6.11.24

O banquete dos beócios

Interpol, “Barricade”, in https://www.youtube.com/watch?v=Fjm4Bvx3ZU0

Atribulados tempos os hodiernos, em que a moderação entrou em retração e a razoabilidade está em vias de extinção. A causa radica na radicalização em curso. Acusam-se os populistas de uma certa extração, que passam por cima das lições da História e cuidam de a reinventar quando é conveniente. Segundo a proposta apocalítica dos que se apressam a atribuir esta titularidade ao grotesco desfilar de radicais, é a vingança sobre a História. À sua conta, um discurso que perdeu o pudor de usar certos temas dantes tabu, não hesitando em recorrer a uma retórica excessiva que não é compatível com o debate civilizado. 

Do lado contrário, cada vez mais acantonado no singular (dantes era mais fácil observar a pluralidade deste lado da trincheira), situam-se os que sempre hostilizaram esta extração de radicais, os que os repudiam por atentarem contra o código de conduta da convivência democrática, e os que, não se situando em nenhum dos dois sectores anteriores, se demarcam dos radicais com a marcação de um perímetro de segurança. Dantes, eram os primeiros que se socorriam de uma retórica desaforada para resistirem à emergência dos que outrora foram combatidos muitas vezes com o preço de vidas. Os demais assenhoreavam-se da moderação. 

O tempo atual reconfigurou a paisagem. A polarização tomou conta do palco onde competem visões concorrentes. Responde-se com discurso grotesco ao discurso grotesco dos radicais. Como o discurso grotesco é todo ele grotesco, não se admita que há o grotesco bom, que se abriga sob a nossa asa, e outro grotesco que deve ser categoricamente denunciado. Sobretudo se a imoderação que tem tomado conta dos que nunca foram radicais derreter a razão que possam ter. Da mesma forma que a violência coalha a razão, e não há razão que se alicerce no bastião da força, responder ao discurso imoderado com reações imoderadas traz os moderados para a casa dos radicais. Para combater os radicais e as ameaças que eles possam representar, há muito quem defenda que deve ser usada metodologia afim. 

Só que o radicalismo e a imoderação em que se debate não podem ser a caução de uma imoderação de sinal contrário, porque se trata de imoderação. Quando se objeta ao discurso soez de um radical com palavras também agressivas e em contramão com o código de conduta dos moderados, passamos a não ser diferentes dele. Alguns dirão, em defesa da derrapagem intencional para o discurso extremado, que é por um imperativo de resposta aos radicais a que nos opomos. É a gramática que eles conhecem. Se assim nos comportarmos desde o outro lado da trincheira, começamos a falar a mesma gramática que é característica deles. Começamos a ser parecidos com eles, pelo menos no modo como falamos com eles. Começamos a adulterar a nossa identidade.

Para continuar a haver uma linha de demarcação, não nos podemos sentar à mesa do banquete dos beócios. A convivência contagia-se e, de começarmos a recorrer a uma retórica grotesca, usando os mesmos métodos e figuras de estilo dos radicais, passamos a falar numa gramática igual. Contribuímos para o empobrecimento do debate público quando devolvemos, sem o sangue de aracnídeo que devíamos ter, acusações tão torpes como as que são típicas das provocações encenadas pelos radicais.

O argumento válido não é o da palavra imperativa para desmontar o radical ameaçador, se essa palavra nos nivela pela sua estatura. O argumento válido é deixá-lo a falar sozinho, enredado na puída língua de trapos em que articula o primitivo pensamento, deixando por sua exclusiva conta a procissão de mentiras, de ideias perigosas, de insultos gratuitos, de boçalidade que trespassa os seus corpos. O argumento deixa de ser válido se descemos ao seu nível, pois legitimamos a sua retórica, o seu modo de estar, a hostilização contínua. Não queremos ser como ele, mas agimos como se fossemos um deles. 

Esta é uma das possibilidades mais aviltantes da polarização, a que parte da radicalização de uns e termina com a radicalização dos outros como reação aos primeiros: o nivelamento é feito por baixo. Ao ódio não se responde com ódio, porque é ódio na mesma. Responde-se com indiferença. Que é o prémio merecido dos radicais que ateiam o fogo da acrimónia constante.

5.11.24

Iodo

The The, “Some Days I Drink My Coffee by the Grave of William Blake” (live at Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=ReMPhU4Wp94

É cedo. O horário de trabalho pode esperar. O torpor arrasta-se pelas ruas, diante da luz inaugural. Um homem passeia o cão no jardim. Outro corre pelas ruas da cidade (e como é possível alguém correr àquela hora?). Se chegar atrasado quinze minutos, não acontece nada. E se o atraso for de meia hora?  Nunca se sabe o estado de humor do chefe. Como se diz, “é de luas”. No escritório, especula-se com o estado de humor do chefe de acordo com uma linguagem cifrada, para ele não entender. E depois especula-se sobre o que poderá ter motivado um humor lunar ou um estado pré-depressivo. Nunca tem humores moderados, o chefe.

Na carruagem do metro, alguns dos rostos habituais. A maioria dos rostos são anónimos – ele há muita gente a habitar a cidade grande. Há quem dormite, aproveitando os solavancos do metro para embalar o derradeiro sono (ou o sono que ficou por dormir), apesar da estridência das rodas ao friccionarem os carris. Uma rapariga lê literatura de cordel, um daqueles autores consagrados sem ser pela qualidade literária (autores da moda, portanto). Outra vai imersa nos auriculares, esboçando uma coreografia agitada só com a cabeça e a perna direita. Passa um cego a mendigar, tateando com a bengala para abrir caminho entre os passageiros que não arranjaram lugar sentado. A voz feminina e radiofónica anuncia a próxima estação, em versão bilingue: “Braço de Prata”. 

Quem teria tido um braço de prata, que prótese rara teria sido entranhada no seu braço decepado? Sabe: o braço de prata é um lugar, não é sobre uma pessoa. É aquele lugar do estuário que se alarga, como se o rio se desdobrasse num braço longo que fica à mercê do sol e ganha a forma de um espelho prateado quando o vento faz tréguas e o caudal fica açudado. Para passar o tempo e obliterar dos sentidos os solavancos da carruagem, não faz mal fantasiar. Ninguém pode ser acusado de delírios criativos.

Por ser segunda-feira, a vontade de ir para o escritório é menor. Seria assim se trabalhasse noutro lugar? E se mudasse de ramo e não trabalhasse num escritório, para passar a jornada de trabalho como se fosse um nómada? A especulação ajuda a matar o tempo (que expressão mal inventada!). Ajuda a fingir que o tempo fugiu entre os dedos, só para ter um pretexto para os quinze minutos de atraso que nunca são contados como tal.

Os passos arrastados estão por conta do arranque cambaleante da semana. Na rádio, logo pela manhã, o locutor tecia o habitual lamento quando inaugura a semana (“temos uma longa semana pela frente”), mas lembrou, para o caso de a alguém ficar esquecido, que a meio da semana havia um feriado. “Assim custa menos a semana”, vaticinou, com o habitual desdém pelo trabalho. 

Nunca entendeu estes comprimidos de iodo que uns tomam para só saberem trabalhar e outros tomam como vacina do sacrifício que é ir para o trabalho. Ele só queria ter direito a meia hora de atraso aceitável sem ter de aturar os humores variáveis do chefe. Sempre considerou que se satisfaz com pouco.

4.11.24

Ganhar por falta de comparência

Max Richter, “November”, in https://www.youtube.com/watch?v=FPKgk5_YmpA

O segredo é deixar alguém a falar sozinho quando se pressente que o contrário agride a lisura mental. Há pendências que devem ficar desertas, por falta de comparência. A demissão de falar não é uma capitulação. 

Invoca-se um risco de assim proceder: a soez voz monopolista ocupa todo o espaço, sem contraditório que possa desmontar essa voz ruidosa. Quando alguém monopoliza com a sua voz, a audiência não tem como escolher; a escolha está feita à partida, por falta de comparência ou omissão intencional das vozes que podiam quebrar as pernas à voz monopolista. 

