5.12.25

XLVII

Shame, “One Rizla”, in https://www.youtube.com/watch?v=7Mz_K1b5rVk  

“Number me with rage

it’s a shame

(such a shame).”

Temos vergonha da nossa própria vergonha? A vergonha em si já é matéria suficiente para desatar a vergonha. O contrário também é certo: não nos assiste a vergonha se à vergonha não nos dermos como pasto fértil. O que não é acertado é carregarmos a vergonha com a vergonha que é ter vergonha da vergonha – como se a vergonha fosse elevada a uma potência que a amplia num excesso de vergonha que a torna insuportável.

Podemos ter vergonha de incidentes que não foram causados pela nossa ação, mas dos quais acabamos por ser vítimas por nos exporem ao ridículo. Uma vez, estava no coração da cidade, numa das ruas mais movimentadas, ao ir apressadamente para o trabalho, apessoado no fato e gravata, levei com a matéria fecal de uma pomba transeunte em cima do meu ombro e da cabeça, sob os auspícios da multidão que se cruzava comigo. Nem tive tempo de ficar aflito, pois um diligente funcionário de um talho, que fumava à porta do estabelecimento, levou-me logo para dentro do local, onde ele e dois colegas trataram de desembaraçar o casaco das excreções deixadas pela ave. Não cheguei a ter tempo de corar de vergonha.

A vergonha que sentimos quando a causa da vergonha é independente da nossa ação é uma vergonha infundada. Não é daquelas vergonhas que acontecem porque somos naturalmente desastrados e as nossas ações concorrem amiúde para pequenos cataclismos na esfera pessoal, expondo-nos ao ridículo em público. Essas são as vergonhas que causam legítimo embaraço. Como aconteceu num café, ao tentar ser tão simpático que me substituí na função de empregada de mesa e, ao levar o café para a mesa, o pé direito tropeçou no pé esquerdo, fazendo com que o café se derramasse no chão juntamente comigo.

  As vergonhas podem explicar-se pela aptidão para sermos o elefante na loja de porcelanas, mesmo que, por prevenção, não frequentemos lojas repletas de porcelanas finas. Acabamos por descobrir uma loja de porcelanas fora das lojas de porcelanas, um sintoma indicativo de que, às vezes, o espaço em que nos movemos, por maior que seja, é sempre exíguo para albergar a propensão para o disparate (e o tamanho descomunal do disparate). Temos de passar pela vergonha dessas vergonhas? Não: a vergonha em si é matéria bastante para o embaraço interior. 

Já as vergonhas que nos são atribuídas pelas vozes dos outros são de tratamento mais leve. Na maior parte dos casos, são diagnósticos exagerados. Imputam-nos uma vergonha por divergência insuperável ou por uma inveja que não deixam de alimentar. Se não reconhecemos o vencimento da causa, não acusamos a imputação da vergonha. Devolvemo-la à procedência. Essas são as vergonhas que não deveriam ter sido atiradas pelo seu proponente. Melhor é que sejam chocadas na origem.

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