânimo.
Não são cintados os moldes dos corpos, eles fogem à silhueta e exacerbam as formas. Não devia vir grande mal ao mundo: na bolsa dos valores admitida a concurso, o estribilho da modernidade, é proibido escarnecer da corpulência extravagante das silhuetas disformes que parecem um rio fora do leito. Em vez disso, os olhares deviam ser criteriosamente síndicos dos meandros em que se debatem para não serem reféns da frivolidade que não se despega da moldura onde o tempo se tutela.
Se um salto no escuro fosse a solução, ninguém seria temerário. Ninguém teria medo de precipícios, arrastando-se audazmente entre as viperinas litanias que se antepõem no pressentimento dos nomes hipotecados. Um salto no escuro deixaria de ser um verbete da louca aposta no nada à espera de uma paga em forma de juros. As olimpíadas do desmedo como poesia convexa, algumas estrofes viradas do avesso para não serem o espelho centrífugo onde as almas se lavam do passado.
A acompanhar, uma banda sonora. Para uns, escolhida ao acaso. Para outros, os mais metódicos, escolhida com critério, para não ser exaurida pelo diálogo dos surdos subidos a palco. Dizem que a música não é um pano de fundo para as palavras arquitetadas; mas pode ser a sua tradução, sopesando-as numa gramática feita de colcheias e notas averbadas numa pauta. Ressarcindo o extenuado corpo que se aventurou no salto no escuro e lambe as escoriações em forma de tatuagem.
Não se demora, o salto no escuro. É uma questão de segundos. Depois, fica um tempo que se arrasta à medida que o remoinho de pensamentos dá lugar a estrofes intemporais. Saboreando o paradoxo de paladares que sobem à boca, os corpos extasiados pela novidade inaugurada na sequência do salto no escuro. Cantando o seu hino privativo ao desmedo.
Autoadministrado em doses decerto não homeopáticas, o soro da mentira predispõe-nos para o contexto. Não há outro modo de lidar com o palimpsesto de logros pespegados com o impassível rosto de quem está convencido de uma verdade entranhada. O soro é o ar do tempo em que nos consumimos.
Não é do trono da moralidade que observo como o soro da mentira se tornou o soro fisiológico que higieniza as relações sociais. Dir-se-á: a colonização ditada pela mentira subjacente, estrutural e entranhada, paga-se com a mesma moeda: para uma mentira, mentira-e-meia. E assim sucessivamente, numa progressão geométrica de mentiras que, a páginas tantas, oblitera a distinção entre mentira e o seu antónimo.
Verdade seja dita que a verdade anda em concubinato com a subjetividade. A verdade não se objetiva, tantas as possíveis lentes através das quais os fenómenos observados são decantados, tantos e tão diferentes os pressupostos que servem de alicerce a uma análise. Verdade seja dita que esta é uma expressão que devia ser banida do léxico que orienta a comunicação, para manter a integridade da verdade subjetiva.
Defender a verdade como conceito subjetivo não franqueia as portas da mentira sistemática. Fazê-lo, é tresler a lógica não necessariamente binária da dicotomia verdade-mentira. É possível contar uma mentira à verdade apenas para temperar as circunstâncias que enfeitam o fenómeno observado. Se a ocultação da mentira leva a suportar uma dor duradoura, mentir sobre a verdade – o que se julga ser a verdade – pode ser uma válvula de escape, como se interiorizássemos que é melhor viver na hibernação da realidade. É uma mentira piedosa, uma autoindulgência, sem efeitos colaterais se não houver vítimas no processo.
Mas há a mentira por sistema, a mentira compulsiva, a mentira por exigências estratégicas, a mentira porque passou a ser padrão considerar que os fins justificam os meios, a mentira propositada para atacar um adversário, a mentira arregimentada com o fito de enganar intencionalmente os destinatários, a mentira pela mentira. Estes casos de mentira trazem vítimas a tiracolo. Servem-se do insofismável soro que alimenta a mentira, que a trata como cura de uma doença maior: a mentira é o recurso estilístico para reagir à mentira que lhe antecede, estendendo o império da mentira assimilado numa cascata de mentiras sucessivas.
Com o soro da mentira a legitimá-la, a dicotomia deixa de fazer sentido e só se fala em diferentes graus de mentira. Paz à alma da verdade.
Efémeros olhares vertem-se sobre as cicatrizes do mundo. As cortinas descem sobre o entardecer, congeminam a ossatura cansada que começa a preparar o desligamento. O dia começa a extinguir-se, abate-se sobre a hibernação temporária a que se dá o nome de sono.
O sono não deixa que os sonhos sejam párias. Podem assomar na forma de pesadelos, precipitando-se como convulsões sobre a cama do corpo, colonizando-o, domando a sua vontade. Os sonhos são o esconderijo de quem somos. E mesmo que se fundamentem em vestígios conhecidos, ou fragmentos da realidade, são como um poço sem fundo que nos traz um esconderijo não convocado.
A mitologia dos sonhos cerca-nos com a sua vontade própria, irrefreável. É como uma maré que ninguém consegue parar e toma conta do areal limítrofe, adulterando-o, e nós não passamos de espectadores, tão passivos quanto é devido ao papel de um espectador. Os sonhos ocupam as omissões involuntárias como se deixassem vir ao de cima um terreno baldio de que não sabemos o paradeiro.
Como esconderijo indisfarçável, aos sonhos compete trazer uma geografia que se joga num plano intermédio. Não é a representação da vida traduzida pelos sonhos, mas também não é uma fantasiosa ilustração de uma vida como sua imagem alternativa. Os sonhos, sem perderem contacto com o palco onde decorre a vida, juntam-lhe a lírica dimensão do irreal, a fantasia em barda que parece querer desdobrar a vida em várias camadas.
Os sonhos como esconderijo não se entranham num desagrado da vida. Deles sabemos que também podemos ser heterónimas vidas projetadas numa lente difusa, rarefeita, onde os sentidos se confundem numa baça aridez. Ou são uma exigente demanda, fazendo com que a inauguração do dia pareça o seu prematuro ocaso; ou são uma planície fértil onde se fecunda uma vida diferente, esconjurada das angústias que a preenchem.
Às vezes, os sonhos são a paredes onde se desenham os esconderijos não intencionais. Um retrato diferente, as pinceladas gotejando dos dedos amorfos domados por Morfeu.
Percorre a cumeada com os dedos que não se escondem da alvorada. Encontrarás uma enseada no meio do pensamento. Não te amedrontes: o pensamento quer transbordar, não o reprimas e espera pelos juros futuros. A História reza a favor dos audazes, os que atiram flechas ateadas pelo combustível da alma contra os algozes que os querem anémicos. As pessoas querem o conforto de um lugar certo para não serem reféns da incerteza de um paradeiro por determinar. Se não for destra a cumeada, não desistas; do dia largo podes colher réditos opulentos se souberes tutelar a paciência metódica. A água tingida pelo âmbar não te devolve um oráculo; não peças ao tempo incerto o apeadeiro onde encontras um lugar certo. Se soubesses que as metáforas compensam os temores pelo estertor que se cinge ao tempo meteórico, escreverias tu próprio os termos do dicionário para tutelares as metáforas. Encontrarias refúgio nas metáforas para compensar a indeterminação dos lugares incertos que povoam os medos refratários. Nessa altura, não serias senão o fingimento escadeado nos fulgurantes socalcos que anestesiam as pessoas. Em vez de obstáculos no penhor de um lugar, encontras o teu centro no fogo da vontade que te apalavra. Fica a memória do caos quando te doíam os dias que rasavam a pele. Rasgas as entranhas dessa dor e no seu pranto liquidas o império que lhe foi património. Saberás então o que é ser de um lugar certo. O lugar certo que não rima com o sedentarismo de que não tens medo; o lugar certo é plural, irradia de múltiplas geografias, como se tua fosse uma pertença variegada. A pele fica tatuada com os diferentes lugares que esconjuram o medo da diversidade. Nessa altura, serás tu, desanexado da rigidez que te aprisionou num lugar certo, mas exíguo.
