Falava-se de desanexação: uma espécie de PDM ao contrário: os prédios devolutos seriam demolidos e os terrenos declarados impróprios para construção. O município era liderado por um esquerdista caviar que decretou guerra ao grande capital e, por tabela, aos construtores civis que fazem crescer as cidades ao alto e alastrar a mancha de betão armado. As terras resgatadas ao imobiliário teriam de ser convertidas em hortas urbanas. As hortas seriam distribuídas pelos cidadãos que se candidatassem. Ao fim de dois mandatos do progressista edil, uma conferência de imprensa para apresentar o relatório de atividades: o edil mostra dois mapas, o antes e o depois da assim cunhada “política das hortas extra”. A mancha verde a alastrar de ano para ano. De acordo com o edil: mais 30% de hortas desde que tomou conta da cidade. Um jornalista – avençado de um partido da oposição, de acordo com o autarca – pergunta se a política das “hortas extra” não é demagógica. O edil pede um esclarecimento ao amanuense. Anui: 30% de hortas a mais empurraram sabe-se lá quantos habitantes potenciais para fora da cidade. É mais gente a ter de usar transporte quando vem trabalhar para a cidade. Mais danos no meio ambiente. Conclui: o senhor presidente da câmara é um demagogo que não conta a história toda, omite a seu favor os detalhes que não lhe são favoráveis. O edil enrubesce de raiva. Em voz alterada, acusa o jornalista de estar a soldo “da direita” e dos interesses da construção civil. O jornalista protesta o uso da palavra para se defender. O presidente da câmara: “isto não é a assembleia municipal, nem o senhor é um deputado para pedir a defesa da honra”. A imprensa devia ser amestrada, para ser devidamente grata – descaiu-se o presidente, em murmúrio para o vereador delfim sentado à sua direita.
Cuidado com os bolores. Não são da estirpe de que é feita a penicilina. Os modernos déspotas, que só não se chamam déspotas porque vivem sob a tutela da democracia, estão de atalaia. Cuidam da nossa saúde. Proíbem a eito e regulamentam de outro modo, quanto proibir sai do raio de ação. Só vem para as bancas dos mercados o que passar no exigente crivo das credenciais devidas pelos cuidadores da saúde pública. Os fungos descontrolados podem ser perigosos para a saúde: ele há cogumelos mortalmente venenosos, queijos perigosamente apetitosos mas feitos de podridão, vinhos que adocicam à mercê de umas uvas quase podres e com bolores. E há o pão duro, que depressa ganha bolor. Proíba-se o pão duro para se pouparem idas desnecessárias às urgências dos hospitais de pessoas emaciadas e com desarranjos interiores. O pão duro passou o prazo de validade. Enrijeceu e pode ser danoso para a dentição dos loucos que se agarrarem a uma côdea de pau endurecido. Banir o pão duro e fora de prazo é, todavia, um golpe baixo contra a gastronomia tradicional: os melhores manuais gastronómicos recomendam o uso de pão muito seco para confecionar açordas. Os cuidadores da saúde pública andam distraídos. Deviam ter estendido a proibição às açordas. Porque uma açorda com pão fresco é um duplo desperdício: do fresco pão, que tem serventia melhor; e uma açorda à base de pão acabado de sair da padaria não cumpre os preceitos do preparado e perde qualidade. Ou então, as açordas são uma idiossincrasia e os habilitados tutores da nossa saúde desconhecem-nas. Temos direito a uma exceção. O pão duro está proibido pelos higienistas radicais. Mas podemos continuar a fazer açordas. Supõe-se, com o mesmo pão duro que foi declarado proibido.
Os otimistas cavalgam na sorte atendida. São irrepreensíveis no criterioso espelhar do sol radioso que esperam no porvir. São desmentidos por dissidentes que contestam as convenções e desafiam o lugar-comum do bom tempo que anda de braço dado com dias soalheiros. Dizem: está bom tempo quando chove. De acordo com esta dissidência, a sorte de uns é o azar de outros (para confirmar o anexim popular). Não é preciso esfacelar tanto a filosofia. Os provérbios arranjam uma métrica para serem imperiais – mas os provérbios são uma lei geral com o selo de aprovação popular. Os incorrigíveis otimistas aproveitam-se do dia soalheiro para carregar as pilhas de otimismo. Como se fossem os veraneantes que passam longas temporadas sob o sol abrasivo até ficarem com um bronzeado digno de estrelas de cinema. Contemplam o sol e ganham boa disposição. Atravessam o dia sob o efeito dos raios de sol para acreditarem que a existência diária não é uma tortura – como dão a entender quando os dias são repetitivamente plúmbeos, chuvosos e cheios de vento iracundo. Aproveitam o sol para extrair a matéria-prima da sorte. Amealham a sorte, porque não sabem se os dias de invernia se vão estabelecer por uma demorada temporada e, se for o caso, precisam de toda a sorte armazenada para a debitarem contra os amuos de infortúnio que vêm amparados no mau tempo. É uma concorrência feroz. Os seguidores do deus-sol competem por um quinhão de sol para desmatarem os baldios que os separam da sorte. O sol chega para todos – é dos poucos recursos que, contrariando os economistas habituais, não é escasso. A menos que esteja a chover e o sol tenha ficado escondido sob os auspícios de uma superfície frontal fria. Tiram à sorte o seu próprio quinhão da sorte. Depois, esperam.
A alma noturna desembaraça-se de fronteiras, voa sobre o mapa desenhado pelas mãos contumazes. Voa ainda mais alto, como se o vento tivesse degraus e as vozes desmaiassem na lonjura da terra. Assim se mantém, imperatriz, de atalaia ao mundo. Não sabe distinguir os limites que se encenam através de diligentes procuradores que dão voz aos medos comuns. À noite, as sombras açambarcam as delimitações, é como se todas as terras fossem contíguas e das fronteiras se perdesse rasto. À conta das asas imaginadas leva a patente do desassombro, dissolve os vultos errantes que ao acaso adoecem as vítimas prediletas. Quando atinge a altitude de cruzeiro, descansa, planando sobre os lugares imersos no sono. Este é o seu pedestal. Desconta as indulgências sufragadas no oráculo dos pesares; rejeita a comiseração orquestrada como sinal de redenção; esconjura as comendas prometidas, as oportunistas genuflexões que fingem um respeito sem curadoria; abstém-se de tomar partido, que todas as causas são alheias e não foi entronizado juiz. Mantém-se no pedestal, a soberania máxima de onde elide os acasos que espelham a angústia promitente. Desde o pedestal não governa, não se envaidece, não distribui perdões sob encomenda, não ajuramenta confissões nem costura arrependimentos. Limita-se a contemplar a paisagem desde o promontório a que se elevou. Intui que a distância do chão é medicinal. Tem consciência que não se pode eternizar como embaixador do céu. Esse tem outra conotação que não é da sua lavra. O pedestal é um embrião de finitude, a que se projeta nos sonhos que não cessam de existir, como se os sonhos se emancipassem do sono e fossem cúmplices do dia em que mandam os sentidos. Quando desce do pedestal, é como se nunca tivesse de lá saído. É o seu segredo bem guardado: o pedestal é onde soubermos ser a plenitude de nós.