A infantilização da audiência é exagerada. É preciso confiança na diligência das pessoas, não as atrair para um canto onde são tratadas como se não pudessem forcejar a sua própria autonomia. A falta de comparência não é um desencorajamento interior colhido do medo de falar com o outro. É um critério de sanidade: se o outro é sócio da desonestidade intelectual e enxameia o discurso com truques de retórica rasteiros, e se perpassa a leve desconfiança que a discussão será invadida por golpes baixos e pela lama onde gravita o outro, o melhor é não lhe dar o palco que ambiciona. Ou, o que é pior, e sem ele conseguir perceber que é, que lhe seja dado o palco em regime de monopólio, para que mais ninguém suba a cena enquanto estiver em palco.

A falta de comparência é em proveito de quem falta e de todos os outros. O faltoso não tem de lidar com o canhestro. Não cai no logro de quem defende que é imperativo contrariar o canhestro, correndo o risco de dele ser a única voz que chega aos destinatários. A audiência que pensa pela sua cabeça não tem de assistir a uma discussão em que participa apenas um, por falta de comparência dos outros.

Há ocasiões em que a falta de comparência é a prova de sensatez.

1.11.24

Perna longa

Ólafur Arnalds & Alice Sara Ott, “Reminiscence”, in https://www.youtube.com/watch?v=hffMLTmRe9A  

A meio do assunto, perdem as rédeas. A distração subiu ao sangue e ficaram enredados numa pendência. Sitiados por uma teia onde se emaranha o pensamento, confuso. São vítimas das múltiplas solicitações que fermentam a distração e os desviam de um assunto. Às vezes, com grande perda para esse assunto, que não é retomado.

É como se os ventos tivessem influência em nós. Os ventos que passam pelo nosso lugar já estiveram noutros lugares, já foram respirados por outras pessoas. Esses são ventos que trazem a respiração das pessoas que foram por eles atravessados num momento anterior. São ventos que reúnem uma constelação de influências ao sabor das muitas pessoas que os inspiraram e que, com a sua expiração, serviram a conduta do vento. Não é de estranhar que seja adestrada a distração como inspiração máxima da sucessão de assuntos que passam pelo crivo das pessoas. Ainda bem. A rotina é das piores condenações que se pode conceber.

Os metódicos, que odeiam ser desviados dos assuntos que têm entre mãos, recusam a desorganização mental. Ficam desorientados se uma revoada de temas desfilar sem organização, suplantando a sua vontade – colonizando a sua vontade. Querem ordem no pensamento. É o pensamento que alinha a ordem dos assuntos. Admitem suspender temporariamente um assunto para se dedicarem a outro que de repente exige atenção, mas mantêm o assunto suspenso numa mnemónica que organiza a ordem interior sem a qual se sentem errantes. Os metódicos são os que mais sacrificam a sua liberdade interior. Têm perna curta na disciplina do pensamento.

Quem anda ao sabor do vento, saltitando de assunto em assunto, quase sempre deixando coisas por terminar, é o perna longa que alcança muito mais mundo. Não se atém à mordaça da disciplina interior que alinha tudo criteriosamente num ensaio de perfeição que, todavia, fica sempre por cumprir. Só os perna longa têm ossatura para abrir os braços e contemplar uma miríade de assuntos. Podem soçobrar ao caos interior que os habita. Mas não os podem acusar de monotonia.

31.10.24

O machista improvável e o gene neoliberal

Beastie Boys, “Make Some Noise”, in https://www.youtube.com/watch?v=WdgLMslbDuY

Uma estrela da extrema-esquerda espanhola, Iñigo Errejón, caiu em desgraça por acusações de assédio sexual e maus-tratos a mais de uma dúzia de mulheres. Ao ler os relatos das vítimas, o quadro é assustador: é um psicopata que joga psicologicamente com as mulheres e que abusa do poder porque se comporta como se fosse deus. Confrontado com a controvérsia, no momento de se demitir atirou as culpas para o neoliberalismo

Isto não soa a novo. Um sociólogo coimbrão, com um numeroso séquito espalhado todo o mundo, atrapalhado com os casos de assédio sexual e de extrativismo que despontaram pela voz de investigadoras que foram suas orientandas, invocou a vetusta idade como circunstância desculpabilizante, atirando a responsabilidade para um marialvismo enraizado que é geracional. No caso de Boaventura, como no caso de Errejón, a culpa tenderia a morrer solteira. 

Ou talvez não: no caso do Prof. Boaventura, a culpa está na indeclinável propensão para o aproveitamento sexual das mulheres, contrariando uma temática que foi extensivamente teorizada pelo sociólogo coimbrão: a denúncia do patriarcado nas relações sociais. O assédio seria algo de inato aos homens da sua geração, que não o seriam a sério se conseguissem resistir aos apelos carnais na presença de mulheres sensuais. O problema dos deslizes do Prof. Boaventura é ter nascido quando nasceu e de não conseguir domar a mãozinha marota e o falo irrequieto.

No caso de Errejón, a culpa não morre solteira porque decidiu torcer a realidade com a proficiência de um mitómano compulsivo, vindo a público culpar o neoliberalismo pelo seu comportamento hediondo com as mulheres. Errejón tem algumas gerações de desvantagem em relação ao Prof. Boaventura (metade da idade), o que o inibe de recorrer ao mesmo pretexto do teorizador da epistemologia do sul. Ocorreu-lhe o óbvio, atirando-se ao neoliberalismo. Talvez por ter passado toda a sua carreira política (que, espera-se, tenha terminado) a combater o neoliberalismo.

O que incomoda nestes dois exemplos é a fuga em frente e a demissão das responsabilidades próprias. Se acreditarmos na lengalenga de ambos, teremos de aceitar, com a condescendência que se impõe para salvar uma figura pré-deificada, que o Prof. Boaventura estava contaminado com o vírus demoníaco do marialvismo e que, por mais que se tenha esforçado, não conseguiu combatê-lo. Daí à mãozinha marota na perninha da investigadora júnior e ao pénis inquisitivo, foi um passo. Sem culpa a imputar ao Prof. Boaventura, que tanto se autoflagelava por ter nascido na geração errada. E teremos de acreditar que Errejón seduzia e depois maltratava as mulheres porque estava possuído pelo gene do neoliberalismo, o que deve ser medonho para quem tanto combateu o neoliberalismo. Ou então, o Prof. Boaventura é um lídimo expoente do patriarcado e Errejón um neoliberal da pior cepa. Assim caem as máscaras que escondem fingimentos.

No fundo, Boaventura & Errejón são duas pobres almas atormentadas que não conseguem controlar os instintos primários e cedem ao ambiente, socialmente construído, em que são meros peões e não atores que o influenciam. E todas as mulheres que caíram nas armadilhas dos dois abusadores deviam continuar caladas e perpetuar as delícias de Boaventura & Errejón – em nome das lutas que não se podem questionar. O contexto, há que não esquecer, explica tudo. Até reconhecermos a privação de livre arbítrio a que somos conduzidos pela retórica malsinada de ambos.

Já se sabia que o neoliberalismo tem as costas largas. Mas não tanto.

30.10.24

Sempre em direto

The Comet Is Coming, “Blood of the Past”, in https://www.youtube.com/watch?v=ore8IypVT4k

(Isto não é o manifesto de um Velho do Restelo)

Não passa o tempo senão como vertigem de si mesmo. As pessoas desajudam. Incendeiam a privacidade no lugar indigente onde tudo é trespassado em direto. Os emissários das novas tecnologias convenceram as pessoas que o acesso democrático reforçou o contingente da igualdade. Só os que voluntariamente se excluem do gongórico espetáculo em direto das suas vidas é que parecem ficar à margem da orgia de democracia e de igualdade. 