Na lógica dos predadores, não somos íntegros na tutela dos direitos que nos ensinam a ter. Somos meros objetos. Sacrificados, em última instância, em nome de um “bem maior”, por muito que sejam indeterminados os critérios de fixação a que o “bem maior” obedece. Despidos de nomes, somos só números cuidados como súbditos, cadastrados em frias estantes onde contamos como peças indiferentes manipuladas como candidatos ao estertor.
Andamos todos no lugar do morto, por mais que estejamos convencidos que não. À mercê da contingência, a sorte ou o azar combinados num jogo de acasos em que são sempre de outros as deliberações que sobre nós se abatem. A nossa vontade é irrisória. Só contam as vontades dos outros que se congeminam num jogo de acasos em que somos apanhados como afortunados sobreviventes ou como presas fáceis.
É parecido com a irrelevância que nos persegue quando somos transportados num veículo conduzido por outro; não é muito diferente do que acontece quando somos apanhados, como vítimas diletas, no sortilégio das decisões dos governos, nacionais ou de outros países, ou dos oligarcas que conspiram no silêncio do seu poder não sindicável. Não é muito diferente das decisões tomadas por outros que são tangentes à nossa vontade, sem que seja possível interferir com a vontade deles. Seguimos no banco do lado, espectadores passivos, observando o despacho da vontade de quem tem o volante nas mãos. Hibernados, na posição de quem assiste aos acontecimentos mas está paralisado pela impossibilidade de atuar, a nossa vontade apeada.
A contingência cobre uma parte importante das vidas. Por mais que seja exaltada a vontade própria, o direito a ter direitos com solene consagração jurídica, nacional e internacionalmente, e o princípio da dignidade humana que nos eleva à utopia da igualdade, a posição em que seguimos é de apatia interessada.
É como se fôssemos participantes numa peça de teatro sem sairmos da plateia. Pedem-nos para sermos atores sem sairmos do lugar. A latitude da nossa participação resume-se a uma fina camada de teoria que depressa se estilhaça ao primeiro contacto com os acontecimentos.
Passou uma temporada longa longe das luzes da ribalta. A pele esbranquiçada era prova irrefutável. Gente assim não consegue estar muito longe dos holofotes onde transitam os aspirantes e aqueles que os inspiram – toda uma fauna que deixa o pensamento em trajes esqueléticos. E o que importa o pensamento?
O regresso – come back, na língua de trapos de que se servem – foi preparado com critério. Reativou conhecimentos e contactos (há que saber diferenciar os estatutos). Sabendo que nada é gratuito nestes tempos, foi prometendo compensações. Endividava-se antes do tempo, sem ter a garantia de poder restituir os favores com os juros esperados. Acontece amiúde com gente assim: fogem em frente, contornando os contratempos através da sua eliminação do dicionário. Nunca são vítimas da usura dos outros.
Foram muitos almoços pagos por conta. Vernissages frequentadas e beija-mãos cirúrgicos. Genuflexões oportunistas. Conversas com fotógrafos das revistas coloridas onde o social comunica em circuito fechado, conversas untadas com envelopes preenchidos com notas gordas, convites para lugares de acesso reservado, vales válidos para bens consumíveis que costumam habilitar dependências variegadas. Para os fotógrafos não se esquecerem de escolher um pano de fundo onde ele se encontrava. Tudo na passadeira da notoriedade, sem a qual ninguém passa do anonimato.
Não escondia a excitação do momento. Afinal, o seu nome não caíra em saco roto. Ninguém se escondia dele – a controvérsia que ditara o seu afastamento voluntário dera resultados, é fraca a memória de gente assim que labuta na dificuldade do pensamento. Um corredor de fundo não tem de estar sempre na vanguarda. Sabe esconder-se. O esconderijo ajuda a travar as fragilidades.
Veio o dia retumbante, amanheceu a agenda que ditaria o sim-ou-sopas. Acordou confiante. Vestiu a melhor fazenda. Visitou o coiffeur (ele há palavras que não podem sere ditas no idioma nativo, para não se ser possidónio). A limousine alugada esperava, à hora marcada. À entrada do plateau (outra), procurou a passadeira vermelha que o conduziria à plataforma onde os notáveis posam a pose milimetricamente estudada para as câmaras dos paparazzi. Fez a sua melhor pose – a escola de manequins deixa embebidos na alma os ensinamentos passados aos modelos, o máximo culto do fingimento.
Não sabia descrever a euforia que o percorria. Não cabia dentro de si. Festou imenso. Parlamentou frivolidades com notáveis encartados e com outros em via de o serem. Bebeu, muito. Inalou a droga dos famosos. Não cabia dentro de si. Tanto, que no dia seguinte, quando acordou no exíguo apartamento sito à periferia da grande cidade, não conseguiu reprimir o vazio que o ocupava.
Chegar, ver e vencer pode não passar de um eufemismo.
O deputado Fabian Figueiredo explicava, com a paciência de um pedagogo, por que não podemos fechar as portas aos imigrantes. O deputado falava numa manifestação que protestava contra a rusga musculada da polícia no Martim Moniz que, estigmatizando os imigrantes, habilitou comparações com episódios de má memória histórica. Fabian Figueiredo fez o trabalho de casa (como compete aos deputados da nação) e mostrou como os imigrantes são indispensáveis para a nação. Justificou com dados estatísticos que provam como os imigrantes contribuem para a riqueza nacional, para a segurança social (a sua sustentabilidade futura), para o equilíbrio do tecido económico (porque ocupam empregos que são os nativos deixam desertos) e como não são um ónus para o SNS.
Fabian Figueiredo tem razão. Mas a razão de Fabian Figueiredo vai muito além da argumentação que expôs com a paciência que é exigível para contrariar a boçalidade da extrema-direita (e da direita que vai a seu reboque, perdendo o paradeiro da moderação) que investe na correlação entre imigrantes e criminalidade para exigir o controlo apertado da entrada de imigrantes. O deputado Fabian Figueiredo ficou, paradoxalmente, preso a argumentos de ordem material. Paradoxalmente, porque não seria de esperar de um deputado bloquista, atenta a sua linhagem ideológica, uma tão clara identificação entre os benefícios da imigração e as vantagens sobretudo socioeconómicas.
Defender a imigração em Portugal não deve estar dependente desta linha argumentativa. Deve abraçar uma visão holística que transcenda os aspetos materiais invocados, e bem, pelo deputado Fabian Figueiredo. A História de Portugal serve de fundamento para maximizar o entendimento da imigração no Portugal do primeiro quartel do século XXI. Se fomos conquistadores e dominámos povos conquistados, não devemos ser hostis aos que fogem dos seus países, por necessidade ou por imperativos de segurança, e escolhem Portugal para continuar as suas vidas com um módico de decência. Este padrão dúplice é uma ofensa à História. Com a agravante de que os dois movimentos (a expansão colonial de antanho e a imigração coeva) não são comparáveis, e não apenas por serem muito diferentes as épocas em que se materializaram, mas, sobretudo, porque os que entram em Portugal no dealbar do segundo quartel do século XXI não usam a coerção para nos subjugar nem nos são hostis.
