Temos vergonha da nossa própria vergonha? A vergonha em si já é matéria suficiente para desatar a vergonha. O contrário também é certo: não nos assiste a vergonha se à vergonha não nos dermos como pasto fértil. O que não é acertado é carregarmos a vergonha com a vergonha que é ter vergonha da vergonha – como se a vergonha fosse elevada a uma potência que a amplia num excesso de vergonha que a torna insuportável.
Podemos ter vergonha de incidentes que não foram causados pela nossa ação, mas dos quais acabamos por ser vítimas por nos exporem ao ridículo. Uma vez, estava no coração da cidade, numa das ruas mais movimentadas, ao ir apressadamente para o trabalho, apessoado no fato e gravata, levei com a matéria fecal de uma pomba transeunte em cima do meu ombro e da cabeça, sob os auspícios da multidão que se cruzava comigo. Nem tive tempo de ficar aflito, pois um diligente funcionário de um talho, que fumava à porta do estabelecimento, levou-me logo para dentro do local, onde ele e dois colegas trataram de desembaraçar o casaco das excreções deixadas pela ave. Não cheguei a ter tempo de corar de vergonha.
A vergonha que sentimos quando a causa da vergonha é independente da nossa ação é uma vergonha infundada. Não é daquelas vergonhas que acontecem porque somos naturalmente desastrados e as nossas ações concorrem amiúde para pequenos cataclismos na esfera pessoal, expondo-nos ao ridículo em público. Essas são as vergonhas que causam legítimo embaraço. Como aconteceu num café, ao tentar ser tão simpático que me substituí na função de empregada de mesa e, ao levar o café para a mesa, o pé direito tropeçou no pé esquerdo, fazendo com que o café se derramasse no chão juntamente comigo.
As vergonhas podem explicar-se pela aptidão para sermos o elefante na loja de porcelanas, mesmo que, por prevenção, não frequentemos lojas repletas de porcelanas finas. Acabamos por descobrir uma loja de porcelanas fora das lojas de porcelanas, um sintoma indicativo de que, às vezes, o espaço em que nos movemos, por maior que seja, é sempre exíguo para albergar a propensão para o disparate (e o tamanho descomunal do disparate). Temos de passar pela vergonha dessas vergonhas? Não: a vergonha em si é matéria bastante para o embaraço interior.
Já as vergonhas que nos são atribuídas pelas vozes dos outros são de tratamento mais leve. Na maior parte dos casos, são diagnósticos exagerados. Imputam-nos uma vergonha por divergência insuperável ou por uma inveja que não deixam de alimentar. Se não reconhecemos o vencimento da causa, não acusamos a imputação da vergonha. Devolvemo-la à procedência. Essas são as vergonhas que não deveriam ter sido atiradas pelo seu proponente. Melhor é que sejam chocadas na origem.
O tempo que queriam privatizar era o tempo cronológico. As coisas mudavam de feição, assim sendo. A efemeridade do tempo pesa sobre as costas, da mesma forma que cada segundo descontado à finitude do tempo exacerba a angústia quando se confirma que a perenidade é uma ilusão. O tempo é escasso – e não há pior lugar-comum para tirar a fotografia da apoplexia que se abate sobre quem vive cercado pela sensação de que o tempo rareia para tantas empreitadas que na vida ficarão por saldar.
O tempo foi, desde sempre, um mal nacionalizado – e aqui “mal” aparece como antónimo de “bem”, figurando o “bem” no sentido que os economistas costumam empregar. Como mal nacionalizado, o tempo não só é a circunstância que toma conta de nós, como também é a contingência que nos acondiciona a uma passividade irremediável. O tempo corre por sua conta, indiferente a todos que dele dependemos. Um tempo assim congeminado é das piores tiranias que se impõem às pessoas.
Que avance, pois, o abaixo-assinado pela privatização do tempo. Uma utopia acabada, com os contornos de um sonho que entra na geografia da fantasia. A cada momento, ser-nos-ia destinado cuidar do tempo. Algumas vezes, poderíamos acelerá-lo. Outras vezes, abrandaríamos a sua impertinente cavalgada, quando a efemeridade do tempo, que se consome num instante, esgotasse os prazeres a que podemos meter as mãos. Como se a cada um estivesse destinado um relógio pessoal (e não estará?) e esse relógio não fosse comandado pelo tempo tirano, o tempo que manda em si mesmo e no relógio que o mede, mas por cada pessoa que passaria a tutelá-lo.
O tempo privatizado seria a maior oferta de liberdade individual. Dir-se-ia, a consumação quase plena da liberdade. Andaríamos todos sob os auspícios de relógios diferentes. Provavelmente, haveria meses mais demorados para uns, anos encurtados para outros, e até muitos a quem a privatização do tempo seria indiferente e, portanto, continuariam afinados pelas convenções oficiais do tempo. Privatizar o tempo seria acabar com uma das piores tiranias que compõem a História da humanidade.
Contem comigo para a petição a reivindicar a privatização do tempo. Contem comigo para comícios apaixonados que mobilizem os apaniguados da privatização do tempo. Contem comigo para tudo o que ditar a emancipação de algemas, reais ou imaginadas, que limitam a autonomia do ser. Contem comigo para estilhaçar a mordaça do tempo, pois há sempre tanta vida que fica por viver e a culpa é sempre da efemeridade do tempo. E o tempo só é efémero porque foi nacionalizado desde o úbere da humanidade.
Contem comigo para contar o tempo pela minha medida.
Corrias por tua conta. Colhias no orvalho invernal a fonte que ajudava a matar a sede do tempo incógnito. Corrias por tua conta e não querias que mais ninguém corresse por ti. Amanhecias no sopro de dezembro, sentias aquele frio que se embebe nos ossos e, todavia, consagra o inverno precoce. Não figuras entre o numeroso exército que é capaz de organizar preces para apressar o inverno.
Um dia soubeste que queriam privatizar o tempo. Nem quiseste saber de outros pormenores. Mesmo a tua objeção metódica à posse pública das coisas (eras conhecido por defender em público a privatização de muitas coisas detidas pelo Estado) não foi suficiente para dares a mão aos promotores de uma ideia tão desconchavada. Temias que a voz dominante, aquela que se insurge contra o outono e o inverno e colonizou o idioma e os usos por fazerem corresponder o tempo dominante ao “mau tempo”, fosse capaz de reduzir o tempo outonal e a invernia a estações minimalistas. Temias que os que queriam privatizar o tempo tivessem encomendado de latitudes tropicais o tempo quente e húmido que dispensa a existência de estações. Só de pensares na hipótese já estavas a suar, mesmo que lá fora estivesse um frio pré-invernal.
Planeaste um movimento de sentido contrário. Tu, que odeias os conservadores de pacotilha que têm medo de qualquer mudança, serias ponta de lança de um movimento contra a privatização do tempo. Farias campanha a favor da perenidade das estações tal como as conhecemos. Irias mais longe: como parte integrante da contracampanha, farias circular um abaixo-assinado para rever o significado de “mau tempo”. Para se extinguir a correspondência entre a chuva e o vento e as tempestades e “mau tempo”. Os meteorologistas seriam os primeiros a serem instruídos. Estariam proibidos de pronunciar a expressão “mau tempo”.