É o contrário. Eles é que ficam protegidos do olhar sindicante dos outros sem caírem no logro do festim de democracia que é o frenético espetáculo em direto que condenou a privacidade à extinção. Os emissários que vendem as regalias das novas tecnologias não advertiram que o seu uso excessivo trouxe às pessoas a nacionalização do seu espaço privado. 

Com a exposição pública à escala planetária, as pessoas deixaram de ter fronteiras. É o império da partilha global. Talvez os procuradores do comunitarismo estejam contentes com o avanço, que para outros contém um retrocesso. Tudo se mostra, tudo fica à mostra, desde os banais pensamentos, aos profundos devaneios; desde os mecenas do narcisismo, aos estetas da angústia que medra na omissa autoestima como narcisismo ao contrário; desde os que se amesquinham, sem contudo darem conta, quando peroram sobre as perorações dos outros, aos que não se escondem da indigência em direto e oferecem uma mistura de ignorância disfarçada de opinião, abrilhantada por erros de sintaxe e ortográficos; desde os corpos que querem espelhos nos olhares dos outros, num voyeurismo virado do avesso, aos olhares intrusos que laboram na incessante busca de corpos alheios despidos de pudor.

Tudo em direto, obliterando a dignidade. Em nome de uma partilha que parte da nossa gregária condição, mesmo que não se perceba que ali não há causa e consequência. Em direto, oprimindo as sombras tutelares que já foram a caução da privacidade. Numa atroz, corrosiva procissão em que se confunde a extinção da dignidade com a democracia global e instantânea. Já não há futuro, porque apenas interessa a voracidade do instante. O passado, consumido como instante efémero, desgasta-se no rastilho da desmemória intencional. 

Só falta passar o pensamento em direto.

29.10.24

O silêncio é o melhor elogio fúnebre

Tv on the Radio, “Happy Idiot” (live at KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=pObFyqXj2II

“O melhor que disseram de mim foi quando estiveram calados.” 

Herberto Helder

É preciso a morte para deixarmos de ser bestas e passarmos a bestiais. Incomoda-me esta hipocrisia dos vivos. Só elogiam os mortos quando eles já não estão em carne viva para ouvirem os elogios. Os peritos em carpir lágrimas a destempo cumprem a pior homenagem do morto. Lembrar uma vida inteira, ou fragmentos dessa vida, apenas quando ela deixou de existir, é atropelar o conceito de vida, uma ofensa à sua dignidade. 

Podiam inventar uma derivação do testamento vital para que os interessados pudessem ditar a sua vontade no momento das exéquias. Para que pudesse ser imposto o silêncio quando a vontade do então falecido fosse passada à prática, proibindo quaisquer palavras elogiosas que alguém quisesse proferir na ocasião. Pegando nas palavras de Herberto Helder como mote, ficaria lavrado no testamento vital: “já que em vida não me elogiaram, estejam calados, agora que morri.” E todos estariam calados, que a última vontade do defunto é para cumprir.

Talvez se caminhasse para a destituição da hipocrisia que é a desonra que se comete sobre a pessoa cuja vida se extinguiu. Em vez de palavras condoídas e trespassadas pela emoção, proclamações poéticas que mais parecem um exercício de autocomiseração, ou de auto-glorificação dos dotes do vate de pé de urna, em vez de sentidos elogios que traduzem o defunto como modelo de virtudes, o silêncio. Apenas o silêncio. O silêncio como manifestação do respeito que o defunto merece. Em vez das palavras gongóricas de peritos em perorar em funerais que tantas vezes correm o risco de serem inverdadeiras, ou de fazerem um último retrato que se desvia de quem o falecido foi, apenas o silêncio. Pois é de silêncio que se compõe o respeito pela memória de quem recebe a derradeira homenagem.

Às vezes, diz-se que as palavras são um logro, que contêm em si a negação do que proclamam. Por melhores que sejam as intenções, um elogio fúnebre acaba por ser exagerado, descontextualizado, imerecido. Não é a morte que justifica que os mortos sejam exaustivamente elogiados só porque acabaram de morrer. Sem que os elogiadores percebam, é um ultraje à vida do defunto e às vidas de todos os que escutam o elogio fúnebre. É um ultraje à própria vida.

Quando as palavras podem ser um logro, que arremeta o silêncio austero. O recolhimento do momento exige o silêncio, não as palavras desmedidas que povoam os elogios que o elogiado já não consegue ouvir.

28.10.24

Caricatura

Explosions in the Sky, “Peace or Quiet”, in https://www.youtube.com/watch?v=YhspFqdTU64

Benditas, as caricaturas. Ajudam a desalfandegar as angústias colhidas à custa da fealdade que o espelho insiste em devolver e o próprio em aceitar a devolução. A autoestima lida mal com a feiura autorretratada. Se ao menos houvesse a hipótese de o espelho pecar por excesso e os detalhes devolvidos fossem uma representação exagerada, talvez estivesse uns degraus abaixo na escala da feiura. E assim resolvia uma dúzia de pendências que cavavam o fosso onde gravitava a angústia.

Ao passar na rua pedonal, reparou num desenhador que tomava a seu cargo as caricaturas que fossem encomendadas pelos transeuntes. Atrás do cavalete onde desenhava as feições desproporcionadas de uma menina turista, desfilavam alguns exemplos do portfolio do artista. Personalidades, logo, gente conhecida do público, sob o traço extravagante do caricaturista. Eram todos muito mais feios do que em carne viva, ou pelo menos nos ecrãs da televisão. 

(Não vale a pena comentar os retratos de políticos-candidatos em campanha eleitoral. Abusam do recurso aos efeitos mágicos de programas informáticos que retocam a imagem e tiram, de uma assentada, uma década ou mais, e uma quinzena de quilos, aos candidatos assim fingidos. Ou não são imediatamente reconhecidos quando fazem as vezes de transeuntes, ou têm de ouvir o desastrado comentário de um anónimo qualquer, surpreendido pelo desfasamento: “parece mais velho do que nos cartazes, o senhor candidato”.)

Candidatou-se ao banco onde os retratados posam diante do artista. Teve de esperar que terminasse a caricatura da menina turista. Depois foi a sua vez. Nunca pensou que podia ser modelo. Mesmo que não estivesse arregimentado como modelo profissional, estava no lugar do modelo para ter em mãos uma caricatura sua. Modelo! – as voltas que a vida dá, não deixou de refletir em silêncio, enquanto esboçava um sorriso sardónico que devolvia a todos os que no passado escarneceram da sua fealdade. 

Meia-hora depois teve autorização para se levantar do banco e espreitar a caricatura. O artista, que aprendeu umas lições de marketing e as aplica na arte de mercar a sua arte, fez como os cabeleireiros quando terminam o corte de cabelo: perguntou se estava contente com a caricatura, ou se queria mudar algum detalhe de que não gostava. Olhou com vagar para a caricatura e não demorou a reconhecer-se no desenho. Como acontece com as caricaturas, havia traços do rosto que estavam exagerados. Uma caricatura é isso, exacerba os traços faciais dos caricaturados, ou não é caricatura. 

Por ele, a caricatura estava perfeita. Podia emoldurá-la no lugar do espelho habitual. Aquele fora uma dia muito proveitoso: de acordo com a caricatura, podia ser mais feio. 

25.10.24

Peixe fora de água

The Limiñanas ft. Bobby Gillespie, “Prisoner of Beauty”, in https://www.youtube.com/watch?v=LjGvdFggjhw

Não descia o olhar sobre as cortinas fendidas do nevoeiro que dominava a manhã. Ao ciciar um idioma ao acaso vestiu o papel de forasteiro. Repetia o exercício com frequência: gostava de ser forasteiro na sua cidade. Tinha provas: em zonas de movimentação turística, passeava com o vagar de um forasteiro, o olhar fingidamente alçado para cima, a cabeça movimentando-se ora para um lado, ora para o outro, e os empregados de mesa que acenavam instrutivamente as ementas dos restaurantes para cativarem clientela dirigiam-se em inglês à sua passagem. 

