Papa Bento XVI dixit. O seu antecessor estava errado. O sumo-sacerdote, acolitado pelos teólogos iluminados pela razão divina, pesquisou entre as profundezas inacessíveis aos comuns dos mortais: o conciliábulo concluiu que o inferno é um assustador cutelo a pesar sobre a consciência dos crentes. Os desapossados da razão, aqueles que teimam em virar a cara à face gentia da fé, nada têm a temer. O discurso papal não lhes é dirigido. Porventura, serão eles a face terrível do demo que atemoriza a vida terrena e aparta a temente humanidade dos caminhos serenos da bondade.
De que cor será o inferno? A imagem dantesca (profetizada por escritos bíblicos ou pela crendice popular tão impregnada de ignorância) de um inferno em chamas, com tonalidades avermelhadas a adornar os diabos residentes – será este o retrato do inferno? Haverá mapa para localizar o inferno? É verdade que os espíritos malignos, aqueles que não podem almejar a redenção divina e vêm as portas celestiais vedadas, vão arder para o inferno? Não haverá amianto providencial nesta viagem final pelas catacumbas ardentes do inferno? Será coincidência a repugnância ao comunismo (e outras ideologias aparentadas com o marxismo) com os tons avermelhados que se caldeiam no inferno?
As interrogações incessantes deviam convocar os teólogos, donos absolutos da verdade terrena por inspiração divina, às necessárias explicações. Valiam para crentes e não crentes. É que estes, condenados à vegetativa fogueira perene do inferno, gostariam de saber o que os espera quando as cancelas de S. Pedro se mostrassem encerradas. Gostariam de preparar a epiderme contra as temperaturas tórridas, o forno onde todas as dores seriam consumidas nas suas cinzas. E gostariam de saber se, uma vez feita a despedida fatal da vida corpórea, a sua essência mudaria ao ponto de se demorarem no forno infernal sem se reduzirem a cinzas. A igreja convive mal com a racionalidade da ciência, é sabido. É que a química ensina que um corpo se consome em cinzas se for exposto às temperaturas que o espera nas alvenarias do inferno.
E como os sacerdotes são castas figuras, insistindo numa moral sexual que no fundo é assexuada, suspeito que é no inferno que as divas dos prazeres carnais moram. Talvez, até, se encontre aqui uma ponte que une na dissidência os que se deixam cegar pelas bulas papais e pelos dogmas do fundamentalismo islâmico: as setenta virgens prometidas aos kamikazes que entregam a vida em missões suicidas são a argamassa que se desprende das paredes do inferno, por toque de magia, ali todas em fila à espera de saciar as fantasias inconfessáveis dos que vieram bater à porta deste céu que é também inferno – depende da perspectiva.
E assim o paradoxo se concilia, por mais paradoxal que pareça. Se a humanidade se regesse religiosamente pelas tábuas dos sacerdotes de Roma, os lupanares entrariam em ruína. E de cada vez que os instintos carnais segredassem o desejo ao ouvido dos amantes – e que interessa que a relação tivesse sido abençoada por um padre – era o estigma do pecado a soçobrar a pureza que levanta as cancelas do espaço celestial. São inúteis os ensaios ecuménicos: as religiões são rivais na conquista do seu espaço vital. Por mais que queiram convencer-se do contrário, são corpos que se consomem mutuamente. Por isso é que o céu prometido aos que se deixam armadilhar com bombas suicidas é o espelho do inferno católico.
Adivinho o sobressalto que percorre, por estes dias, o espírito dos católicos. Estavam convencidos que o inferno não existia. O antecessor do actual papa tinha-os tranquilizado. Deus havia derrotado satanás. Os católicos andavam mais sossegados, acreditando que os pecadilhos por onde resvalavam a espaços eram perdoados pela magnanimidade divina. De uma vez por todas, a prova que deus era infinitamente bom e dotado de uma incomparável capacidade para perdoar desvarios momentâneos. Não havia inferno, nem sequer para os militantes do pecado.
Tudo mudou com a chancela do papa Bento XVI. Afinal, há inferno. Nem que isso signifique que deus, afinal também, cedeu perante o enrubescido satanás. O que me deixa perplexo. Dizem que deus é omnipotente, naturalmente insusceptível de ser vergado pela derrota. Mas se o inferno existe, deus não conseguiu destruí-lo. Satanás mantém a sua coutada intacta. Impermeável aos esforços de deus, uma selva impenetrável às investidas da bondade divina.
Já nem sei o que não bate certo: se a paradoxal incapacidade para deus vencer o braço de ferro com satanás; ou se a perfídia papal ao atemorizar os crentes com a revelação de que o inferno não acabou.
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