E depois as consequências perderam-se no emaranhado de pensamentos avulsos antes que anoitecesse e o sono se moldasse aos pesadelos contíguos que arrancavam do luar a luz estrénua que precisavam para assaltar as consciências mudas. E depois as mãos sentiam-se suadas, percutidas pela fogueira que salvava a casa do frio do Inverno antes que a geada tomasse conta dos poros das paredes e do chão e a hibernação fosse apenas o fingimento da morte. E depois os animais despenhavam-se num momento lúdico como se nada mais importasse e os contratempos do mundo fossem uma competência exclusiva dos Homens que com as suas luvas de maldade preenchiam os espaços deixados em branco. E depois havia um depois ainda alinhado sob as copas das árvores, o estuário que pressentia o mar largo, as estações de comboio onde as pessoas são intrusas e a mortalha que resguarda as pessoas contra a sindicância dos outros. E depois faltava o medo entretanto emudecido pelo assalto desbocado às palavras como se em falta estivessem por suspeita de embargo nos dias que estavam para vir. E depois nem as cordas todas do mundo davam para amordaçar as almas destemidas que eram viradas do avesso enquanto as estrofes eram terçadas contra o enxovalho limítrofe. E depois, ainda à espera de outro ainda, media-se a temperatura da confiança depois de as pessoas terem sido atiradas umas contra as outras num esboço de conspiração que invadira o lugar. E depois o céu noturno acendeu-se com o rabear de um cometa que as pessoas não puderam contemplar por culpa do sono convencionado para a noite. E depois, antes que voltasse a ser depois, as páginas recuavam por força do vento que as adestrava para a melancolia irrisória, própria dos que se refugiam num tempo amuralhado mas impossível. E depois, ficaram apenas à espera do etc.
O livreiro já não tinha espaço para passar nos corredores onde se amontoavam os livros. Comprava-os compulsivamente, mesmo sabendo que nem a hipótese de longevidade o salvava de não conseguir ler todos os livros. Dizem que há uma doença para esta compulsão, uma palavra japonesa. Não queria saber: se fosse o caso, autodeclarava-se doente um primeiro grau, viciado em livros, incorrigivelmente. Mesmo que soubesse que não conseguiria ler todos os livros anarquicamente espalhados pelas estantes, pela sala, pelos corredores, pelos quartos – até na cozinha havia livros.
Não fosse ele livreiro. Amador, mas livreiro. Não era alfarrabista, porque não estava no negócio e se algum houvesse, o dele era unilateral: dedicara-se a comprar livros, de todos os feitios e géneros, no idioma nacional e noutros idiomas, até os que eram ininteligíveis, antigos e atuais, técnicos e de literatura, poesia ou prosa, muitos. Não podia estar no negócio porque se sentiria estropiado se vendesse exemplares da sua coleção. Ainda pensou afixar um letreiro à porta de casa com o dizer “biblioteca”, mas ainda se importa com o que os outros dizem e os outros são vizinhos a que não é indiferente.
Todos os dias lê pelo menos cento e cinquenta páginas. Pode ser do mesmo livro ou ser um caminheiro, livro para cá, livro para lá. Lê a qualquer hora do dia, em qualquer lugar. A mochila é sempre o logradouro temporário que recebe livros que escolheu para acompanhar o dia. Tanto gosta de ler um livro quase sem respirar, da primeira à última página, como trazer um punhado de livros por companhia durante uns dias, arrastando a leitura pelos dias fora. As mesinhas de cabeceira foram colonizadas por livros. Eles são o seu ansiolítico. Quando acorda, não se levanta sem ler um poema de um livro criteriosamente selecionado de véspera.
Um amigo assustou-se com a desarrumação da casa. Protestou contra o caos (“isto faz-te mal, há sítios da casa em que mal se consegue passar”). Advertiu-o da compulsão. Com algum desdém à mistura, disparou: “ainda por cima, não tens tempo de vida para ler tudo o que ainda não leste”.
Ficou indiferente a tantos reparos. Sabia do seu amor aos livros, que crescera na medida diametralmente oposta do desamor às pessoas. Ou melhor: os livros ainda eram o último reduto onde conseguia encontrar pessoas recomendáveis. Mesmo que, no auge de um dilema moral, esbarrasse em pessoas execráveis e repletas de maldade: é com essas que aprendemos a não ser como elas.
Sentia que a cada página ultrapassada a sua vida era reembolsada. Não havia melhor recompensa da e para a vida.
O que seria de nós se não houvesse placas nas estradas a indicar a direção das localidades, a toponímia nas ruas das cidades, a ciência da cartografia, se os satélites não adejassem sobre nós para que não nos percamos nas demandas? O que seria de nós se andássemos constantemente de olhos vendados?
Somos tiranizados pelos sentidos. Feitos de uma entrega voluntária aos sentidos que são a bússola que ajuda a dar sentido. Às vezes, diz-se: temos de encontrar um sentido para a vida. E não vamos atrás de placas indicativas, da sinalética que povoe uma orientação, nem possuímos um sofisticado software para desenredar as incógnitas que se esmagam contra o peito das dúvidas. Não temos mapas interiores que ajudam a desatar os nós das circunstâncias. E nunca perdemos nada, a não ser a oportunidade para voltar a cometer erros num tempo mais tardio.
A diligência dos mapas, o grosseiro imperativo dos roteiros para tudo e mais alguma coisa, a dependência de meticulosos planos – tudo o que aparentemente confere um sentido de organização das vidas joga-se num acaso quando apenas se confia no autojulgamento, na lucidez, ou na falta dela, que se combinam para às vezes conspirar contra nós, outras vezes para ajudar a desatar os nós existenciais. Nadamos às cegas, como os antepassados navegaram por estima, perpendiculares à costa para não perderem os azimutes. Nadamos às cegas, num labirinto desprovido de luz, por tentativa e erro, vagarosamente tateando as paredes, temerariamente avançando um pé de cada vez para evitar os passos em falso. Como se estivéssemos intencionalmente dotados de uma cegueira salvífica.
Desejamos que a cortina desça sobre o palco para se transfigurar num labirinto dedicado às sombras tutelares. Impõe-se a candidatura à rebeldia, a recusa das luzes que, de tão flamantes, corrompem o olhar com as cicatrizes que um mundo malparado apurou em forma de condenação. Até ser preferível mergulhar nas trevas que são o resgate da metamorfose forçada pelo mundo malparado. Esconjuramos esse mundo que se torna malparido ao nadar no escuro.
Estamos a precisar de paradoxos para sentirmos que é possível um exílio por dentro do lugar onde estamos.
Os rostos públicos são um saque de identidade, dizia, enquanto rodava o dedo indicador na aresta do copo. A identidade deixa de ser privativa, uma expropriação que, todavia, muitos não se importam de acautelar quando se dão à visibilidade pública. Dizia: detestava ter de esconder o rosto, vertê-lo na direção do chão para não me sentir acossado pelas pessoas que se cruzassem comigo se fosse uma personagem entregue ao conhecimento público; detestava ser interpelado na rua, fosse o motivo que fosse, dos bons à conta de elogios, ou dos maus à conta da acerba que me fosse contemplada. À medida que abanava o copo, observando o refluir lento da bebida, como se as ideias fossem centrifugadas no vascolejar da bebida contra o gelo, consagrava a invisibilidade. Quando saísse do bar e fosse para casa (ou para o próximo bar), não seria a noite a caucionar a invisibilidade. Não era um vulto errante, embrulhado num disfarce de roupas negras encimadas por um chapéu com largas abas que ocultassem o rosto. Todo ele era visibilidade, no compasso acertado das roupas claras que as noites tépidas de Verão pediam, sempre sem o adereço do chapéu. Uma voz interna subiu ao palco e sussurrou, contumaz: estás convencido de que és invisível porque já bebeste umas quantas bebidas, não estás em ti. A voz desmancha-prazeres continuou a saga: mergulhas no álcool para fazer de conta que és invisível. Acreditou que estava na hora de entrar no bar que se seguisse. Até lá, extraiu o rosto da sepultura voluntária em que o afundava sempre que saía à rua. Para confirmar se a voz gutural que invadira o pensamento tinha razão. Mas não estava lúcido. Não podia acertar o tira-teimas. Se fosse confirmado o diagnóstico da voz interior, ao menos tinha o que muitos ambicionavam e não alcançavam. Não era grande compensação. Mas era um frágil sinal de lucidez.
