7.4.25

Para além da Economia Política do protecionismo trumpiano

Beastie Boys, “Sabotage” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=Z6xsKsJqVyg

Não há um dia que passe sem notícias ou comentários sobre os previsíveis efeitos económicos da corrida aos direitos aduaneiros iniciada pela administração Trump. Essa é uma dimensão da escalada protecionista que não pode ser menosprezada. Os efeitos da aplicação de direitos aduaneiros não escapam ao cálculo económico: quem perde, quem ganha, que perdas terão as economias nacionais, quem retalia contra quem, possivelmente desfazendo as contas anteriores, e assim sucessivamente. A maré alta protecionista é o pressentimento da maré baixa económica. Por mais que Trump e os seus conselheiros económicos queiram iludir o conhecimento científico e a confrontação com a realidade, se o rastilho do protecionismo não for apagado o mais certo é todos ficarem a perder quando forem apurados os efeitos do sismo protecionista. 

A guerra comercial planetária contempla outros efeitos que escapam ao radar da Economia. O principal problema talvez nem seja a abjuração do multilateralismo que, com altos e alguns baixos, foi axial após a Segunda Guerra Mundial. Os seus efeitos, longe de estarem consensualizados na literatura, costumam ser reconhecidos como a causa de um longo período de prosperidade económica. Todavia, o que pretendo demonstrar escapa à alçada da Economia, o que me leva a mudar o ângulo de análise para os efeitos até agora anonimizados pela análise dominante.

Em primeiro lugar, a demissão do multilateralismo corporiza um retrocesso na frágil concórdia internacional inaugurada após a Segunda Guerra Mundial. A negação do isolamento e a promoção do entendimento internacional são fundações em que se alicerça a ordem mundial contemporânea. Essa ordem transcende, e em muito, o comércio internacional. Mas esta é uma parte importante da ordem internacional contemporânea. A partir do momento em que um país com as responsabilidades internacionais dos EUA se socorre do arsenal de direitos aduaneiros, hipoteca a lógica do multilateralismo. As feridas abertas não ficam confinadas ao comércio internacional. A desconfiança que rima com o protecionismo pode ter o efeito de um tsunami. O dealbar de uma era protecionista põe em causa a lógica do multilateralismo e contamina outras áreas sensíveis da ordem internacional. Os direitos aduaneiros trazem consigo a desconfiança e a semente da instabilidade, até por partirem de quem não se pode demitir das suas responsabilidades internacionais. A História prova que a instabilidade não é compatível com a prosperidade.

Em segundo lugar, a insensibilidade da administração Trump perante a estabilidade internacional convoca um lugar diferente para os EUA no teatro das Relações Internacionais. Sendo precursores do protecionismo, na ostentação garbosa (mas fátua) da grandeza americana que precede as responsabilidades do país como garante da estabilidade internacional, os EUA perfilam-se como pária. Investem num ensimesmar (“make America great again” – MAGA) que traduz um egoísmo indisfarçado e a indiferença pelos outros países e pela ordem internacional. Só interessam os interesses nacionais e a cooperação é atropelada por ser um obstáculo àqueles interesses. O unilateralismo está em vias de substituir a ordem internacional baseada na cooperação e no multilateralismo. Nesta altura, os mais cínicos sobem a palco para lembrar a ambiguidade internacional dos EUA: em seu favor, argumentam que os EUA sempre privilegiaram os interesses nacionais, que o ensimesmar trumpista é mais do mesmo – só que sem filtros nem máscaras, o crime perpetrado em plena luz do dia e sob o olhar atónito do mundo inteiro. 

Em terceiro lugar, ao assumir o papel de pária internacional, os EUA demitem-se do papel de âncora da ordem internacional. O que traz consequências para a natureza da ordem internacional, com um possível caos resultante da orfandade de liderança como sintoma visível. O futuro dirá se esta demissão de responsabilidades foi intencional a partir do momento em que Trump se virou para o umbigo dos EUA, ou se é um efeito colateral e não previsto da retórica MAGA. A influência dos EUA na ordem internacional está suspensa enquanto a administração Trump dedicar tanta indiferença à estabilidade internacional.

Em quarto lugar, há toda uma simbologia associada ao protecionismo que tem repercussões importantes. Uma das motivações dos direitos aduaneiros é a penalização da competitividade internacional dos produtos importados. Trump não o esconde: quer castigar as importações, tornando-as mais caras no mercado dos EUA, para incentivar os consumidores a comprarem “made in USA”. Esta estratégia é explícita nos propósitos: um desvio de comércio, das importações para os produtos locais; com ela, o reconhecimento de que a competitividade dos produtos fabricados nos EUA depende da aplicação de direitos aduaneiros. É como se o desportista só conseguisse levar a palma aos concorrentes porque se muniu de substâncias dopantes. Foi o próprio presidente dos EUA a admitir a fragilidade da economia do país, ao ponto de admitir que a sua reabilitação depende da punição das importações.

Não sejamos ingénuos: a ordem internacional que promoveu as livre trocas internacionais, com a redução e a abolição de direitos aduaneiros e de outras restrições ao comércio, nunca conseguiu banir a hipótese de os países recorrerem ao arsenal protecionista. Na maior parte das vezes, faziam-no alegando circunstâncias excecionais que justificavam a utilização de medidas protecionistas. A diferença não é de somenos importância: primeiro, esse recurso era excecional e não, como é o caso atual, o início de uma nova era de protecionismo generalizado, com uma guerra comercial sem precedentes; e, segundo, o rastilho foi ateado pelo país com mais responsabilidades na promoção da estabilidade internacional, o que é representativo de um novo estatuto dos EUA e da própria ordem internacional.

Como em tempos sombrios, dominados pelo pessimismo, é de bom tom dissidir e exibir confiança no futuro, pode ser que Trump se arrependa e enterre o machado da guerra comercial para a tornar uma espécie em vias de extinção.

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