Uma visão holística da imigração não pode olhar para o fenómeno apenas pelos benefícios socioeconómicos. Essa posição deixa vir à superfície uma visão utilitária da imigração. A mensagem é clara: abrimos as portas aos imigrantes porque o futuro de Portugal depende deles, já que não somos sensíveis à regressão do inverno demográfico e não desatamos a procriar como coelhos. Basear as vantagens da imigração nesta linha argumentativa, e ter uma visão liberal sobre a entrada de estrangeiros, é um oportunismo indecente. É indecente, por um lado, porque instrumentaliza os imigrantes: abrimos as portas porque precisamos deles. E daqui decorre a segunda camada de indecência, que atropela as responsabilidades históricas de Portugal: das entrelinhas percebe-se que se dominasse esta abordagem utilitarista, não seríamos generosos com os imigrantes. Eis o lema: imigrantes, sejam bem-vindos porque precisamos de vós. Caso contrário, não vos queríamos por cá. Esta é a forma errada de tratar a imigração.
A responsabilidade histórica projeta-se do passado para o presente. Portugal tem muita responsabilidade histórica pelo peso que assumiu na História da colonização. Não entro no debate sobre a responsabilidade criminal dos descobridores portugueses. É uma matéria sensível, e terreno propício ao contributo de historiadores. E é um tema arregimentado por visões heterodoxas que ambicionam um revisionismo histórico para condenar Portugal no presente por atrocidades humanas e materiais cometidas no passado, semeando ressentimentos. Invoco a responsabilidade histórica como exigência especial do país quando se pensa no tratamento dispensado aos imigrantes que nos procuram. É por termos sido protagonistas das descobertas e da colonização que sobre nós impende uma responsabilidade aumentada. Trata-se de uma exigência que se situa ao nível do direito humanitário que, em tese, se desliga de contextualizações como a acima mencionada. É um direito, e um dever, básicos. É um dever que se abate sobre os países que podem acolher imigrantes e, desse modo, contribuir para que essas pessoas possam ter vidas condignas. Deve ser a prioridade dos Estados de acolhimento dos imigrantes. As vantagens socioeconómicas são um ganho colateral, não a prioridade que norteia a política de imigração.
Devia ser dispensável fornecer argumentos de outra ordem – cosmopolitas – para defender a imigração, onde quer que seja. O medo do outro é a prova máxima de ignorância. A desconfiança em que medra diz muito dos que desconfiam – aprendi que quem muito desconfia não é de confiar. O muito que temos a aprender com o outro e como o outro pode assimilar traços da sociedade que o acolhe devia ser o pressuposto da imigração. Porque podemos conviver respeitando as diferenças e aprendendo com elas. Porque uma idiossincrasia não é violentada quando o tecido social se torna heterogéneo, podendo dessa heterogeneidade resultar a reinvenção da idiossincrasia (desde que seja consentida e emirja das relações sociais). E podíamos deixar os soezes, que ainda acreditam num passado que já não existe, a falar sozinhos quando a personificação do medo irracional dos imigrantes berra aos nossos ouvidos.
Ter uma posição construtiva sobre a imigração não pode partir de dentro para fora, não se pode basear na condição de os imigrantes serem úteis para o país que os acolhe. Quase sempre são pessoas que fogem ora da miséria, ora da guerra, ora de perseguições de variada ordem que põem em causa a sua sobrevivência. Estes são valores que devem preceder os valores meramente socioeconómicos. Esses valores integram-se na responsabilidade histórica indeclinável que pesa sobre os escombros da História de Portugal.
Pôr em sal, o corpo curvado: assim é a serventia da noite, a chave que encerra o dia que parecia não ter fim. Mas o fim do dia foi consumado. Com a simplicidade de anotar, no compêndio das satisfações interiores, que mais um dia tinha sido saldado. Esta devia ser a medida da ambição permitida.
Não é por falta de soldados que a empreitada foi desviada do seu curso. Para os devidos efeitos, os exércitos, por mais numerosos que sejam, são indiferentes à colheita das vidas. A rosa legada pelo dia, somos nós que temos de a encontrar. Os provérbios não contam. Os sinédrios são congeminações que disfarçam a inapelável propensão das pessoas para se desentenderem. Se não for dada caução ao princípio geral do desentendimento, e se as pessoas não o acolherem como a liberdade do desacordo como esteio da sua própria liberdade, ficam limitadas pela babugem que é apenas uma amostra do que os dias têm para oferecer.
Talvez a imagem das vidas que se entrecruzam, firmadas no conhecimento ou como exibições de anonimato, seja equivalente à representação de um icebergue. A parte submersa é muito maior do que a parte visível. E a temperatura glacial assemelha-se à letargia que coloniza as vidas que olham para diante com medo do passado de que procedem. Desvivemos muito mais do que vivemos.
Somos vítimas dos martelos pneumáticos que cicatrizam a modernidade. Este é o anátema consumado que desfaz as costuras das vidas quando são perfiladas no seu objeto potencial: vivemos sempre em modernidade, e assim tem sido desde que os tempos ganharam presença nos dicionários. É tanta a sede de modernidade, e tão grande a necessidade de nos distinguirmos dos vários pretéritos, que acabamos reféns de um verniz acidental. A modernidade é o vento que não conseguimos prender com os dedos. Distraídos, os dedos esquecem-se de fabricar o futuro. Acabamos por ser um acaso do futuro.
Entretanto, as vidas passam a correr. Presos aos detalhes que nos anestesiam, seguimos fragilmente amparados pela babugem que se transforma num (ainda mais frágil) alicerce. À espera da menor convulsão para nos despenharmos. Pois a rosa legada pelo dia, somos nós que temos de a alimentar.
Tudo vai mudar, a partir do próximo Natal. A mudança insinuar-se-á, discreta mas irrecusável, mas contundente e à prova de bala. As ressonâncias de antanho, que evocam um patriarcado disforme e soez, mantendo à superfície nomes atávicos que perpetuam um passado que se quer esconjurado, vão ser dissolvidas por decreto e sem consulta à hierarquia eclesiástica.
O Pai Natal vai ser deposto. Como não se pode mudar tudo de uma vez – a existência de uma figura natalícia, muito embora diminua, com a sua carga pagã, o empenho religioso das festividades, constitui um avanço na senda do progressismo, mas não é a etapa final –, o Pai Natal será substituído pela Mãe Natal. É o primeiro passo para o “empoderamento” das mulheres que continua a ser adiado atrás do disfarce das proclamações vazias que apenas mantêm a supremacia dos homens. Atrás virá, com umas décadas de preparação, o destino (por ora inconfessável) da extinção do Natal como meta intermédia de dissolução do capitalismo. O novo homem novo, prenhe de justiça e imune à usura dos capitalistas, assim o obriga.
A Mãe Natal será um rosto não ancião, desfazendo um anátema estabelecido: o Pai Natal é uma personagem envelhecida. A assimetria geracional tem de ser corrigida, sob pena de os mais jovens serem condenados a adiar as suas vidas, quando os mais velhos, já reformados ao cabo de uma vida profissional, continuam a açambarcar o papel de Pai Natal. O progressismo não pactua, não pode pactuar, com estas desigualdades, ou não será progressismo.