Fecunda esta força que se evade da tentação de saber o muito que se pode saber e depois esmagar tamanha sabedoria nos súbditos, os que andariam à toa não fosse a caritativa diligência dos embaixadores da sapiência.
E eles, todavia, dissidiam. Não sabiam do paradeiro das respostas. Fugiam das perguntas, não por as temerem, mas porque quem as fazia estava à espera de um imperativo de resposta. Não queriam essa responsabilidade. Primeiro, não eram missionários por conta dos outros. E depois refugiavam-se na (pelo menos) aparente subjetividade do conhecimento. Não tinham nascido para serem educadores. Que responsabilidade voluminosa seria essa, a de aprestar respostas prontas a cada decibel de perguntas a zuir por dentro da cabeça.
São, para seu grande gáudio e orgulho, peritos em nada. Nadam nesse conhecimento insubstancial, no borbulhante lago onde as incógnitas soçobram com o entardecer e não voltam a emergir quando a luz madruga e se ergue num fugaz sinal que se agiganta com o andamento dos minutos. Quando é preciso, defendem-se com agressividade quando as demandas se atiram a eles, numa consanguinidade inventada que não reconhecem. A agressividade é uma autodefesa, legitimada. Dos assuntos mais singelos aos que exigem perícia só ao alcance de talentosos, as perguntas esbarram na indiferença. Numa indiferença metódica que se ergue como cortina de fumo para dissolver as perguntas numa nuvem crepuscular.
Os perguntantes vão aprendendo. Dali não levam respostas, não adianta a dirigirem perguntas. Os interrogatórios serão sempre alheios, ficam desertos. Vão procurar conhecimento aos artistas que o dirimem. Ao contrário destes, os peritos de nada juram que só sabem nada. Ainda uns quantos arriscam perguntar sobre o nada e eles retorquem que sobre “o nada” sabem nada.
Poderiam, no máximo das possibilidades, perguntar-lhes sobre nada. Disso teriam nada a dizer. Já o empate das circunstâncias desfeitearia as incompatibilidades que tivessem sido agigantadas.
(Inspirado numa série de debates organizados pela Universidade de Coimbra)
Uma espécie de Speakers’ Corner para candidatos a candidatos a primeiro-ministro: subam a palco os proponentes, tomem conta do microfone, têm direito a sete minutos bem contados sem direito a interrupção. Sete minutos para propor reformas que têm o condão de sepultar um atraso congénito – ou sete minutos para perpetuar a ilusão de um adiamento imorredoiro. Só não têm tempo para o diagnóstico, sem o qual as propostas de mudança (e, aos que assim forem ainda crentes, de continuidade) parecem amputadas de sentido. Mas sete minutos é melhor do que o silêncio voluntário ou involuntário. Venham a palco os candidatos para avivarem o palco da cidadania.
O que se quer são ideias. Entre as ousadas e as conservadoras (no último caso, só para medir a temperatura do conservadorismo – dando o desconto que os conservadores serão propensos a não sair de casa, o que prejudica a representatividade da amostra); entre as lunáticas e as que repetem o receituário conhecido (de aquém e além-fronteiras); entre as risíveis e as complexadas; entre as que assumem uma grandeza entretanto esquecida e as que dependem do auto amesquinhamento; entre as viradas para a pluralidade do mundo e as que se ensimesmam num paroquialismo diletante; entre as que desconstroem o património havido (de políticas) e as que pisam o palco da inovação (nem que seja lunática); entre as que são proclamadas com um discurso elegante e as que se enredam na confusão discursiva de quem não nasceu para orar em público; entre as herdadas do futuro e as mergulhadas no passado.
E depois dos sete minutos de fama, que saibam ouvir nos outros blocos de sete minutos o que os alternativos candidatos recomendam. Saber ouvir os outros é uma virtude em perda. Saber aprender a partir do que se ouve dito pelos outros é a humildade que devia ser ensinada desde os bancos da escola. Saber reconhecer o mérito das ideias dos outros é da mais elementar justiça.
Ao cabo da maratona de sucessivos blocos de sete minutos, de tantos aspirantes a primeiro-ministro um punhado se há-de destacar. Levem as suas ideias à assembleia onde parlamentam os oficiais representantes em nosso nome, sem esquecer de convocar para a sessão o governo inteiro. Sua será a vez de aplicar os pilares do conhecimento que são requisito de admissão dos proponentes a primeiro-ministro que peroram dentro do limitado quadro de sete minutos. Que os oficiais representantes na casa da democracia saibam multiplicar por muitos outros sete.
As mãos batem ao de leve, mas batem, como só as palavras conseguem bater. Quase sem dar conta, o pé-ante-pé que se insinua, dissimulado: quando é para dar conta, a invasão está consumada. Sem pré-aviso – mas quem acredita que as invasões devem obedecer a um aviso de receção, se nestes despreparos das almas não há código de conduta nem cavalheiros? E lá aterram eles, os pezinhos de lã, que entram sem bater à porta, a salto, como os salteadores. Não se sabe ao que vêm. Talvez notifiquem depois de materializada a agressão; tem de haver uma lógica para a agressão, por mais ilógica que seja. Talvez não apreciem a cor dos olhos. Ou a estatura. Ou as ideias. Ou talvez tenham ido aos arquivos para resgatar textos malditos que merecem punição ditada pelo desejo da maioria. Estes são crimes que não prescrevem. Nem que os textos subjacentes tenham sido expurgados, pois os diligentes censores têm meios de os extrair ao esquecimento. Nem que sejam textos entretanto renegados, que um bom censor (há-os, censores bons?) não transige com o arrependimento que pode ser apenas a colheita de um fingimento, oportunista. Os pezinhos de lã são um misterioso assomo de silêncio. Nem que o chão seja de madeira e a podridão semeie o ranger irremediável, os pezinhos de lã são como os prestidigitadores que conseguem proezas admiráveis, aquelas que deixam a audiência de queixo no chão. Os pezinhos de lã alcançam o mesmo sortilégio dos que passam pelos pingos da chuva sem se molharem. Quando aterram, findam o silêncio farsante e despejam toda a ira com uma voz tonitruante, que amedronta até vultos experimentados. As vítimas só sabem que são vítimas quando já o estão a ser. Em abono da civilidade, deviam inventar uma lei para proibir a venda de pezinhos de lã.
Deviam acabar com a ditadura da excelência, o produto acabado de um logro que contraria a moda democrática de que todos usufruímos a igualdade pela mesma medida. Quando a realidade cai na vertical e sabemos que não somos aceites entre o escol, acusamos os outros, os que andaram a prometer a usura sobre a igualdade metódica, de terem fracassado na empreitada.
Como não há uma caça a bodes expiatórios, o que menos interessa é alinhavar as culpas e distribuí-las de acordo com a quota-parte dos ideólogos da modernidade. A culpa será deles; precede-a a nossa responsabilidade: não somos desprovidos de inteligência e de capacidade hermenêutica, habilitamos as teorias que se aformoseiam para serem candeias que nos devolvem a luz guia, mas não podemos deixar de as comparar com o espelho que retemos do mundo. Se forem apenas especulativas, ou um retrato distorcido, rejeitamo-las.