Esse prazer não era uma declinação do fingimento. E ainda que fosse, esse é o estado natural das pessoas durante grande parte do tempo. As reservas em admitir o fingimento vinham de dentro, como se fosse uma cal estrutural a instruir deveres morais a que só ele podia responder. Não tinha projeção exterior. Quanto ao demais, não devia ser muito diferente das outras pessoas: a descorrespondência entre princípios e prática ficava reservada aos domínios da consciência, vedados à sindicância exterior. Não chegava para compor uma angústia.

Postas de parte estas considerações, filiava o fazer de conta de forasteiro na falta de identificação com a cidade que veio a crescer com a idade. Era importunado pelos diagnósticos inapeláveis dos meirinhos que atestavam que a cidade era a melhor-disto-e-daquilo-e-do-mundo-inteiro. Deixara de ter paciência para provincianismos e para a falta de mundo adjacente. (Esses meirinhos que tivessem um cheiro de mundo para serem os primeiros a desmentir os seus provincianos diagnósticos.)

Não era tanto pelo divórcio de identidade com a cidade – em abono do rigor, com as pessoas que habitam a cidade e que dela fazem o que é, que a cidade, sem as pessoas que a habitam, não tem culpa de ser quem é. O fingimento da forasteira condição era um prazer interior, talvez inexplicável. Era uma sede de ser constantemente nómada sem sair de casa. Como se andasse atrás de mundo sem ter de emalar os pertences. E pela gratificação de passar por forasteiro na sua própria cidade. Uma vez apanhou um táxi. Sem ser ele a começar a conversa, o taxista falou sempre em inglês. 

Não precisava de outro atestado que confirmasse que era um peixe fora da água na sua cidade.

24.10.24

Régulo (e esquadro)

The Cure, “The Drowning Man”, in https://www.youtube.com/watch?v=VHwm9pUdkGI

Os pequenos poderes, ostentados por pequenos reis sem trono, são como esquadros à procura de papel. São pequenos, os poderes, e os régulos convencidos que são imperadores romanos, a sua manápula estendida sobre os domínios vastos que um olhar diligente não alcança. Ufanamente encarando os súbditos a partir de um púlpito todavia apenas ideado.

Os régulo em apreço anda sempre com o esquadro a tiracolo. É arbitrário: regula por vontade própria, sentinela único de si mesmo, conjugando os verbos que aprouver e no tempo verbal que for preferido. Não aceita contestação. Nem as suas decisões podem ser escrutinadas por um tribunal de recurso. O régulo profere a primeira palavra e detém a última, é um monopolista impenitente. 

A tiracolo, o esquadro rege-se pelos mais recentes humores, ou por interesses que não tem de confessar – os registos de interesses só se aplicam aos súbditos que obedecem ao régulo, para o régulo saber com quem pode contar se for preciso contar espingardas. Sentado num estatuto acriticamente reconhecido pelo séquito, torna-se sujeito de uma hagiografia. Convive bem com a idolatria – vem-se a confirmar, é senhor de um ego colossal. O culto da personalidade exacerba o abismo entre o régulo e os seguidores (já nem se mencionam os outros, autênticos apóstatas que têm o topete de não reconhecer a autoridade do régulo). Com o ego inflacionado, sobe a parada da arbitrariedade. Extingue as ordenanças, até as que tinha sido autor em páginas do passado. As ordenanças serão determinadas no apuro das circunstâncias, para o régulo sobre elas exercer a sua polida análise e proferir sentença a calhar.

Por causa da idolatria, o régulo foi apanhado numa curva traiçoeira e entrou em despiste. Foi apanhado a praticar, às escondidas e sob a égide da sua incomensurável autoridade intelectual e de um estatuto imbeliscável, o que durante décadas jurou combater. Culpou os adversários, imputando-lhes uma conspiração para o destituir da sua perene autoridade. 

Caído em desgraça, disparou em todos os sentidos. Desabituado dos pequenos poderes que transfigurou em alta autoridade, começou a inventar tábulas de salvação. Não percebeu que se exaurira a outrora quase incontestável autoridade. 

Os deuses com pés-de-barro também se abatem. O régulo já só o é na sua ainda inflacionada cabeça. Vai-se a ver, e acredita na sua imortalidade.

23.10.24

República da felicidade

Metronomy, “The Bay”, in https://www.youtube.com/watch?v=9PnOG67flRA

Tirando os cegos, ninguém conseguia descobrir a república da felicidade. 

Uns, sombrios, não acreditavam que pudessem ser cercados pelo arco-íris da felicidade; era um conceito estranho, externo, uma impossibilidade concreta. Outros eram indiferentes, estavam convencidos que a felicidade era contingente e eram tantas as variáveis que a tornavam um domínio do acaso. 

Havia aqueles que perseveravam: sabiam conjugar a felicidade e, mesmo sabendo que era entrecortada com a sua antítese e com outros momentos de neutralidade, era sazonal, mas irregular. Estes podiam ser inventariados como testemunhas abonatórias da felicidade. Se estivessem na posse de todas as faculdades e não fossem atraiçoados por um juízo que acabaria por ser um logro. 

Ainda havia aqueles que celebravam a felicidade no estrito domínio pessoal, levantado uma cortina de ferro para não misturarem o mau andamento do mundo, um princípio geral de que não abdicavam, com o domínio pessoal. Refugiavam-se na soberania do amor, na fortaleza da família mais chegada e nos afetos afins, embainhando uma coutada fechada ao exterior. Viviam numa república exígua da felicidade, mas conseguiam-na descrever se fossem desafiados a fazê-lo. Descreviam-como um ente formidável, uma grandiosidade feita de pequenos saltos no escuro. 

Eram acusados de individualismo, pela fortaleza intencional que os tornava insensíveis aos males do mundo. Não se importavam. Fizeram o seu caminho das contrariedades, tiveram de descobrir modos de se protegerem contra os punhais potenciais que o mundo exterior, e as pessoas que o habitam, estão prontos a assestar nos ingénuos, os que não cuidaram de vestir uma couraça contra o meio exterior. 

Eram suseranos destas micro repúblicas da felicidade, como se, no que à felicidade diz respeito, o feudalismo não tivesse sido extinto. Erguiam-se contra o terreno lunar, inóspito, dos que negavam provimento à felicidade e dos ingénuos que continuam a acreditar em receitas milagrosas sobre a fruição de algo que não passa de uma miragem aos olhos dos prescrevem aquelas receitas. 

Sabiam que a felicidade é feita de passos modestos e ela própria é um módico. Regrada, com critério e sem a soberba da embriaguez de quem finge um estado que não consegue alcançar. 

22.10.24

O embaixador das manhãs

Patti Smith, “Smells Like Teen Spirit”, in https://www.youtube.com/watch?v=_ohayGCVWZY

Ia para a varanda, ainda a noite tutelava o céu. Pelo andar do relógio, era só um passo até à alvorada. A escuridão começava a capitular, levemente cerzida por um clarear que respirava a véspera do sol. 

Até lá, o céu despojava-se vagarosamente da escuridão, tudo à volta se emancipava da noite e começava a ganhar formas nítidas. O próprio corpo emancipava-se do torpor herdado do sono, do sono talvez terminado a destempo. Era como se as veias se dilatassem para o sangue começar a aquecer. Para o dia o ser.

Não havia nuvens no céu. Não levaria muito tempo até se processar a alquimia da madrugada: o despontar dos primeiros raios de sol antes de o sol colonizar o horizonte e crescer no estuário do dia. Os únicos vestígios do sol eram as irradiações que coloriam o céu em tons alaranjados. Ajudavam à metamorfose do céu, que num curto intervalo de tempo haveria de passar da bruma da noite para a luz clara do céu alimentado pelo sol que sobe com o desvagar próprio dos dias que são sempre apressados. 

