21.2.25

O cavalo de Troia, não a caixa de Pandora

Kim Deal, “Big Ben Beat”, in https://www.youtube.com/watch?v=f-rFrdF6NzQ

Dantes as guerras não passavam na televisão. As revoluções, também não. Mas dantes era quando não havia televisão. As duas hipóteses nem deviam ser lembradas, por manifesta impossibilidade. Seria como trazer do futuro as condições vigentes para o presente, mas ninguém pode reivindicar profecias, a menos que seja displicente.

Agora que as televisões narram em direto as atrocidades em que alguns humanos se empenham, nem assim se aplica um código de conduta às guerras – é o que protestam alguns ingénuos, convencidos que a espécie é credora de confiança. Devia ficar estabelecido que as guerras não obedecem a códigos de conduta, pois uma guerra é, para os devidos efeitos, uma desconduta. É como chamar “civil” a uma guerra, das mais hediondas contradições de termos em que a semântica beligerante é pródiga.

Outros, padecendo de miopia intelectual (para não levantar hipótese ainda menos simpática para as respetivas capacidades cognitivas), metem o avesso na análise e decretam a vítima como algoz, ilibando o algoz, depressa constituído em manso carneiro que nunca praticou o mal nos outros (sobretudo quando estão perigosamente no sopé de um arranha-céus a dançar com o precipício). 

Às vezes, o sucedâneo da justiça divina passa à prática. Ou pelo menos, espera-se que assim seja – escorregando para as tremendas profecias autorrealizáveis que poucas vezes se confirmam quando o futuro beija o apeadeiro. As muitas caixas de Pandora podem conter o inesperado. Por exemplo, um cavalo de Troia. Esplêndido, majestático, deixando inebriados os transeuntes da cidadania que andem nas digressões diárias pelos palcos que contam. Eles e os mandantes, habituais peritos em tresler a verdade, escorregando para uma procissão de mentiras que se encavalitam fazendo com que a mentira minta a si mesma, que seja mentira da própria mentira.

Do opulento cavalo de Troia estará prestes a sair uma milícia à revelia dos poderes, equipada com o desassombro do método filosófico, só para interrogar os embaixadores da impostura sistemática e os fazer cair do pedestal. Haverão de saber que não compensa a usura que amanhece no matrimónio da ignorância com a mentira compulsiva. A opulência do cavalo entontece os incorrigíveis embaixadores da beligerância. Por um efeito quimérico, serão desapossados do arsenal de mentiras e aspersados com um módico de inteligência. 

Maquinalmente, encerrarão as caixas de Pandora e passarão a andar com o cavalo de Troia à lapela.

20.2.25

Razia

The Mysterines, “Stray”, in https://www.youtube.com/watch?v=4NquU--FL9Y

Não se aconselhavam com os (assim proclamados) procuradores das almas. Por mais que a ajuda fosse precisa, recusavam a intromissão. Preferiam a razia, a devastação total que encontravam nos corredores da alma. Ao menos, essa era a sua devastação. O resultado dos seus erros, até os que fossem intencionais, era da sua lavra. Noa fugiam dessa responsabilidade, não a fingiam, nem a endossavam para o lado. Se devia haver curadores das almas, que atuassem na interiorização da responsabilidade de que as pessoas não se podem exilar. 

Os escombros que sobejavam, depois de uma incursão metódica pelo erro, traziam à tona dores às vezes excruciantes. Mas eram as dores intrínsecas aos atos que ecoavam na linha de produção dos erros. Era uma razia: por mais que fossem as juras de não voltarem a frequentar o erro, passava uma temporada e o erro voltava a ser visitado. Como já tinham aprendido que o arrependimento não esconjurava os erros futuros, afastavam-no do palco a que subiam as decisões.

Uma vez, alguém (um talvez candidato a treinar almas dos outros, pela pose exposta) insinuou que o erro não existe. O que existe são as consequências dos atos, que não quadram com as intenções alinhavadas. Disse: não dominamos o que nos rodeia, as contingências podem fracassar os propósitos atribuídos a uma decisão. A decisão teria boas intenções, mas as circunstâncias, que não podemos domar, conspiraram contra a finalidade pretendida. Concluiu: isso não pode ser tido na conta dos erros. 

O pusilânime aspirante a guru das almas foi enjeitado – ficou a falar sozinho. Propunha uma farsa. Os atos têm consequências. Se forem determinados por uma conjugação de acasos, essa é uma contingência que não podemos encobrir. Se falhamos, assumimos a responsabilidade. Não procuramos expedientes para vestir uma máscara ao logro. Por mais que seja uma razia, a responsabilidade não se dissipa na vontade de nos exilarmos por dentro de nós. Falhamos, gloriosamente. E voltamos a falhar, se preciso for.

19.2.25

Dá-lhe com a alma!

Explosions in the Sky, “The Ecstatics”, in https://www.youtube.com/watch?v=iOwOUvdmsn8

Podiam ser os arrozes puídos a desembelezar as coisas próximas. O nevoeiro arrastava-se para horas impróprias. Era de propósito: enquanto o nevoeiro estivesse hasteado, só deixava ver as coisas pela sua volumetria baça. 

Era parecido com os comportamentos que fervilhavam de bandeira em bandeira, soezes e boçais, atirando toda essa gente para o estirador contra a sua vontade. Não havia como fingir. Na coutada de um arsenal implacável, insinuavam-se entre os poros da pele recolhida, como se fossem mastins a roer os ossos. 

Disseram, em tom paternal de conselho: deixa-os a falar sozinhos. Eles desmatam a sua própria indigência, almas errantes que porfiam os dias tauxiados nos mais fundos interstícios da pele – como é mester dos parasitas. Saberiam os conselheiros que de tão embebidos na carne podia ficar contagiado pela boçalidade e ser tão canhestro e pária como eles?

Recusou o conselho. Temia que os efeitos secundários não demorassem e acordasse o que sempre odiara nos outros. Tinha de contra-atacar. Enviou a convocatória: estavam suas excelências convidadas a comparecer no adro da igreja ao anoitecer, aproveitando a solidão a que destinam o adro quando as pessoas se encomendam à preparação do jantar. Podiam vir quantos quisessem, um exército inteiro. (Pensou em voz interiormente sussurrada; não o disse de viva-voz para não emprestar trunfos aos canhestros.) Havia de lhes dar com a alma com tanta força que se extinguiriam na bruma caudalosa deixada à sua passagem.

No dia combinado, a alma estava pronta a ser arremessada. Os demónios disfarçados compareceram em número assinalável. Podia ser pior se fossem mais. Alguns atiraram uma salva de boomerangs. Eram espertos: se não fosse atingido, os boomerangs regressavam à casa da partida (quem inventou os boomerangs estava na vanguarda da economia circular). Não se intimidou, desviando-se criteriosamente, com a destreza de um acrobata, de todos os boomerangs. Contra-atacou: atirou-lhes pedaços da alma que estavam em cultura, investidos com a diligência de quem pressente ter de se defender com a própria alma. 

Os mastins ficaram azamboados. Não estavam habituados a almas, não sabiam o que era ter uma. Cada grama de alma atiçado na sua direção enfraquecia-os, ficavam macilentos. A alma tinha uma qualquer propriedade que atuava como veneno que quebrava os vultos enraivecidos. A alma derrotista enfim tinha serventia: derrotara os mastins que mordiam nas canelas e queriam colonizar cada átomo da pele, e depois a carne restante, até deixar de ter alma, devorando-o de dentro para fora. 

Acabaram por provar do próprio veneno, os desgraçados. Deles não reza o passado.

18.2.25

Os inúteis

Sharon van Etten, “No One’s Easy to Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=cBBRTiE4p0s

Andrajos remexidos na vertigem do tempo, como assombrações que conduzem os navios e os levam, errantes, contra o império dos ventos dominantes, contra a vontade orquestrada na praia-mar do destino.

Conspiradores que não sabem o que fazer do tempo, a não ser emagrecê-lo.

Tiranetes disfarçados de querubins, com asas e tudo, e um rabo de palha tão extenso que lá caberiam os habitantes da pequena cidade encavalitada no dorso do demónio, choram convulsivamente bebendo as lágrimas que escorrem dos olhos até à boca para alimentar a hipocrisia que os apascenta.

Vulgares vozes curtidas pela ignorância despejam saliva fétida para cima de recém-nascidos, antes que eles retardem a prescrição da inocência e o mundo se arrependa da sua linhagem.