Já mobilizavas a ausente militância de coisas públicas quando te chegou ao conhecimento que a intenção de privatizar o tempo não tinha a ver com o tempo meteorológico. Queriam privatizar o tempo, mas era o tempo cronológico. Desmontaste toda a pré-campanha que te varria o pensamento de ideias fulgurantes e começaste a pensar como haverias de reagir à ideia de que o tempo, o tempo contado pelos relógios, poderia ser sujeito a privatização.
Titus Andronicus chega triunfante a Roma. Triunfante e cansado. Já foram muitas as guerras que o general travou e viu cair em combate vinte e um dos vinte e quatro filhos, que não tem força para ser imperador. Nomeia Saturnino, que não esconde a acrimónia perante Titus antes de ser acalmado como imperador. Como seu primeiro ato, Saturnino desposa Tamora, rainha dos godos, que Titus tinha acabado de desfeitear e trazia perante os romanos como relíquia arrebatada na guerra.
Mal foi nomeado, Saturnino quis vingar-se de Titus. A rainha, que acabara de ser deposta pela guerra e reempossada pela arte do calculismo humano, teceu um enredo que iria de vingança em vingança até que as mortes de todos os vingados se acumulassem numa pira de desonra. Ela própria, um filho seu, um filho de Titus, Saturnino e até Titus perecem no apocalíptico ato final em que todas as vinganças se consumam no imenso vazio que se cola à posteridade.
A peça “Titus”, adaptação de Cátia Pinheiro, Hugo van der Ding e José Nunes de “Titus Andronicus”, de Shakespeare (em cena no Teatro Carlos Alberto), aproveita um clássico intemporal do teatro. Como intemporal que é, os encenadores quiseram mostrar que a trama explica as guerras que têm sancionado a humanidade ao longo dos séculos. O orgulho que irradia com fulgor, o prazer pérfido de impor a vingança ao inimigo, fazendo-o vergar diante de uma humilhante derrota, serve de combustível para vinganças futuras ainda mais dolorosas e humilhantes – eis o retrato que um pessimista antropológico subscreveria sem hesitar. Num esforço de adaptação ainda mais contemporânea, a peça mostra o grande vencedor da trama de intermináveis conspirações que fervilharam no desejo de vingança irreparável: o negro e mouro, escravizado no passado, que se libertou das amarras dos poderosos e conspirou nos interstícios para aproveitar a sucessão de vinganças que tiveram o seu epílogo no colapso apocalíptico dos protagonistas que ainda estavam vivos.
“Titus”, na sua aplicação moderna, também legou ensinamentos sobre o discurso de ódio. Este é um discurso motivado pelo ressentimento. Os que são acometidos pelo ressentimento medram no úbere da vingança. Querem vingar-se do passado que não foi generoso. Querem repor um passado que se julgava sepultado. Querem vingar-se daqueles que, durante muito tempo, foram as forças vivas da sociedade que instruíram a delimitação face aos proscritos. Querem vingar-se contra as bandeiras hasteadas na evisceração do conservadorismo de se constituíram procuradores. Arregimentam lealdades com base num discurso de ódio que ateia a intolerância e não quer saber dos meios desde que os fins sejam atingidos. Perante um discurso de ódio que fermenta a acrimónia e levanta pontes para a arrogância ilimitada, que reação devem ter os que não se revêem nesse discurso?
A melhor reação é condenar o discurso de ódio à surdez. Os seus fautores devem ficar a falar sozinhos, ignorando as ramificações do que é dito em público, tecendo uma censura construtiva que consiste em não dar ouvidos a manifestações que exsudem discurso de ódio. Ao contrário dos empenhados militantes que reavivam o fantasma do fascismo que se levanta da sepultura, que decretam a imperatividade de combater, com armas idênticas, os radicais que adestram o discurso de ódio.
O discurso de ódio não deve ser proibido pela democracia, para que a própria democracia não caia em estado de autonegação. Não devem ser os democratas a delimitar o discurso de ódio, impondo-lhe as fronteiras de quem, com a necessária arbitrariedade, se empossa na condição de juiz político. O discurso de ódio deve ocupar o seu lugar no palco da democracia. Prefiro agarrar-me ao otimismo antropológico para acreditar que a lucidez emergirá para restringir o discurso de ódio à tumefação que ele é. O discurso de ódio é o melhor escudo da democracia.
Podem argumentar que deixar passar em branco o discurso de ódio tem efeitos contraproducentes. Dirão que, se não forem levantadas barreiras ao discurso de ódio, ele seguirá seu caminho, desimpedido de minas que devem ser colocadas para travar a cavalgada dos radicais. Não avaliem como capitulação a medida cautelar que preconizo. Não o proponho como quem estende uma passadeira triunfal aos que deixamos a falar sozinhos. Aos soezes deixa-se o silêncio como resposta à sua desbragada retórica. Os que quiserem habitar o mesmo lugar pútrido, respondendo à letra, trocando discurso de ódio pelo criterioso amputar de Liberdade ao quererem ser juízes arbitrários das liberdades, serão tão responsáveis pela propagação do discurso de ódio quanto os autores desse discurso.
Em “Titus Andronicus”, Shakespeare ensinou que estamos destinados à vingança. Por assim ser, a lucidez obriga a não jogarmos a mesma carta dos radicais, a carta do discurso de ódio. Têm de ficar a falar sozinhos. Para exibirem o espetáculo grotesco que é o discurso de ódio. Esperando que a esperança do otimismo antropológico se cumpra, os otimistas de fora lamentando o grotesco espetáculo, percebendo por que não falam essa gramática.
Quando Titus decidiu endossar o papel de imperador a Saturnino, o menos apto para o suceder à frente do império, saberia, no seu íntimo, que Saturnino o desafiaria sordidamente por vingança contra o general que nunca o reconheceu como o candidato predileto ao trono. Titus terá previsto a sede de vingança que haveria de sufragar depois de Saturnino confirmar a certeza que Titus teve antes do tempo. Há vinganças que se arquitetam antes do tempo. Mas as vinganças devem ser banidas, independentemente do tempo em que se tecem.
Se respondermos à letra ao discurso de ódio, acabaremos submersos pelos demónios que o instruem. Ficaremos à mercê da sua vingança e da vingança de que seremos procuradores para responder à vingança precedente. Quando dermos conta, também somos instrutores do discurso de ódio. A democracia estará, então, a um passo do suicídio.
Almoço. Na mesa ao lado, dois casais de reformados. Falam de viagens. São pessoas viajadas, se a mentira não estiver a falar por eles. (Quem te manda ser desconfiado?) Episódios de aterragens difíceis voam de boca em boca. A cada episódio assustador, sucede outro ainda mais assustador. Parece um concurso de horrores passados com aterragens à força, umas, e aterragens borregadas (no jargão do meio), outras. Os homens narram-nos com o ar de quem precisa de provar a valentia – a miúda do lado desatou em prantos quando o avião, mal tocou na pista, levantou voo com toda a força, investindo contra a turbulência, “mas eu não tive medo nenhum”. As mulheres são mais contidas, fazem fé nos episódios narrados pelos consortes.
Uma das senhoras sobressalta-se: não sabe da carteira. Sonda as imediações: “tenho a certeza de que entrei no restaurante com a carteira; não pode estar longe.” A carteira repousa na cadeira à minha frente, escondida pela toalha de mesa. Pega na carteira com alívio e dirige o olhar na minha direção. Não fosse desconfiar que eu já tinha notado a presença da carteira e quisesse dar-lhe um destino ilegítimo (na perspetiva de quem deita a mão na propriedade alheia), desanuviei o ambiente:
- Vamos trocar de carteiras, para ver quem tem mais dinheiro?
