8.4.25

A casta casta

Royal Blood, “Mountains at Midnight”, in https://www.youtube.com/watch?v=ak-xJYNWfzE

Qual é a métrica da controvérsia? – perguntava, introspetiva, como quem imita o pensador de Rodin, o queixo como balaustrada do pensamento que irradia na direção da mão que procura amparo no queixo profilático. 

Não sei. Ou melhor: sei que a controvérsia é um lábio que contém as impressões digitais de cada um. Algo que te provoca rejeição pode ser indiferente para mim. E o contrário. – respondeu, sem mostrar grande interesse pelo objeto da conversa, que estaria condenado a ser um solilóquio.  

Não te importa que as pessoas destapem a sua intimidade, que anunciem, em forma de fotografias e vídeos, publicados em modernos areópagos da democracia da comunicação, o que dantes estava sob reserva da privacidade? – insistiu, procurando inverter um certo desinteresse no objeto da conversa que notara na resposta à pergunta inicial.

As pessoas fazem o que querem com as suas vidas. Se as expõem, têm de estar preparadas para a publicidade. Devem ser capazes de aguentar a usura dos outros em cima de fragmentos das suas vidas privadas. O que tu chamas – como disseste? modernos... e ela completou: “areópagos da democracia da comunicação” – são uma faculdade que as pessoas usam como entendem. Que não fiquem à margem das consequência do uso: se for parcimonioso, reservam o essencial da sua privacidade; se for extravagante, as suas vidas são expropriadas pelo público que as consumir. E não se diga que a expropriação é indevida. É parte da vontade de quem a expõe. – perante tão prolixa resposta, ela ficou contente: o objeto da conversa já não era indiferente.

Fico abismada com o grau de exposição pública. Até as crianças são mostradas como trofeus voluntários dos progenitores, contra as advertências do mau uso que depois possa ser feito dessas imagens. As pessoas não se contentam em viver as suas vidas. Querem-nas objeto de uma coletivização que se confunde com um grande espaço público onde as vidas deixam de ser privadas para serem objetos. – acrescentou, para manter acesa a conversa.

Não te deves importunar com isso. As pessoas fazem-no no estreito cumprimento da sua autonomia. Usam os instrumentos que agora existem. Não são obrigadas. Dir-me-ás que muitas deles não medem as consequências. Pior para elas. A autonomia tem ser levada aos limites. Não se pode esconder atrás de uma pueril demanda por proteção contra os mastins que se comportem como canibais das vidas alheias. – ripostou, num tom que intencionalmente arrefeceu a conversa, não escondendo um certo enfado por o objeto ainda não ter sido encerrado.

Esta alienação, todavia, deixa-me perplexa. A apatia perante as consequências de as vidas aparecerem nuas diante dos outros é um retrocesso, corresponde à dissolução de uma parte importante da liberdade e da dignidade que tanto custaram a conquistar. As pessoas deixam de ser viáveis como indivíduos. – no seu rosto, as cicatrizes da dor alheia avivavam-se, como se fosse uma súplica para manter viva a conversa.

Não falemos de impossibilidades. Ou de coisas que são atiradas para a irrelevância, porque não as conseguimos controlar; tu e eu não conseguimos, e acrescento, eu não quero, ter mão na vontade que os outros manifestam em relação a si próprios. – e como notou que ela ia retorquir, atalhou caminho: não insistas, pareces aqueles tutores da moralidade coletiva que querem salvar a humanidade de si mesma. Não queiras ser embaixatriz de uma casta muito casta.

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