Forcados em desespero vociferam pregões gastos enquanto os déspotas costuram as bainhas da angústia.

Sereias espalmadas, como se fossem chicotes à espera dos degredados, embebem-se nas manhãs arrependidas enquanto os olhos insaciáveis respondem às preces limítrofes.

A salva desenferrujada da prata consumida, adornada por espelhos que não deixam mentir, está sempre de atalaia.

A procissão de mentiras é o medicamento contra a inviabilidade do mundo.

Há vozes que tartamudeiam idiomas sobrepostos e as pessoas fogem da solidão que se acastela quando a noite beija o céu.

O propósito é questionado, como se as peças se movessem no tabuleiro com o repto da imortalidade, o equilíbrio precário que não deixa o corpo despenhar-se no vazio.

Às mãos que procuram mãos, a nunca inútil demanda perfumada pela voz cavernosa que murmura os segredos que pressentem o carinho.

As bandeiras içadas no avesso da madrugada, soltas como antídotos contra os sobressaltos telúricos.

Poemas, sempre poemas, a gramática gorda disfarçada na lhaneza das palavras, como étimo dos povoados de onde foram exilados os déspotas.

Provérbio como refúgio, ou apenas o eufemismo da banalidade – e quem deixa de ser colonizado pela auto-organização do pensamento para evitar, com critério, o recurso aos provérbios?

Aos inúteis: que não disfarçam a sua condição e amoedam a humildade no constante avesso dos príncipes que esgotam o stock de tolerância.

17.2.25

O rabear de Bukowski

Morgan Nadler, “Cradle the Pain”, in https://www.youtube.com/watch?v=d91xdIax-xw

À altura da lucidez, um tirada sem corpete, a aliança certa com um estado demencial. Poderá ser apenas provocação, a vontade de desafiar os que se habituam a levar uma vida desinteressante e que nunca interrogam a existência – e dizem: é um favor que lhes fazem, se eles tiverem a lucidez de soltar as amarras que os condenam à apatia. Ou poderá ser mesmo critério, um apelo interior de rebeldia a atravessar as avenidas instaladas que odeiam os que se sublevam contra os costumes. 

À altura dos artistas rebeldes que nunca sossegaram a não ser na morte: deles é a licença amortalhada que tudo deitou a perder nas vezes em que o ar parecia combinar com um módico de estabilidade. E eles, insatisfeitos, incapazes de empunhar uma clepsidra de estabilidade, voltavam tudo do avesso. Pois o avesso é a sua ordem desordenada, ou o caos organizado, uma miríade de contradições intencionalmente terçadas num concurso de figuras de estilo. 

As biografias póstumas não escondem a ambiguidade: génios que merecem admiração, mas que se fossem pessoas comuns eram enjeitadas como párias. Só esta contradição já fermentou muita prosa sobre a contaminação do artista com o seu espírito não recomendável, ou se a pessoa tem de ser desligada do artista para salvar a obra e salvar o artista da pessoa. À conta deste exercício que tem demorado os exegetas, os insurretos foram pródigos ao darem tanto que falar. 

A forquilha acena como se fosse um espantalho. Amedronta as pessoas comuns. Os desalinhados, mergulhados na misantropia, agarram-se à forquilha e confirmam-se espantalhos. Agem como se precisassem de um agente exterior, uma substância que seria evitada pelas pessoas comuns, para avivar a personalidade que os torna reprováveis. Reprováveis pelos mesmos que os pajeiam, desfazendo-se em genuflexões à altura da genialidade da obra. Gente que disfarça não sentir o desdém dos génios que louvaminham, fazendo de conta que não ouvem os impropérios que o génio profere sem cuidar de os disfarçar. Ainda agradecem, com o sorriso amarelecido de quem finge não ter sido ultrajado – tudo em nome da arte, o expediente sublime para tolerar o que nos outros seria intolerável. A arte ascende ao calabouço onde sepulta a igualdade.

Os génios industriam as artes a tiracolo do mau feitio. Há quem diga que é condição exigível para chegar ao púlpito de uma arte. O que serve para atear a centelha do otimismo antropológico, como se fosse entoada uma hossana à humanidade: se os génios são uma ínfima minoria, os outros todos são boas pessoas. Nem que Bukowski rabeie de raiva, a título póstumo.

14.2.25

O dia dos namorados segundo o profeta do desamor

The Comet is Coming, “All That Matters Is the Moments”, in https://www.youtube.com/watch?v=7KfenRxWWnY

Digo já: por mim, o calendário saltava de treze para quinze de fevereiro. Ajudava-me a saltar o dia dos namorados, esse interminável cortejo de exibições de amor pueris, ou do amor que não passa de um exercício laboratorial (como uma artificial encenação que encerra). Saltava a data para não ser agredido pela impostura dos que celebram o que não praticam, ou que confinam a celebração a esse dia porque o amor anda esquecido nos outros trezentos e sessenta e quatro dias.

Digo já: nunca fui pinga-amor, nem sou bota-de-elástico ao ponto de ter de disfarçar a inveja. O desamor que me abraçou dispensa a liturgia da efeméride. Prefiro não ser acusado de olvido da celebração, quando devia ter marcado mesa num restaurante que parece o casting de uma comédia romântica de quinta qualidade, ou adquirido a peça de lingerie que combinaria com a noite especialmente reservada num hotel especialmente de charme, ou que me esqueci do bouquet de flores, ou do frasco de água de colónia evocativa dos íntimos laços que exigem a demorada genuflexão que é outra maneira de aderir ao encantamento dos comerciantes, sempre na linha da frente na organização do dia mundial disto-e-daquilo só para arranjar um pretexto para convencer os alineados pelo consumo a engrossarem a patologia. O dia dos namorados é um franchising do comércio ávido de patos.

Aviso já: não me atirem o opróbrio da inveja pelo estado geral de enamoramento que adultera o ambiente com um céu exuberantemente cor-de-rosa. Por conta do meu cadastro, padeci umas quantas vezes no ninho do amor, que se transfigurou num antro de terrores que me trouxe à correspondência entre amor e pesadelo. À conta do proverbial desligamento do mundo (eu, que não sei quem é uma personagem chamada Bruno de Carvalho), fui vítima de iracundas reações por ter omitido os deveres amorosos que devem ser ativados, sobretudo, no dia que falsamente convoca a celebração do amor. Depois disso, fiquei noivo do desamor e vesti a definitiva viuvez do amor.

Era só um favor que me faziam, se saltassem de treze para quinze de fevereiro, para espantar a ausência de nostalgia que me coloniza quando sou testemunha dos juvenis devaneios de não juvenil gente aprisionada à tirania da data convencionada. Para misérias humanas, passo os olhos pelas páginas dos jornais ansiosamente à espera de preciosas prédicas de cronistas iluminados, com quem aprendo a defender o contrário do que escrevem – ou os olhos e os ouvidos contrariados por um artista da nova vaga que reabilita uma qualquer canção de protesto enquanto ergue o punho fechado sem saber de História das ideias políticas. 

Ao menos, aí, não há desamor que seja ameaçado pelo espectro do amor.

13.2.25

Não ponhas os ovos todos no mesmo cesto

The Chemical Brothers, “Block Rockin’ Beats”, in https://www.youtube.com/watch?v=iTxOKsyZ0Lw

Este cheiro constante a manicómio abate-se sobre a pele. Esse odor fica entranhado. Não me conto à conta dos naturais e contranaturais utentes de um manicómio. O pior é que se fala de autênticos orates; se fosse uma loucura apenas irresponsável, não desligada de alguma lucidez, uma loucura afinal sensata, o exílio necessário do ar irrespirável que asfalta os poros e arremata uma pertença insuportável, seria uma loucura afinal responsável. Uma metáfora de loucura que não dá direito a internamento preventivo num manicómio. A loucura como válvula de escape de uma loucura de piores proporções.

E, todavia, todas as engrenagens estão colonizadas por grãos de areia que exsudam a loucura maniqueísta, a loucura tremenda que se enraíza nos ossos até nos desumanizar. Talvez sejamos todos loucos. E aspiremos à finitude apenas enquanto somos titulares do tempo por conta. Fica por dizer: somos todos para sempre – e não se adultere a oração, pois o sempre só tem validade enquanto tivermos posse da vida. O sempre que permanece depois de as cinzas serem depostas no lugar prometido é um sempre sem lugar. Dizê-lo não é manifestação de loucura.