Outra mudança alinhavada é na gastronomia associada à época natalícia. O nome “bolo-rei” será banido. A monarquia foi destronada há mais de cem anos, não é aceitável que o bolo mantenha ligação com a figura de um monarca que não existe. O novo nome será o do presidente da república em exercício: bolo-Marcelo, a que se seguirá, eventualmente, bolo-Almirante.
(Aproveitando a oportunidade e os ganhos de contexto, será feita campanha, a nível internacional, para mudar no xadrez os nomes das peças do rei e da rainha, apelando ao anacronismo da monarquia, uma peça museológica no palco mundial.)
Por fim, a doçaria conventual que usar nomenclatura atávica, seja pela ligação a figuras da nobreza (D. Rodrigo), ou por evocar figuras do clero (Travesseiros de Santa Clara), terá de ser rebatizada (salvo seja). O princípio do Estado laico e o princípio da igualdade dos homens, sem estamentos ou castas reconhecidas por lei, o obrigam. Só então o Natal terá cumprido a sua função ao serviço do progressismo.
“Preço médio das casas já ultrapassa os 300 mil euros” (Público); “da aviação à recolha do lixo, há 18 greves anunciadas até ao final do ano” (Diário de Notícias); assaltantes de Valença suspeitos de 23 assaltos a ourivesarias” (Jornal de Notícias); “para Trump, compra da Gronelândia é uma prioridade” (ionline); “IGAI abre um processo administrativo sobre a operação da PSP no Martim Moniz” (Expresso); “naufrágio no Mediterrâneo: dois russos desaparecidos” (Observador); “Mercadona aumenta salários em 8,5%” (O Jornal Económico); “Japão e EUA acusam norte-coreanos de roubar 300 milhões de euros em criptomoedas” (Negócios); “Arcebispo de Braga exonera administração de um dos melhores colégios do país” (Correio da Manhã); “acompanhe aqui a guerra na Ucrânia” (Notícias ao Minuto); “rusga no Martim Moniz. Aguiar Branco iliba Governo de qualquer responsabilidade” (RTP); “como vai estar o tempo neste Natal?” (SIC); “’Manuel’ sofre de Christmas blues e não está sozinho. Afinal, porque é que o Natal provoca sofrimento a tanta gente?” (IOL); “vacinação contra a gripe bate recorde de adesão das pessoas com 85 anos e mais” (Lusa); explosão em fábrica de munições turca faz pelo menos 12 mortos. Eventual sabotagem excluída” (TSF); “o preço dos produtos determina a nossa alimentação?” (Antena 1); “pobreza energética. Portugal é o país da Europa com mais queixas” (Rádio Renascença); “vai às compras de Natal? Cuidado, comprar por impulso pode ser um alerta de transtorno” (Sábado); “Xi Jinping elogia Macau nas cerimónias do 25º [sic] aniversário do retorno à China” (Sol); “2024, o ano das mudanças radicais” (Visão); “por ti, Portugal, eu juro” (Divergente); “as pessoas só pensam no trabalho” (Jornal Mapa); “o Inverno Demográfico da Finisterra Lusitana” (O Diabo); “PCP insiste em salário mínimo nacional de 1000 euros já em janeiro” (Avante); “noite do Mercado do Funchal gerou 14,6 toneladas de lixo” (Diário de Notícias da Madeira); “ASAE apreende 661 brinquedos por incumprimento das regras de segurança” (Açoriano Oriental); “caças F-16 vão sobrevoar céus de Portugal no tradicional voo de Natal (Diário de Trás-os-Montes)”.
E foi apenas a tiragem nacional. Quem arrisca a fazer um resumo deste resumo?
Uma torrente, imparável, insaciável, que se alimenta do nosso desejo de saber, de estar por dentro da História enquanto ela se faz de sucessivos presentes, e depois sentimos que estamos cercados por um sôfrego caudal de informação que nos consome as veias, que nos ateia o sangue numa perene insatisfação pelo estado do mundo, como um viveiro de sensações que inflaciona a angústia. Como se uma avalanche irrompesse, galopando pela montanha abaixo sem que nós, suas testemunhas diretas, pudéssemos travar a sua marcha.
É uma sensação paradoxal: não vivemos sem informação (acreditamos, reféns de, possivelmente, um preconceito) e depois somos torpedeados incessantemente pela informação que nos assola a uma velocidade estrelar, numa altura em que a dependência é tal que desviar o manancial combina com uma doença de sinal contrário: a escassez, a caminho da ausência, contrasta com a abundância nociva de informação, sem que saibamos estar a não ser numa das extremidades.
A lucidez pode emparelhar com o desejo de ausência, forjando um desligar total da matéria-prima e dos meios que a trazem – como se fosse possível a uma pessoa informada depressa cair na trincheira oposta e fingir (porque um fingimento acaba por ser) que está alheia ao que a envolve, como se fizesse de conta que os cinco sentidos foram propositadamente desligados da corrente. Um estado comatoso, intencional, para separar a pessoa do mundo, levando-a a crer que paira sobre o mundo num estatuto de indiferença ao mundo. Mas é apenas uma anestesia.
Não passando de um fingimento mal apurado, a negação da anestesia como recurso que falsifica a ligação com a realidade exterior é a ignição para o irrecusável saber do presente. O remoinho dos acontecimentos é o cimento da clepsidra de tempos presentes que alimenta o desdobramento do mundo em múltiplas camadas. Receando a ignorância que se abate como anátema, como se a pessoa se demitisse de ser cidadã, abrem-se copiosas janelas, as visíveis e outras que se descobrem mais tarde, por onde entra o caudal da informação. É uma avalanche que se abate sobre nós, que nos sufoca e deixa desinformados pelo ónus de tanta informação.
Com esta velocidade a que o tempo lega acontecimentos, precisávamos de ter cinco vidas simultâneas para não sermos ultrapassados pelo mundo à espera de reconhecimento. Quando assim nos comportamos, somos nós que queremos reconhecimento do mundo que cai sobre nós. De tanto queremos saber do mundo no seu estado presente, é o mundo que sabe coisas de mais acerca de nós. E esta assimetria nunca será corrigida, a menos que nos refugiemos no exílio do tempo presente.
Foges pela silhueta do rio, enquanto observas o riso extático que acompanha a decadência à tua volta. A decadência é o lugar impróprio para uma pertença, murmuras. Não trazes o arnês – nunca trazes o arnês, essa audácia já trouxe dissabores no passado, mas não aprendes. Deixas a margem do rio e começas a subir. O chão pedregoso acentua a estrénua subida até à cumeada onde julgas aferir o exílio necessário. Dizes: não é do mundo que fujo, que há mundos plurais e não sei ao certo a qual deles pertenço. Sobrepõem-se algumas interrogações: temos – tenho – de definir uma pertença? Não comprometemos o nosso ser se lhe anteceder uma pertença como axioma? A pertença não é o sintoma máximo da decadência?
Atravessas um povoado antigo, desabitado. O lugar fantasma transformou-se num museu de ruínas. Há um certo sortilégio no silêncio quase absoluto. Se acreditasses em espíritos que vagueiam entre as pedras das casas tomadas pela corrosão do abandono, dirias que por ali passeiam vultos dos moradores do povoado. Não como fantasmas; o otimismo efémero, talvez circunstancialmente oportunista, segreda que os vultos apenas querem ser cicerones, não tencionam amedrontar os visitantes. Quantas vidas foram vividas e depois extintas, de quantas são testemunhas as paredes em escombros? Não é neste lugar medonho que queres fixar o exílio sabático.
