29.5.25

Cortar a rente

Electronic, “Getting Away with It”, in https://www.youtube.com/watch?v=svz0USluN50

Não há lugar à displicência. O afoguear episódico insurge-se contra a lucidez. As palavras emudecem na sua transfiguração. Ganham outro sentido, substituídas por silêncios demorados. Desaprendemos a ser gregários, mergulhados num profundo egoísmo, como se dispensássemos os outros exceto para cumprir o egoísmo em que nos consumimos.

Diz-se que não há lugar à comiseração. A indulgência é indigente e move-se por sórdidos caminhos que conspiram contra os beneficiários da comiseração. Pode ser apenas uma forma fingida de dispensar a simpatia com os que precisam de ajuda. Um pretexto para isolar a bondade, como se ela não fosse precisa para sindicar a natureza humana. 

Entre o cortar a rente, deixando desamparados os que não têm corrimão para se agarrarem, e a medida inválida da generosidade descoberta depois do tempo, o plano está inclinado para a primeira hipótese. Exige menos compromisso. É mais desumana. Encerra um paradoxo que poucos conseguem medir: tamanha medida de desprezo pelo cuidado dos outros é a cínica confirmação do descuido próprio: ninguém pode afirmar de viva voz que o futuro não se torna adverso e que sua será a vez de figurar entre os que peticionam a bondade dos outros. 

Cortar a rente quando os outros estão sentados num dos pratos da balança pode ser o pior dos tiros no pé. Ninguém pode afirmar que é uma ilha imorredoira, mantendo os outros a uma higiénica distância de segurança; não é legítimo insistir na desajuda aos outros por não precisar da ajuda de ninguém. Todavia, a bondade não se memoriza como o juro demorado em proveito próprio. Se for um investimento na redenção diferida, reduz-se ao ensimesmar de quem vira o rosto ao passar de uma alma que desespera por uma mão estendida na sua direção. 

A título de exemplo, uma mnemónica para romper com a indiferença estabelecida: antes de pagar a conta (no café, no restaurante, na mercearia, onde quer que seja), oferecer-se para pagar a conta de quem está a seguir. Às escuras, sem saber quanto será a conta e se a pessoa beneficiada precisa de generosidade. E depois, passar a incumbência. No dia seguinte, é a vez dessa pessoa se oferecer para pagar a conta de quem vem atrás. E assim sucessivamente. 

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