Somos meros figurantes no concurso demencial que participa dos dias. Sem sermos fiéis depositários dessa loucura, que se incrusta na medula como agente adormecido que porfia nos seu efeitos, que nos encomenda para uma hibernação não reconhecida. Cruzamo-nos uns com os outros com a indiferença tatuada no rosto. Só reconhecemos os loucos oficiais, os que habitam em manicómios. Não admitimos a concurso todos os outros que não foram convocados para o manicómio mas são cúmplices agravados da loucura instalada. O silêncio ativa a cumplicidade. Podemos ser todos loucos por omissão.

Melhor seria se não disfarçássemos. Sobre-humano é o esforço para fingir a loucura, ocultando-a atrás de um véu puído que vai deixando à mostra uns fragmentos através dos rasgões que se abrem na fazenda. Somos todos os ovos de um mesmo cesto, tributários da mesmice castradora que entranha os agentes ativos da loucura. Mas não sabemos. Ou fingimos que não sabemos, com a altivez de quem se leva muito a sério e fica sozinho a reconhecer a iconoclastia que floresce exuberantemente. Não sabemos: essa altivez é a contraprova da demência que é o agente genético da espécie. Ovos da mesma espécie, apodrecemos enquanto fingimos a nossa decadente exuberância.

O mundo, esse, é um manicómio único, com a extensão do mundo inteiro. 

12.2.25

Como aprender a respirar dentro de água

Hinds, “Boom Boom Back” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=x1LAIfWNWpM

Barbatanas a jeito, óculos em riste, que a água pode ferir os olhos e o olhar clarividente não é dispensável. Lugar escolhido: o mar salgado, nunca teve empatia com águas doces. (Ao contrário, na gastronomia é um doceiro nato.) Não é um certame, mas não deixa de ser um desafio: mergulhar nas profundezas do possível (ou nas possíveis profundezas, o que alcançar primeiro) e hibernar subaquaticamente, sem precisar de treinar a apneia, sem levar oxigénio a tiracolo.

Lacrado o desafio em papiro solene, começou a pensar na empreitada. Respirar debaixo de água é para os peixes. Há humanos que se especializam na apneia, treinam a respiração para se aguentarem debaixo de água sem respirar. Há pescadores no Japão que conseguem aguentar um tempo impressionante, e muitos deles são septuagenários. Os corpos adaptam-se aos desafios do meio que os envolve. 

Mas não era de apneia que se tratava. Tinha sido desafiado a respirar dentro de água, como os peixes conseguem. As vozes, em surdina, não paravam de dizer, em registo ululante: “tu consegues, tu consegues! Manda-te ao mar, vai lá para dentro e respira como os peixes, respira dentro da água, não sejas covarde.” Ao início, desconfiou que as vozes lhe queriam mal. Não temos guelras como os peixes, respirar no meio subaquático era catastrófico, os pulmões encher-se-iam de água e a morte estava acertada.

Ou então, era só um pesadelo. Desfilando com o vagar próprio do meio subaquático, os corpos paulatinos como são os dos astronautas quando desfiam a gravidade zero. As pessoas respiravam, falavam com os peixes, mercavam impressões como se a linguagem fosse a mesma. Ninguém tinha a pele encarquilhada: talvez àquela profundidade a água escondesse uma característica que desenrugava a pele. Ainda alguém há-de ir a tempo de descobrir o secreto nutriente que preserva as células da pele e a desenrugam. 

Aprender a respirar dentro de água era um pretexto para encontrar um elixir da juventude para a pele. A menos que este fosse um sonho suicida e o mar não aceitasse o tirocínio dos humanos a respirarem dentro de água: era como se uma autoridade anti-concorrência fiscalizasse os mares, impedindo os humanos de concorrerem com os peixes dentro de água.

11.2.25

O justo beijo (short stories #478)

The Cult, “Painted on My Heart”, in https://www.youtube.com/watch?v=Ctyh2B3-I-0

          A boca traduz o belo livre do medo. Fala com a impedância da carne que se move como se resistisse ao naufrágio. Emerge noturna, pede à noite para ser sua testemunha – há que cuidar das palavras emolduradas, para memória futura (só para memória futura, sem ser para retaliações). À volta, as pessoas tartamudeiam os embaraços que as impedem de espreitar pela escotilha. Dizem que as vergonhas são como um castigo que se abate só para domar o que podiam ser as forças irrefreáveis, talvez a antítese do que as pessoas querem são gregárias. Não se diga que a coesão é o aval do arrependimento. O que se bebe do futuro fica por conta da sua verosimilhança. Dos anéis puídos que exauriram o ouro enquanto o luar embaciava os olhares anestesiados. O rosto macio oferece-se ao beijo. A boca não pode recusá-lo. Se não fossem estes pequenos gestos, não saberíamos tratar a grandeza por tu. As homenagens são dispensáveis: o que vem às mãos não é um corpo estranho, a malignidade do que se sente como forasteiro, quando o forasteiro soa a intruso. Os ossos descem pela coreografia que precede o dia caudaloso: a inspiração é uma sinédoque que toma conta do tempo, substituindo os dias por pactos sem a usura das convenções. O ar respirável não é o mínimo denominador comum; em cada gesto dócil sobem os verbos hauridos no idioma baço, convocam o beijo ideal que coloniza o palco onde as palavras se tecem sem animosidade. Abre-se a janela e o vento desorganiza o calendário, as páginas agitando-se como se quisessem soltar das algemas do tempo. A mão levanta-se para aconchegar o rosto adormecido. Com as pontas dos dedos, desenha palavras sortilégio. O tempo exila-se. E a boca ajusta o beijo que aquece o rosto. Com as sílabas emprestadas pelo vento.

10.2.25

Peito cheio contra o forte

Nine Inch Nails, “The Line Begins to Blur” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=MMliD9d_lHg

Podia ser o nome de um furação. Ou melhor: o refrão da ira, o sangue continuamente acelerado onde a combustão de tudo dispensava ajudas já não necessárias. A intrepidez era a tradução de uma audácia que muitas vezes se confundia com loucura – uma loucura todavia não doença, mas como estado de espírito de quem avança destemidamente contra os contratempos recrutados pelo acaso.

Carregava cicatrizes à custa desse destemor. Escondia-as o melhor que podia; as fragilidades devem ser ocultadas para não se dar parte de fraco. Incomodava-o a ideia de dar parte de fraco. A desconfiança em que medrava, a desconfiança sistemática alinhavada contra todos os outros, sufragava o temor de que os outros se aproveitassem dos primeiros sinais da sua fragilidade para o domar. Ai de quem o tentasse, sobre ele ou ela seria vertida uma ira implacável e colossal, encostado às cordas para começar a lamber as feridas abertas.

Não se pautava pela modéstia. Nem no trato, exteriorizando uma solenidade aristocrática que muitos entendiam como uma extravagante encenação e outros como um disfarce com o propósito de impedir os outros de franquearem o seu perímetro de segurança. Também não era modesto no comportamento, desfilando exageradamente uma coragem sem freio, como se fosse preciso intimidar os outros logo à partida para beneficiar de uma vantagem que o imunizasse contra a iniciativa alheia se fosse prévia à sua.

Não media os pleitos em que se metia. O rosário de cicatrizes podia moderar os ímpetos, mas não queria adjudicar significado aos transtornos pretéritos. Eram apenas isso, episódios isolados que não teriam lugar no futuro, apesar de alguns deles terem encontrado repetição em diferentes momentos. Sua era a demarcação do pessimismo, à conta de tanto voluntarismo frívolo.

Dele não se diria que aprendia com os erros. Era a sua linhagem – ou o fingimento de uma linhagem, apenas para materializar a afoiteza sem arnês. Mesmo que deparasse outra vez com os estilhaços à espera de recolha, enquanto desinfetava as feridas abertas durante a peleja quase sempre inconsequente.

Ainda bem que nunca entrou para o exército. Se subisse pelo elevador das patentes, seríamos um lugar com elevada propensão à beligerância gratuita.



7.2.25

Ano zero e mais

The White Stripes, “Dead Leaves and the Dirty Ground”, in https://www.youtube.com/watch?v=7OyytKqYjkE

Motivámos o dia na contrafação do tempo. Os nomes não são a estranheza embebida no índice dos anónimos. A indiferença deixou de ser a marca de água que trespassa os motivos vigentes. As pessoas já não dizem oxalá à desesperança. Os algarismos moveram-se no fino fio que os separa do precipício. Agora estão a salvo. São zero e mais.