Agora a subida é ainda mais inclinada. Já consegues ver, entre os traços de neblina matinal que perduram teimosamente, a sucessão de povoações que se espalham desordenadamente pela encosta e ao longo da planície, como serpenteiam ao longo do caudal do rio (estes aglomerados também são oportunistas). À medida que continuas a subir, estás mais próximo do céu e os vestígios da paisagem distante tornam-se imprecisos. Por um instante, estás arrependido de não ter trazido o arnês.
Os primeiros sinais de neve aparecem, primeiro nos lugares que não se expõem ao sol, mais acima como mantas extensas que ocupam pedaços de chão. Nos lugares não abrigados do sol, a água escorre da neve acamada em gotas generosas. Já o suficiente para alimentar pequenos cursos de água que correm ao longo da berma improvisada. Aqui e ali, esses cursos de água transbordam da camisa-de-forças em que se transforma a berma, atravessam o caminho de terra e cavam sulcos desiguais. É o degelo que redesenha a paisagem, afoitando-se na terra dura e compacta do caminho para rasgar os sulcos, ora superficiais, ora mais fundos, que transfiguram o caminho por onde segues num caminho cheio de irregularidades.
Se não fosse o degelo, a tua vida (também) não tinha sido como foi.
Às vezes, apetecia ir atrás do vento. Nem que parecesse tonto. Como se fosse errante e tivesse demitido qualquer possibilidade de planos – o vento seria o GPS efémero, o doutrinador de um destino ao acaso.
Outras vezes, dava-me para não especular. Talvez dissessem que levitar o corpo no meio do aluvião de fantasias não é um delito, que quase todos os poetas vivem pelo menos dez andares acima do solo, mais perto da lua. Talvez dissessem que não especular é um punhal assestado na criatividade e que, assim como assim, o mundo (aquele a que chamam a realidade) é tão execrável que contrabando não será se vivermos pelo menos meia dúzia de andares acima do rés-do-chão.
Por isso, cumpria os desprocedimentos e dedicava-me a delirar. Por exemplo: ontem um cão terá sido avistado a ostentar um colar de pérolas. Muito embora o saber popular advirta que não é boa política entregar pérolas a porcos, o prontuário é omisso quanto à possibilidade de um canídeo envergar um colar de pérolas. No caso do porco, é compreensível a precaução popular: dos suínos se diz que deglutem tudo o que lhes aparecer no caminho e as pérolas não são como as trufas que eles fuçam com diligência (muito embora as trufas estejam ao preço das melhores pérolas de viveiro).
Ou, por exemplo, o rapaz pós-cueiros que já sabia de cor os nomes dos reis e dos presidentes da república mesmo antes de saber ler. Os progenitores ostentavam a criança com orgulho, como se a proeza lhes fosse creditada. A meio da exibição, apareceu um desmancha-prazeres. Questionou a criança sobre uma matéria banal (o número de habitantes do país), seguindo-se uma pergunta alternativa para o caso de falhar a anterior (o que diz a tabuada à multiplicação de seis por oito). A criança disse nada e o desmancha-prazeres atirou-se, com indisfarçável cinismo, ao diletantismo dos pais.
Na assistência, um castiço tentava levar à prática o desafio de comer um gelado com a testa. Teimoso, e incapaz de reconhecer que só os calvos podem ensaiar a demanda, apresentou-se (nome e ocupação: guarda-rios nas horas vagas) sem conseguir esconder o cabelo besuntado pelo gelado. Aos costumes disse nada, enquanto o gelado de baunilha pingava do cabelo, dando a entender que não estava por dentro da pendência entre os pais do falso prodígio e o desmancha-prazeres que acabara de desmascarar a insolência dos progenitores do rapaz – já ia a altercação a caminho de uma medição de força física entre os dois varões, pois então. Limitou-se a proclamar, com a dicção de um radialista, as sílabas devidamente entoadas para nenhuma ficar órfã, que amanhã era dia de estreias no cinema e que estava ansioso por saber os filmes a estrear.
Nascituras, as palavras que se deitam na folha em branco; ou a virginal feição da folha que é desarmada quando a tinta negra das palavras percutidas começa a disfarçar a alvura. A folha em branco nunca sabe como são as palavras que nela procuram morada. Fica à mercê de uma vontade singular, de um estado de alma, de um voto de protesto, de um pedido, de uma história, de uma descrição, da representação de uma imagem decantada pelo olhar, do mundo que se revela a partir de uma viagem, de um poema, das palavras ora assintomáticas ora significativas, das palavras como sargaço apanhado ao acaso.
A partir de uma folha em branco, e enquanto olho para ela, sinto a mesma linhagem inaugural da folha. As palavras escritas têm um passado, não colidem com as palavras nascituras. Elas acompanham as virtudes e os deméritos, as angústias e as expressões de alegria, os sobressaltos e a maresia que pressente a acalmia, a noite que se recolhe nas fronteiras do estuário ou o dia que, como a folha em branco, encontra na madrugada a sua inauguração. A partir da folha em branco tudo é possível enquanto as palavras não se fazem ao caminho e, debruadas a tinta negra, começam a romper os poros da folha em branco. As palavras recebem o incentivo inaugural da página por estrear. São, como a página em branco, inaugurais.
Depois, o estatuto muda. A folha, dir-se-ia, contaminada pelas palavras que depõem o seu estatuto virginal, que por vezes não são contaminação; são o bálsamo que enriquecem a folha. Ela serve de cais para as letras que sobem pelo braço até ordenarem a coreografia da mão que as verte em forma de palavras. Convertendo fragmentos de pensamento em texto que o modera.
Às vezes, não é preciso uma folha em branco: um pedaço de papel arrancado a uma toalha de restaurante, um recanto de um jornal, o verso de um bilhete de comboio, o avesso de um documento fotocopiado chegam para que, puídos, sejam remoçados através das palavras que lhes são apostas. Mas é na folha em branco que se opera o sortilégio da escrita. Que se resgata a folha de um vazio sepulcral: a folha em branco convida à articulação de palavras que servem um propósito e são as palavras que emprestam sentido à folha em branco, depois de deixar de o ser.
Lido do avesso: as costuras ficam dentro do labirinto, não se compõem enquanto for noturno o palco a que sobem. Avezam-se as coisas outras no penhor que se despenha no desfiladeiro. Não é o precipício que intimida. É a revelação de um avesso. O avesso costuma ser avesso à notoriedade. E nós não conhecemos o avesso.
Lido com o avesso: como uma gramática reinventada que espera pelo seu tempo, antes que se desfigure no novo sentido das palavras. Podem conter entrelinhas, sentidos empossados, depois de relidas as palavras por dentro do que eram sentidos ocultos. A tradição dos sentidos restaurados só é possível depois de lidas as palavras do avesso. Esta é a lida projetada.
Não são perenes, os estados de alma. Oxalá a matriz do pensamento não fosse rígida e não nos envergonhasse a humildade de reconhecer inflexões e retrocessos, reinterpretações e indecisões. Somos um viveiro de diferenças. Diferimos uns dos outros. E na linha descontínua do tempo diferimos em diferentes momentos, como se o tempo cobrisse diferentes versões do eu. A capacidade para sermos procuradores de um avesso interior é um dom que convoca a lucidez exigente. Convoca alguma audácia.
