Dizem que o corpo humano é um repositório de fealdade. Os corpos descuidados, a imensa maioria. Havia ontem, no Público, uma curiosa crónica de Paulo Varela Gomes, onde se relatava o cortejo de corpos desnudados de turistas ocidentais espalhados pelos areais de Goa. Curiosamente, o que se vê entronizado em publicidade que enxameia os olhos é a antítese do padrão onde se encaixa a imensa maioria: em vez das adiposidades inestéticas, corpos esbeltos, rostos de uma beleza ora exótica ora convencional, uma juventude eternamente celebrada. Uma minoria para invejar a imensa maioria incapaz de reproduzir os traços finos dos corpos enxutos.
Da estética se fala a propósito da relativização de gostos. Não há estética intemporal. Atravessa os tempos consoante são proclamados novos ícones, novas formas de entender o corpo, novas sagrações do corpo. Por hoje vai-se notando a tendência para sublimar corpos esquálidos, modelos femininos a quem ficam destinadas dietas sacrificiais, modelos masculinos a quem são prescritas hormonas femininas como milagre da depilação definitiva. Navegamos em paradoxos, divididos entre uma coisa e o seu contrário: a contemplação de corpos magros, os ossos salientando-se, proeminentes, sintomas de anorexia que se combatem entre as adolescentes que ambicionam o estéril estrelato das passerelles; em contrapartida, campanhas públicas que exortam os pais das crianças a educá-las na correcta alimentação, para evitar a obesidade.
O que será mais feio: um corpo esquelético cambaleando numa passerelle, as forças exangues pela carência de alimentos, os rostos cerrados e incapazes de esboçarem um sorriso? Ou um corpo avantajado, banhas abundantes saindo de roupas incompreensivelmente apertadas? Ou a interrogação porventura mais importante: e é tão importante consagrar um corpo se o que nos ensinam sacerdotes bem pensantes, de religiões e outros credos diversos, é a sublime sagração da mente?
Nas pessoas que desconhecemos, a imensa maioria com que nos cruzamos todos os dias, o que sobressai é o corpo que envergam. E como há quem diga na gastronomia que os olhos também comem, pode esta sentença ser obnubilada no incessante cortejo dos corpos diante dos nossos olhos? Sem descair para a futilidade da análise, que a espessura das pessoas distingue-se na personalidade, a estética não deixa atraiçoar o juízo dos corpos que desfilam na passerelle quotidiana, na passerelle onde todos somos manequins.
Paulo Varela Gomes conclui que os corpos que se estendem nos areais goeses são a antítese da estética – ou o grotesco altar da inestética. Há agressão à vista quando um corpo feminino em biquíni, ou um corpo masculino em calções de banho, mostram adiposidades que cultivam o descuido alimentar, o ausente exercício físico, em suma, corpos no limiar do abismo das doenças que são o sintoma da modernidade e do tão elevado desenvolvimento. É quase uma confrontação de liberdades: a liberdade dos turistas ocidentais passearem as vergonhas corporais nas areias de Goa e a liberdade dos transeuntes não serem agredidos pela inestética visão. Dir-se-ia: a beleza das praias ofuscada pela poluição visual semeada pelos corpos cheios de feiura.
A questão remete para uma polémica que invadiu a Holanda: a moda do “burquini” – um biquíni das mulheres árabes residentes naquele país que respeita os ditames culturais impostos pela sua religião, que impede o desnudamento de partes substanciais do corpo. Elas vão para a praia resguardadas pelo “burquini”. Na Holanda, os detractores do multiculturalismo insurgiram-se contra o “burquini”. Alegam que as mulheres árabes têm que viver de acordo com os costumes vigentes no país. E que o “burquini” ofende a liberdade de expressão consagrada na Holanda. Por entre alguma histeria dos que se antagonizaram com a nova moda, relapsos a tudo o que ressoe a islamismo em terras ocidentais, suspeito que há ali um inconfessável voyeurismo: o que eles querem é apreciar os corpos desnudados das mulheres árabes. Não percebem as virtudes do “burquini”, fosse a moda adoptada por pessoas de outros credos (ou sem credo algum): as desgraças corporais escondidas dos olhares alheios. Uma desanuviamento da poluição visual que enxameia as praias.
Ilação: a fealdade é tão importante como a beleza. Sem a fealdade, como teríamos oportunidade para distinguir – e apreciar – a beleza dos corpos? A feiura é a caução da beleza.
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