Se contassem os arrependimentos, passávamos a tempo em preces que devolviam a paz estilhaçada – disseste. Não é dessa fibra que somos. Somos os espelhos dos contratempos de que fomos tutores e não fugimos dos mapas prescritos. Não nos escondemos das alfaias que povoaram sementeiras sem colheita. Se o tempo não souber ser a nossa absolvição, nós absolvemos o tempo. Ainda a tempo de voltar a um tempo madrigal.

A luz desimpedida deixa o fundo do poço à mostra. Dizes: matámos a curiosidade. (Promovemos uma desinteressante e especulativa digressão sobre a etimologia da expressão “matámos o tempo” – afinal, temos de fazer tempo com o tempo que des-sobra). Usamos uma serra mal afiada para cobrar as arestas que tinham a mania de ativar as lágrimas. Regressámos às preces entontecidas, pois não somos avençados de catecismos e de bíblias entendemos nada. Mas não capitulávamos. Perguntavas: este é o ano zero? E eu dizia, para desencolerizar as cicatrizes herdadas, que este é ao ano zero mais qualquer coisa. E nós somos a parte maior dessa mais qualquer coisa.

E nós, que não fomos habilitados pela aritmética se não pela casuística, aprendemos a estar de atalaia ao luar para nele encontrarmos ao arnês diligente que nos salvou da conspiração urdida nos baldios. Não era o ano zero; mas se fosse, faríamos o favor de entronizar o zero como número pleno, só para contrariar a aleivosia dos apóstatas que contra nós apostaram. 

Estava confirmado por fontes seguras: era o ano zero e mais. Agarrámo-nos àquele mais, a retórica que viria a fazer a diferença.

6.2.25

As bolandas (short stories #477)

Cocteau Twins, “From the Flagstones” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=L8qqOBWKluM

          Uma montanha russa atrevida, o corpo numa constante convulsão, atirado de um lado para o outro como se os órgãos internos se deslocassem do lugar numa agitação sem peias. O navegar tumultuoso que fermenta na tempestade iracunda, uma cordilheira de ondas medonhas sucessivamente fendidas pelo navio exposto à tortura para que foi criado, os corpos dos marinheiros todavia indiferentes em virtude do hábito. As conversas interrompidas, argumentos encavalitados descontinuando o fio condutor do raciocínio de cada um, o fio condutor da conversa entre os convivas atiçados pela irritação, os corpos fervendo na impaciência que ganha um ponto de ebulição com a transgressão do código de conduta das conferências entre pares. Um repto sufragado nos corredores do labirinto interior, fazendo pulsar a angústia pelo tamanho da empreitada sem saber se vai ser cumprida, os corpos sitiados por uma apneia dos sentidos que os deixa no limiar da hibernação. Um insulto mal terçado, que não é insulto por quem o habilitou em palavras com outro significado, mas é desse modo interpretado por quem o ouve, num aquecimento global dos corpos que se encolhem de preconceitos no levedar da tresleitura das palavras ditas. O paradeiro incerto que tem cais na geografia sem lugar, como se todos os mapas tivessem sido extintos e as bússolas estivessem desativadas, os corpos órfãos de identidade, errantes, indiferentes aos abismos que apareçam no caminho. Os corpos que se tocam inadvertidamente, causando uma repulsa irreprimível como se tratasse de uma beligerante invasão de território, sem cuidar de se apurar se foi um raspão sem intencionalidade ou uma ação provocada por um voyeur da intimidade dos outros. Os corpos, ora transidos, ora indolentes, albergues dos outros na anónima procissão que se perfila no vetusto bordão do tempo. A matéria-prima das bolandas, o equinócio do contrabando das almas.

5.2.25

Por alturas do subsolo

Ólafur Arnalds, “Written in Stone”, in https://www.youtube.com/watch?v=wJRbjY8Hd6w

A matéria incansável ateia o encantamento pelos sortilégios que ganhamos ao acaso. Não são súbditos os que assumem a empreitada. Alguns tornam-se mecenas, despojam-se de haveres para que muitos possam fruir das criações que outros deixaram em legado para um futuro intemporal. 

É como os investimentos que não têm juros como paga. Ascendem como trunfos imateriais. Para se ter vocação, não se aceitam os modos habituais viciados no cálculo oportunista, numa aritmética estreita que não alcança tudo o que pelo caminho foi desmaterializado. Não é à toa que reumanização das pessoas é arbitrada. Não é criminoso supor a própria essência das pessoas, que parece errar por paradeiro incerto. 

Os fogos que se ateiam são mnemónicas para a memória não ser erradicada. A educação fugiu do seu pedestal; os interesses mutantes são tão válidos como outros quaisquer, do mesmo modo que ninguém pode ser censurado por escolher uma certa trincheira. Podíamos, talvez, reservar o olhar para o nosso interior. Fazer a síntese entre o devir gregário e um aceitável ensimesmar que recusa revistar os outros. Quem não quer ser atirado para o banco onde é sujeito à sindicância dos outros deve fugir da censura dos demais. A lisura fundeia-se na reciprocidade (amiúde esquecida).

Se usarmos as mãos para escavar o passado, o tempo gasto não é inútil. Somos uma linhagem do presente que não se dissolve no tempo passado, por mais que se diga que, por ser passado, prescreveu. Sermos devedores do passado não se confunde com nostalgia. A fina camada do tempo que interessa é aquela que depressa se inventaria como prescrita por ser titulada pelo passado. Há todo um subsolo escondido, mas cuja existência é fundacional para termos um chão robusto onde assentar a existência. Os diferentes tempos combinam-se numa constelação de contradições. 

As pessoas assustam-se com as suas próprias contradições. Por isso, são expeditas a denunciar as contradições dos outros. Devia haver uma lei geral a proclamar o direito irrenunciável às contradições – uma lei com força de Constituição. Era tanta a acrimónia que se poupava, tantos os recursos aforrados em empreitadas inúteis, que a confirmação da felicidade geral dispensava a execução de outras provas. 

Essa seria uma lei que dispensa a forma escrita. 

4.2.25

Pudim, pó de pudim, e não antraz

Nilufer Yanya, “Hey” (NTS Session), in https://www.youtube.com/watch?v=6EqGhU7U2H8

Ativem os alarmes, decrete-se o estado de emergência, com suspensão de direitos a preceito. Soem as sirenes para os cidadãos ficarem de atalaia. Corram os castrenses aos quarteis e tomem toda a artilharia inventariada nos arsenais. Faça-se regressar os espiões que estejam em serviço em terras forasteiras. Informe-se os reservistas que passaram ao ativo, a emergência nacional assim o justifica. Suspenda-se o parlamento, as demais instituições e a democracia, concentrando toda a autoridade nas armadas forças e nas polícias. As televisões só podem passar música marcial, entrecortada por boletins noticiosos lidos por jornalistas ao serviço das autoridades dando conta da evolução dos desacontecimentos. A população deve aguardar no interior das habitações até ordem em contrário. Suspendam-se as artes até ser reposta a normalidade. Os cidadãos que aguardem com paciência até ser definida a normalidade.

Pausa para respirar fundo – muito fundo, uma quase apneia ditada pela demora em enformar a paciência no devido lugar.

Foi falso alarme. As instituições possivelmente tinham sido atacadas por um pó possivelmente letal guardado dentro de envelopes devidamente anónimos e possivelmente sem impressões digitais para apurar identidades possivelmente deixada ao acaso do anonimato. No mesmo dia, como se o correio tivesse sido meticulosamente invadido por um ataque concertado às instituições, à democracia, ao poder do Estado, à segurança dos cidadãos, à estabilidade assim hipotecada. O pó, guardado dentro de saquetas escrupulosamente iguais de tamanho e peso, estava exposto diante da brigada perita em agentes nocivos, dos cientistas doutorados em venenos e afins, dos especialistas em “terrorismo híbrido”, de um ou outro diretor-geral enviado em representação dos ministros diligentemente reservados num bunker(dizem) à prova de armas nucleares e catástrofes com o pior dos apocalipses incontidos. Todos lividamente à espera do mais corajoso para abrir um invólucro e testar o conteúdo.

Foi: falso alarme. O pó não era uma substância letal, terrificamente deformadora dos corpos a ela expostos, uma morte terrível (dizem os peritos). Não era antrax, ou coisas ainda piores que os agentes do apocalipse andam a congeminar. Era apenas preparado para pudins instantâneos, com sabor a baunilha.