Pelo meio, os feixes alaranjados que são o prefácio do sol: o céu fica num limbo, sem saber se se despede da noite terminal ou se endossa o cumprimento ao dia que se inaugura. Se o começo do dia for condecorado com um céu composto por finas nuvens, a tela ateia o êxtase: os lampejos de luz alaranjada irradiados por um sol ainda à distância embebem-se nas nuvens, que passam a ser novelos de algodão tingidos com diferentes cambiantes de cor de laranja. Até que, com o crescimento do dia, o sol se torne próximo e os raios projetados perdem a timidez. A tonalidade laranja perde a validade. 

Na varanda, a contemplar a alquimia da madrugada, pergunta se o tempo de um dia devia ter uma contagem diferente: em vez de o dia começar formalmente à meia-noite, o minuto primeiro devia ser a hora e o minuto em que o sol se anunciasse no horizonte. Hoje seria às sete horas e cinquenta e cinco minutos. Amanhã seria às sete horas e cinquenta e seis minutos.  Se o dia começa com o clarear, os relógios deviam estar acertados pelo ciclo de vida do dia e da noite. Até para se prestar homenagem à obra de arte que é a alvorada.

21.10.24

A caligrafia dantes

The Limiñanas, “Au début c’était le début” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=OoIM7EC_mXM&list=RDOoIM7EC_mXM&start_radio=1

Lembrar-se-ão – e não precisam de ser veteranos – as vezes que velhos do Restelo, nostálgicos de apurada cepa e outra gente viciada no passado começavam frases extasiados com os benfeitorias do passado: “dantes é que...” 

Açambarcados pelo medo do presente e pelo pânico do futuro, estruturalmente conservadores (porque pressentem que a mudança é a rima consequente do futuro), sobressaltam-se quando intuem que o dia consecutivo vai abolir alguns verbetes que compõem o situacionismo em vigor. Eles, que até preferiam o situacionismo de antanho, e quanto mais de antanho melhor soa, querem limitar os danos da incerteza. Se pudessem, adiavam o dia consecutivo; os mais ousadamente passadistas fariam, se também pudessem, um golpe de Estado. Só para extinguir o futuro, ou remodelar o tempo para que ele passasse a ser a preceito das suas preferências. Sem contemplarem as consequências, como impõem os cânones: se o futuro deixasse de existir, o amanhã teria prescrito antes do tempo, uma injustiça atroz por não se conceder uma oportunidade ao dia consecutivo. 

Os saudosistas já morreram e ainda não deram conta.

Ou então, são apenas velhos que convivem mal com a senescência. Amargos por dentro, fustigam as novidades em que estão constantemente a tropeçar. São coisas novas a mais. Como não fazem esforço para inventariar as mudanças, resistem. Ficam agarrados às saias puídas do passado, ao bolor inconsequente que a nostalgia concretiza. Escrevem todo o seu protesto com uma caneta Bic. Tem de ser Bic. A manuscrita é um dever irrecusável para não serem acusados de transigir com os sacerdotes da modernidade a quem acusam de se cansarem depressa com o tempo que têm entre mãos.

A caligrafia, impecavelmente estética, sem gatafunhos nem emendas, protesta contra a voracidade do tempo. Estão convencidos que o tempo anda mais depressa do que no tempo em que o tempo obedecia às convenções. Querem convencer o bom povo que é vítima de uma conspiração. Ou talvez não: o seu pessimismo antropológico certifica a necessidade de fazer o tempo correr depressa. As vidas deixam de ser torturas que se alongam num tempo que parecia não ter fim, mas afinal voa a uma velocidade supersónica. 

Os mecenas da nostalgia têm de rever a caligrafia. 

18.10.24

O mal de ser metódico

The Comet Is Coming, “Technicolour” (live at Glastonbury), in https://www.youtube.com/watch?v=uax7xVm_hko

Um metódico gaba-se de ser metódico. Não consegue organizar-se sem ser organizado. Congemina critérios, estabelece regras, formula calendários e respeita datas. Detesta estar em atraso. É tomado pela apoplexia quando pressente que pode chegar com atraso. 

No meio de tantos processos e critérios e calendários e mnemónicas diversas, o metódico torna-se refém do método exacerbado. Refém de si mesmo, incapaz de se libertar da contingência do processo que armou para não ficar perdido a meio de um ermo onde se acentuasse a desorientação. Fica em pânico só de pensar na hipótese da desorientação. 

Sopesa as contrariedades de ser metódico com a ausência de método. Levou a vida inteira convencido que ter um método é uma boia de salvação para o caos intrínseco do mundo exterior. Não saberia ser cultor do caos – e avalia, sem conhecimento de causa, o que é medrar no caos se não fosse um dedicado cultor do método que inventou para si. Corrige o murmúrio interior: o que seria medrar no caos, pois não pode haver conhecimento de causa do que não se conhece. 

Para esvaziar o auto de si mesmo, ensaia um exercício contrafactual (ser honesto, a começar consigo mesmo, é uma exigência do método autoproposto). Uma parte de si que costuma andar escondida, à revelia – uma espécie de personalidade rebelde, que conseguiu calar durante quase todo o tempo – lança uma interrogação: estás a tentar convencer-te do que tens sem teres meios para julgar o seu oposto? Não é honesto. Com uma agravante: estás a negar o método extremado de que és cultor. 

Depois de reagir espontaneamente à interrogação (que pergunta provocatória; ah! este demónio interior, que não consigo erradicar…), afugentou o medo como inerte do desconhecimento. Admitiu: se nunca experimentou o caos, como pode manter que não sabe ser senão metódico?

17.10.24

A França escondida

The White Stripes, “Dead Leaves and the Dirty Ground” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=Ziuu93gFaGg

A barriga encolhida – era preciso parecer bem antes de cair a máscara e tudo não passar de um fingimento. Mas se fosse às funduras do pensamento, naquele lugar remoto onde as mãos varrem do fundo todos os vestígios que podem importar, desatando as interrogações consecutivas, perguntar-se-ia: por que é tão importante fazer de conta? E fazer de conta por causa de baias estéticas que ganharam foros de ordenança?

É como a lagartixa que procura ser jacaré. Pode-o ser através de um jogo de sombras. Projeta o corpo numa parede com a ajuda da luz situada na sua retaguarda. A luz amplia o tamanho do corpo. A semelhança genética cuida do resto: por um ato de magia, a lagartixa superou a pequenez e conseguiu parecer um jacaré (pelo menos enquanto durou a luz projetada na parede). Esta seria a altura para a intervenção de um guru da almas, para chamar a si os créditos pelo exercício intelectual que é fazer das fraquezas forças. E o guru ficaria em palco, gongórico e desinteressante, a escorrer logros, enquanto não fosse deposto por um filantropo qualquer que lhe dissesse: não foi por magia, foi por um jogo de sombras que a lagartixa se transfigurou jacaré.

O fingimento é um atestado de desagravo. Um desagravo virado do avesso, para o interior do sujeito. É possível encontrar um atalho que magnifica o sujeito. Tem pendências interiores mal resolvidas, ou ainda por resolver. Corteja um eu que não é, como se um modesto país teimassem em ser uma França qualquer. Ainda por cima, fazer conta que é a França passa ao lado do que é importante: quem assim se comporta ficou parado no tempo, a França já não é potência há sete décadas.

Em vez das convenções que ensinam os parâmetros aceitáveis, ultrapassando a ignomínia do “novo Homem novo” para congeminar um pós-novo Homem novo que depressa terá sequelas intermináveis, quem é Lichtenstein não devia ambicionar ser França. Somos escrutinados pelos olhares dos outros. Querer ser alguém que transborda os limites do sujeito é um devaneio risível. Os outros perguntarão: para que queres ser França se a França deixou de ser o que foi?

Essa seria uma pergunta suicida. Circunda o que importa e ajuda à interminável procissão de fingimentos que é o cimento das pertenças. 