Na passerelle entre os sentidos ambíguos, descosemos as palavras como se estivéssemos a separá-las em gomos. Vamos ao avesso da matéria formulada, atiramos as palavras contra as convenções, aventuramo-nos, se preciso for, nas ambiguidades subliminares, porque queremos devastar o seu sentido orgânico. Ao vestirmos um avesso às palavras, tornamo-las inorgânicas. Processamos a sua riqueza escondida atrás da cortina baça.
É lido do avesso para ser dito do avesso. Um compasso de espera no uso espartano do tempo, enquanto se avivam as hipóteses de reinvenção das palavras e dos estados de alma. Não somos mecenas da adulteração nem espectadores passivos da decadência. Sondamos as possibilidades. Abrimos janelas que estavam fechadas há tempo sem memória. Abrimos outras que descobrimos ao caminhar no fino fio sobre o precipício, tomados por uma anestesia que só caduca quando os pés deixarem de tremer.
À partida, desafiamos os sentidos estabelecidos, o entendimento dos estados de alma, os códigos zelosamente obedecidos. À chegada, não sabemos onde estamos. Esse é o sortilégio dos avessos.
Não foi ele que juntou ao seu nome a alcunha de rufia. Foi responsabilidade dos outros. Se lhes fosse perguntado, do rufia diriam que é legítima a alcunha porque ele boicota a concórdia, tem instintos misantropos e não concorre para o bem-comum. Diriam, ainda, que o rufia é de trato descortês, verte boçalidade a rodos, assume uma desconfiança sistemática no próximo e no que não é próximo, é alguém em quem não se pode confiar nem quando a assinatura consta de um contrato. Um rebelde sem causa conhecida a não ser a dissidência sistemática e provocadora.
A provocação como método é um savoir faire do rufia. Tem o condão de incomodar até os que têm sangue réptil e não estão acostumados ao desassossego causado pelos outros. Desenvolveu um intrínseco espírito de contradição, capitalizando as divergências em proveito próprio. O rufia não admite em público, mas os que o conhecem superficialmente (não há quem o conheça para além do verniz embotado) suspeitam que amiúdes vezes o rufia finge defender o contrário do que defende só para ativar o espírito de contradição. Detesta que os outros concordem com ele. E se, num afã de contradições sucessivas, acaba por se contradizer, não é incómodo que o leve a dar parte de fraco. Já o ouviram a dizer, para se desembaraçar de uma contradição estridente, que tinha mudado de ideias e era assunto encerrado.
As pessoas evitam o rufia. Como ele não evita as altercações, até as que possam envolver violência, os que o conhecem pela rama não se importam que ele passe à frente nas filas, que não apanhe os dejetos que o casal de cães rafeiros deixa no passeio, que grite com um turista desprevenido que desconhece a sua má rês, que seja inconveniente com senhoras numa exibição de misoginia incorrigível, que suba a voz em pleitos ao ser acusado de ser desagradável, e que arregace as mangas e proponha, a oponentes desavisados, que a pendência seja resolvida à custa do bombardear dos punhos atiçados em pose de boxeur.
O que ninguém conhece é o avesso do rufia. A bondade escondida, a filantropia com os pobres, as causas que subscreve sob anonimato, a imensa biblioteca que guarda num quarto propositadamente reconvertido, o esmero gastronómico de que só ele tem proveito, o muito mundo que calcorreou sem disso fazer alarde, a surpreendente fé.
Já que tanto insistem em apelidá-lo de rufia, ele faz questão de honrar, até aos seus terminais dias, o cognome. As pessoas nunca entenderam esta generosidade do rufia.
Removia os pesares distantes que patrulhavam a porta. Não eram essas as bênçãos de que precisava. Afugentamos a angústia no perímetro dos outros, esquecendo que a filantropia começa em nós. As feridas não se querem abertas. Devemos o cuidado das cicatrizes enquanto é tempo. Enquanto há tempo.
Às vezes parece que a memória conspira, intercedendo a favor de memórias avivadas que deviam continuar suspensas. O presente é açambarcado pelo mergulho no passado; essa é uma hipoteca todavia temporária. Mas todo o tempo passado no resgate dessas memórias é tempo roubado. Tempo presente que fica à porta, desperdiçado no galanteio de reminiscências que se autonomizam da vontade. Se fosse apenas pela lucidez, a vontade conseguia resistir ao apelo insondável que reabilita memórias que só deviam pertencer ao olvido.
Reivindiquei a teoria das portas fechadas. Se as portas se entreabrem quando franqueiam a existência de algo que reabilita a existência, ou quando supõem um fôlego que anima a vida, elas devem ser fechadas se impedirem a entrada de elementos conspirativos que desassosseguem as almas. As portas devem ser seletivamente fechadas. Como devem ser metodicamente abertas. Consoante as circunstâncias e o juízo que delas seja feito.
A pendência fica subordinada à lucidez; melhor: aos critérios usados para a lucidez não ser um disfarce, tornando-se lucidez legítima, com mecanismos de auto-verificação, para não ser atraiçoada por uma invisível adulteração. O pior é confiarmos à lucidez aquilo que ela não é capaz de garantir por não ser lucidez legítima. Devemos ser evitar a simples subcontratação da vontade na lucidez, para não sermos reféns de uma lucidez fingida que desacautela um juízo acertado.
Mas não estamos a salvo da arbitrariedade. Da lucidez ao acaso, ora matéria-prima que nos ajuda a impedir a emergência das memórias desaconselhadas, ora uma conspiração industriada por vultos que cercam a memória e a sublevam na hipoteca do tempo presente. A lucidez atraiçoa-nos quando deixa vir à superfície as memórias que a lucidez autenticamente lúcida saberia reprimir. Ou a lucidez, tal com o nós, é incapaz de se dotar da perfeição necessária para fazer a triagem, e também tem direito às suas distrações.
O tempo é uma ditadura. Rígida e austera, não oferece segundas hipóteses. Não somos como os gatos, que beneficiam de sete vidas. À medida que o corpo se move no fio do tempo, amanhece uma amnésia do passado. O esquecimento é um tributo à imobilidade dos corpos, como se não perdessem capacidades, imunes à decadência.
Corríamos o dia de lés-a-lés – metêramos na cabeça que aquele era um dia de direta, a cama dispensou os serviços mínimos do sono. E dizíamos: não queremos a cerimónia ateada pelas indulgências que o remorso apura. Não queremos o arrependimento. Fazemos de tudo por o dispensar. Ele há muita gente que já morreu e ainda não deu conta. Morreu e ainda não fizeram as exéquias. Nós somos tutelados pelo amor, não desistimos da vida porque desistiríamos do amor. O amor é a maior prova de vida.
Cedemos ao amante uma parte que o preenche. Buscamos no amante um rumorejo que se completa de poesia, invadindo o corpo por dentro, tingindo o sangue com o sangue quimérico do amante. Não queremos deixar de ser os amantes-mecenas que, escondidos no seu reduto, guardam segredos sortílegos. Ao contrário dos vivos-mortos, os amantes prosseguem a sua vida radiosa. Embebem-se de vida, torcem o braço à apatia convocada pela iteração do tempo, celebram o festim na coregrafia onde os corpos são combustão, na cumplicidade das almas, na troca espontânea de olhares, no idioma privativo que dispensa palavras.