Da procura incessante pela excelência irradia uma angústia duradoura, a concessão aos outros porque só seremos embaixadores da excelência se formos reconhecidos por eles. Ficamos à sua mercê, numa inversão da misantropia desaconselhada pelos curadores da vida em sociedade. Ah!, se o que interessasse fosse apenas o juízo que fazemos de nós mesmos, se não nos hipotecássemos aos juízos dos outros, talvez fôssemos um pouco mais o eu entretanto abdicado.
E, contudo, não cessamos de cair num logro, alegremente iludidos por uma contradição que nasce em nós e é finalizada pela estocada dos outros. Temos de abdicar do eu para obtermos o reconhecimento que precede o elevador do mérito. Ao fazê-lo, a humildade de quem se ajoelha diante do escrutínio dos outros é uma intencionalmente forjada: os que se projetam no púlpito onde a excelência é reconhecida, depressa se desprendem da humildade e abraçam-se à arrogância autorizada pela excelência autorizada pelo escol.
Se não estivéssemos dependentes deste ambíguo mealheiro feito de humildade e arrogância intelectual, o mundo seria menos irrespirável. Não seríamos escravos do dizer dos outros e não teríamos de esconder uma humildade que estamos prontos a desmatar assim que a excelência nos seja reconhecida. Se a muitos fosse concedida franquia para habitar na excelência, a excelência deixaria de o ser – e isso teria o efeito paradoxal de impedir a um numeroso grupo de tocar na coroa da excelência.
Se não desossássemos a humildade com o pretensiosismo de querer estar acima dos demais, seria mais fácil habitar o espaço vital. Não teríamos a mania das grandezas e ficaríamos interiormente gratos ao saber que tínhamos colocado o melhor de nós em cada empreitada. A tirania dos outros impede-o.
A devastação consome a serenidade. Abatem-se sombras, malignas. Um odor pestilento atravessa as veias, a sórdida contaminação que desabastece o mundo de claridade. Os muros voltam a ser património, envergonhando os semelhantes que são reeducados como se apenas fossem diferenças. As manhãs crescem como se já fossem o anúncio da noite – e a noite transfigurou-se num palco que hospeda pesadelos, medonhos.
O mundo não se recomenda. Está entulhado por ideias que prescreveram e, todavia, entram pela porta dos fundos, reabilitadas, até se estabelecerem. As palavras são adulteradas para traduzirem hostilidade, agravo, falsificação, desconfiança, represália, desverdade. O sangue ferve e, ao mesmo tempo, parece hibernar. Diante deste espetáculo atroz somos presas fáceis se o silêncio for o mote. Sendo cúmplices pela apatia, deixando sem resposta as injúrias que estilhaçam um código de valores, uma pertença civilizacional tomada de assalto pelo medo que temos do medo infundido pelos mastins arregimentados. A falta de memória histórica é aterradora. O défice de interesse ajuda a branquear a falta de memória histórica.
A capitulação não pode ser a palavra de ordem. Nem a confortável posição em que ficamos quando endossamos a responsabilidade aos outros, à medida que os outros a vão endossando sempre para o vizinho do lado, e assim sucessivamente. O mundo está a precisar de heróis – de heróis modernos, que usem a palavra para demolir a agressividade que derrama sobre nós o abismo da hostilidade, numa beligerância geral que ameaça tomar conta do tempo. De heróis que não sejam feitos de bravura destemida e de demenciais atos de desprendimento do eu. Os heróis que são precisos querem-se vivos. Pois são os vivos que conseguem recolher os estilhaços e transformá-los numa cidade remoçada.
Esta é a epopeia que prometemos. Contra os filisteus que só se mantêm enquanto o mundo estiver do avesso, contra a desconfiança ilegítima que perfura a pleura da humanidade, contra os despojos intencionalmente vertidos sobre os nossos olhares entretanto desatentos, uma epopeia. Para não sermos cúmplices do avançado estado de decomposição dos códigos de conduta prescrito por aqueles que a História sentenciou.
Corria depois do tempo para saber se a gramática herdada se prestava a um inventário demorado. A servidão insinua-se em gestos discretos, quase impercetíveis, empilhados num paradeiro que toma conta de muitos lugares. Entre os haveres despojados, a desesperança: parecia domado pela angústia que se fazia ao tempo como se fosse uma maré a crescer, imparável. Era tempo de travar a angústia e a desesperança.
Aos que protestam contra a colonização pela tremenda atualidade, retorquia que se somos presas do que nos amedronta temos um dever irrecusável de atalaia. Somos as vítimas prediletas dos predadores que se atiram à nossa vontade. Não podemos fazer concessões à desatenção para a vontade não ser colonizada por outros que dela se querem apoderar.
A vigília deve ser contínua. Nesse tempo contínuo, ao sono de uns corresponde a vigilância de outros. Ninguém quer ser vítima do acaso, ou condenado à irreparável decadência de quem se entregou à desatenção. Mal o arrependimento entre em cena, é sintoma dos acasos que poderiam não o ter sido se estivéssemos de vigilância. Temos de aprender com a experiência. Da contingência medra uma desconfiança metódica. Não é a desconfiança gratuita, como quem se sente acossado sem conseguir nomear os vultos opressores; é a desconfiança que se legitima nos socalcos da incerteza que tornam o devir tão fortuito.
Acautelemos o modo de viver em que somos figurantes. Não interessa a posição em que subimos a palco. É a humildade profícua que converge para o papel de figurante. O que interessa é sermos o eu que de genuíno for possível – somos permeáveis ao contacto com os outros. Não nos deitemos à subjugação voluntária pela concessão à apatia. Sem um módico de vontade, ficamos à mercê das vontades outras que se congeminam.
A vigília não é a oposição aos desacertos que parecem conspirar a nosso desfavor. É o salvo-conduto para guardarmos um lugar próprio do palco em que contracenamos. Conservemos a chave que franqueia a vigília, para não sermos meros vultos condenados a destroços sem serventia. Para não sermos os sujeitos passivos de uma servidão constante.
Nem a noite aquietava o sangue ebuliente. Esperneava entre as veredas que abria com o focinho, como se fugisse de tudo, sem medo dos arbustos altos que cobriam o caminho. Perdera conta dos montes subidos e depois descidos, dos riachos atravessados, dos lugares por que passou sempre a evitar povoados humanos. Sentia o cansaço nas patas mas não podia parar. Às vezes abrandava, o corpo mandava respirar mais devagar, era a pausa necessária para carregar forças.
Os cursos de água que apareciam pelo caminho vinham a calhar. Dessedentava-se. Sentia a água que descia pela garganta como o alívio da febre interior que o levou à fuga. A água fresca acalmava o coração. Ao chover, lembrava-se porque fugiu. As gotas da chuva que se recolhiam no dorso avivavam as feridas ainda abertas, os lanhos perpendiculares atravessavam as costas de um lado ao outro. Fugira há dois dias mas já tinha como distante a memória daquele circo onde era maltratado. Tão cedo não queria ver rostos humanos. Ganhou uma desconfiança metódica das pessoas. Mesmo daquela gente sem relação com o circo, cúmplices por omissão por continuarem a frequentar o circo.
Não sabia nada de geografia, nem sabia para onde ia. Continuava a trotear sem destino, errando no avesso da memória. Ainda se lembrava do chicote em riste quando o tratador o queria domar. Nunca percebeu a maldade: sempre foi dócil, nunca se insurrecionou contra as pessoas do circo. A violência do tratador tornou-se insuportável, insultuosa. Como se podia dizer que aquele homem era o seu tratador se o que ele fazia era destratá-lo?
