12.3.08

Havia beleza em cada instante


Não era o mundo o cataclismo que desfilava diante dos olhos. Não eram as pessoas a raiz dos males que julgava ser seu cerco. A irreverência, talvez metódico refúgio das tempestades que cavalgavam até esbarrarem no seu peito. E descobria a beleza das outras cores; já não só o negro que parecia tomar conta do céu, o cinzento que tingia os rostos cerrados das pessoas em trânsito.

Percebia uma luminosidade encantadora, uma luminosidade que só a teimosia recusara. Em vez de ir em demanda dos sedimentos do mal-estar, a urgência em asfixiar as pétalas que desabrochavam felicidade interior. Em vez de discernir a maldade em cada palavra entoada. Em vez de acreditar em perturbantes conspirações que anunciavam o pessimismo antropológico. Em vez de desconfiar, por método, por temer que houvesse nos outros a raiz da desilusão. Em vez de conceber as urdiduras que o desalinhavam do mundo inevitável. Em vez de tudo isso, descobriu uma nesga por onde espreitava uma luz feérica, singular.

Esgueirou-se dos seus fantasmas quando eles estavam imersos na sua própria sonolência. Descobriu que afinal tudo era diferente do universo plúmbeo que o apoquentava. Que muitas vezes há apenas a tentação de suprimir os gestos singelos que dispersam a muita beleza em redor. A luta titânica entre o optimismo e o pessimismo não é um alçapão que submete o corpo à incongruência do pessimismo. Por mais fácil que seja resvalar para uma espessa névoa onde pouco a vista alcança, a pouca paisagem toldada pelas gotículas impenitentes. Uma complexa mistificação, todavia, com a dolorosa fragilidade que se derrama.

O ar era mais respirável, mais leve, de uma pureza nunca sentida. Renovava. Os passos sucediam-se sem o cansaço do corpo. E as pessoas esboçavam sorrisos quando se falavam, sem a rudeza dos espíritos conturbados à espera do logro semeado pelos oportunistas. Havia bondade, uma bondade militante. E beleza em todos os gestos, até nas palavras mais singelas que entoavam um sentido poético. Subitamente, todos eram empossados numa poética condição, o sinal exaltante do novo espaço por onde o corpo se entregava. Não havia mendigos. A desonestidade, acantonada às margens do comportamento, o opróbrio supremo activado pela censura espontaneamente colectiva. Sem leis, ou mandantes, ou sequer importunados polícias.

A certa altura interrogou-se se não estava mergulhado num sonambulismo ilusório, ou dominado por oníricos ventos. Interrogou-se: se havia lugar aos mundos tão diferentes, tão antítese um do outro, com a singeleza de um curto passo. Se não era cansaço de si mesmo pelo pessimismo de que fazia militância. Derrotado pela sua fragilidade, a urgência em convocar um imaginário tão diferente das coisas e pessoas e palavras que afinal o entediavam. O súbito imperativo de tumular o antropológico pessimismo. É que os dias incessantes deixavam o travo amargo no seu final: uma sensação grotesca, em descompasso com as marés dominantes, uma dissidência irrecusável. A dor lancinante de ladear as sensações gratificantes, aquela embriaguez de reconforto interior que outros ostentavam, para sua inveja.

Talvez houvesse um lugar onde só importavam os afectos, a descomprometida entrega às pessoas queridas. Porque os afectos eram a tutela da grandeza interior que se compõe com o novo sextante encontrado naquela fenda subitamente descoberta. Olhar com os mesmos olhos para as mesmas coisas e distingui-las na sua beleza, elas que outrora eram vilipendiadas pelo espírito conturbado nas suas dúvidas existenciais. Talvez a maldade nos outros fosse um juízo precipitado. Cada palavra, cada gesto, cada rosto, cada fragmento das paisagens infindáveis, o templo onde se sagrava a beleza esfuziante.

As pálpebras esconderam, durante tanto tempo, a espessura do ar límpido, da luz tão clara descoberta na nova dimensão. Ou elas, ainda encerradas no sono profundo, escondiam um palco apenas sonhado. E serão os sonhos, as utopias, a fortaleza onde se transfigura a lamacenta espessura dos lugares em redor, a indeclinável amostra da beleza terapêutica?

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