3.3.08

Os bastardos da democracia


São filhos ilegítimos da democracia. E, no entanto, encharcam a sua boca com prosas que os auto-enobrecem como penhores da democracia. Acham-se sacerdotes dela, seus bastiões inexpugnáveis, os garantes da intangibilidade das liberdades. Asseguram espaço à tolerância das ideias dissidentes. Porém, insinuam-se no seu contrário sempre que “distraidamente” caucionam atropelos a tudo aquilo de que dizem ser penhores. Insidiosamente, testando a atenção do público, escorregam para frases assassinas ou decisões que fazem tábua rasa dos valores de que se dizem ardorosos defensores.

É toda uma corte que adeja os senhores ministros e secretários de Estado, desfazendo-se em genuflexões que podem ser gestuais ou apenas em palavras ou actos bem pensados. Os aprendizes do poder, que um dia anseiam subir um degrau que seja na hierarquia da função pública, porventura sonhando com uma anónima sinecura distrital – expoente máximo do que podem aspirar, no seu cinzentismo indisfarçável – dão guarida a decisões que julgam ser do agrado dos seus superiores (e, se calhar, são). Que interessa que sejam varridos direitos que entram no catálogo da democracia? Se a gente estiver distraída, ninguém se apercebe e, no final, tudo se conjuga para um controlo maior sobre o espaço público. As divergências, logo desnudadas e prontas a juízo severo. Porque os messias do poder têm que se perpetuar, asfixiem-se as hipóteses de opinião divergente – ou, pelo menos, acantonem-se às suas sequelas nefastas para quem ousar divergir.

Eles e elas são os bastardos da democracia. Funcionários pequeninos, que se afadigam no frete aos chefes, julgando – na sua pequenez intelectual – que os chefes mostrarão eterno agradecimento pelo rasgo de que resultou a supressão de liberdades gratas à democracia (e, porventura, até agradecem). Por isso é que são os bastardos da democracia: são eles e elas que a abastardam, que a corrompem, que a entronizam numa crise que tem o condão de tornar ideologias totalitárias atraentes para alguns desiludidos.

O pior é nunca se fica a saber se os senhores ministros e secretários de Estados, que se deixam cercar por esta corte obediente, alimentam a verve torcionária dos inferiores hierárquicos. Fica por saber se é com conhecimento e consentimento dos chefes que os cinzentões anónimos cometem atentados a liberdades fundamentais. Há uma sensação ácida a dominar o paladar: com o controlo apertado com que a governação é feita, quem acredita que estas medidas sejam atiradas para o ar sem o conhecimento dos mandantes? Se o abuso é notório ao ponto de não passar despercebido mesmo aos mais desatentos, no final sempre podem invocar os mandantes que nada sabiam acerca do desvio do zeloso funcionário. Com o ar cândido de quem foi o último a tomar conhecimento do desvario, asseguram que foram dadas instruções para desfazer o equívoco. Pois.

Abastardam e abastardam, sem cessar, a democracia. Convivem mal com os que discordam e, fazendo-o, se limitam a exercer um direito fundamental: a liberdade de expressão. Há estalinistas mentes que povoam os ministérios e secretarias de Estado e direcções gerais e direcções regionais que enxameiam tudo isto. Multiplicam-se até à base da pirâmide. Como uma directora de uma escola em Leiria que se propunha incluir, como critério de avaliação dos professores, a expressão crítica contra a douta política do ministério da educação. Os que ousassem discordar e o dissessem em voz alta, em plena escola, seriam penalizados pelo atrevimento. Depois, uma patética sequência de desmentidos e contra-desmentidos que vieram revelar o amadorismo surpreendente da central de comunicações que “faz” a imagem deste governo.

Para depois fica a urgência da gestão dos danos: afinal não se pretendia fazer aquilo que foi ventilado (ou não se disse o que foi dito, apesar das palavras gravadas; ou os outros é que entenderam mal o que foi dito). Foi um erro de apreciação, uma distracção, chamem-lhe o que quiserem. Que nunca – jura-se a pés juntos, ostentando as credenciais democráticas que são sagradas e superiores às dos adversários – foi objectivo cercear a voz dos professores que não alinham pela política oficial das mentes brilhantes que residem no ministério da educação. O que sobra é a impressão de que esta medida, na sua aparente inocência, soa ao barro que foi atirado contra a parede só para ver se lá ficava colado, se andássemos todos distraídos.

Se há sensação grata é perceber, a espaços, laivos de maioridade cívica. Os que denunciam estes atentados são os penhores dessa maioridade cívica. Remetendo os cinzentos funcionários, portadores do cartão de militante do “partido certo”, aqueles que se esforçam por fazer fretes aos chefes (e os chefes que mostram mal disfarçada surpresa, por que não dizê-lo?), ao hediondo lugar de algozes da democracia.

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