Só não se queixava da comida: havia ordens no circo para os animais serem bem alimentados, não queriam que o circo passasse vergonha à custa de animais macilentos e adoentados. As pessoas estão cada vez mais atentas aos maus-tratos a animais, até há leis que castigam aqueles que castigam os animais. Tirando a alimentação (e o cuidado com o pelo, porque tinha de aparecer em público com o pelo sedoso), o resto eram maus-tratos. Dormia sob a égide das tempestades porque os trabalhadores do circo não queriam acordar a meio da noite para recolher as bestas. Os deveres periódicos de consulta com um veterinário eram esquecidos, as contas do circo estavam apertadas e a ameaça de falência pairava.
Quando teve oportunidade rasgou o arreio que o prendia a uma árvore com toda a força dos dentes. Não olhou para trás e correu com toda a força que as pernas tinham. Podia não saber de geografia, mas sentia que uma bússola interior o levava para os antípodas do lugar onde estava estacionado o circo. Não sabia o que seriam os amanhãs consecutivos. Mas não se importava com isso.
Agora, era um cavalo selvagem. Furtivo, mas livre. Longe de humanos, que o trauma dos humanos era uma ferida aberta enquanto a memória não se esvaísse. As montanhas em redor não tinham povoados por perto. Era capaz de encontrar refúgio para dormir e o lugar era pródigo em bagas, frutos silvestres e feno espontâneo. Não sabia quando ia morrer. Mas sabia que podia morrer sem sentir o sobressalto contínuo de uma mão a agredi-lo.
O almirante, o ainda não candidato à presidência da república que, todavia, está-se mesmo a ver que vai ser, é só fumaça. Na sexta-feira passada deu à estampa, no mais conceituado semanário da praça lusa, um manifesto. Mas depressa veio esclarecer que não era um manifesto. Dando seguimento às tergiversações mal fingidas que enfeitam a postura como candidato a candidato, o almirante reformado destapou o véu do seu “pensamento político” (as aspas não são por acaso).
Para sossego da mole que gravita no albergue centrípeto da paisagem política (o centrão), o almirante anunciou que está entre a social-democracia do maior partido do governo e o socialismo do maior partido da oposição. Tamanha equidistância revela um desejo tão ardente de seduzir essa multidão de eleitores (anda à volta de dois terços dos votos em sucessivas eleições) que o almirante, se der um passo em falso, cai para dentro do seu próprio abismo, pois situar-se tão diligentemente ao centro do centro faz com que não haja precipícios naturais que o queiram sobressaltar.
Se era para revelar esta centrista precisão cirúrgica, melhor seria que o tivesse exteriorizado antes, quando foi despontando para o mediatismo ao gerir as vacinas contra a peste e ao aparecer em público como o disciplinador chefe da armada, pois o histrião centrista não é uma personagem convincente. Ademais, o almirante labora numa confusão intelectual que deixaria o seu nome na pauta dos reprovados se tivesse ido a exame de “Ideias Políticas”: a correspondência de ideologias entre os dois partidos que se situam dois milímetros à esquerda e à direita do almirante é a prova manifesta da desatualização ideológica do candidato (a candidato).
Não era o único exame que levaria o almirante a repetir uma disciplina no ano letivo seguinte. Ficaria aquém dos dez valores em “Direito Constitucional” e em “Fundamentos do Sistema Político”. O almirante forneceu umas notas hermenêuticas sobre o papel do presidente da república. Esse naco de conhecimento entra em choque frontal com as regras constitucionais e o sistema político vigente. Sem querer – ou talvez não, que no meio de tanta ambiguidade não é fácil perceber ao que vem o almirante quase candidato –, foi deixando cair umas palavras sintomáticas sobre o que deve fazer o futuro presidente da república no pressuposto que seja ele a ocupar a sinecura. Essas revelações quadram com os excessos de voluntarismo que gosta de exteriorizar em público, juntamente com a propensão para se dar a conhecer com homem providencial. Que interessa que as suas pessoais interpretações constitucionais sejam má doutrina por ser uma doutrina que nenhum perito subscreve? Ainda bem que o almirante anunciou ao que vem: se vier a ser eleito, será um ator de instabilidade.
O almirante desconfia das sondagens – e tem legítimas razões para desconfiar, tantos os abalos sísmicos eleitorais que têm desconstruído sondagem atrás de sondagem, ao ponto de sossegarem os espíritos que desconfiam de oráculos proclamando “é a sondagem, estúpido”, mas em versão alternativa que elimina a vírgula entre o substantivo e o adjetivo e transforma este em feminino. O almirante desconfia das sondagens que o elevam ao pedestal das preferências dos inquiridos por larga vantagem em relação à concorrência perfilada. De outro modo, não se entende como se situou cirurgicamente ao centro do próprio centro. Centro mais ao centro é impossível. Não parece que o excesso de centrismo do almirante seja genuíno, pois não corresponde à linguagem que o notabilizou. Este posicionamento é uma guinada oportunista, não vão as sondagens reveladas pecar por excesso quanto ao número de cidadãos que se manifesta favorável a que o almirante seja o sucessor de Marcelo. Daí o amor assolapado ao centrismo radical.
As insinuações de ativismo presidencial vertidas nas palavras publicadas pelo almirante confirmam-no como um inequívoco equívoco. Desconhece os fundamentos do sistema político e os sedimentos da Constituição, ou deles faz uma tresleitura (deixo ao critério do leitor concluir qual das duas hipóteses é a pior, suspeitando que as considera ambas más). Se o almirante vier a ser o próximo inquilino do Palácio de Belém, temos prometido um mandato marcado pelo ativismo histérico que, decerto, será do agrado dos seus constituintes (e aqui incluo apenas os que contribuírem para a sua eleição).
Estamos perante um empate de desqualificações: escolher alguém que se distinguiu pelas capacidades de gestão no contexto de uma tarefa meramente burocrática (sem desvalorizar a tarefa numa época tão conturbada) para ocupar a presidência da república coloca ao mesmo nível o almirante e quem o eleger. Um presidente da república não é gestor de nada, nem o cargo remete para o poder executivo. É o caso típico de um “erro de casting”, como agora está na moda dizer-se: eleger um candidato por atributos que não correspondem ao exercício do cargo para o qual é eleito.
Presumo que muitos eleitores têm o sonho molhado de ver o almirante a destratar políticos conceituados, como destratou em público os marinheiros que esboçaram um ato de rebeldia quando se recusaram a embarcar numa embarcação que estava sempre a avariar. Eles que sejam postos em sentido e para isso precisamos do espírito disciplinador do almirante. É preciso, pois então, arrumar a casa e pôr em ordem os desordeiros que desgovernarem o país. Quanto à separação de poderes, ela que seja mandada às malvas pela conceção original de ativismo presidencial que o almirante prometeu, e não apenas nas entrelinhas, aos seus seguidores e aos militantes e simpatizantes dos partidos que se situam “entre o PSD e o PS”.
Este primeiro ato do almirante como pré-candidato a candidato assemelha-se a um coito interrompido. Não na conotação pornográfica da expressão, pois o coito não foi voluntariamente interrompido, mas como resultado de um notório – para tomar de empréstimo uma palavra inexistente no léxico mas popularizada por uma ex-presidente da Assembleia da República – “inconseguimento”.
Das notícias: um francês foi vítima de roubo. Entre os haveres roubados estava a carteira e dentro da carteira estavam os cartões de débito e de crédito. Os “amigos do alheio” aproveitaram a conveniência do dinheiro eletrónico e fizeram umas compras. Situam-se entre os viciados em jogos de azar, pois os agentes do furto compraram um bilhete da lotaria. Ou então, os meliantes estavam a acautelar o futuro: já que a sorte ajudou no pé-de-meia do furto, quem sabe se com um cartão de crédito platina denotativo de elevado plafond mensal, podiam tentar a sua sorte. Estavam a investir no futuro usando uma porção dos objetos furtados.
