Cocteau Twins, “Rilkean Heart”, in https://www.youtube.com/watch?v=lkvmjniEW0E
Havia peritos interessados em saber quem era favorecido pelas “tarifas” da Samolândia. À partida, não entendiam o que motivava as “tarifas”. Passaram as “tarifas” a pente fino, para apurar as mercadorias penalizadas e os países mais atingidos. Mas, sobretudo, para determinar os sectores da economia da Samolândia mais beneficiados por as “tarifas” desviarem consumo de bens importados para os bens fabricados na Samolândia.
Após análise exaustiva e com correção de métodos, os peritos identificaram os sectores que passaram a ser competitivos no mercado da Samolândia. Estavam longe ter importância para a economia. Os peritos estranharam a seleção dos sectores favorecidos. A escolha das mercadorias sujeitas a “tarifas” era produto do acaso, ou apenas consequência de decisões erráticas. Não descobriram um critério coerente que legitimasse uma teoria para as “tarifas” impostas.
Nessa altura, subiram a palco outros peritos. Estes peritos tinham uma outra sensibilidade e estudam fenómenos omitidos pelos primeiros peritos. Esperava-se que a parceria facilitasse a inteligibilidade das “tarifas” decididas pelo líder da Samolândia. A segunda leva de peritos dedicou a atenção a coisas mais comezinhas, da natureza humana: quem eram os donos das empresas dos sectores beneficiados pelas “tarifas”; e a identificação (ou não) de laços de proximidade com a elite que governava o país, para discernir uma causalidade.
As conclusões foram assombrosas. Quase todos os empresários proprietários daquelas empresas eram amigos do presidente da Samolândia. As suspeições avivaram-se. A relação de causa e efeito era ostensiva, derrubando a máscara da imparcialidade política que deve conduzir os negócios públicos de um país. As ligações eram tão nítidas que nem houve um módico de pudor para compor a paleta de sectores protegidos pelas “tarifas”. A segunda leva de peritos ajudou a primeira leva a formular uma teoria explicativa da ausência de racionalidade das “tarifas”.
O presidente da Samolândia estava a soldo de empresas de amigos mais chegados. Elas recebiam um subsídio disfarçado de “tarifas”, correspondendo a uma inaceitável transferência de rendimento dos contribuintes para esta elite. Outros sectores vieram a palco reivindicar o mesmo apoio. A discriminação era inaceitável e corrompia a imparcialidade e a objetividade que devem influenciar as decisões políticas. As motivações particulares do presidente da Samolândia eram o denominador comum ao apreciar as empresas beneficiadas pelas “tarifas”. Os adversários cerraram fileiras e acusaram-no de nepotismo (um crime com punição prevista nas leis penais).
Nesta altura, a Samolândia estava repleta de manifestações de perplexidade. Houve quem acusasse o líder da Samolândia de privatizar a ação pública com a contaminação dos seus interesses pessoais. Outros levaram a acusação mais longe: a maneira como se tornou permeável aos interesses dos amigos entranhava a violação de princípios democráticos, o que serviu de base para o incriminarem e para alimentarem uma proposta de deposição do presidente de acordo com o processo previsto na Constituição. Argumentavam: o presidente está a minar a democracia e a atropelar a longa História de sedimentação das instituições políticas.
De fora também houve vozes a protestar. Não estavam incomodados com as entorses democráticas, pois não tinham legitimidade para ingerir nos assuntos internos da Samolândia. Todavia, as “tarifas” causaram distorções inadmissíveis que prejudicavam empresas destes países. Por outro lado, estes países estavam com receio de que a ausência de critério das “tarifas” da Samolândia cristalizasse a arbitrariedade que penaliza todos. Uma coisa é estimar que este ou aquele sector vão ser beneficiados por uma “tarifa” devido ao peso que ocupam na economia do país, ou porque a contexto especial de um certo tempo justifica proteger temporariamente um sector; diferente coisa é a incerteza que se entroniza na geografia da arbitrariedade.
Alguém comentou, a propósito, que os países que queiram perceber a lógica das “tarifas” da Samolândia devem socorrer-se de peritos que saibam decifrar a personalidade do presidente do país e a sua teia de amizades e conhecimentos. Estes passariam a ser os conselheiros de política comercial mais requisitados, a manter-se a teimosia protecionista e a arbitrariedade como pano de fundo das decisões do líder da Samolândia.
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