Os amantes exorcizam o futuro que anoitece nas margens do enigma. Não fazem juras, não querem a paga em juros que depois não podem cumprir. Combinam as mãos entrelaçadas com o riso abundante de quem descobre todos os dias um quinhão do mundo por descobrir. São reféns da vida: não descuidam a morte, tão extasiante é a fogueira em que se move a vida.
A extinção pode conspirar contra as vidas merecedoras, mas os amantes sabem, enquanto procuradores da sobrevivência, que haverá um amanhã a romper com o acervo dos dias que compõem a vida. Não capitulam, hesitam quando têm de hesitar, mas não se abandonam enquanto amantes num altar que trespassa a existência. E dizem: oxalá o tempo fosse devolvido à procedência para fazermos tudo igual; para voltarmos a ser os amantes que vestem a tocha que tece os gramas de luz de que se faz o sol inteiro.
O fumeiro exige tempo e um fumo condizente. Dizem que também exige frio, como se o frio fosse responsável pela produção de fumo alimentado pelas fogueiras que, na ausência do frio, não são ateadas – o que não passa de um mito, porque as fogueiras são sempre ateadas para a produção do fumeiro. O fumeiro também exige paciência: quem antecipar a colheita percebe que a qualidade do fumeiro fica aquém do esperado.
A razão devia ser fumada, no sentido gastronómico do termo. Sujeita a uma cura de tempo, para não soçobrar no destempo e na superficialidade. O grande problema da razão – para além de haver muita gente, gente de mais, a reclamá-la como seu património e com exclusão das outras partes – é de nascer prematura. Processada na vertigem do momento, estorva a lucidez. O pior é que as pessoas formulam uma razão, a sua razão, e não estão dispostas (ou preparadas) para recuar. Não refazem a razão, nem admitem que foi uma consideração precipitada e que a razão assiste a outro.
(Sem entrar na grande fraqueza da razão, quando os seus tutores a alindam com o manto de objetividade, pois a razão é subjetiva. Contém a sua negação, a menos que se aceite a sua relativização: a razão é aquela, porque partiu de certos pressupostos e se alicerçou num raciocínio congruente. As conclusões em que se embasa a razão coroam este processo. Uma razão assim delimitada é válida para uma pessoa, ou para um grupo que se revê nessa contextualização da razão.)
Agora que o tempo é voraz, e tudo se empresta à efemeridade, ainda menos se justifica a razão instantânea. Não tem tempo para amadurecer, como o fumeiro que precisa de um demorado estágio sob os efeitos do fumo. A razão espontânea pode ser um estado de alma, uma reação intempestiva, um enamoramento com as aparências, o desvio pelo acessório enquanto o essencial fica a marinar na lonjura do tempo, um rumor que depressa se extingue.
A razão assim congeminada inflaciona-se, detém-se na epiderme, incapaz de mergulhar no vagar do tempo que é exigível para que a razão – uma, tão subjetiva, razão – se ofereça como válida e como proposta de entendimento de um fenómeno ou de um comportamento. Mas sempre como proposta, sem ambicionar a ser definitiva. A razão não é como os víveres que só podem ser consumidos se estiverem frescos. Uma razão em estado bruto fica a léguas de ser assimilada. A razão exige um processo de maturação. Como o fumeiro, deve ser exposta à maturidade do tempo e ao fumo a que só conseguem reagir os que são pacientes.
Os intermináveis segundos em que os dados atirados não caem na mesa do jogo estão na inversa proporção da velocidade da queda no precipício.
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O narrador não é imparcial – protestava a personagem, interrompendo a peça. O narrador, cabisbaixo, confirmava com o seu silêncio o voto de protesto (que ficou lavrado na ata dos espectadores).
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Roça o desagradável, a maneira como vossa excelência se me dirige. Tê-lo-ei em conta quando for preciso ajustarmos contas, dizia o deputado ao deputado de um partido rival. À noite, foram vistos em desamena boémia pelos bares limítrofes à Assembleia.
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Que te seja benigno o vento que amanheceu. Usa-o para esfoliares as ideias, que estão carregadas de podridão. Não me peças o favor de dizer que parte das ideias precisas de reciclar. A resposta é tão fácil.
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Tinha por cobertor a noite singular, uma desmemória criteriosa, o refúgio num labirinto escanção, a porta puída que não deixava de ter serventia, as palavras atapetadas que ficavam pendidas no canto da boca, o beijo rastejante prolongando o afeto, a matéria incandescente que sufragava o gelo das mãos, a embaixada do dia.
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A razia das almas cruas não olha a nomes. Está tudo tão devastado que não sobra esperança. Não sobra uma ideia de tempo. Há quem ande no meio dos escombros. Procura uma janela, mesmo que esteja estropiada. Não acredita que estejamos colonizados pelos párias.
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Rodavam as cabeças decepadas por ausência de pensamento. Tinham sido avisadas com tempo. Preferiram a indiferença, o desfardo de ter alguém a pensar por eles.
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Não se encostavam a outras pessoas, nem quando os transportes públicos iam apinhados, ou nas escadas rolantes à saída da estação central em hora de ponta. A distância exigida era (mesmo) higiénica.
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Um contrato-promessa assinado sem solenidade determinava que os envolvidos seriam mecenas da alacridade, promoveriam a desconfiança para ninguém ter vantagem sobre os demais, e diriam de si serem pessoas boçais porque a cortesia ficou sepultada no século XIX. Oxalá ninguém respeite o contrato-promessa.
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Não digas palavras proscritas: contrabando, desembargo, ressentimento, pureza, iracundo, talvez mentira. Substitui-as por palavras que te “sobem ilegíveis à boca” e dá-lhes moldura, a procuração da sua perenidade.
Na peça de teatro “Homens Hediondos”, de David Foster Wallace, o ator que protagoniza o monólogo teoriza sobre dois arquétipos de homem: o porco básico e o grande amante. O porco básico serve-se sexualmente das mulheres, que não passam de objetos para o seu prazer egoísta. O maior amante é o que centra todo o seu egoísmo na mulher, vinculando-a ao prazer de que o maior amante se confessa serviçal. São duas e opostas maneiras de um homem exteriorizar egoísmo no ato sexual. No primeiro caso, porque a mulher é desprezada no altar do prazer egoísta do porco básico. No segundo caso, como tudo é encenado pelo maior amante para colocar a mulher no centro do palco dos prazeres carnais, reprimindo o seu próprio prazer, não é desprendimento nem altruísmo a favor da mulher: é uma forma de inverter o egoísmo e de carregar na mulher a assimetria de um ato em que os dois deviam ter prazer.
A evocação da peça de teatro vem a propósito da notícia da condenação do neonazi Mário Machado por ter incentivado à violação de mulheres de esquerda. A violação transcende o mero ato sexual, pois a violência usada e a subjugação da mulher à vontade do violador não correspondem à natureza do ato bilateral quando o sexo é consensual. Mas uma violação também tem a componente sexual. Não se consegue separar uma violação da sua natureza sexual.
Parto deste pressuposto para a análise dos Machados do couto lusitano, esses machos alfa que ainda poluem a nossa existência. O que inquieta é haver alguém que jura sexo (não consentido) como forma de punição de quem deles diverge. É sexo como castigo, não sexo como prazer – eventualmente (e já se perceberá o porquê do advérbio condicional) –, não sexo como prazer a (pelo menos) dois. Quem se situa neste palco, considera legítimo forçar uma mulher, obrigando-a ao ato sexual para a castigar e humilhar, afirmando a posição de força do homem que recorre à violação. É um sexo punitivo e primitivo que subverte a ideia de sexo como consequência do consentimento a (pelo menos) dois, do sexo como sinalagma, sem violentar a vontade de um dos envolvidos.