O primeiro-ministro, com o ar solene e grave e, ao mesmo tempo, aliviado, veio a público informar que a normalidade estava restabelecida. Censurou com veemência os desordeiros de serviço, avisando-os que seriam identificados e levados ao pelourinho. Pois não se brinca com coisas sérias, disse, para gáudio dos prosélitos da normalidade. Possivelmente aliviados, estes, por não serem submetidos a demorada anormalidade castradora de direitos. 

3.2.25

E as outras, são as forças mortas?

Beastie Boys, “Sure Shot”, in https://www.youtube.com/watch?v=JhqyZeUlE8U

As expressões idiomáticas cristalizam expressões que se popularizaram na fala popular e que recorrem a figuras de estilo ou a diligentes jogos de palavras. São o menor denominador comum que facilita a comunicação da comunidade; quando alguém diz “não sair da cepa torta”, os destinatários sabem do que se está a falar: muito embora a cepa não seja identificada, só de se saber que é torta é revelador de alguém que não medra além da mediocridade. Ao menos podiam identificar a cepa – é “autóctone”, é importada, resultou de em enxerto?

As “forças vivas” fazem parte das expressões idiomáticas. A expressão participa de um sentido aristocrático que ainda trespassa a sociedade e os códigos semânticos que cimentam a comunicação entre as pessoas. Um eufemismo de “forças vivas” remete para aquele escol que se faz conhecer como “notáveis”. Quase sempre, o reconhecimento deste estatuto parte dos próprios, ou de alguém que é nomeado seu testa-de-ferro. Não devia ser credor de reconhecimento público.

Quando a expressão “forças vivas” é usada, querem-nos convencer que as pessoas que coabitam no oráculo das “forças vivas” são as que inovam, as que carregam os demais às costas por serem visionários, ou apenas as que catalisam vontades. Querem-nos convencer que estes “notáveis” são as locomotivas da sociedade, os átomos em constante frémito que transmitem a energia heurística de que a sociedade precisa para não ficar condenada à letargia.

Se estas são as “forças vivas”, os anónimos, que são a vasta maioria, estão excluídos das “forças vivas” e constituem, por antinomia, as forças mortas – ou, sendo generoso no tratamento, amortecendo o mal para se tornar num mal menor, as forças amorfas. Não é um tratamento digno da retórica de igualdade que a filosofia política entronizou e que os procuradores da política progressista cuidaram de elevar à condição de dogma. Alguém devia denunciar o atavismo da expressão “forças vivas” – da mesma maneira que deviam peticionar a favor da extinção do bolo-rei (não da iguaria, mas do seu nome).

A colonização da semântica por termos aristocráticos não condiz com os tempos modernos e desempoeirados em que vivemos. Abaixo as “forças vivas”, longa vida às “forças mortas”! 

31.1.25

Síndrome de esculápio

Lisa Gerrard, “In Exile”, in https://www.youtube.com/watch?v=Wi7UTSaK7tg

Não é por o aforismo certificar que somos todos um pedaço de médicos: a ser confirmado o juízo popular, não se entenderia a tanta competitividade para entrar nas escolas onde se aprende a arte; e menos se entenderia que só a nata da nata seja admitida nos estudos para esculápio. A ideia (certamente também do povo) é que os esculápios são um escol entre o escol. Daí o seu imenso poder corporativo: a nossa saúde está nas suas mãos, não se equivoque o paciente ao tresler a arrogância habitualmente despendida por esculápios de diversas gerações.

A ordem de trabalhos deste texto não é sobre o poder oligárquico dos esculápios. É para trazer à colação uma incongruência entre o conhecimento como o temos por adquirido e a imagem popular que assegura, com a intermediação de um provérbio, que não há ninguém que não seja um pouco esculápio. Assim o confirma a propensão para a automedicação e para o autodiagnóstico, depressa estendido ao diagnóstico dos outros feito de “saber feito” (ainda está por definir os termos deste conceito), um muito “não vás ao médico que ele/ela vai dizer o que acabei de te dizer”. A serem seguidos os conselhos periciais de afamados esculápios educados na escola do “saber feito”, é sempre um entesouramento que o bom cidadão consegue (por deixar de dispendiosos estipêndios a esculápios certificados).

A vocação para o diagnóstico inspirado no método em que os esculápios são treinados depressa se contagia a outros domínios. Gabe-se a coerência metodológica: analisa-se o problema, é identificada a sua origem e isolados os fatores que concorreram para a emergência do problema, e o “saber feito” prescreve uma solução para erradicar o problema. É um processo cheio de lisura e coerência epistemológica. Muitos são, assim, esculápios de artes variegadas. 

O método não engana. Já a bagagem de conhecimentos exigíveis para o pôr em ação merece algumas, e fundadas, reticências (se for permitido o eufemismo). Por mais partidários que tenha e lhe seja associada a veia democrática à prova de quaisquer suspeições, o “saber feito” não foi recebido pelos cânones das ciências. O empirismo atira-se em forma de bumerangue para quem o ativou: quantos esculápios de si mesmos erraram no diagnóstico e, por arrastamento, erraram na prescrição? Quantos, de piorarem o seu estado à custa de serem néscios (pois não se diz por aí que a pior ignorância é a não reconhecida?), tiveram de recorrer a esculápios a sério?

Para fim de conversa, devo dizer de minha justiça que ficaria encanitado se o anexim fosse confirmado em relação aos poetas. Ninguém haveria de querer tamanha banalização da poesia.

30.1.25

Papel desbotado

Tunde Adebimpe, “Drop”, in https://www.youtube.com/watch?v=BgF8BiPXQDA

A carestia dos dias arrasta-se em cima do papel onde depostas são as palavras que a boca emoldurou. Uma folha em branco, talvez. Ou uma folha disfarçadamente amarrotada, um protesto contra a altura em que a página era translúcida e todas as palavras eram palavras espontâneas. O mundo não está disposto para esses preparos. É alérgico a essa liberdade.

Se as pessoas não fugissem dos rostos, se elas não fossem enganadas pelos fingimentos, era mais fácil resgatar as páginas claras, sem vincos, e nelas verter as palavras que traduzem a boa-fé. Mas isso era se os termos em que são proferidas as palavras não fossem adulterados. Se não fossem os espelhos os únicos a decantar as veias amordaçadas contra as tempestades que deflagram nas intenções. Pode-se dizer que são contingências a mais e que é humano fazer de conta que são domadas por fora, como se chegasse verter uma camada de verniz para representar toda uma feição interior.

Mas são feitas de papel desbotado todas essas páginas. São feitas de dissimulação as palavras que se entretecem na mudez embuçada. No papel desbotado que as recebe, as palavras entontecem como se alguém as tivesse embriagado. Dizem o que de outro modo não teriam dito. Assim que são tatuadas no papel, ele entra em apressada decadência. No auge da metamorfose, deixa de ser papel amarrotado e enquista-se como papel amarelecido. Nesse papel, as palavras ganham a ferrugem que vai contaminar o papel hospedeiro. A vantagem de sermos espécie exposta ao envelhecimento é que as palavras que forem sendo inventariadas não se perdem nessa metamorfose. São intemporais, à custa da memória que é obliterada.

Ainda está por saber se as palavras embuçadas respondem à demanda do papel desbotado, ou se é por o papel ser desbotado que as palavras se adulteram no fingimento do que deviam ser. Isso é o menos importante: as palavras continuam a ser o passaporte da (nossa) existência.

29.1.25

Quase tudo

Sigur Rós, “Mór”, in https://www.youtube.com/watch?v=eF6dZ7pW8Rk

Por junto, os garfos desfalecidos não fazem um conjunto. As intenções esfaceladas passam a escombros com a altivez do dia, a estirpe façanhuda que consome a lucidez. A cada mutação da maré, os olhos testemunham a embrionária estranheza que trata a geografia por forasteira.

Digo: serei procurador das intenções benignas quando as raízes das árvores se esportularem e elas ficarem nuas ao luar. As mãos subirão as árvores até ficarem lisas, magnificamente abertas para o esplendor do mundo. Não se cansam, umas mãos deste modo açoradas. 

Ou posso ser apenas embaixador das intenções modestas, aceitar que tudo se possa acertar pela craveira do quase. É o modo diferente de receber as imperfeições que acompanham as vidas inteiras. Aceitar que a luz pode ter arestas e os dias sucedem-se com a impressão de que podiam ter acabado por ser uma safra melhor. É imperativo gratificar os dias que assim sejam. Quase tudo pode ficar a léguas da inteireza. Mas é melhor do que os dias que ficam reféns do medo.