O bilhete da lotaria foi premiado com meio milhão de euros. Por uma série de circunstâncias que não é revelada na notícia, os ladrões não tiveram acesso ao prémio. Especulo: talvez a lotaria em França seja num formato virtual e os prémios são creditados na conta do titular do cartão bancário usado na transação. Continuando a laborar no universo das hipóteses, absurdo foi os ladrões terem completado a transação, pois não foi devolvida a prova da compra do bilhete da lotaria. O meio milhão de euros foi parar, sem desvios pelo meio, à conta bancária da vítima do furto.
Se os “amigos do alheio” tivessem deitado mão à cautela premiada, dir-se-ia que este era dinheiro sujo, ilegítimo? Se eles tivessem ficado com uma prova física da lotaria, seriam os legítimos titulares do prémio. Teriam feito uma pequena fortuna à custa de um ato ilegal e censurado pela sociedade. Seria à boleia do dinheiro alheio que teriam enriquecido meio milhão de euros. Isso não interessava à empresa que organiza a lotaria. O dinheiro que circula nestas operações comerciais não tem nome. Se não fosse pela conjugação de acasos (ou pela ignorância dos ladrões), este seria um caso paradigmático de redistribuição da riqueza com conotações ilegítimas, mas só se fosse possível rastrear o dinheiro que pagou o bilhete premiado. Não sendo o caso, ninguém podia objetar à redistribuição de riqueza operada.
Ainda mais insólito é a vontade da vítima do roubo, que quer dividir o prémio da lotaria com os ladrões. A vítima argumenta que se não fosse a iniciativa dos ladrões ele não tinha a conta bancária empolada em meio milhão de euros. Por isso, anunciou a intenção de mear o prémio com quem o conseguiu, muito embora ele tenha sido o financiador involuntário da transação.
Este comportamento não quadra com o comportamento padrão. A vítima habitual teria esfregado as mãos de contentamento ao saber-se abastada em meio milhão de euros. Teria condenado o furto e os seus autores e não descansaria enquanto a justiça não os perseguisse e concluísse o processo com exemplar punição em lei prevista. Não teria agradecido aos criminosos por o produto do furto o ter enriquecido. Teria rematado o raciocínio, deliberando sobre a ilegitimidade do ato que o fez meio milhão de euros mais rico. Atribuiria importância à ilegitimidade dos meios e não ao resultado alcançado. Tudo escorreito, de acordo com os padrões que correspondem às boas normas de conduta nos orientam.
A vítima do roubo entrou em rota de colisão com a boas normas de conduta. Reconheceu que não teria aumentado o seu pecúlio em meio milhão de euros se não tivesse sido assaltado. Este foi um assalto em proveito próprio, ainda que a ligação entre a causa e o efeito seja acidental. Para a vítima, não importa avaliar a legitimidade dos meios. Ateve-se ao resultado, reconhecendo que não seria possível se naquele dia e naquele lugar os “amigos do alheio” não tivessem deitado a mão à carteira que não era deles. A intenção de devolver metade do prémio aos ladrões é o ponto de chegada deste raciocínio. Um quarto de milhão de euros é suficiente para a vítima do furto. O outro quarto de milhão de euros compensa a diligência dos ladrões, que tiveram a perspicácia de apostar um quinhão do furto num jogo que, desta vez, foi de sorte.
Os desconfiados e os que não aceitam o comportamento altruísta da vítima do furto dirão, à procura da conspiração do momento, que a boa vontade é a fingir. Tudo não passa de uma encenação combinada entre a polícia e a vítima para atrair os autores do furto que, entretanto, estão em paradeiro incerto. Seduzidos pela possibilidade de serem recompensados com duzentos e cinquenta mil euros – como se o produto do furto fosse esse valor e, ainda por cima, com a caução de quem foi roubado –, os ladrões foram convocados para receberem a maquia prometida. Assim que se chegarem à frente, lá estarão as autoridades para julgarem a ilegalidade do ato que deu origem ao acontecimento.
Este comportamento é típico de gente aprisionada nos padrões e que não tem elasticidade intelectual para, à semelhança da vítima do furto, compensar uma injustiça (a ilegalidade de que foi vítima) com uma justiça devida por ter beneficiado do resultado do assalto. É a diferença entre não ter sido roubado e não ter meio milhão de euros na conta bancária e ter sido roubado e, por esse motivo, estar meio milhão de euros mais rico. Dividir os ganhos ao meio com quem os proporcionou é da mais elementar justiça. Nem que essa justiça esbarre na ilegitimidade dos meios e no choque psicológico dos cidadãos padronizados.
Os covardes é que têm medo que um elefante pegue numa arma e comece a disparar balas sem critério. Os covardes deviam saber que é o elefante que tem medo de nós, apesar do tamanho e da força que tem. Os covardes só o são porque se apequenam no seu mundo exíguo. As fronteiras são uma proteção contra a alteridade; ser diferente é uma estranheza que não deixam entranhar, reagindo com agressividade à aproximação do outro. Definham na estreiteza das fronteiras mentais, que são mais pequenas do que as fronteiras com marcos.
Soubessem ser maiores de pensamento, tivessem a curiosidade de cursar as pontes que se levantam para terminar com a separação das terras diferentes, e talvez perdessem a força para serem covardes. Ao contrário do que pensam os lugares-comuns, é preciso ter força para ser covarde. É uma força que deles faz porta-estandartes de uma geografia dependente de estremas. Uma força que se transfigura em fraqueza: o somatório de raias que distinguem terras deseduca as pessoas, que recusam partilhar um devir com os outros que estão em territórios contíguos. E até com os outros, mais distantes e com uma identidade ainda menos afim.
As barreiras mentais são desconstruídas de cada vez que atravessam pontes que aproximam o que dantes, quando o tempo estava mergulhado nas suas trevas, era a força motriz da diferença abjurada. As pontes levam as pessoas a outros lugares. Quanto maior for a distância percorrida e mais as pontes atravessadas, menos afins são as pessoas. E maior é o crescimento interior dos que se atiram de cabeça à aventura de dar a saber a existência de outros mundos e outros outros.
Quem tem medo dos outros e reage com agressividade, como se os outros fossem um agravo à coutada onde se enquista a identidade fechada dos covardes, é refém de um labirinto em circuito fechado. O pensamento não chega à maioridade. Desfalece quando se aproxima da porta que o separa do outro. Estes são os conservadores que se refugiam em fortalezas interiores. Fogem, cheios de medo, da versão atual, e cosmopolita, do mundo. Para mergulharem sobre o umbigo, a apequenar.
Que juros levamos aos vultos que se sobrepõem aos sonhos?
Desde os bancos do jardim, onde é possível contemplar o tempo no seu vagar (afinal, o tempo corre a velocidades diferentes), as nuvens que alisam o céu parecem pequenas vírgulas que se sobrepõem num pano límpido. O olhar não está refém da atualidade. Libertou-se das suas amarras. Tem de haver tempo, entre o tempo que nos está destinado, para nos exilarmos do planeta grotesco que insiste em desfigurar o mundo heurístico que a espécie continua a despovoar com a sua insidiosa mão apocalíptica.
Não se compõem os versos capazes ao sufragar cada linha que se adiciona ao inventário do mundo – o que virá a ficar conhecido como História. De vez em quando, olhares conspiradores averbam o lado mau. Fazem um favor feito a quem quer saber das compensações que o mundo, apesar de tão agredido, continua a legar. Devia ser levantado um tratado monumental à prodigalidade do mundo. Mesmo sendo tão vilipendiado, não escapa ao dever que ninguém lhe imputou. Ninguém se pode queixar de tamanha generosidade.
As vozes que dançam não perturbam o sono dos tutores da bondade sobrante. Toda a fealdade que se abate sobre o horizonte, como se tratasse de retratar, numa tela baça, o circunspecto e plúmbeo cenário que encerra em formol uma cidade que exacerba a decadência industrial, surge como um bouquet de flores flácidas e descoloridas. A essa fealdade devia ser atribuída uma autoria, para que fossem dissolvidas as dúvidas que adejam sobre os mais céticos: os mastins seriam identificados. Uma trovoada pode não ser o palco medonho onde se arrebatam os medos; pode ser uma tela esplêndida, os flashes irradiando ao acaso, interrompendo a escuridão que costura a noite. Desde que os mastins estejam inventariados.
Não se pergunte pelo paradeiro das recompensas se não elas não forem inteligíveis. As marés sucedem-se, espaçadas pela regra do tempo. Os olhares que se encantem com a dádiva do luar, o sortilégio da alvorada, a coreografia de diferentes luzes que se desembaraçam da escuridão. As mãos ungidas pelos versos que são o úbere da inspiração vestem-se no disfarce do tempo.
O mundo não é aquilo que vem nas notícias. É o que está no seu avesso.
A cordilheira não assusta quando a vemos ao longe. Parece um oásis. A distância que emagrece ao correr da ilusão de ótica arrefece a intimidação. Ou talvez não: nós é que tutelamos a métrica dos lugares, nós é que arranjamos o astrolábio que nos devolve os quilómetros que distam dos lugares desejados. Para depois sabermos nomear todas as maratonas feitas.
Não se aformoseiam os nomes na doutrina efémera que os distingue por camadas. Os nomes levitam, desprendem-se das pessoas que passam nas ruas sem serem um nome concreto. Não lhes é dedicada indiferença, pois não nos despojamos do cais da humanidade e as pessoas, por mais que se encubram no anonimato, continuam a ser pessoas.
Devia ser dever perguntar o nome de todas as pessoas que viessem de frente. No enredo ensaiado, tomo como garantido que as pessoas não se refugiavam no anonimato; e não invocariam leis que conferem a reserva de identidade a quem quisesse esconder o nome. A demanda seria emulsionada com uma pergunta. Para depois poder dizer que os nomes das pessoas interpeladas são a pergunta maior que se pode imaginar.
Na escola devia ser obrigatório aprender a fazer perguntas. Melhor dizendo: aprender a saber fazer perguntas. Para afivelar os estilhaços colhidos com as mãos enquanto o crepúsculo se demora ao ser o verso do entardecer. Para a intuição ajudar a terraplanar as colinas aguardadas que desencorajam as empreitadas apalavradas. Para inventariar os nomes que ficam por contar e emoldurar os outros que se alistam no labirinto da alma.
O teu nome é uma pergunta. Não espero uma resposta. Não quero uma resposta. Deixo às perguntas o sortilégio do teu nome, se a ele vier beber uma vida sentida por dentro, sem capatazes nem procuradores à espera de arrematar o magma em ebulição. Se a ele vier beber a minha boca.
Dantes as guerras não passavam na televisão. As revoluções, também não. Mas dantes era quando não havia televisão. As duas hipóteses nem deviam ser lembradas, por manifesta impossibilidade. Seria como trazer do futuro as condições vigentes para o presente, mas ninguém pode reivindicar profecias, a menos que seja displicente.
Agora que as televisões narram em direto as atrocidades em que alguns humanos se empenham, nem assim se aplica um código de conduta às guerras – é o que protestam alguns ingénuos, convencidos que a espécie é credora de confiança. Devia ficar estabelecido que as guerras não obedecem a códigos de conduta, pois uma guerra é, para os devidos efeitos, uma desconduta. É como chamar “civil” a uma guerra, das mais hediondas contradições de termos em que a semântica beligerante é pródiga.
Outros, padecendo de miopia intelectual (para não levantar hipótese ainda menos simpática para as respetivas capacidades cognitivas), metem o avesso na análise e decretam a vítima como algoz, ilibando o algoz, depressa constituído em manso carneiro que nunca praticou o mal nos outros (sobretudo quando estão perigosamente no sopé de um arranha-céus a dançar com o precipício).
Às vezes, o sucedâneo da justiça divina passa à prática. Ou pelo menos, espera-se que assim seja – escorregando para as tremendas profecias autorrealizáveis que poucas vezes se confirmam quando o futuro beija o apeadeiro. As muitas caixas de Pandora podem conter o inesperado. Por exemplo, um cavalo de Troia. Esplêndido, majestático, deixando inebriados os transeuntes da cidadania que andem nas digressões diárias pelos palcos que contam. Eles e os mandantes, habituais peritos em tresler a verdade, escorregando para uma procissão de mentiras que se encavalitam fazendo com que a mentira minta a si mesma, que seja mentira da própria mentira.
Do opulento cavalo de Troia estará prestes a sair uma milícia à revelia dos poderes, equipada com o desassombro do método filosófico, só para interrogar os embaixadores da impostura sistemática e os fazer cair do pedestal. Haverão de saber que não compensa a usura que amanhece no matrimónio da ignorância com a mentira compulsiva. A opulência do cavalo entontece os incorrigíveis embaixadores da beligerância. Por um efeito quimérico, serão desapossados do arsenal de mentiras e aspersados com um módico de inteligência.
Maquinalmente, encerrarão as caixas de Pandora e passarão a andar com o cavalo de Troia à lapela.
Não se aconselhavam com os (assim proclamados) procuradores das almas. Por mais que a ajuda fosse precisa, recusavam a intromissão. Preferiam a razia, a devastação total que encontravam nos corredores da alma. Ao menos, essa era a sua devastação. O resultado dos seus erros, até os que fossem intencionais, era da sua lavra. Noa fugiam dessa responsabilidade, não a fingiam, nem a endossavam para o lado. Se devia haver curadores das almas, que atuassem na interiorização da responsabilidade de que as pessoas não se podem exilar.
Os escombros que sobejavam, depois de uma incursão metódica pelo erro, traziam à tona dores às vezes excruciantes. Mas eram as dores intrínsecas aos atos que ecoavam na linha de produção dos erros. Era uma razia: por mais que fossem as juras de não voltarem a frequentar o erro, passava uma temporada e o erro voltava a ser visitado. Como já tinham aprendido que o arrependimento não esconjurava os erros futuros, afastavam-no do palco a que subiam as decisões.
Uma vez, alguém (um talvez candidato a treinar almas dos outros, pela pose exposta) insinuou que o erro não existe. O que existe são as consequências dos atos, que não quadram com as intenções alinhavadas. Disse: não dominamos o que nos rodeia, as contingências podem fracassar os propósitos atribuídos a uma decisão. A decisão teria boas intenções, mas as circunstâncias, que não podemos domar, conspiraram contra a finalidade pretendida. Concluiu: isso não pode ser tido na conta dos erros.
O pusilânime aspirante a guru das almas foi enjeitado – ficou a falar sozinho. Propunha uma farsa. Os atos têm consequências. Se forem determinados por uma conjugação de acasos, essa é uma contingência que não podemos encobrir. Se falhamos, assumimos a responsabilidade. Não procuramos expedientes para vestir uma máscara ao logro. Por mais que seja uma razia, a responsabilidade não se dissipa na vontade de nos exilarmos por dentro de nós. Falhamos, gloriosamente. E voltamos a falhar, se preciso for.
Podiam ser os arrozes puídos a desembelezar as coisas próximas. O nevoeiro arrastava-se para horas impróprias. Era de propósito: enquanto o nevoeiro estivesse hasteado, só deixava ver as coisas pela sua volumetria baça.
Era parecido com os comportamentos que fervilhavam de bandeira em bandeira, soezes e boçais, atirando toda essa gente para o estirador contra a sua vontade. Não havia como fingir. Na coutada de um arsenal implacável, insinuavam-se entre os poros da pele recolhida, como se fossem mastins a roer os ossos.
Disseram, em tom paternal de conselho: deixa-os a falar sozinhos. Eles desmatam a sua própria indigência, almas errantes que porfiam os dias tauxiados nos mais fundos interstícios da pele – como é mester dos parasitas. Saberiam os conselheiros que de tão embebidos na carne podia ficar contagiado pela boçalidade e ser tão canhestro e pária como eles?
Recusou o conselho. Temia que os efeitos secundários não demorassem e acordasse o que sempre odiara nos outros. Tinha de contra-atacar. Enviou a convocatória: estavam suas excelências convidadas a comparecer no adro da igreja ao anoitecer, aproveitando a solidão a que destinam o adro quando as pessoas se encomendam à preparação do jantar. Podiam vir quantos quisessem, um exército inteiro. (Pensou em voz interiormente sussurrada; não o disse de viva-voz para não emprestar trunfos aos canhestros.) Havia de lhes dar com a alma com tanta força que se extinguiriam na bruma caudalosa deixada à sua passagem.
No dia combinado, a alma estava pronta a ser arremessada. Os demónios disfarçados compareceram em número assinalável. Podia ser pior se fossem mais. Alguns atiraram uma salva de boomerangs. Eram espertos: se não fosse atingido, os boomerangs regressavam à casa da partida (quem inventou os boomerangs estava na vanguarda da economia circular). Não se intimidou, desviando-se criteriosamente, com a destreza de um acrobata, de todos os boomerangs. Contra-atacou: atirou-lhes pedaços da alma que estavam em cultura, investidos com a diligência de quem pressente ter de se defender com a própria alma.
Os mastins ficaram azamboados. Não estavam habituados a almas, não sabiam o que era ter uma. Cada grama de alma atiçado na sua direção enfraquecia-os, ficavam macilentos. A alma tinha uma qualquer propriedade que atuava como veneno que quebrava os vultos enraivecidos. A alma derrotista enfim tinha serventia: derrotara os mastins que mordiam nas canelas e queriam colonizar cada átomo da pele, e depois a carne restante, até deixar de ter alma, devorando-o de dentro para fora.
Acabaram por provar do próprio veneno, os desgraçados. Deles não reza o passado.
Andrajos remexidos na vertigem do tempo, como assombrações que conduzem os navios e os levam, errantes, contra o império dos ventos dominantes, contra a vontade orquestrada na praia-mar do destino.
Conspiradores que não sabem o que fazer do tempo, a não ser emagrecê-lo.
Tiranetes disfarçados de querubins, com asas e tudo, e um rabo de palha tão extenso que lá caberiam os habitantes da pequena cidade encavalitada no dorso do demónio, choram convulsivamente bebendo as lágrimas que escorrem dos olhos até à boca para alimentar a hipocrisia que os apascenta.
Vulgares vozes curtidas pela ignorância despejam saliva fétida para cima de recém-nascidos, antes que eles retardem a prescrição da inocência e o mundo se arrependa da sua linhagem.
Forcados em desespero vociferam pregões gastos enquanto os déspotas costuram as bainhas da angústia.
Sereias espalmadas, como se fossem chicotes à espera dos degredados, embebem-se nas manhãs arrependidas enquanto os olhos insaciáveis respondem às preces limítrofes.
A salva desenferrujada da prata consumida, adornada por espelhos que não deixam mentir, está sempre de atalaia.
A procissão de mentiras é o medicamento contra a inviabilidade do mundo.
Há vozes que tartamudeiam idiomas sobrepostos e as pessoas fogem da solidão que se acastela quando a noite beija o céu.
O propósito é questionado, como se as peças se movessem no tabuleiro com o repto da imortalidade, o equilíbrio precário que não deixa o corpo despenhar-se no vazio.
Às mãos que procuram mãos, a nunca inútil demanda perfumada pela voz cavernosa que murmura os segredos que pressentem o carinho.
As bandeiras içadas no avesso da madrugada, soltas como antídotos contra os sobressaltos telúricos.
Poemas, sempre poemas, a gramática gorda disfarçada na lhaneza das palavras, como étimo dos povoados de onde foram exilados os déspotas.
Provérbio como refúgio, ou apenas o eufemismo da banalidade – e quem deixa de ser colonizado pela auto-organização do pensamento para evitar, com critério, o recurso aos provérbios?
Aos inúteis: que não disfarçam a sua condição e amoedam a humildade no constante avesso dos príncipes que esgotam o stock de tolerância.
À altura da lucidez, um tirada sem corpete, a aliança certa com um estado demencial. Poderá ser apenas provocação, a vontade de desafiar os que se habituam a levar uma vida desinteressante e que nunca interrogam a existência – e dizem: é um favor que lhes fazem, se eles tiverem a lucidez de soltar as amarras que os condenam à apatia. Ou poderá ser mesmo critério, um apelo interior de rebeldia a atravessar as avenidas instaladas que odeiam os que se sublevam contra os costumes.
À altura dos artistas rebeldes que nunca sossegaram a não ser na morte: deles é a licença amortalhada que tudo deitou a perder nas vezes em que o ar parecia combinar com um módico de estabilidade. E eles, insatisfeitos, incapazes de empunhar uma clepsidra de estabilidade, voltavam tudo do avesso. Pois o avesso é a sua ordem desordenada, ou o caos organizado, uma miríade de contradições intencionalmente terçadas num concurso de figuras de estilo.
As biografias póstumas não escondem a ambiguidade: génios que merecem admiração, mas que se fossem pessoas comuns eram enjeitadas como párias. Só esta contradição já fermentou muita prosa sobre a contaminação do artista com o seu espírito não recomendável, ou se a pessoa tem de ser desligada do artista para salvar a obra e salvar o artista da pessoa. À conta deste exercício que tem demorado os exegetas, os insurretos foram pródigos ao darem tanto que falar.
A forquilha acena como se fosse um espantalho. Amedronta as pessoas comuns. Os desalinhados, mergulhados na misantropia, agarram-se à forquilha e confirmam-se espantalhos. Agem como se precisassem de um agente exterior, uma substância que seria evitada pelas pessoas comuns, para avivar a personalidade que os torna reprováveis. Reprováveis pelos mesmos que os pajeiam, desfazendo-se em genuflexões à altura da genialidade da obra. Gente que disfarça não sentir o desdém dos génios que louvaminham, fazendo de conta que não ouvem os impropérios que o génio profere sem cuidar de os disfarçar. Ainda agradecem, com o sorriso amarelecido de quem finge não ter sido ultrajado – tudo em nome da arte, o expediente sublime para tolerar o que nos outros seria intolerável. A arte ascende ao calabouço onde sepulta a igualdade.
Os génios industriam as artes a tiracolo do mau feitio. Há quem diga que é condição exigível para chegar ao púlpito de uma arte. O que serve para atear a centelha do otimismo antropológico, como se fosse entoada uma hossana à humanidade: se os génios são uma ínfima minoria, os outros todos são boas pessoas. Nem que Bukowski rabeie de raiva, a título póstumo.