Death Cab for Cutie, “Black Sun” (live on David Letterman), in https://www.youtube.com/watch?v=o9o8jYRAmaI
(Para que este texto não seja treslido à medida da conveniência dos que vão ser criticados, eis o registo de interesses: causa-me perplexidade e preocupação a popularidade dos extremistas de direita que têm vindo a subir a pulso na paisagem eleitoral. São uma excrescência da democracia, mas não pode ser vedada a sua participação em eleições se e enquanto não manifestarem a intenção de terminar a democracia. No passado recente, alguns destes credenciados exemplares tomaram conta do poder por terem ganho eleições. Por mais entorses que tenham causado à democracia, não lhe puseram termo. Merecem o benefício da dúvida, por mais que causem náusea – nestes tempos, ainda mais do que a extrema-esquerda.)
Brecht dizia que se devia dissolver o povo quando o povo é ingrato e não vota “como deve ser”. Eis o drama existencial da democracia, esse regime que, de acordo com alguns iluminados, uns ascetas que aspiram a pastorear o bom povo que precisa de orientação, é o melhor desde que o povo eleja os que são devem ser eleitos. Há alguém que, na senda do sofisma de “quem decide quem decide?”, instrui o bom povo para saber os candidatos ou os partidos recomendáveis e os que devem ser impedidos de ganhar.
A triagem feita pelos iluminados é um exercício de denegação da democracia. Eles próprios, ao recomendarem os eleitos recomendáveis aos eleitores, atropelam o jogo da democracia. Este exercício esbarra noutro que é intrínseco à democracia: o direito de escolher entre as listas ou os candidatos que se apresentam a concurso eleitoral. Não é exagerado adivinhar que se um acaso levasse os “certificadores” de candidatos à titularidade da batuta do regime, excluiriam certos candidatos e partidos que, de acordo com a sua visionária sentença, não respeitem os mínimos de aceitabilidade democrática.
Para seu imenso desgosto, o Estado de direito tem superioridade e funciona como uma importante mnemónica: a vontade intransigente de quem inspira as massas que precisam de aconselhamento não se torna letra de lei. Por muito que interiormente aspirem a ser condutores das massas e acreditem que ditam as leis (como se houvesse um ordenamento jurídico seu que suplanta as leis existentes), esse não é o caso.
Para seu pesar, o sistema político tem regras que aceitam aqueles que os condutores de almas já condenaram ao desterro político. Para sua grande mágoa – e para o pior que se possa imaginar –, estes abencerragens de um passado deplorável têm cativado cada vez mais votos. Alguns, homessa!, chegam a ganhar eleições. Outros, dantes ausentes da paisagem política, conseguem ter um contingente numeroso de representantes parlamentares. Os donos da verdade assentam nos pergaminhos antidemocráticos destes populistas, esquecendo a temerosa linhagem de outros populistas que gravitam na assimetria ideológica dos que são atirados para o lodo autocrático.
O pior é quando os juízes da moralidade impante animam as hostes a saírem à rua em protesto contra eleições ganhas pelos “fascistas” – o rótulo tão fácil, tão banalizado e tão esvaziado de significado que não seja a sua adulteração como vexame dos que ousam ser nossos opositores. Ou quando efabulam sobre a qualidade do voto dos que escolhem estas personagens de má rês, atropelando flagrantemente o princípio do voto individual e de como todo o voto, até o que mais lamentarmos (de preferência no nosso íntimo), conta por igual. Estes juízes do politicamente correto escorregam para o anátema do que dizem defender em público, a igualdade de todos e a incontestabilidade do voto popular. O que dizer destes lídimos representantes “da verdade” (como se fosse possível objetivar a verdade) quando se investem no papel de guardiães da democracia e convocam manifestações de rua que exibem desprezo perante os resultados de uma eleição? O que dizer da linhagem destes “democratas” quando atacam deste modo um esteio da democracia?
Estes autoinvestidos embaixadores da moralidade política, que se elevaram a mecenas da democracia, exibem um traumatismo democrático: não sabem aceitar o resultado de eleições quando os que as vencem saem da sua órbita de aceitabilidade. Mas pior do que aparecerem com os seus traumas democráticos, é o traumatismo que, sem darem conta (prefiro acreditar nesta hipótese benigna), causam na democracia.