As canetas anotam os bocejos do pensamento. Mesmo o sono, que parece ter ficado em dívida à lucidez por falta de quem o interprete, contribui para o palco onde desfilam pessoas, palavras, indecisões, certezas que escondem fragilidades, um anoitecer que dissolve a luz clara do dia, as ondas amargas que endurecem os penedos, a altivez que esbarra na humildade, os sonhos, enfim, que ganham autonomia na vasta planície onde se congemina o pensamento. Sobram palavras avulsas, poços fundos que titulam as trevas de que sou liberdade, o penhor da vontade costurada com o avesso do pretérito. Até que todos os quase sejam entronizados e deles se faça a maré monarca por dentro do sangue em espera.

Quase tudo não fica pela metade. Não fica por proporção nenhuma, nem deixa à mostra a fragilidade de quem não subiu ao promontório para dar acabamento ao inacabado. Quase tudo é a medida da perfeição (possível).

28.1.25

O poema daninho

Curve, “Fait Accompli”, in https://www.youtube.com/watch?v=Q9Plourz3Xs

À sorte dedica-se a trégua. Os olhos não se querem consumidos pela irradiação que os adultera. Não são as vítimas inocentes que se resguardam de injustiças, quase sempre atrozes. Somos todos, hoje fora desse perímetro, mas incógnitas perante o tempo ausente.

Se apenas fossem sufragadas as sílabas serenas que compõem frases à prova de convulsões, seríamos poemas em forma de pessoa. Não devíamos nada aos medos, não teríamos de espreitar para trás hipotecados pelas investidas de vultos perenes. Como prova de desembaraço, convocaríamos a beleza inteira das palavras como modo de estar, deixando atuar a doçura das sílabas arrancadas com a diligência de quem sabe ter gentis gestos no trato. Não desconfiamos das metáforas se elas não forem espelhos baços de desvirtudes. Chamamos os nomes inteiros sem represálias e os dedos sondam os destroços que são o inventário do passado.

Não são os relógios que medem o tempo, é uma cortina de espelhos que reverbera as palavras ditas, angariadas na espuma da memória que não se rende. Às vezes são memórias ardilosas, prolongam momentos que pertencem ao inventário das memórias em crédito; mas hipotecam o tempo passado a resgatá-las da sua coutada. Outras vezes, talvez por uma qualquer torpeza de espírito, a memória atraiçoa flagrantemente o seu espírito: são as recordações desbotadas que, todavia, se avivam como se assentassem em carne viva, deixando feridas à mostra. As tréguas são interrompidas.

O tremor do passado pode ser um poema daninho. Não se propõe que o pretérito seja adulterado para dissolver da memória os daninhos instantes, mesmo que venham em forma de poesia. O tempo não se apaga. Podemos condená-lo ao esquecimento, se aos fragmentos daninhos regressarmos e os quisermos anulados. Se a memória se entregar a um jogo, que seja benigno. 

Até os melhores poetas ganharam fama à custa de estrofes daninhas. Não devemos nada ao medo se à superfície assomarem poemas daninhos.

27.1.25

Segunda página (short stories #476)

Mogwai, “If You Find This World Bad, You Should See Some of the Others”, in https://www.youtube.com/watch?v=cV1NGS4uOiw  

          O sal que segue a estrada vazia orquestra os sentidos. Não são as sepulturas ao longe que intimidam, são as convulsões da alma quando ela se estilhaça contra os tiranetes que tomam conta da floresta. Não passam de vultos, carregados com as sombras que os avalizam como preces medonhas a enfeitar o dia arrastado. Se não fossem as páginas acumuladas, não seríamos a lava que guardamos dentro de nós. Não fruam as ameaças contra a vontade; não proclamem os determinismos avulsos para de seguida açambarcarem o que sobra da dignidade. Prescindimos dos véus que continuam a ser a marca registada de quem julga ser nosso tutor. Não damos como trunfo o pressentimento da identidade que acompanha o sangue em ebulição. Como as árvores se dividem em ramos limítrofes, somos toda a geografia percorrida em pessoa ou em sonhos. Selamos essa contingência absoluta, um nomadismo sem opção: pois múltiplas são as identidades que se entrecruzam de outras identidades, como se uma amostra dos vários mundos possíveis habitasse em nós. Esse é o nosso grupo sanguíneo. O indeferimento das identidades por exclusão, a prescrição das ramagens apodrecidas, deixadas para trás como simples memória futura. Viramos a página de rosto. A segunda página está sempre em branco. Mesmo quando hoje depomos a favor da página, coabitando as palavras com a página que deixou de estar em branco. Amanhã, a segunda página aparece outra vez em forma inaugural. Podemos selar diversos prefácios, eles apreciam a excomunhão do futuro para não sermos dele reféns. É por isso que a segunda página é uma sortilégio inacabado, um penhor que não deixamos de ativar para não sermos esquecidos na matéria nobre do tempo. Uma hagiografia habilitada por exceção. Pois é na segunda página que dedicamos as palavras florais que ornamentam os calendários por que nos regemos.

24.1.25

Somos nós que desfazemos os nós cegos

Red House Painters, “All Mixed Up”, in https://www.youtube.com/watch?v=GQSUIRDs6VE

Temos as mãos, as quatro mãos, acamadas no piano. Alisamos as teclas com o peso suave dos dedos, como se fôssemos credores dos sortilégios. Acompanhamos o rumor da chuva que se despedaça contra a janela. As mãos entrelaçam-se, deixam a melodia por conta do vínculo entre a chuva e o vento. Lá fora, a tempestade dita os seus termos. Mas nós estamos refugiados cá dentro, somos presságio da vontade que fazemos subir ao mastro mais alto em que se calam as nossas bocas.

A noite não está desacompanhada. Dizes-me: com esta tempestade, as ruas estão órfãs. Respondo: só se nós quisermos, podemos ser as almas audaciosas que desafiam a intempérie, com agasalhos à sua prova, para arremetermos contra a chuva que ensaia uma coreografia temível sob os auspícios do vento tempestuoso. Somos nós a ditar os termos em que se entrança a noite válida.

Por mais que esteja assentido que somos todos plágio uns dos outros, desafiamos as convenções. Digo: esse é um simplismo atroz, uma intencionalidade que diminui o valor de cada vida. Não se aceite a proclamação de um escol enredado na soberba que estabelece a distinção entre um “nós” e um “eles”, pois depressa os termos da contenda se invertem e o escol passa pelo batismo de um “eles” que se confunde com o “eles” que inventariam para serem um escol. Digo: que sejam recusados os propósitos de quem se alinhava pela craveira da desigualdade, denunciados por ultraje às suas próprias criações.

Não somos iguais, mas as vidas que se entrecruzam no imenso palco em que quase todos somos indiferentes são pedaços de singularidade. É suficiente para as carregarmos no regaço da humanidade. O plágio insidioso não quadra com a singularidade das vidas permanentes. Por mais que a morte deponha sucessivamente vidas (é um registo diário), há vidas que são legadas ao mundo em cada dia que ele se inventaria. As vidas permanentes, que se sobrepõem à mácula da morte, essa tremenda luva que se abate com o sabre da injustiça.

Todas as vidas esbarram em nós. Não é preciso ter a destreza de um marinheiro para desenredar os nós, vincendos ou por vencer. Temos em nós a argúcia para ultrapassar os nós que se sublevam contra nós. Somos destemidos para converter esses nós, firmemente atados, numa meada que transfiguramos no caudal por onde fazemos ecoar a vida. Nós que são desafiados por nós na incindível vontade que acende os princípios da vida conduzida pela singularidade. 

23.1.25

Vícios privados, quem os não tem? (Um ícone da esquerda caviar pode vestir uma camisola Lacoste?)

Lush, “Superblast!”, in https://www.youtube.com/watch?v=_uU5DU7P83E

“(...) Tudo na moral é dúbio e subjetivo (...) tudo quanto é prazer é paliativo.” Valério Romão, “O estripador”.

No pesadelo que seria se houvesse um dia que o poder aterrasse em minhas mãos, uma das poucas proibições que não resistia a decretar: proibido seria fazer julgamentos morais dos outros (sob pena – eu lá sei – de o autoinvestido juiz perder direitos cívicos, como o direito de voto da próxima vez que houvesse eleições). O exórdio é importante para emprestar contexto, pois o texto é sobre comportamentos morais que são devolvidos à procedência; e é importante para apresentar credenciais: longe de mim o propósito de julgar moralmente os outros, até quando eles entram em tão flagrante contradição que, diria a voz do povo, se põem a jeito.

