New Order, “Sunrise” (live at the Hacienda), in https://www.youtube.com/watch?v=v-Ttkqc02cQ
Que dia merencório amanheceu, depois da sísmica colheita eleitoral. Contam-se as espingardas, as que foram depostas por oposição às que se hasteiam no orgulho dos vitoriosos. Pesa sobre a manhã um odor a apocalipse. De um lado, espingardas desembainhadas cospem espectros sobre o futuro, sobressaltando as consciências cívicas que têm medo que o futuro entre em ligação direta com o passado hediondo. Do outro lado, o pesar que se mistura com temor que por sua vez se confunde com mal disfarçados lampejos de intolerância. Agora que o tabuleiro ficou virado do avesso, desconfia-se da lucidez de quem tutela a soberania. Eis o testemunho dos maus pergaminhos democráticos de quem assim se comporta.
São densas as nuvens que se acastelam sobre o dorso do dia. São um peso tremendo arqueado sobre o futuro. Trivializam-se profecias de apocalipse, que até podem não ser infundamentadas. A palavra democracia está em vias de banalização, esgotando os seus atributos enquanto conceito que baliza o sistema político. As recriminações recíprocas enquistam-se em vozes bruscas e trovosas, dando corpo à polarização que se cristaliza e ameaça amputar a lucidez. A acrimónia reproduz-se nos códigos de conduta que se adulteram a uma velocidade relâmpago.
O futuro que se entretece é como um aviso vermelho emitido pelos serviços de meteorologia: tempestades previsíveis abater-se-ão sem dó, levando das pessoas os alicerces da serenidade que era património comum. O que não é previsível é o cenário depois da passagem das tempestades. Será um lugar irrespirável, destroçado pelas espadas de sinal contrário que se terçam no usufruto da força beócia? Será um lugar dilacerado por retóricas exaltadas que se autoalimentam de intolerância? Será um lugar onde o espaço da dissidência tende a ser ostracizado, atirando quem pensa de modo diferente para uma condição pária? Será um lugar trespassado por diálogos de surdos, onde já ninguém consegue falar com os outros?
Na radicalização emergente fermenta o ódio recíproco, a intolerância em que medra a intolerância de sinal contrário, as palavras que são atiradas contra o outro, desprovidas de sentido construtivo. Virá de trás para o futuro a destruição das ideias contrárias, o anátema gratuito sobre o adversário (que se esgotará nessa condição, depressa transfigurado em inimigo), a contaminação dos espaços até então moderados, seja por oportunismo (para seduzir os inebriados pela radicalização em curso), seja por espontânea conversão ditada pelos sinais do tempo, multiplicando-se as vozes iracundas que se mobilizam com o propósito de desfeitear as vozes opostas. Com grandes custos para o futuro que se esconde atrás do horizonte, adiado para incertas núpcias por omissão de ideias e de propostas que corrijam as fragilidades hiantes.
Temo que esteja inaugurado um Inverno tenebroso e de longo alcance, empobrecido por demoradas noites árticas. Temo que o incerto despontar futuro da primavera dê a conhecer os destroços do longo Inverno que se abateu, pois os olhares embaciados pelo crepúsculo perlongado não conseguem medir, colonizados que estão pela escuridão, os danos entretanto adicionados pelos próceres da radicalização em curso.
E temo que uma vez feito o inventário, ainda a tempo de uma incursão heurística que nos extraia da corrida para a demência coletiva, esteja em falta a capacidade para resgatar a lucidez. Nessa altura, estaremos à mercê dos demónios nascidos do úbere das plúmbeas e demoradas nuvens em que cristalizámos, sitiados pelo pensamento autónomo que mirra em cada apeadeiro da intransigência, à mercê das chuvas ácidas derramadas por essas nuvens. Seremos parias de nós mesmos, a soldo dos loucos que nos anestesiaram.
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