16.10.24

Vintena

The Sundays, “Wild Horses”, in https://www.youtube.com/watch?v=x7GE90n6XX8

Se andasse com o relógio vinte anos para trás, gostava que visses como eras quando respiraste pela primeira vez. Um corpo amarrotado, avermelhado, trazendo os restos da placenta como se fosse uma comenda, um choro convulsivo como maravilhosa prova de vida, o cabelo escuro e pegajoso contrariando a calvície sempre prematura dos recém-nascidos, o espernear consanguíneo de quem prova o ambiente sem as muralhas a que estava habituada. 

Quando enfim soubeste que viver fora do útero não era o caos que pressentiste nos minutos inaugurais, devias ver a imagem que resplandecia na serenidade no teu primeiro sono. Demorei a contemplar a paz que personificavas. Fiquei não-sei-bem-quantos-minutos a decifrar os leves esgares a que te conduzia o sono inaugural – já então tinhas sonhos e ainda não sabias nada dos feitiços que os sonhos fabricam em forma de poesia. Apertaste a mão contra o dedo que atirei na tua direção e um estremecimento percorreu o meu corpo. Dizem os entendidos que é o amor filial, a celebração das almas gémeas que se juntam na comunhão entre pai e filha. Foi logo nesse primeiro dia que começámos a falar, apesar do teu silêncio apenas entrecortado pelo choro faminto. 

Se, com a ajuda da alquimia, fizesse recuar os ponteiros do relógio numa frenética viagem pela vintena de anos que cumpres hoje, era capaz de atear com o lampejo de uma luz avivada todos os momentos inaugurais que da tua vida fui testemunha. Para os veres como peças de um puzzle que apenas dispõe fragmentos dos sete mil trezentos e quatro dias que são a moldura onde cabes. 

Mas isso era se fôssemos reféns da nostalgia. Se não houvesse vida por celebrar, agora e depois, e não pudéssemos dizer que continuamos a ser cúmplices, como bebemos este amor singular que não se esconde das palavras e dos gestos. Uma vintena de anos é apenas um par de páginas viradas, à espera de muitas outras e ainda mais repletas do muito que queiras teu. 

Em mim, encontras o que precisares que eu seja. Farol, ou porta; verbo, ou silêncio; céu onde se escondem segredos, ou mar onde mergulhas as mãos; rosto-espelho, ou miradouro por onde espreitas o futuro; cais descoberto no deserto, ou parede para enxugar lágrimas; livro como peito aberto, ou o mundo inteiro pelo passo da minha mão. 

15.10.24

Consecutivamente

Virginia Astley, “Love’s a Lonely Place”, in https://www.youtube.com/watch?v=Xw9lIH2gkfE

Apalavradas as promessas que são por junto um contrato sem assinatura. As intenções não se escondem das juras autenticadas. Serão julgadas quando, ao cabo dos prazos embainhados, os procuradores forem chamados a depor.  Nessa altura, ser-lhes-á perguntado se as intenções receberam materialização, ou se ficaram esquecidas num tempo açaimado pelo nevoeiro.

As provas esbarram nas vozes que se sobrepõem: as falas, viradas do avesso pela cacofonia pervasiva, como que grasnam ditongos ininteligíveis, sem se afigurar uma frase clara. Se os procuradores estiverem distantes do rigor, talvez adiram à complacência frouxa e desnivelem o juízo esperado. Dirão a sua justiça: as promessas foram satisfatoriamente cumpridas (e soletram as sílabas de satisfatoriamente). Todos ficam contentes. Os promitentes, que em seu escrutínio conseguiram-se desembaraçar com a honra mínima; os que tiraram partido das promessas, convencidos pelos procuradores que a empreitada correspondeu aos mínimos exigíveis; e até os procuradores, convencidos que a indulgência também é em causa própria.

Poucos saberão aferir o advérbio satisfatoriamente. Na escala de valores atribuídos, é um patamar intermédio entre excelência e mediocridade. Arrastam-se os satisfatoriamente por um “e assim consecutivamente”, que o traduz numa aceitação mais elevada. O satisfatório eleva-se a um bom, pelo menos. A generosidade dos procuradores inventariou novos parâmetros. Quase ninguém é medíocre. É uma solidariedade de pares. Quase ninguém ousa rematar a tarefa assentando na mediocridade do escrutinado, para não correr o risco de sobre ele/ela se abater o mesmo opróbrio mais tarde.

Consecutivamente, o apuramento entre pares verte-se na condescendência tutelar – e todos somos pares quando coabitamos sob os auspícios da mesma pertença. O rigor fica esquecido nos patamares onde as sindicâncias têm lugar. Um nirvana fingido cobre os lugares com a convocatória da generosidade precisa para ninguém ficar de fora. 

Vamos ao alfobre do consecutivamente para incluir todos na bitola do satisfatório. Reféns da satisfação em forma de mínimo denominador comum, vemos rarear a excelência. Vamos a caminho do esquecimento da excelência. Perseverar é oneroso. Antes uma lógica de mínimos, para termos tempo para a aplicarmos ao muito tempo livre que sobra.

14.10.24

O que temos a dizer do bolor

Death Cab for Cutie, “I Will Follow You into the Dark”, in https://www.youtube.com/watch?v=3iV_1ESMHaI

E se atirássemos gesso para o que apodrece, conseguíamos travar a podridão?

Sinais de decomposição: uma mancha azulada que, em pouco tempo, deixa outras manchas espalhadas ao acaso. O apodrecimento está em curso e o alimento em plena podridão deixou de ter serventia (diz-se). O bolor determina a extinção da validade. Comer o alimento bolorento pode causar convulsões.

 Nem sempre o bolor é o agente que arremata a podridão irremediável. A alquimia de certos processos químicos adia a prescrição do alimento bolorento. O bolor torna-se o catalisador da transfiguração que impede o apodrecimento. 

Há queijos que têm finos filamentos azulados que irrompem entre a parte sã do leite fermentado. Esse processo torna-os distintivos. É um apodrecimento apreciado, sem ele o queijo não teria as propriedades que tem, não seria um alimento singular. Há um processo vínico que deixa as uvas tardias agarradas às cepas quase até estarem podres. As uvas emaciadas ganham uma tonalidade caramelizada, ficando como se estivessem a caminho de ser uvas passas. Apodrecem por dentro. Quando se tornam bolorentas ganham uma doçura terminal que não têm antes de entrarem nesta decadência. Resultam em vinhos de colheita tardia que são uma espécie à parte na viticultura, uma raridade vínica.  

O bolor não sempre prescreve um alimento. Estes bolores heurísticos ensinam que a decadência não é o sentido único que encena o abismo. Pode ser a redescoberta que retarda o próprio processo de decadência. São os bolores interiores, devidamente manipulados para transfigurarem o apodrecimento num processo distintivo, que amortecem a decadência. 

Não temos de ser banais seguidores das más convenções. Às vezes, encontramos em algo o contrário do que lhe é imputado. Só temos de saber usar como trunfo o que, de outro modo, é um atestado de caducidade. Às vezes, entre a distração das banalidades, temos muito a aprender com a natureza.

11.10.24

Troca-tintas

Royal Blood, “Typhoons”, in https://www.youtube.com/watch?v=k9SQ2xfHEiM

*

O operário foi acusado de trocar as tintas depois de ter pintado as paredes da casa. O empreiteiro não perdoou o equívoco. “Andas com a cabeça na lua, ou és burro?”, disparou, inquisitivo e boçal, com o tratamento rude que é devido no sector. “Vou descontar no teu salário. O que me custarem as tintas para pintares a casa outra vez e os dias de trabalho que precisares para retificares a asneira”. O rapaz, acabrunhado, ficou em silêncio. Resignado. Ah, mas ninguém saberia porque naquele dia estava com a cabeça na lua. Esse era um prazer que dinheiro nenhum pagava (ao contrário do empreiteiro que, ao que constava, pagava para ter prazer.)