Contexto: a esquerda radical e o ódio a tudo que ressoe a capitalismo e capitalistas (ou os ricos, por apanhado). É uma espécie de racismo classista que prospera na esquerda caviar. As manifestações de capitalismo são execradas. O consumismo e, em particular, a preferência por sinais exteriores de aburguesamento, integram o património genético do capitalismo. Insurgem-se contra o efeito-imitação: os endinheirados consomem marcas de renome e engordam os proventos dos capitalistas que detêm essas marcas. Esses aburguesados são os idiotas úteis do capitalismo. Quanto mais popular a marca, mais a procura pelos seus produtos, que assim encarecem. A marca firma créditos e atinge o pináculo onde só têm lugar as marcas de prestígio. Estas marcas só estão acessíveis a uma casta. 

No fim deste processo, os que o alimentam nem dão conta da sua alienação enquanto consumidores, despindo-se de uma cidadania substantiva que devia ser o axioma da sua participação na sociedade. Para denunciar estes comportamentos desviantes, a esquerda caviar está sempre de atalaia, sempre pronta a emitir juízos de valor que encostam às cordas os que cedem ao enamoramento do consumismo.

Mas há privados vícios que colonizam a vontade das pessoas e adulteram os imperativos éticos, sublevando-se contra a retórica que desfila em público. Quando os vícios privados não transcendem a esfera privada, ficam a coberto dos julgamentos morais dos outros. Quando se tornam públicos, numa nacionalização inadvertida da sua feição privada, ficam expostos ao julgamento fácil dos outros. Sobretudo daqueles que são agredidos pela pose arrogante de quem aparece em público como instrutor contínuo dos comportamentos dos outros e, na hora H, falha clamorosamente, sendo enleado na mesma teia de pecados e pecadilhos em que alicerça a sua tão pública superioridade moral. 

Volto ao início do texto: nem nestas circunstâncias os julgamentos de comportamentos alheios por défice de obediência a padrões de moralidade deviam ser admitidos. A punição maior de quem é apanhado a desdizer toda uma retórica moralista – e a ironia do destino, que desaba fragorosamente em cima das suas cabeças – é a contradição que os deslegitima para continuarem a ser eméritos julgadores da moralidade dos outros. Por cada sacerdote destes que seja substituído por um julgador de moralidade de sinal contrário, o resultado é uma soma nula. A sociedade não fica melhor quando exonera um julgador da moral que é substituído por outro que veio julgar o seu passo em falso.

Esta é a litania do capitalismo em que vivemos. Os pequenos vícios não devem ser censuráveis. Antes a sua existência, pois nela levita o império da vontade. O que é sempre preferível, por mais que dite a corrupção das almas, a uma alternativa castradora da vontade. Por isso, não me incomoda que um ícone da esquerda caviar seja apanhado nas ruas de Budapeste a enriquecer-se culturalmente enquanto se passeia dentro de uma camisola Lacoste. A Lacoste agradece a pessoal incongruência e nós deixamos de dar importância a esse julgador da nossa moralidade.

22.1.25

Entradas de sendeiro (ou: é a viola no saco)

The Hard Quartet, “Rio’s Song”, in https://www.youtube.com/watch?v=V0paI3MwISI

Não quadra com o vulto, tanta visibilidade, tanto alvoroço à sua passagem, tanto esbracejar que até parece um totem com seguidores. Mas não é robusto ao ponto de causar sismos só à sua passagem. A voz não se distingue pela gravidade. Não se conhecem proezas, ou cometimentos que o tenham alcandorado a um pináculo. A modesta personagem presta-se ao anonimato – ou à indiferença que, afinal, é o estalão a que quase todos somos destinados no meio de uma multidão.

E insiste: instala a vozearia e as palavras são debitadas sem métrica, apenas ao sabor da conveniência do que assoma à boca, irrefreáveis e imponderadas. Vai distribuindo insultos pelo caminho. Uns ostensivos, não temendo uma reação impensada que pode aleijar a integridade física; outros apenas insinuados, só ao alcance dos que têm capacidades hermenêuticas acima da média.

Para corporizar o papel intencional do elefante na loja de porcelanas, derruba uma jarra que estava num móvel dentro do estabelecimento comercial. Foi de propósito. Os decibéis acima da conta não eram suficientes para armar a tenda. Quando a jarra se estilhaçou no chão, partindo-se em mil porções, ninguém ficou indiferente. Os que não queriam dar palco ao intérprete da baderna enquanto se cingiu à voz tonitruante, não puderam evitar a reação instintiva de quem desloca os sentidos para o lado de onde ecoou o estampido. 

Agora já tinha a atenção de toda a gente nas imediações. Elevou ainda mais a voz. Protestou contra muitas coisas: o mundo em geral (“está cada vez mais irrespirável”), a hipocrisia das pessoas (“deve ser o juro que pagamos pela desconfiança recíproca”), a burocracia que tudo retarda (“há burocratas que se onanizam quando congeminam os tentáculos ainda mais apertados da burocracia”), a frivolidade que campeia (“acordem, não são apenas os que gravitam no estrelato e dizem, de si mesmos, que influenciam a turba; é a turba inteira, a reboque ou não destes ‘influenciadores’”), a mesquinhez de quem não cabe dentro de si e se envaidece por causa de pequenos feitos, porque não há ninguém neste mundo a enaltecê-lo (“é uma reação tão primeva, tão canhestra, um produto dos tempos coalhados”), os mentirosos compulsivos que dão a cara pelas convenções (“são adestrados na arte corrompida de enganar as pessoas, levam a à agua ao moinho à custa da indiferença de quase todos, ou de muitos deles serem incorrigivelmente beócios”).

Chegaram as autoridades e acabou o comício. Os circunstantes não perdoavam o desassossego causado e a catadupa de lugares-comuns e anexins a tiracolo do discurso esbraseado. Depois de algemado, enquanto era encaminhado para o carro-patrulha, cabisbaixo e talvez já arrependido do acesso de loucura, ouviu as palavras murmuradas de um circunstante: “anda lá, palerma, mete a viola no saco, que nunca de lá devia ter saído. Julgavas que isto é o Speakers’ Corner?”

21.1.25

Não há mitos, é a toponímia

Max Richter, “Movement, Before All Flowers”, in https://www.youtube.com/watch?v=MuWkgLc7N_0

Vai cheio, o rio, portanto caudaloso, que engorda com o beneplácito da chuva. Não vale a pena inventar teorias: é a chuva abundante que alimenta o caudal, não são rezas pagãs que convocam a chuva quando os espíritos inquietos as encomendam para esconjurar um longo estio.

Vai a eito o rio caudaloso, quando atravessa as margens e coloniza o chão que não lhe pertence. Às vezes, nem os ardis do Homem, quando constrói barragens para domesticar rios que ficam fora de si quando a chuva é copiosa, servem para amansar os rios. E os rios saltam as margens, entram em casas limítrofes, os terrenos de cultivo ficam alagadiços, aprisionados num paradoxal destino: essas veigas são férteis porque estão nas imediações do rio, que é o manadeiro da sua fecundidade; mas quando o rio se zanga e fica fora de si, destrói toda essa fertilidade de que foi inspirador. Não há deuses que conspiram contra o sossego das pessoas que vivem à volta do rio. É a ação da natureza, no complexo novelo que transporta as tempestades do mar até terra e combina para engordar o caudal dos rios sem que as barragens consigam ser uma medida de efeito contrário.

Não há sortilégios que fundamentem a ação da natureza. A ordem dos mitos fica por conta de imaginações férteis e de uns quantos céticos que talvez disfarcem a ignorância atrás do ceticismo. É como na toponímia: os nomes de gente normalmente mortal que encorpa a toponímia não personificam mitos (tirando um punhado deles que, por decreto de pedagogos ao serviço do “interesse nacional”, entram em panteões, existentes ou imaginários). São apenas gente-gente, tão normal como eu e tu, tão mortais como eu e tu, descontando a elevada probabilidade de eu e tu não ficarmos imortalizados na toponímia de um lugar. 

Tu e eu somos levados por um rio quando se extingue a existência e passamos a ser memória em vias de extinção, assim que o tempo, na forma de um rio que passa com a cadência dos dias consecutivos, invade o nosso espaço vital e nem sequer memória passamos a ser. A menos que fiquemos emoldurados na toponímia. O que, para os ousados e os que de si têm uma medida acima do espelhado, é preferível a serem condenados a mitos impossíveis.

