New Order, “Shadowplay” (live in Glasgow), in https://www.youtube.com/watch?v=VISTnle1zh4
Uma revisão constitucional não se faz de ânimo leve. Mesmo que se evoque o atavismo do documento: há palavras que não passam de figuras de estilo, representando a historicidade de um tempo que não pode ser banida quando mudam as circunstâncias. Os resultados das eleições ainda não assentaram e dois partidos à direita (um de direita moderada, o outro de extrema-direita) já enchem a boca com promessas de revisão constitucional.
(Antes de continuar com o raciocínio, exponho uma declaração de interesses: ideologicamente estou próximo de um destes partidos – e não é o de extrema-direita).
É cedo de mais para pensar numa revisão da Constituição apenas porque os partidos que não são de esquerda reúnem uma maioria de deputados suficiente para aprovar a revisão. Este “apenas porque” tem uma força gravitacional que não pode ser desprezada, pela mudança de contexto no sistema partidário que resulta das eleições e pelo ineditismo desse contexto na História da democracia. Os militantes e simpatizantes de partidos situados à direita quiserem aproveitar a mudança de contexto, mas a pressa pode traí-los.
Primeiro, o argumento do líder do Livre: as mudanças na Constituição não podem estar na agenda da legislatura porque o assunto não foi contemplado na campanha eleitoral. É uma iniciativa destituída de legitimidade. O receio é compreensível (para o Livre e os demais partidos à esquerda): com uma super maioria de deputados, uma maioria que não era sonhada antes das eleições, os partidos à direita podem mudar os alicerces do regime político (ainda que, em alguns casos, do foro simbólico) através da revisão da Constituição. Daí ao esbracejar de fantasmas do “fascismo” vai um pequeno passo. Todavia, o argumento da ilegitimidade não tem vencimento. Era o que mais faltava, não poder tratar de temas que não apareceram durante a campanha eleitoral mas que, por uma alteração de circunstâncias, passam a figurar na agenda política. A fraca retórica política confirma o desnorte que tomou conta das esquerdas.
Segundo, a legitimidade política da revisão constitucional assenta na existência de uma maioria de deputados superior a dois terços. Esse é o limite definido pela própria Constituição, não o resto que elucubrações oportunistas possam sugerir ou insinuar. A revisão da Constituição contém os seus próprios limites, com normas que não podem ser mudadas sob pena de tornar ilegítima a revisão que as retirar do texto. Esta garantia sobrepõe-se aos (possíveis) excessos de voluntarismo dos promotores da revisão constitucional.
Terceiro, pese embora os partidos à esquerda protestem antes de o processo se iniciar (se se iniciar), e sendo certo que não podem ser coibidos de manifestar as suas posições, mal andaria a democracia se um terço dos deputados fizesse vingar a rejeição da revisão constitucional.
Quarto, os fantasmas que adejam pela voz dos partidos à esquerda vieram a palco antes do tempo. As prioridades dos três partidos à direita são diferentes. À partida, parece ser mais o que os desune. Atingir um mínimo denominador comum entre estes partidos parece uma missão impossível (com o conhecimento de hoje sobre as agendas dos partidos). Isso devia sossegar os partidos à esquerda. Acabam por ser reféns de si mesmos e da teimosia (ou a convicção apenas eleitoralista) de que os partidos à direita são todos iguais e que o maior deles, mais tarde ou mais cedo, vai negociar com o partido da extrema-direita.
Quinto, fica a pairar a impressão de a revisão constitucional é um movimento oportunista. Agora que estes partidos reúnem um número de deputados superior a dois terços podem congeminar uma revisão constitucional. A sensação de oportunismo não quadra com a seriedade do processo de revisão constitucional. O oportunismo traduz a superficialidade com que o assunto está a ser tratado.
Apressar uma revisão constitucional não ofende a legitimidade jurídica e política do processo. O momento e o contexto não podem ser desprezados. No momento presente não estão reunidas as condições para uma revisão constitucional. A legislatura ainda nem sequer foi inaugurada. Como prova de moderação, os promotores da ideia podiam-na adiar para a próxima legislatura. Todavia, os partidos à direita podem não querer esperar, talvez por terem fundadas dúvidas de virem a repetir a maioria extravagante com que não contavam. Ou é durante esta legislatura que se consuma a revisão constitucional, ou tão cedo o contexto político favorável se repetirá.
Ora, precipitar o processo de revisão da Constituição não boa política. Para o bem ou para o mal (depende das perspetivas), a Constituição está impregnada de uma matriz. Os elementos mais ideológicos não comprometem a ação governativa nem atrasam o desenvolvimento do país. Quase cinquenta anos depois da aprovação da Constituição, esses aspetos ideológicos não passam de uma curiosidade antropológica.
Mesmo que os partidos à direita insistam em banir a carga ideológica da Constituição, prever que o assunto só será tratado na legislatura seguinte teria três vantagens: por um lado, os promotores da (futura) revisão constitucional davam provas de moderação; por outro lado, mostravam-se sensíveis aos interesses dos partidos à esquerda, numa manifestação de abertura e tolerância que servia de lição; por fim, ao serem sensibilizados para a possível revisão constitucional na legislatura seguinte, a legitimidade para consumar a revisão constitucional seria confirmada se o voto dos eleitores repetisse a super maioria nos partidos à direita.
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