**

O antigo presidente da câmara saiu da sabática para concorrer às eleições. Não será candidato pelo partido a que todos estavam habituados. Envelheceu e o envelhecimento radicalizou-o. Alguns cidadãos, ouvidos por um jornal local, estranharam a deriva. Não percebem como se aliou aos radicais. Outros cidadãos, mais realistas, desvalorizaram a manobra. Como o partido do ex-edil renovou a confiança no atual presidente da câmara, o antecessor teve de escolher outro ninho partidário. Encostou-se aos radicais como podia ter-se encostado a outro partido qualquer. O mercado eleitoral não olha a nomes nem se incomoda como o oportunismo. Quem avalia se um troca tintas perde confiança são os eleitores. 

***

De repente, a mulher começou a ser evasiva. Distante e fria. Esquecendo-se mais vezes do era habitual à conta de ser estruturalmente distraída. Um dia, tinham combinado um almoço numa esplanada em frente do mar. Ela não apareceu. Não atendeu o telefone. À noite, durante o jantar, era como se o corpo presente estivesse desligado do resto, perfeitamente ausente, indiferente. Quis sair depois de jantar. Sozinha. Só apareceu no início da manhã. Para fazer as malas e comunicar que ia embora. Preferiu não dar justificações. Para não o magoar. Mesmo sabendo que o dano estava feito. 

****

Era assíduo nos concertos daquele grupo. Apesar da veterania dos músicos e de eles não renovarem o repertório há quase vinte anos. Já conseguia identificar os rostos habituais nos concertos. Tal como ele, gente de meia-idade, reféns da nostalgia, parados musicalmente no tempo. Não faziam o menor esforço para estarem ao corrente da música que se ia fazendo. Nos concertos, a tribo recuava no tempo e avivava tempos memoráveis. Admitiam que as suas vidas atuais, a caminho do envelhecimento, eram entediantes e banais. Um dia, anotou à margem do dia que ir a todos os concertos daquela banda chamava a decadência para perto. Começou a ouvir a música nova, feita por músicos novos. E nunca mais foi a um concerto da banda veterana. Talvez por coincidência, a banda parou de tocar ao vivo. E nenhum dos seus músicos morreu. 

10.10.24

Esticar a corda e depois voltar ao curral

Deftones, “You’ve Seen the Butcher”, in https://www.youtube.com/watch?v=woAcXSMyCEw

(Ainda sobre a peça de teatro “As Grandes Comemorações Quase Oficiais do Período Histórico Habitualmente Conhecido como PREC (Processo Revolucionário em Curso)”, um diálogo ficcionado entre o encenador e um espectador crítico)

Um ator, num monólogo trespassado pela emoção, recorda a primeira vez que festejou o primeiro de maio. Levado às cavalitas pelo pai, viu algumas estacas onde estavam empaladas cabeças de carneiros. Sá Carneiro era o primeiro-ministro. De acordo com a personagem, os “ideais de abril” tinham sido atraiçoados antes, mas a eleição que empossou Sá Carneiro foi um ultraje, a total corrupção do 25 de abril. Os seus conterrâneos, revolucionários de boa cepa, nascidos e vividos no Alentejo profundo e miserável, lembraram-se de usar o primeiro de maio para protestar contra o primeiro-ministro. Daquela maneira.

- Espectador crítico: A imagem dos carneiros decepados não foi por acaso. A personagem fez questão de nos situar no tempo: o primeiro primeiro de maio de que se lembra foi em 1980, era Sá Carneiro primeiro-ministro. Daí à traição ao 25 de abril e à punição (apenas simbólica, para bem de todos) retratada nas cabeças empaladas dos carneiros, foi mais do que um mero recurso estilístico.

- Encenador: A intensidade dramática tinha de atingir o auge com o monólogo da personagem que faz de toupeira. É o epílogo da peça. Situar a cena no Alentejo, onde ainda medrava um espírito revolucionário condizente com a pureza do 25 de abril, foi o catalisador da intensidade dramática, para prender o espectador. (Em jeito de confissão:  a peça durava há três horas, para prevenir o cansaço era preciso agarrar o espectador até ao fim.)

- Espectador crítico: E quando a toupeira, na sua roupagem de ator com nome próprio, relativizou o cenário macabro das cabeças de carneiros cravadas nas estacas, a ele se referindo, em tom condescendente, como um “cenário carnavalesco”? Ficamos por um cenário carnavalesco, quando a cena – muito bem narrada pelo ator, com a remissão para o consulado de Sá Carneiro – é macabra e reveladora de uma violência potencial?

- Encenador: Não te esqueças, é uma peça de teatro. Não podes levar à letra a linguagem, nem as imagens que se insinuam de uma determinada cena devem ser interpretadas literalmente. De outro modo, o espectador está a cercear a liberdade de expressão do criador da arte – pior: a liberdade de criação artística.

- Espectador crítico: Sou sensível à liberdade criativa e aos múltiplos significados que a linguagem das artes pode conter. Naquela cena, fui mais sensível à mensagem: os revolucionários daquele sítio alentejano, sentindo que o “seu abril” foi traído com a chegada da AD e de Sá Carneiro ao poder, encenaram a degola de carneiros. A imagem dos carneiros decepados em fila é macabra, a imagem em si, sem a associação entre o animal e o nome de Sá Carneiro. A ideia associada à cena não pode ser amortecida na paternalista fórmula de um “cenário carnavalesco”. É violência pura. A violência não quadra com nenhum carnaval. A encenação sinaliza as intenções dos seus autores. Do que encarnou aquela personagem e dos que assinaram o texto que dá corpo à peça.

- Encenador: Temos diferentes perspetivas. Eu tenho a cena à conta da liberdade artística. Repito: a linguagem das artes transcende o sentido literal. O desfile de cabeças decepadas de carneiros pode ser macabro se for descontextualizado. O contexto foi revelado pelo ator. Por dentro desse contexto, não chega a ser macabro. É uma forma radical de um grupo de pessoas manifestar o seu descontentamento com o curso que a política levou depois de a direita ter chegado ao poder, traindo o espírito do 25 de abril. Concluir que essas pessoas degolariam Sá Carneiro se ele aparecesse a jeito, é excessivo. É uma conclusão que fica por tua conta.

- Espectador crítico: Caracterizar as cabeças empaladas de carneiros como “encenação carnavalesca” é uma tentativa de esvaziar a violência que a cena transporta consigo. O facto de o ator o dizer, e no tom condescendente e vagamente paternalista com o que o faz, não é uma confissão por meias palavras? Ao procurar diminuir o alcance da cena, despromovendo-a de macabra a carnavalesca, não está a admitir o exagero e a querer desculpá-lo com truques de retórica?

- Encenador: Insisto no princípio da liberdade artística e da fluidez da linguagem e das imagens usadas na arte. 

- Espectador crítico: Vamos fazer um jogo de espelhos: se a peça fosse encenada por um encenador com visível simpatia pela extrema-direita, e se as cabeças empaladas fossem de animais em representação de imigrantes, qual seria a tua reação?

O encenador teve de atender o telemóvel. “É uma chamada urgente, vou ter de atender. Até à próxima”, acenando em jeito de despedida enquanto se afastava do café. No uso da linguagem flexível que é apanágio das artes, dir-se-ia que recolheu ao curral (sem ofensa).

9.10.24

Sussurro

Ride, “Like a Daydream”, in https://www.youtube.com/watch?v=8zzo25t_eC8  

Um mandamento estatelado ao comprido. Talvez por decadência. Ou por irrelevância: as pessoas passavam ao lado do mandamento puído e não davam conta do corpo inerte estendido no asfalto corroído. O corpo inerte era causa suficiente para a indiferença dos passeantes. 

O mandamento deixou de mandar. O que dantes convocava um rosário de oxalás (oxalá deixe de ser mandamento; oxalá as pessoas deixem de lhe dar importância; oxalá caia em desuso; oxalá seja revogado) era agora féretro deixado nas margens da irrelevância. O mandamento já não se podia chamar mandamento. Era outra coisa qualquer, nestes preparos apenas uma peça museológica. Ajudaria a compor as memórias da memória. Daria para uma lição. Que não se voltasse a erguer das cinzas, deixando de ser simulacro de Fénix para embainhar a forma dentro da sepultura. 