20.1.25

O estamento dos indiferentes

Explosions in the Sky, “Moving On”, in https://www.youtube.com/watch?v=jTv8-DWWW3I

Somos párias (dizem) se formos indiferentes ao meio e nenhum for o pronunciamento sobre o estado da cidade. Somos acusados de apatia se o rosto estiver alinhado com outra bússola e os lugares onde temos presença forem apenas lugares, materializados por pessoas que os desfiguram. A indiferença, de acordo com este imperativo categórico de participação, deve ser retratada.

E se a nosso favor invocarmos o largo tempo de desagrado pela governação da cidade? E se olharmos em redor e os que se propõem dar continuidade ou escolher mudança não forem confiáveis pela fraca linhagem que ostentam? Devemos interromper a indiferença para escolher um mal menor? A participação nivelada pelo menor denominador comum safa-nos da acusação de indiferença? E que contas prestamos à consciência? Deve a consciência inclinar-se perante o dever de não alienação? E se a indiferença for um luto sem forma típica, um período de nojo pelas adversidades que também atingem os indiferentes?

O dever a ser gregário continua a comandar os mandamentos. É por eles que se seguem os comportamentos aceitáveis. Os que descaem para laivos de indiferença são chamados à razão, instados a resgatar os laços de pertença para não serem contaminados pela indiferença, que depois avança sem ser possível rasgá-la. Os que já estão imersos na indiferença são casos perdidos. O resgate de indiferentes para o tabuleiro da cidadania benigna não costuma acontecer. São os intérpretes da cidadania maligna pela demissão da cidadania.

Os argumentos podiam ser virados do avesso. Os indiferentes convocam a seu favor o direito de serem quem são sem intrusão dos outros, convocando um dever de reciprocidade: eles não se importam com o que os outros pensam, não fazem juízos de valor das escolhas dos que participam na cidadania benigna. Na lógica da indiferença assenta o não pactuar com a imperícia, o arrivismo, o discurso vazio e todavia gongórico (“engana-me com palavras”), o exercício do poder enquanto finalidade, o sistemático passo em falso quando assinam diagnósticos e apresentam prescrições. Através da indiferença, recusa-se essa corresponsabilidade.

O estamento dos indiferentes não é uma coutada de párias. A indiferença é o somatório da observação cuidada do passado e a caução para a indiferença do presente. Os indiferentes não devem ser condenados: o que se costuma dizer de quem sofre na carne as duras penas que o consome e repete a dose na primeira ocasião disponível?

17.1.25

Porta-aviões ao fundo (metáfora do sistema político)

New Order, “Leave Me Alone” (live 1983), in https://www.youtube.com/watch?v=J7rkHi6scBw

O sistema político é um porta-aviões, daqueles muito americanos em que cabem cidades inteiras. Na semântica militar, os porta-aviões são fortalezas itinerantes deslocadas estrategicamente para um certo lugar quando a potência detentora quer impor a sua presença, nem que seja pela via da dissuasão. São um esteio, portanto. Como o sistema político.

O sistema político em que vivemos tem dois alicerces (para além das fundações constitucionais): a supressão do autoritarismo; e a desmilitarização da política, quando a transição para a democracia foi completada com a extinção do MFA e a devolução da tropa aos quarteis. O primeiro alicerce é um fundamento axiológico do sistema político, o húmus de onde medrou uma democracia alinhada pelos parâmetros da democracia ocidental. O segundo tem um fundamento simbólico. 

Há interpretações divergentes sobre o papel dos militares na conturbada transição para a normalização democrática. Uns consideram que os militares foram determinantes para a deposição da ditadura e exerceram um papel importante na configuração da democracia civilizada, governada por civis. Outros são mais céticos, lembrando as derivas totalitárias de certos militares durante o PREC e de como a Constituição de 1976 foi uma dádiva para a democracia ao selar a guia de marcha dos militares para os quarteis. Quem perfilha esta abordagem não deixa de atribuir um significado importante ao alicerce simbólico do sistema político. Muito embora o General Eanes tenha sido presidente da república no período da normalidade constitucional, esse foi o último estertor dos militares no atual sistema político que, julga-se, está consolidado ao fim de quase meio século.

As circunstâncias dos presente exigem a mudança do tempo verbal da frase anterior para o passado: julgava-se que Eanes tinha sido o último enxerto militar no sistema político. A subida a palco do almirante (retirado) Gouveia e Melo veio lembrar que nada é eterno, até nos sistemas políticos. Não está em causa a castração cívica do almirante. Os seus direitos cívicos são os mesmos dos meus ou do(a) leitor(a); ele, eu e o(a) leitor(a), desde que tenhamos mais de trinta e cinco anos e um registo criminal imaculado, podemos ter a ambição de concorrer às eleições presidenciais. O problema da (ainda putativa) candidatura do almirante é outro e não pode ofender o princípio da igualdade de direitos a que o almirante tem direito de invocar a seu favor. 

O problema da candidatura do almirante também não está no receio (de quem o tenha) de vir a ser eleito presidente da república, a crer nas pré-sondagens divulgadas. Se o almirante não estivesse tão bem colocado nas sondagens, a sua candidatura não passava de uma nota de rodapé. Mas esta é uma candidatura problemática – para o sistema político, bem entendido. Da mesma forma que ninguém pode castrar os direitos cívicos do almirante, não era má ideia avivar o significado de cidadania como um feixe de direitos e deveres que se correspondem mutuamente. O almirante devia reconhecer o seu dever cívico de não perturbar o sistema político com uma candidatura “disruptiva” (palavra que ganhou moda) do sistema político. A bem do segundo alicerce, o tal que tem um simbolismo todavia marcante para a definição do sistema político: os militares nas casernas, a política aos civis.

As ambições não se medem aos palmos e, nesse domínio, a prestação de contas obedece ao sentido único da consciência. O almirante tem o direito de exercer a sua ambição política e a saltar da vida castrense para o palco político para coroar a carreira profissional com a máxima sinecura da república (tudo indica, a fazer fé nas sondagens). Como tem direito a ser narcisista, característica que se banalizou com a democratização da opinião e da imagem permitida pela exposição sistemática do eu nas várias redes sociais. 

O almirante ganhou palco quando geriu a estratégia da vacinação contra o COVID-19 (depois de substituir um banal funcionário do PS que, no curto mandato que exerceu, se limitou a passear a sua incompetência). Ao pânico do início da pandemia seguiu-se a euforia habilitada pelo restabelecimento da normalidade. Há muitos cidadãos que estabelecem uma relação causal, como se tivesse sido o almirante Gouveia e Melo a inocular pessoalmente cada cidadão vacinado. Confunde-se gratidão ao gestor e estratega com o perfil para a presidência da república. Se isto é um programa político, o sistema político já estava em crise antes de o almirante ter espigado como personagem política.

Há outra dimensão do sistema político hipotecada pela candidatura do almirante: o seu fundamento axiológico. A democracia inaugurada pela revolução de abril de 1974 afastou o fantasma do autoritarismo. Contudo, ao longo dos cinquenta anos da democracia temos sido testemunhas de como ainda pesam certos tiques salazarentos que são transversais à sociedade. Um desses sinais é a sedução por políticos com uma retórica dura, exibindo pulso firme, prometendo uma política musculada para “pôr as coisas na ordem”. A herança de Salazar estava na ossatura de Sócrates, o primeiro-ministro que de si dizia ser um “animal político”. Gouveia e Melo tem a mesma atitude de bravura, oferece um sebastianismo em potência que é do agrado de uma sociedade que não vê para além do nevoeiro.

Se as ideias políticas do almirante são uma incógnita, sabe-se da sua propensão para o autoritarismo. Dirão os mais condescendentes que o autoritarismo coincidiu com a liderança da marinha e que os militares obedecem a uma lógica diferente dos civis, sendo mais importante a cadeia de comando e a obediência hierárquica. O exemplo da reprimenda pública dos marinheiros que se recusaram a embarcar num navio que estava constantemente a avariar é todo um programa de autoritarismo latente.  

Aceito que a maioria dos cidadãos queiram “ordem na casa”, estão no seu direito. Inquieta-me a possibilidade de o almirante ser eleito por desafiar os fundamentos axiológico e simbólico do sistema político. E talvez diga muito da qualidade dos rivais do almirante que estão na rampa de lançamento. O que, de si, é tradutor de uma crise do sistema político. A menos que estejamos a dar importância de mais à eleição para o presidente da república.