- Vamos. De certeza que é o senhor, com esse ar que tem...
Não trazia ar de maltrapilho. Devia ser o ar de alguém, pelo menos, mais endinheirado do que a senhora – ou a senhora está habituada a que o marido seja o homem das finanças. Retorqui, depois de entreabrir a carteira e espreitar o pecúlio guardado (era uma nota de dez euros):
- Aposto que eu ficava a ganhar se trocássemos as carteiras.
- E os cartões, os cartões não contam?
- Não. Só contam as notas. De certeza que não quer trocar as notas que temos nas carteiras? – desafiei a senhora, como se fosse um profissional do jogo e o bluff não amedrontasse. Não sabia quantas notas a carteira da senhora agasalhava e se, caso avançássemos na troca de pertences, ficaria a ganhar ou a perder. O marido, sentado à sua frente, contestou:
- Ah, não vale! O dinheiro de plástico é mais importante do que o dinheiro contado.
A conversa foi interrompida pelo serviço que chegou à mesa dos quatro reformados. Mais tarde, já tinham sanado a fome, a senhora levantou-se para ir à casa de banho. Cruzámos olhares. E ela sentenciou, atrevidamente, falando na minha direção:
- É o senhor que paga a nossa conta.
Não reprimi uma gargalhada (coisa rara). Nada disse. O silêncio costuma corresponder a consentimento – pus-me a pensar. Como estamos a entrar no mês do Natal, e às vezes dá-me para ser exageradamente generoso em épocas que sejam à altura da generosidade, terminei a refeição antes de a senhora regressar da casa de banho e dirigi-me à caixa. Pedi a conta. Da minha mesa e da mesa ao lado, para espanto do empregado. E saí de mansinho, com um discreto “boa tarde” dirigido aos três reformados que ainda esperavam pelo café.
Depois percebi: esta generosidade foi um ato de ostentação. Tão gratuito quanto o ato normal de restringir o pagamento à mesa própria.
Estavam todos ofendidos, a sensibilidade a irromper à flor da pele: “que golpe de teatro”, exclamavam, com a exclamação de quem emprestava cor ao ultraje de que se consideravam vítimas. Podia lá ser, tamanha a usura dos que subiram a cena e ensaiaram um golpe que não era de Estado, era apenas um golpe de teatro. Não podiam tolerar a infâmia: no embrulho estava escrito, com todas as letras, “golpe de Estado”. Não se pode aceitar uma farsa tão ingenuamente montada. O golpe, mesmo que fosse profundo, era só de teatro. Como aqueles golpes que esventram as castanhas antes de passarem pelo fogareiro, colorindo o outono com um dos seus sabores preferidos.
Quando prometem um golpe de Estado, não podemos ficar contentes com um golpe de teatro. Nisto de golpes, tirando os das artes marciais, que respondem a outra escala, existe uma hierarquia. Como é de mau tom para os dias que correm, a haver golpe, que haja sangue derramado. Quando uma sublevação termina em golpe de Estado, irmãos combatem irmãos, uns para depor os outros. Se tiverem de vencer o pleito ou defender-se dos insubordinados vertendo sangue, que esse sangue seja dos que se alojam na trincheira oposta. O estado de ânimo exacerbado não tolera bandeiras brancas esbracejadas numa derradeira tentativa de evitar o derramamento de sangue. A diplomacia faz-se letra morta.
Já um golpe de teatro é um golpezinho, um golpe frustre. Não é suficiente para cozer a pele com alguns pontos. Um golpe de teatro é superficial, não causa grandes dores a quem dele for vítima. Os que têm causas rebeldes e não afastam a contingência da beligerância protestam contra os golpes de Estado que se resumiram a meros golpes de teatro. Estão errados. Porque um golpe de teatro tem a dignidade das artes e não é obrigado à destemperança do sangue vertido pelos que vierem a ser suas vítimas. Pode ser um golpe, mas, sendo de teatro, vale muito mais do que mil armas depostas por vergonha dos que se exercitam a guerrear sistemas políticos decadentes ou como vigilantes de outras causas avulsas que ganharam o lastro do exagero.
Se um golpe de teatro é a despromoção de um golpe de Estado, entretanto abortado, que mereça todos os aplausos que puderem ser arregimentados. Entre um golpe que fica na superfície da pele e outro que vai ao fundo da carne, ensanguentando o chão com a cor da vergonha que não colhe redenção, que venha um milhão de golpes de teatro.
he’ll shoot you for free if you come around here.”
Um concurso de bramidos. Vozes esporeadas umas contra as outras, sobrepondo-se, costurando um tricotado ininteligível. Em sacrifício da mensagem que devia ser o ouro líquido de uma discussão que não fosse atraiçoada pelas desregras. Num caldo de deseducação e intolerância que tornam intoleráveis as intermináveis procissões de gente pequenina e mesquinha quando as ideias diferentes se terçam em público. Todos os códigos de conduta já foram dissolvidos na espuma da torpeza.
Os efeitos de contágio propagam-se à velocidade da luz. Fora do espaço mediático, sem a participação das personagens que não passeiam o anonimato quando se cruzam com a pessoa comum, a incapacidade de ouvir sem atropelar com a fala, a indisponibilidade para aceitar ideias diferentes, a que devia corresponder a capacidade de argumentar em favor de ideias contrárias com a urbanidade de quem alicerça os argumentos, a propensão para confundir os que são diferentes com inimigos que abjuram sem contemplações – este é o ar do tempo puído que nos trespassa com dor.
Os aspirantes à notoriedade imitam os que já atingiram esse estatuto. Talvez lhes escape a lucidez de admitirem que não foram feitos para copiar acriticamente aqueles cujo estatuto ambicionam ter. Talvez não percebam a decomposição da qualidade quando essas personagens saltam para o espaço público e como, à mercê dessa perda de qualidades, os aspirantes não são obrigados a contribuir para a degradação do espaço público e menos público. Estamos condenados à contaminação da lei de bronze: a boa moeda é expulsa pela má moeda. Neste caso, a má moeda, que cavalga no estatuto de visibilidade pública, perpetua-se nos inúmeros microexemplos dos que aspiram a ser cópias baratas e contrafeitas daqueles que ocupam os palcos com visibilidade pública.
Perante este estado de coisas, o mais que apetece é a hibernação. Fingir por dentro de um irrecusável fingimento; mudar de canal, quando se é telespectador; evitar os jornais que informam sobre o andamento do país e do mundo; recusar-se a participar no coletivo lodo ao qual, caso contrário, ficaríamos amordaçados. Porque até as pedagógicas tentativas para quebrar o fogo deste estado de coisas se estilhaçam perante a resistência do exército de gente mal formada que empunha suas armas impiedosas no espaço público e no espaço menos público. Para ser possível acautelar o espaço sanitário, próprio da contaminação de toda a matéria infecta, que comanda o tempo e o espaço.
Contra esta universalidade, o refúgio de um exílio interior, o ascetismo indeclinável que contraria a propensão a acabarmos por ser iguais aos demais de quem tanto queremos distância.
Naqueles tempos de adolescência espúria, calcetavam a mesada com uns biscates aqui e ali. Era a vulgata do espírito do desenrascanço, como acrescentava, em pose filosófica, o tio de um deles, que se recusava a aceitar a idade e insistia em conviver com o grupo de adolescentes espúrios. Sorte a deles. O indivíduo tinha mãos largas e os rapazes tinham acesso a noitadas com os copos todos pagos.
Os adolescentes não nasceram de famílias abonadas. Por isso precisavam de calcetar as mesadas com os biscates. O dinheiro extra vinha a propósito. Era para as extravagâncias. Naquela altura, eram extravagâncias. Anos depois, quando começaram a trabalhar e, para sorte deles, os estudos de excelência os dispuseram para empregos pagos com salários muito acima da média para quem tinha terminado os estudos, os bolsos forrados de notas foram a rampa de lançamento para outras extravagâncias. Nenhum deles constituiu família (que expressão idiomática a despropósito: como se pode aceitar que a família se “constitui”?), porque o hedonismo falou mais alto, ateando uma boémia incorrigível e um rosário de vícios. Nunca souberam o que é poupar.
O tio de um deles, o homem a destempo que teimava em fazer noite na companhia dos rapazes, já era septuagenário quando eles entraram na casa dos trinta. Um ou outro contratempo de saúde não o dispunha para a boémia extemporânea de outrora, mas fazia questão de estar a par das proezas dos rapazes (dos “meus rapazes”, como gostava de terminar as frases, sem esconder a nostalgia). Depois, deixava que os sonhos levantassem voo e o trouxessem de regresso ao passado. Terminava o exercício à beira do precipício da agonia.
Os rapazes, agora já homens feitos e, todavia, impregnados de defeitos muitos, não queriam saber de responsabilidades. “Constituir” família era uma prisão e exigia a adesão aos costumes que não estavam dispostos a aceitar. Continuavam a dormir poucas horas. As vinte e quatro horas do dia não esticam, e é preciso encaixar à força, dentro do espaço de um dia, o trabalho, a boémia e um módico de sono. Às vezes, reuniam-se ao entardecer, depondo também eles nostalgicamente sob o efeito do pôr do sol que se fundia com o mar como fio do horizonte. Não sabiam por que caíam na nostalgia – eles costumavam berrar, em momentos mais eufóricos, que não queriam saber do passado nem do futuro e que o seu fado era consumir a fundo todos os segundos que acompanhavam o presente. Dizia: depunham nostalgicamente sob o efeito do entardecer quimérico e perguntavam: e nós, como seremos daqui a vinte anos ou daqui a trinta anos?
Não podiam fingir que o amigo mais velho, aquele que tanto lutara com todas as forças para fingir que o envelhecimento tomara conta dele, era uma amostra do que fora. Concediam, por mais que lhes custasse: a decadência apoderara-se dele e o quadro não era agradável. Antes que fossem assaltados por uma sensação de falsa partida, uma sensação que se repetia com a passagem dos anos, engoliam a nostalgia a destempo e avançavam para outro naco de boémia.
E voltavam a abraçar-se furiosamente ao presente, deixando para memória futura a ausência de memória.
O pequeno barco desafia as ondas ainda não invernais, enquanto a manhã se esforça por derrotar a neblina. Três pescadores manobram as artes de pesca perto dos rochedos que separam o mar do areal. O mar ainda não está invernal, mas já mostra as convulsões próprias de quem foi o espelho das habituais tempestades outonais. O mar prepara-se para o seu estado iracundo quando vierem as tempestades afuracanadas que, às vezes, o Inverno transporta para esta latitude.
Os pescadores intrépidos fingem ignorar quão arriscada é a sua demanda. O bote bamboleia, levado pela coreografia do mar que parece discreta, mas que já traz ondas à lapela que, por vezes, deixam a pequena embarcação fora do alcance de quem a vê desde terra. É sinal do risco que os pescadores decidiram assumir para uma safra que não compensa tanta audácia. Se chegasse à fala com os três homens, perguntaria se tinham medido o risco e se a fita métrica que usaram não estava desfigurada. Perguntaria se a safra esperada é a medida para superar os riscos de não voltarem a terra. Perguntaria se perguntaram às suas companheiras se aprovaram esta saída despropositada para um mar já tão assustador. Perguntaria, mas em tom moderado, para que os pescadores de circunstância não sentissem que da minha voz se erguia um muro de censura.
Guardo na memória, em pleno Verão, o aparato da salvação de dois homens que, exatamente na mesma zona, tinham ido à pesca. Num pequeno bote, como o dos homens que ontem desafiavam o azar. O bote estava virado do avesso. Uma senhora ao lado falava para quem a queria ouvir: “vi tudo, veio um golpe de mar e o bote virou ao contrário. Eram dois homens.” Repetia a deixa quando sentia a presença de novos mirones. Dois rapazes, nadadores-salvadores naquela praia, tentavam chegar a um dos homens que havia sido atirado ao mar e se debatia para contrariar a sua força centrífuga. O outro estava desaparecido. Nas notícias do dia seguinte, o veredicto: um homem foi salvo; o outro continuava desaparecido.
Há exemplos formidáveis na literatura que narram os infortúnios de pescadores. Alguns, no exímio estilo realista, descrevem como os homens do mar têm de sair ao mar para trazer pão para a mesa da família. E como, algumas vezes, a família fica sem o homem que trazia o pão, para sempre sepultado no mar distante e profundo onde a embarcação naufragou.
Somos temerários quando não sabemos sopesar o medo; ou, quando transidos pelo medo, superamos os medos e medimos o risco por baixo, com a intencionalidade de quem fecha os olhos e arremete pela loucura. Fechamos os olhos à contingência e, quando damos conta, fomos suas vítimas. Uns, por saírem extemporaneamente para o mar. Outros, por estarem a dormir para a lucidez e serem atraiçoados por um erro de julgamento.
Hoje é o dia internacional de qualquer coisa. Porque há sempre alguma coisa digna de celebração, para que a coisa qualquer não caia no esquecimento e se extinga da memória coletiva. É preciso preservar a memória coletiva para que não sejamos reféns da desumanização por mote próprio. É por isso que os dias internacionais reconhecidos por instâncias superiores levam maiúscula no início; devem ser escritos assim, para impedir a banalização dos dias internacionais, como Dia Internacional Disto ou Daquilo.
Hoje pode ser o dia de uma árvore. Há dias foi o dia internacional da Filosofia, precedido pelo dia internacional das casas-de-banho. Hoje é o dia internacional dos irmãos gémeos. Amanhã será a vez do dia internacional contra a violência exercida sobre mulheres – no mesmo dia em que por cá muitos comemoram o dia nacional da reposição da normalidade democrática. Os dias internacionais desmultiplicam-se ao gosto dos fregueses, daqueles que irrompem com a sua voz influente e conseguem marcar lugar no apertado calendário de trezentos e sessenta e cinco dias que cabem num ano, que só habilitaria a existência de trezentas e sessenta e cinco celebrações a propósito de um dia internacional do que quer que seja.
A páginas tantas, perante as reivindicações galopantes dos mais variados interesses que também queriam ostentar na lapela a medalha de um dia internacional a si consagrado, o mesmo dia passou a acolher mais do que um dia internacional. Hoje, os dias internacionais de qualquer coisa já superam o número de dias que pertencem a um ano. Para quem quiser saber o que se celebra no dia em que se lembra do assunto, a principal organização internacional inventaria os dias internacionais nesta ligação: https://www.un.org/en/observances/list-days-weeks.
(Protesto um lamento: no dia do meu aniversário, não há dia internacional de coisa nenhuma.)
Dantes, os dias internacionais eram raros. Mas era na altura em que a democracia ainda não tinha chegado ao domínio dos dias internacionais, antes de se terem tornado pródigas as celebrações de tudo e mais alguma coisa. Assim são satisfeitas vontades plurais. Só as vozes distraídas é que se esquecem de peticionar um dia internacional em seu favor. A igualdade, a maior patranha da democracia, assim exige. Que interessa se, do outro lado do labirinto, se encontra um cartaz gigantesco ostentando a palavra “banalização”?
Há dias, foi o dia internacional do gato preto. Na minha casa vive um gato preto. Mas dispenso o dia internacional que lhe é consagrado. Porque o meu gato preto é o meu gato preto nos restantes trezentos e sessenta e quatro dias do ano. Estas celebrações ocultam a hipocrisia que fica esquecida nos outros dias do ano, que são o avesso do dia internacional do que quer que seja. É a fatura do princípio geral da imediatização de tudo e mais alguma coisa, parente próximo da banalização intrínseca à existência de dias internacionais para tudo e um par de botas.
Não temos outra serventia para o tempo que nos é dedicado.
Também chamam penitenciária às prisões. Há países que tratam o conjunto das prisões como o sistema penitenciário. Ora, um sistema penitenciário é o sistema que se penitencia. É um sistema masoquista. Aplica a si mesmo os castigos próprios de quem teve mau comportamento e transgrediu os costumes e as regras por que se deve pautar.
Chamar penitenciária à prisão é eloquente. Os habitantes temporários das prisões cumprem castigo. Os crimes são assim definidos na expetativa de serem descobertos, julgados com base em prova convincente e de serem impostos castigos a quem por eles for condenado em sentença. É a sociedade bem-comportada – pelo menos enquanto alguns dos seus membros não transgredirem, tornando-se ovelhas tresmalhadas do bom rebanho – que exige a penitência dos que prestam contas à justiça por se terem tresmalhado. O grupo espera deles um arrependimento convincente. Enquanto o arrependimento não medra, comina-se a penitência: os trabalhos forçados que suprimem temporariamente a liberdade dos que se desviaram dos usos e das regras e precisam ser castigados pela ofensa a um esteio da sociedade.
Mas a palavra “penitência” tem uma carga pesada, evoca o ambiente repressivo que convoca a fidelidade metafísica e a limitação da liberdade individual para não hipotecar a autoridade da divindade. A reprimenda é religiosa: a falta de cumprimento é compensada com o castigo físico, pois a dor sentida pelo penitenciado é como se fosse exportada pelos membros ofendidos da sociedade para quem delinquiu. A penitência é o outsourcing da dor injustamente sentida por efeito de ato alheio; a sua devolução à procedência; o boomerang reparador. Através da penitência do tresmalhado, o resto do grupo ameniza o incómodo.
A penitência vem depois da penitência não autorizada, imposta contra a vontade de quem dela é vítima. É uma vingança. Sempre ouvi dizer que a vingança é uma reação mesquinha, nivelando quem a pratica pelo estalão do condenado à penitência com selo régio. Acabam por não ser diferentes, caçador e presa. Esta beneficia de uma proteção coletiva que as presas no meio selvagem não têm. Mas condenar os caçadores à penitência é fazer recair sobre eles a arma que usaram, contrariando a lógica das leis e dos usos. Uma penitência reage à outra. A segunda é ilegítima; a primeira legitima-se no alfobre da vingança, que nivela os direitos da presa e do caçador.
Fracos com os fortes. É o idioma que a humanidade sabe falar. Por mais que diligentes procuradores da igualdade se atirem com as armas da razão contra as desigualdades de variadas estirpes que teimam em desmentir a ética. Se os fortes exacerbam a sua força diante dos fracos, é por puro instinto de sobrevivência; são eles os primeiros a preservar um estatuto de superioridade, que não estão dispostos a partilhar com os fracos. Mas como se entende que os fracos exacerbem as suas fraquezas quando estão perante os fortes?
Em parte, a culpa é do passado. A separação das castas, mesmo que não tenham essa designação formal, é uma herança pesada que chega com o lastro do passado e a determinação dos usos sociais. Não se questionam os mais fortes, nem eles têm de se justificar, e justificar as suas ações, quando somos seus destinatários. Humildemente, obedecemos. Com um respeitoso aceno de cabeça – porque “o respeitinho (...)”. Assim se fortalecem os mais fortes e enfraquece o estatuto dos mais fracos.
Recentemente, a assimetria dos estatutos e a sua permanência têm sido contestadas por alguns que gravitam na órbita dos fracos. Cavalgam no lastro da democracia, e no que ela tem de intrínseco na dissolução das desigualdades persistentes, apostando na insubordinação e no desafio aos mais fortes. Não querem que a desigualdade persista. Se não tiverem vencimento de causa, advertem para o abismo que fere a legitimidade da democracia. O questionamento dos mais fortes é um exercício de força que capacita os mais fracos a saírem da prisão mental à qual foram condenados pela sua fragilidade.
É prematuro saber se a causa dos mais fracos vai triunfar. É preciso perguntar ao futuro, ou esperar pacientemente que ele aconteça. No presente estado das coisas, os fracos ainda são fracos e os fortes ainda são fortes. Alguns fracos continuam a fazer genuflexões quando estão perante os fortes. Estes continuam a desprezar os mais fracos ou a dedicar-lhes uma bondosa indiferença. Alguns fracos manifestam indignação pela desigualdade e motivam-se para serem fortes diante dos fortes. Alguns fortes já perceberam a iniquidade da desigualdade de estatutos e aceitam as aspirações dos mais fracos. Alguns fazem-no por adesão espontânea aos ares da modernidade e outros por calculismo. Enquanto a desigualdade perdurar por apatia dos fracos, é a fraqueza deles que cimenta a força dos mais fortes. Eles são fracos diante dos fortes, como se não bastasse que muitos dos fortes avivem a sua força quando estão perante os mais fracos.
Quando os fortes são perversamente fortes com os mais fracos, é sinal de uma enfermidade a que se chama hipocrisia. Não se diga o menos quando os fracos são fracos perante os fortes. A teoria ensina que vivemos num sistema que confere às pessoas frágeis as ferramentas para contestar a soberania assimétrica dos fortes. A omissão de muitos em ativar a sua condição também é um sinal de hipocrisia. Há fracos, muitos fracos, que estão resignados à sua (sub)condição.
Num fogaréu típico da publicidade – em tudo o que a publicidade é mestra ao convencer os destinatários a serem atores num palco de ilusões –, desfilam os rostos formidavelmente felizes dos apostadores de jogos variados (lotarias, Euromilhões, apostas online em que se aposta tudo e mais alguma coisa, as populares raspadinhas).
Retenho os rostos formidavelmente felizes dos apostadores, o totem de um paradoxo: o plano de negócios das entidades certificadas para a organização destas apostas depende das mãos largas dos apostadores e da lei das probabilidades estatísticas que favorece as primeiras e torna os segundos permeáveis às escassas possibilidades de serem premiados. A menos que os apostadores vivam imersos numa bolha de ignorância e sejam seduzidos pela falácia do enriquecimento por via das apostas em jogos de azar, eles são a carne para canhão que alimenta o plano de negócios das entidades certificadas para uma das várias modalidades de jogo.
E, mesmo assim, apesar daqueles rostos formidavelmente felizes dos apostadores terem uma elevada probabilidade de corresponder a pessoas que, no deve e haver entre dinheiro apostado e apostas premiadas, se perfilam entre os moradores do défice, os rostos estão formidavelmente felizes no momento do registo da aposta. Poderão contrapor que asfixiar a esperança no futuro é tirânico, um exercício de superioridade moral que os destinatários dispensam. E que, assim sendo, os rostos formidavelmente felizes que estão a trocar a esperança por um futuro materialmente mais desafogado ao investirem numa aposta, estejam formidavelmente felizes porque se não fizessem aquele investimento estavam condenados a vegetar na modicidade própria de quem leveda numa vidinha levemente acima da linha de água.
Também dispenso exercícios de superioridade arremetem perfeitos compassos morais para os outros. Não é este um exercício de pesporrência moral dirigido aos apostadores compulsivos, ou não compulsivos, os tais rostos formidavelmente felizes dos que se viciam em apostas. Os iconoclastas do anticapitalismo têm aqui um campo fértil para se atirarem às campanhas publicitárias que seduzem os apostadores atuais e futuros a elegerem considerações materiais como prioridade. Enriquecer não devia ser a preocupação das pessoas. Seduzi-las com uma promessa incumprível de enriquecimento perpetua o vício comportamental e constitui um autêntico logro, a crer nas muito reduzidas probabilidades estatísticas de serem premiados depois de depositarem uma aposta.
Por fora desta reprovação da dependência de um materialismo que despersonaliza, os rostos formidavelmente felizes estão felizes mesmo sabendo que a probabilidade de serem premiados é tão formidavelmente ínfima. E aqueles que são casos patológicos de dependência do jogo também continuam a entrar nos estabelecimentos de registo das apostas pendurados num sorriso formidavelmente feliz? Quem gosta de atirar dinheiro ao deus-dará?
Ao menos, há sistemas de apostas que se organizam segundo a lógica do assistencialismo. A maior parte do dinheiro gasto em apostas destina-se a ajudar as pessoas necessitadas. É uma forma de redistribuição de riqueza. De pobres para pobres. Desprezados sejam os que se amotinam contra a extensa rede de apostas e a publicidade que as retrata como um paraíso para os apostadores, com a abundância material ali mesmo, a espreitar desde o abismo.
“Here are the young men, the weight on their shoulders
here are the young men, well where have they been?
We knocked on the doors of Hell’s darker chamber
pushed to the limit, we dragged ourselves in.”
O marxismo ainda existe. A adversativa não tem segundas intenções. Das ideias, de quaisquer que sejam, não se tenha a ousadia de condená-las à extinção. Que não seja fácil ceder à tentação de as considerar datadas. O exercício será sempre precoce e, ele próprio, condenado a um vigoroso desmentido. Nem que os tutores desse desmentido se limitem a exercer a sua liberdade de expressão, por mais que os seus oponentes desprezem essa ideia por a julgarem antiquada. As ideias, nenhuma ideia, podem ser ostracizadas ou desvalorizadas. Pois esse esquecimento pode ser o melhor trunfo que espera a reabilitação das ideias pelo tempo vigente.
O tempo e as circunstâncias são o palco ideal para peças de teatro politicamente militantes. Brecht é um dramaturgo de eleição para os que convocam das artes as armas necessárias para combater os interesses que se mobilizam contra os direitos da parte mais vulnerável do contrato de trabalho. Por mais que as peças de Brecht sejam datadas e se embebam num contexto que historicamente é distinto dos tempos atuais, para quem defende a sua atualidade as diferenças de contexto não são impeditivas do seu resgate. Os tempos que não correm de feição trazem essas peças de teatro do passado, tornando-as imediatamente atuais.
Quem não seja sensível a estes quadrantes políticos não pode deixar de ficar atento à mobilização incremental das artes para integrarem o combate político, alinhando-se com a agenda das forças políticas e dos interesses específicos que se amotinam contra a agenda laboral que ameaça cortar direitos. Pode ser desempatia com a ministra da tutela, que não compensa a circunstância de ser perita na matéria com a arrogância que destila a cada intervenção pública sobre o assunto. Pode ser um questionamento sobre a legitimidade da modificação das leis, quando a agenda laboral não constava do programa eleitoral. Ou pode ser, mais objetivamente, que algumas das soluções incluídas na agenda laboral sejam excessivas (di-lo alguém que não esconde o seu pendor liberal).
“Santa Joana dos Matadouros” é a peça de Brecht que traz para o presente uma crise e um enredo nela baseado dos anos trinta do século passado. É Brecht a dar um banho de marxismo à audiência. E, apesar dos pesares acima expostos, pese embora uma pessoa medianamente atenta perceba que a comparação de circunstâncias (da peça e da atualidade) não favoreça conclusões senão apressadas e politicamente empenhadas (isto é: sanar uma certa orfandade política, que é a extração do tempo presente, de quem busca alguma redenção na mobilização das artes contra os estertores que se anunciam) – pese embora tudo isso, Brecht é a alma pater de um revivalismo necessário para a reabilitação de uma militância que se oponha à perda de direitos, ao tal retrocesso civilizacional.
Em “Santa Joana dos Matadouros” desfilam os habituais clichés: a ganância dos capitalistas, que não hesitam em sacrificar os mais fracos se esse for o resultado de mais dinheiro amealhado; a intencionalidade dos detentores do capital, que condenam à perda de direitos os que para eles trabalham, forçados a receber um salário mais baixo pelo privilégio da conservação do posto de trabalho. Sem se perceber que a História, e a modernização dos tempos, terão ensinado aos detentores de capital que hostilizar os trabalhadores, condená-los à usura que os torna dependentes e condená-los a receber menos salário por mais horas de trabalho é o contrário do que um detentor do capital consciente pode pretender; se o protótipo simplista de “Santa Joana dos Matadouros” fosse viável, ao promoverem a dependência psicológica e a miséria material, os capitalistas alcançavam o oposto do que querem obter: reduzir o rendimento dos trabalhadores é condená-los a reduzir o consumo. E como a produção não sobrevive se o consumo não sobreviver, menos compreensível é a exportação de Brecht para o século XXI.
Assistir a peças de teatro ou a outras manifestações de artes em que se convoca a renovação da militância contra o capitalismo (“o fascismo é a verdadeira face do capitalismo”, convém evocar a ilação de Brecht) parece integrar uma (compreensível) estratégia de sobrevivência daqueles sectores políticos que entraram em deriva existencial e que receiam a repetição da História. Estes “tempos medonhos” são o palco fértil para manifestações de arte politicamente empenhadas. O recurso a fragmentos emblemáticos das artes para reavivar e reativar militâncias em retração, não pode justificar que se atropele o pensamento e se aceite tudo na urgência de estender a analogia entre diferentes camadas do tempo e diferentes circunstâncias. Apanhar boleia de um Brecht datado deixa entender que quem a apanha se assemelha a alguém que se sente puído pelo curso da atualidade e precisa de um banho, um banho de marxismo, para renovar as forças.
Para os demais, que têm interesse em participar da liturgia coletiva — um interesse talvez arqueológico —, o palco é uma lição inteira. Sobretudo, de como o recurso às artes, pedindo emprestado ao passado peças de teatro que são libertadas da poeira que sobre elas se deitava, não passa de um recurso estilístico.
No quarto dos arrumos, onde os desastrados são desterrados, tudo é à prova de bala. Os desastrados são capazes de provocar um sismo de proporções bíblicas só por um “leve bater de asas” (como o da borboleta que, depois, vem a causar tufões inomináveis).
Os desastrados são os poliglotas dos cataclismos pessoais. Deles se pode esperar desastres – ou não fossem conhecidos por desastrados – tanta a proficiência para causar acidentes em cadeia a partir de um gesto inicial e simples. É aquele que transporta a bandeja com o seu almoço e o da amiga (ainda há cavalheiros como no império britânico) e, distraído com a companhia e com o privilégio que lhe foi dado de ser tão generoso para a amiga, tropeça no pé distraidamente mal colocado de um colega de trabalho e se estatela no chão, mergulhado na bolonhesa que encimava o esparguete.
Ou o estudante finalista que, em festim noturno depois do jantar de gala, verte acidentalmente um whisky na gravata do professor que, já sabia, faria o exame derradeiro antes de concluir a licenciatura, e tudo porque quis oferecer a hora do momento ao lente e não reparou que, para inclinar o relógio, o mesmo gesto se contagiava ao copo que tinha sido reabastecido uns instantes antes.
Ou o aspirante à promoção a um cargo mais importante na empresa que quis impressionar o conselho de administração e, chamado a pronunciar-se sobre um assunto de sua lavra, querendo discursar com a erudição que não lhe assistia, trouxe para o inventário da fala um amontoado de palavras gongóricas e duas ou três piruetas gramaticais (a terceira ficou por consensualizar entre os presentes), deixando os presentes boquiabertos pela ininteligibilidade do discurso.
Ou o noivo que ficou tão nervoso, tão nervoso, enquanto aguentava a tradicional demora da noiva, que começou a ficar com a bexiga apertada, e cada vez mais, e mais ainda, e ele não se podia ausentar porque a sogra estava sempre a advertir que se a noiva chegasse ao altar e ele estivesse temporariamente ausente a boda ficava sob os auspícios do azar, não tendo, ato contínuo, o noivo aguentado a traição da bexiga urinando abundantemente pelas calças abaixo à vista de todos os convidados.
Ou aquele político apanhado com a boca na mentira, não lhe valendo nem os melhores (ou piores, dependendo da perspetiva) dotes para convencer os demais que não houvera dito o que estava a ser entendido como a prova material de uma mentira, pois as palavras tinham sido retiradas do contexto, “truncadas”, disse ele em sua defesa, para continuar a meter as mãos pelos pés e a cavar ainda mais fundo a cova onde ele e a sua amiga, a mentira, estavam quase a ser sepultados.
Estes desastrados, e outros que não vêm ao caso, pediram proteção de si mesmos à justiça das almas. Queriam ser salvos da elevada propensão para asnear. Não se importavam do desterro para o quarto dos arrumos. Podia ser que aprendessem a arrumar-se.
“They ought to practice what they preach/those good people”.
Açambarcava os sonhos antes que perdessem validade. Mas, às vezes, os sonhos adulteram-se, perdidos entre as nuvens baças que os ensombrecem. Não dizia adeus às dúvidas. Os que apostavam nos caudais excessivos para calar o medo não percebiam nada. Esses não tinham lugar nos sonhos sem pressentimento. Vagavam, os seus lugares, à medida que eram despojados.
Um dia, prometeu que não haveria vozes malsãs a tocar às campainhas da consciência. Jurou que só deixaria entrar as vozes melódicas que entoassem poemas vividos, como se fossem astronautas mergulhados nas profundezas dos mares. Os embaraços deixariam de correr por sua conta. Firmando os pés no solo alicerce, olharia por cima do tempo até virar a página do horizonte.
Os templos corriam atrás da tela. Eram sombras intuídas, escondidas dos paramentos que disfarçavam condições meãs. As pessoas não reconheciam os templos. Passavam por fora, como se eles não constassem do mapa e todos os idiomas fossem suprimidos pelas vozes magras. Não é inverno duas vezes seguidas – alguém prefaciava o pior La Palisse que se podia conhecer. E, todavia, o inverno sabia que depois dele não vem outro igual. Para os detratores do inverno, esse era um lugar-comum que sossegava os sonos desalmados.
Se medisse as bissetrizes das almas, onde encontraria o equinócio?
O luar embatia na noite compungida. Prometiam um luar singular, já não se lembrava do adjetivo arrematado para essa singularidade. Os deuses conspiraram: encomendaram uma densa camada de nuvens para impedir tamanho luar. Salvaram-se os que vinham de avião, sentados do lado esquerdo. Voando acima do teto de nuvens, estavam quase a par da lua proveitosa. Quando aterraram, já se tinham esquecido do luar singular. A convocatória do chão desmonta os sonhos angariados na sua efémera criação. Depois da noite, podiam ter sido titulares de uma diferença invejável. Preferiram substituir a poesia pelas representações frias do mundo conhecido.
Os propedeutas dos sonhos não sabiam do paradeiro das luas diferentes e da inesperada aurora boreal que invadira latitudes desconhecidas. Mas os deuses conspiraram outra vez: em vez de falarem dos fenómenos celestes, encomendaram uma tempestade que desviou as atenções. Os deuses tinham medo que as pessoas degenerassem para a poesia, que é meio caminho andado para serem desautorizados. Os olhos insondáveis retiraram-se do protetorado dos deuses. Agora, liam poesia na manhã inaugural. Disseram às palavras que estavam emancipadas da órbita dos deuses. As palavras podiam falar em nome dos sonhos. Podiam dizer aos sonhos aquilo que os sonhos quisessem ser.
Éramos crianças e subíamos às árvores, que não detinham as brincadeiras. Se déssemos ouvidos a agentes conspiradores, seríamos convencidos de que subir às árvores era jogar com o pressentimento do poder: na altura, era no alto que nos sentíamos bem, mais tarde seríamos ocupantes de lugares cimeiros. O tempo encarregou-se de desmentir a profecia dos agentes conspiradores. Nenhum de nós tomou o poder como ópio.
Queríamos subir às árvores porque gostávamos de labirintos. Do desafio de um labirinto. Os ramos que se desmultiplicavam eram como sucessivos corredores que se abriam do nada por dentro de um labirinto. Não nos amedrontavam as alturas; naquela altura, não tínhamos vertigens. Quando fomos mais velhos, passámos a tropeçar em vertigens quando abismos vários se semeavam nos nossos caminhos. Mas naquela altura, não. Medíamos os passos à medida que trepávamos às árvores. Queríamos sentir o equilíbrio precário. Para saber onde parar.
As figueiras eram as árvores prediletas. Sobretudo se fosse época de colher os figos. Depois tínhamos bebedeiras de figos, comendo-os até nos enfartarmos. Sentíamo-nos como se fôssemos suseranos de um domínio qualquer quando nos abarbatávamos com os figos e, sentados sob a copa da figueira, dirigíamos o olhar para a figueira que ainda não tinha sido despojada da colheita de figos que o ano proporcionara. Éramos suseranos daquela figueira e nós é que sabíamos do destino dos figos.
Era por esse poder que nos inebriávamos. O poder mundano, que começava e terminava na exiguidade dos nossos eus. Até porque, na altura, sobretudo quando subíamos à altura das árvores, não sabíamos o que era o poder a que os outros chamavam poder.
Gostávamos da sensação de poder interior e da sua efemeridade. Sabíamos que ela se extinguia quando terminávamos a descida da árvore e os pés se firmavam no chão sólido. E sabíamos que a efemeridade do poder, enquanto estávamos empoleirados nas árvores, era como habitar uma fuga. Só não sabíamos do que fugíamos. Ou talvez fugíssemos por conta dos sobressaltos intrínsecos à idade adulta. Sem sabermos, fugíamos desses sobressaltos. Pois, embora deles nos exilássemos antes de eles terem lugar, sabemos agora que era como se estivéssemos no tirocínio necessário para acautelarmos os seus efeitos por vezes devastadores. Esta foi uma profecia que se cumpriu. Hoje estamos todos inteiros. Talvez porque soubemos contrariar a sedução do poder.
Hoje continuamos (adivinho) a subir às pessoais árvores imaginárias. A fazer a vontade aos sonhos que se entronizam na própria vontade. Saltando de ramo em ramo, as mãos agarrando-se a outros ramos, enquanto os pés se deslocam num movimento sublime à procura de todos os sonhos, sem ter de saber se vão encontrar realização.
Hoje, lamentamos que as crianças nossas sucessoras sejam proibidas de experimentar o equilíbrio precário de uma árvore. Não é de estranhar que cresçam desabilitadas para os contratempos da idade adulta. Até porque hoje os contratempos são de uma estatura maior.
Não precisava de pontes para chegar ao despesismo da alma. Vozes guturais subiam a pulso pelas veias, atropelavam os embaraços estiolados. Não podia permitir o esbulho constante da alma. As dores corriam por sua conta. O belo efémero instalava-se nos interstícios, como se precisasse de colonizar a feiura irremediável.
As mesmas vozes guturais abrandavam quando sentiam a pele nas imediações. Traziam-lhe um módico de profundidade: a pele só acautelava as coisas frívolas que as vidas não podem deixar de apascentar, mas precisava de outras fundações. O espírito inquisidor não dava tréguas ao sono metafórico; era contra as distrações, muitas vezes fatais, em que se enredavam os olhos desatentos. As pessoas diziam que os males estão feitos e que ninguém consegue, à sua conta e risco, mudar os planos das coisas embalsamadas. As pessoas estavam erradas. A capitulação é a pior conspiração que se mobiliza contra elas. Se não supõem os malefícios da apatia, deviam desafiar o comodismo da inércia, subindo a um palco onde se entretece o contrafactual.
Tudo começava com uma intencional sublevação interior. Uma sucessão de perguntas, umas incómodas e outras apenas para ajaezar o espírito inquisitivo – ou para desatar a controvérsia, que os espíritos andam muito aquietados e essa limitação do espaço corrompe a vontade de cada pessoa. As vozes guturais transformavam-se num clamor que troava e fazia abalar até os alicerces mais bem enraizados. Não podia pactuar com o fingimento cabal das coisas, com a rotina que substituía a criatividade, pois a imaginação pode ser terçada em desfavor dos mandantes que povoam o lugar com uma dócil passividade mesmo a preceito. Ah, se todos fôssemos obedientes, não era preciso organizar eleições.
Os provérbios tiravam partido da dependência dos hábitos para se mobilizarem a favor dos que temiam a vontade sem freios das pessoas. Os provérbios prolongam as algemas mentais que muitos colocam a si mesmos só para não terem de pensar pelas suas cabeças. São terroristas de si mesmos, indignos de transportar a bagagem de direitos que parece ter sido inventada para domesticar a rebeldia do pensamento sem fronteiras. Ficam à míngua de um lugar visível. São eles que devolvem largas fatias da vontade não exercida; por prescrição ou por desinteresse, fogem de um lugar próprio na assembleia onde todos coabitam.
Estes lugares são estertores do que podiam ser se as pessoas não se intimidassem com a promessa de serem vozes que se fazem ouvir. São devolvidas à procedência, no lugar escondido onde se perfilam, tão pequeninas.
Ao domingo, as pessoas gostam de sair de casa. Fazem o (convencionado) “passeio dos tristes”. Metem-se nos carros e encetam as suas procissões vagarosas pelas estradas frequentadas por outras pessoas que também vão no seu “passeio dos tristes”. Convergem nos mesmos locais, não por acaso atirados para as convenções dos pontos turísticos da região. Parece que todos fogem das casas que são, contudo, pouco frequentadas durante a semana.
Mesmo que esteja um tempo outonal, quase a escorregar para a invernia que não tarda, famílias inteiras saem de casa e encaixam-se no espaço exíguo dos carros. Este é o passatempo da tarde inteira. Serão menos a visitar a gelataria quando os filhos entrarem na adolescência e deixarem de ter paciência para aturar os pais nas procissões familiares escrupulosamente dominicais.
Ainda ouvem o relato enquanto passeiam o seu vagar nas estradas regionais. Quando os filhos forem adolescentes, deixarão de frequentar a gelataria – assim como assim, só iam à gelataria porque os petizes queriam lanchar as iguarias americanas que só aquela gelataria confeciona. A meio da tarde, o pai e a mãe dos adolescentes rebeldes estacionam diante do mar, num dos lugares que ainda estiver vago, e o marido adormece apesar da voz esganiçada do narrador do jogo de futebol que vai transformando um jogo maçador num acontecimento que entusiasma os ouvintes.
(As rádios locais têm de sobreviver.)
De regresso a casa, a consorte vai remoendo em antecipação a semana que a espera. As lides da casa: a escolha da ementa para o jantar, a roupa dos filhos, a roupa do marido (que ele não tem jeito para se apessoar), as limpezas da casa; não pode deixar os créditos por mãos alheias, e a sogra, quando vai de visita lá a casa, está constantemente de atalaia à espera do mínimo deslize na limpeza da casa, na roupa do marido e dos “meninos”, na qualidade do almoço de todos os sábados. Ainda é domingo e já está a desejar que volte a ser domingo outra vez. O regresso a casa torna o estertor do domingo uma tortura. Já prometeu que deixaria de antecipar os dias da semana, para não trair a serventia do domingo. Ainda não conseguiu.
As tardes de domingo são um hino ao silêncio. Têm poucos assuntos para falar. Os assuntos da sua preferência são indiferentes para ela. Nunca gostou de futebol e agora ainda menos. Os assuntos que correspondem a uma vaga atenção dela são “coisas de mulheres”, como ele descreve em tom jocoso. Ela já não se lembra há quanto tempo ele a beijou na boca ao acordar. Ele envelheceu antes do tempo, à boleia de todos os amigos que também envelheceram antes do tempo e se dedicam a coisas frívolas que, todavia, também preenchem as vidas.
Ao domingo, têm de continuar a sair de casa e a queimar dinheiro no gasóleo queimado durante os quilómetros do “passeio dos tristes”. A solidão silenciosa da casa de morada de família é ainda mais triste.