A notícia correu, rasa ao chão para não levantar a poeira da memória ainda desorganizada. As pessoas tinham medo que a notícia da extinção do mandamento fosse prematura. Receavam que o mandamento tivesse capacidades sobrenaturais e fosse resgatado dos braços da morte, marcando orgulhosamente presença no panteão dos vivos. Ou as pessoas estavam cansadas de mandamentos e o rumor, ciciado de ouvido em ouvido, de que um mandamento perdera autoridade era como um estandarte de ânimo cravado no chão do futuro. Em vez de terem um número indeterminado de mandamentos sobreponíveis à sua autonomia, tinham esse número menos um. Este era daquele domínios em que todos ficam a ganhar ao ativarem a subtração. 

O sussurro imperativo era o recibo da discrição anotada à margem do verbete daquele mandamento. Rasgaram-lhe o traje. O mandamento não conseguia ser alguém vestido com a nudez absoluta. Ninguém quis ser testemunha dessa nudez. Não foi por elegia ao mandamento extinto. Um corpo despojado de vida merece o pudor da indiferença. 

O sussurro montou-se numa onda irreparável. Deixou de ser sussurro, continuando a propagar-se, nos idiomas todos, por todos os lados onde havia idiomas por falar. O mandamento foi celebrado porque estava extinto. E o sussurro, já sem medo da inviabilidade do rumor, deu a vez à voz com bainha inteira. Que, ébria no êxtase de quem se desembaraçou de um mandamento, cantava o que mais podia cantar.

8.10.24

O PREC e uma barrigada de riso

 

The Horrors, “Mirror’s Image”, in https://www.youtube.com/watch?v=0EOPIi4Q3lM

(Pensamentos avulsos após a peça de teatro “As Grandes Comemorações Quase Oficiais do Período Histórico Habitualmente Conhecido como PREC (Processo Revolucionário em Curso)”, encenação de Gonçalo Amorim, Teatro Carlos Alberto, 6 de outubro de 2024)

Aprende-se muito com aqueles de quem se discorda. 

O coletivo de autores (ora pois) prometia “problematizar e contrariar a ideia de que [o PREC] foi um período dominado pelo caos e por excessos ideológicos”. A “Comissão de Festas” (o tal coletivo) advertia: o espetáculo era “(...) intimamente parcial. De esquerda. Antirreacionário e antifascista. E, por isso mesmo, é celebratório, festivo e popular.” Quando li a sinopse, abri um espaço obrigatório na agenda para assistir ao exercício encomiástico do PREC, em versão teatralizada. Sempre me interessei pelo período, sobre ele li bastante e considero-o paradigmático dos riscos da polarização política em curso.

Depois de quase três horas e meia de fragmentos que mergulhavam no PREC (“precformances”), dois dias depois ainda estou para perceber se assisti a uma peça de teatro ou a um comício. A peça é sobre a nostalgia do PREC, misturando ingenuidade com um embrião de violência, com uma entrega plena à intervenção política. Não vale a pena voltar à vexato quaestio da fusão entre arte e política, ou de que como a arte pode ser invadida pela ideologia política, tornando-se instrumento da política. Já escrevi no passado e reforço a minha posição a cada peça em que a cumplicidade é visível: a arte expõe-se à (auto) decadência quando é instrumentalizada pela política.

Aprendi com a peça que os que pactuam com o regime em vigor são burgueses, vendidos ao capitalismo (ou por ele hipnotizados) e metidos num largo baú onde medram como “fascistas”. Depois de ter sido informado que fascistas e liberais são da mesma cepa, concluí que se não nos mobilizarmos contra o grande capital que nos oprime somos coniventes com um fascismo disfarçado de democracia. E eles, os saudosistas do PREC, que deixaram passar em branco os mandatos em branco assinados pelo líder do COPCON, eles que usaram a palavra “democracia” à exaustão para, quase no fim, defenderem a “ditadura do proletariado”, num ativismo arrancado ao fundo da alma, ensinaram como a democracia burguesa continua a condenar os explorados a serem explorados. Estes saudosistas do PREC, se pudessem mudar o curso da História, não teriam permitido eleições e teriam demitido (ou condenado a degredo, ou a cárcere) uma parcela considerável do povo. Justamente todo aquele povo que foi condenando os partidos da extrema-esquerda à insignificância em sucessivas eleições. 

A peça incluiu tragédias narradas que tiveram o efeito Photoshop previsível para quem se amordaça num autismo intelectual. Os tribunais populares, porque a justiça que se aprende nas Faculdades de Direito é uma justiça enviesada, malsãmente burguesa, que se inclina sempre a favor dos poderosos. Ou a cena, contada com uma elevada intensidade dramática, do homem que, enquanto rapaz, celebrava o primeiro de maio de 1980 às cavalitas do seu pai, evocando as cabeças de carneiro empaladas como metáfora do que os revolucionários gostariam de fazer ao então primeiro-ministro, Sá Carneiro. E como a personagem ajuizou o desfile de cabeças de carneiro decepadas como uma “encenação carnavalesca”. Poderia discordar e considerar a encenação macabra, ou seria condenado ao açaime se me tivesse levantado em pleno ato para propor a correção do qualificativo? No momento de elevada intensidade dramática, o ator que sai da personagem de toupeira e encarna na pele de ator com um nome próprio desfila os nomes que serviram de inspiração para a “democracia” que o coletivo celebrou na peça. Não faltaram Baader e Meinhof! A páginas tantas, num momento de maior exaltação, não aceitou que lhe digam que é de extrema-esquerda. 

No fim da récita, olhei em redor, com a ajuda das luzes acesas. Os aplausos foram demorados, num abraço excitado do público ao coletivo de atores (com a exceção de meia-dúzia de espectadores que saíram apressados e sem o obrigatório aplauso). Uma das atrizes gritou o pregão sacramental “fascismo nunca mais”, esquecendo-se que a peça passou grande parte do tempo a denunciar o fascismo em que vivemos. O exercício de nostalgia tinha tocado o público profundamente. Este público pratica uma espécie de onanismo intelectual: só adere às artes desde que as artes estejam politicamente comprometidas com aquilo que esse público gosta. Este viés é significativo da sua linhagem democrática.

E se fosse possível um exercício contra-factual, só para perguntar o seguinte: se a extrema-esquerda tivesse vingado no PREC, em que regime político viveríamos? Como não faço parte do proletariado, a liberdade de escrever este texto seria garantida pelos tutores da “ditadura do proletariado”, como foi defendido, sem pejo, num momento da peça?

No intervalo da récita, em conversa com uma conhecida que estranhou a minha presença naquele momento celebratório de “esquerda”, disse-lhe, em tom provocatório: “ainda bem que ainda temos a liberdade de expressão”. Disse-o sem que ela pudesse deduzir que estava a insinuar o contrário. Repito: ainda bem que a liberdade de expressão está enraizada e, apesar de algum salazarismo entranhado até aos ossos, visível em vários quadrantes da sociedade (da direita à esquerda, por mais que a uns e a outros custe admitir), é uma pedra de toque do regime. Disse-o, admito, em tom de provocação e não fiquei propositadamente agarrado a um sussurro, para perceber se nas imediações estava um entusiasmado com o tempo-volta-para-trás do PREC que acusasse o toque. Ela confessou que gosta muito de “teatro comprometido”. Fiquei sem resposta quando lhe perguntei se teria elasticidade mental para assistir a uma peça que encenasse (por exemplo) um texto de Ezra Pound.

Depois de ter assistido a esta peça, puxei a fita atrás. Tivemos muita sorte durante o PREC. Podíamos ter escorregado para um banho de sangue se as coisas não tivessem corrido bem. Ou então foi apenas um episódio de uma ópera bufa que, à distância, provoca uma gargalhada sonora. O coletivo de atores, afinal, fez-me um favor.