Usar o sexo como arsenal de castigo é excluir o prazer que faz parte do sexo. Se for para castigar uma mulher de que se diverge, não só é patológico e criminoso como é uma contradição de termos: castiga-se com o que teoricamente dá prazer. Quem dá prazer não castiga. Eis a teia emaranhada de contradições em que se afundam os Machados do couto lusitano. Confere com a sua linhagem de bárbaros.
Estes machos alfa, que atropelam a vontade de uma mulher punindo-a com sexo à força, devem ser aqueles que não sabem o que é o sexo, a não ser na sua muito egoísta conceção dos prazeres carnais que não saem dos limites do seu eu. Descontando o mal que é feito às mulheres violadas (ou com juras de violação), não haverá grande diferença entre um espécime destes e o onanista que se refugia no auto-prazer por incapacidade de se relacionar na intimidade com outros(a)s. Estes violadores por delito de ideologia nunca devem ter dado prazer a uma mulher. No seu íntimo, sentem-se frustrados por isso.
Os machos alfa não sabem o que é sexo. São misantropos sexuais – ou gente que abre as goelas, confundindo façanhas sexuais com um crime grotesco, gente que tem uma conceção pequenina e mesquinha do que é o sexo. Tocando na ferida que prezam em manter escondida, são autores de um sexo pequenino (não confundir com um pequeno sexo). São pior do que os porcos básicos. São doentes mentais, sem que possam ser declarados inimputáveis.
Por mais que hasteiem loas apenas auto-convincentes à sua desenvoltura sexual, são uns pobres incapazes que merecem ser denunciados enquanto eunucos sexuais (metaforicamente falando). Muito falam de si, e com garbo, sem haver quem corrobore o autoelogio. Vingam-se das suas fraquezas, idealizando a pose de imperadores a quem são servidas, à revelia da sua vontade e como corretivo, as mulheres sacrificiais a que não importa apurar a vontade.
São a casta máxima dos masculinos frustrados. No alargamento da dicotomia de David Foster Wallace a uma terceira categoria, seriam os eunucos do sexo.
Andam merencórias, as vidas mundanas que atravessam o fio do tempo como se trabalhassem para esquecer. Esquecem os sonhos que ficam por cumprir, para não serem reféns da angústia. Vivem por fora das suas vidas, carregando a melancolia. Uma decadência estrutural atravessa a sociedade: não são apenas os que vivem à míngua que sofrem, imersos na penumbra que é sinónimo do futuro, presas habituais da desesperança, o mal das vidas inditosas atravessa várias classes sociais.
Quando acordam é como se soubessem que o banho que se segue é um choque térmico: começa mais uma semana, começa mais um dia, e a impressão de rotina que os aprisiona toma conta do corpo, impede-os de fingir uma anestesia fingindo este estado de alma. As vidas são um arrastar de dias mergulhados nas cores baças de um dia repetitivo que não chega a ser soalheiro, por mais que o sol quase irrompa entre o marasmo do tempo e a apatia das pessoas.
Para compensar tamanhas asperezas, radialistas ungidos de boa disposição procuram convencer os ouvintes que não podem arrastar os seus pesados corpos pelo desfiladeiro do tempo. Exsudam boa disposição; Dizem, em abono de si mesmos, uma boa disposição contagiante. Servem talhadas de humor para as pessoas se livrarem dos rostos sisudos e esboçarem um sorriso. Um sorriso, uma conquista. Não pode existir intervalo na boa disposição; as pessoas devem forçar o braço à melancolia, derrotada pela corrente de pensamento positivo contra as nuvens negras que se abatam sobre o quotidiano.
Os radialistas matinais deviam receber um suplemento de salário pela irradiação de boa disposição. Mestres do fingimento, ensinam a audiência a fazer de conta que “tristezas não pagam dívidas” e outros lugares-comuns dilacerantes, em pura rima com uma pobre linhagem intelectual, um manual de procedimentos que enraíza a alegria irrecusável. Tanta e tão contagiante boa-disposição ordena a pose sorumbática. Apetece “des-rir”, vestir um rosto fechado, meter uma exceção na pose habitual para ser boçal com os embaixadores da boa-disposição, contestá-los. E apetece, por um momento, ser espião das vidas não reveladas destes arautos da boa-disposição só para confirmar a desconfiança de que tudo não passa de uma farsa. Tanta boa-disposição transbordante despacha o seu antídoto como criteriosa vacina contra as farsas sistemáticas a que somos convocados em nome de um faz-de-conta que nos isola do mundo sem máscaras. Mas o mundo é-nos servido nas máscaras que não são convidadas para o palco dos fingidores que ensinam a alegria como modo de vida.
Tanta boa disposição a esmo faz perguntar se gente tão continuamente bem-disposta não é o produto de uma farsa completa. Para que todos sejam, radialistas e audiência, produto de um fingimento atroz.
Um esticão no dia, pode ser que seja mais tarde o seu ocaso – ainda vamos a tempo do tempo magistral. Dizem que não se açambarcam os medos do alto de um precipício. As coisas hão de conter o seu oposto. Podemos ser audazes e somos apanhados na corrosão de tudo, como se um verme em forma de ferrugem avançasse, imparável, contra a inércia estabelecida. Mas, depois, sobram as vidas. Vidas que não se depõem no inverosímil estertor. Vidas que são vividas intensamente, sem que as outras vidas saibam disso. Vidas que insistem em ser dicionários da modéstia.
Vagamos a noite impronunciável. Ele há tantos vocábulos que nos obrigam a pedir ajuda ao dicionário – e tantos outros que ainda estão por descobrir. Agasalhamo-nos no frio por sabermos que as veias incandescentes nutrem a ebulição da carne. O frio devolve a sensibilidade ameada no olvido. Afinal, sentimos: sabemos, sem hipotecar o pensamento, sem doar os esteios de que somos fundamento. A noite não é imorredoira. E nós, não conspiramos contra os vultos desarrumados de gavetas empoeiradas.
A humidade da noite inflaciona a corrosão. Os elementos ficam à mostra, uma nudez inconsequente. Se não fosse pela matéria validada, o beneplácito estimado como caução legítima, seríamos a cidade que se entrega às vidas, que lhes devolve um genuíno sentido. Receamos que a corrosão esteja entranhada. A tinta escura herdada da noite sem aval estende-se na pele, disfarça-a de xisto.
Seja a corrosão: as vidas continuam pelo fio do tempo, não desanimam aos pés da corrosão. Não deixam que ela seja síndica do nosso haver. As cartas escritas pesam sobre as janelas entreabertas como se precisassem de respirar o ar puro que voluteia desde o mar. Elas são como dardos que engastam a carne exposta, uma anestesia sem modos que inaugura a estação do fingimento. Somos as vidas herdadas do passado com a atalaia da corrosão.
Não fugimos. Vamos entardecendo no vagar próprio que se escreve como prefácio da noite. Anotamos os sedimentos da corrosão que povoam a pele urdida. Somos nós; nós, sem os nós que a decadência começa a pear. Somos esta forma sumptuosamente aformoseada que adestra a decadência. Sem elixires, sem medonhos estertores que adejam sobre o fio do horizonte. De braço dado com a vertigem do tempo que ousamos abrandar.