24.3.08

O rapazinho


Pode a pose soar a responsabilidade, já não à traquinice dos tempos da “jota”, a irreverência toda a relampejar da adolescência dissimulada. Pode a barba sugerir adulta condição, uns óculos sabiamente escolhidos para convencer a audiência que já é crescido e sedimentou seriedade. Debaixo da imagem permanece a mesma ossatura, o exemplo acabado da política dominada pela perfídia, pelas cambalhotas argumentativas, pelo destempero mental que todavia se faz transportar em capa de idoneidade incontestável. A mediocridade inigualável.

O vereador rapazinho ia a Lisboa, a “despachar” em plena viagem. Nem deu conta que o motorista se distraiu e o pé direito esmagou o acelerador até aos 181 quilómetros por hora. Azar: havia uma brigada de trânsito acompanhada por sanguinários repórteres de televisão. Azar a dobrar: tinha que ser o rapazinho a cair no radar do automóvel descaracterizado da brigada de trânsito. Mediatismo ao contrário. A pior da publicidade que um político pode esperar. As leis são para cumprir, para todos. (Excepto para o ministro da economia que, em tempos, permitiu que o motorista voasse a quase 210 quilómetros por hora sem que nada acontecesse. Pelos vistos, os limites de velocidade não se aplicam a apressados governantes. É que a governação não se compadece com atrasos e a estrada tem que ser tragada a velocidades supersónicas, não vá o país atrasar-se com o atraso do ministro.)

Mas o rapazinho não é ministro (ele bem gostava). Ainda só conseguiu chegar a vice-presidente do município. Recentemente regressou ao comando da distrital do partido a que pertence, para fazer aquilo que é sua especialidade: caciquismo, puro e duro. Para sua desdita, é filiado no “partido errado” (não o do governo). Não houve contemplações da brigada de trânsito. Para não mergulhar na vergonha do apanhado televisivo, o rapazinho recusou-se a sair do automóvel e não dirigiu palavra aos jornalistas. Logo ali ocorreu-lhe brilhante estratégia para reverter a seu favor o episódio (pensava ele): adiar para mais tarde, ganhando tempo para pensar na desculpa mais esfarrapada sem o parecer.

Horas mais tarde, em Lisboa, depois de consultar os spin doctors e congeminar estratégia para atenuar os danos, convocou conferência de imprensa. A culpa não tinha sido sua. Ia “a despachar” em plena viagem e não deu conta do que o motorista ia a fazer. Começava aqui a retórica da culpa que, se não morre solteira, repousa sempre nos ombros dos outros. A lógica da irresponsabilidade, que diz muito de quem a ela recorre como pretexto de exculpação. Quem se acovarda e irrompe entre elaboradas teorias que expiam a sua culpa é, no fundo, irresponsável pelos seus actos. Ora, quem não arca com a responsabilidade dos actos merece ocupar cargos de poder?

O rapazinho destilou a sua fúria – contra a brigada de trânsito, na sua militante caça à multa; contra os jornalistas, que só sabem fazer notícia à custa de “sangue”, e se forem notáveis da política a serem apanhados no meio do sarrabulho, tanto melhor. Criticou a falta de segurança, por ter sido parado em plena berma da auto-estrada; e os jornalistas que saíram na companhia dos agentes da brigada não envergavam coletes reflectores que o código da estrada manda usar naquelas circunstâncias. Insinuou a costumeira teoria da conspiração. Como faz parte da entourage do incrível líder do maior partido da oposição, não haveria laivos de assassinato político? Aos 181 quilómetros por hora, disse nada. Preferiu desviar a atenção para o acessório: que não devia ter sido parado na berma, pois a segurança estava em causa; que os jornalistas que acompanhavam a pressurosa brigada queriam fazer sangue e tinham ganho o dia porque lhes saíra na lotaria um “notável” (acha-se assim) da política.

Esforço louvável para reverter o episódio a seu favor. Esqueceu-se que nem todos são carentes de inteligência, como ele. Pode achar-se esperto, mais esperto que os outros, à boa maneira do portuguesinho típico que gosta de se ver mais esperto que os demais e sentir que acaba por os sacanear (para não ser sacaneado). É nas mãos destes exemplares que a política está entregue.

Na sexta-feira, uma notável crónica de Paulo Moura no Público dissertava sobre a falta de sintonia que muitas vezes se nota entre a idade física e a idade mental das pessoas. Dava exemplos. Eu acrescentaria este: o rapazinho de Gaia pode mostrar pose de Estado, barba hirsuta que ostenta a espessura de seriedade. Pode até, aqui e ali, deixar à mostra um o outro cabelo grisalho, a credencial imagética da responsabilidade. Pode envelhecer, que a sua idade mental há-de ser a de um rapazinho saído da tenebrosa escola das “jotas” partidárias. Não passará de aprendiz de adulto. Irresponsável, como um perene menor de idade.

Sem comentários: