É dos livros: os políticos profissionais são esfíngicas personagens que escondem a sua verdadeira pessoa. Autómatos nas mãos dos sapientes spin doctors que os aconselham (e, no fundo, os manobram). Pose estudada, discurso medido ao milímetro, e até quando aparecem em público desnudando porções da vida pessoal só destapam uma encenada faceta. Parece que os políticos de hoje não têm rosto humano, imersos nesta fabricação de imagem que faz deles uma mistela diferente daquilo que são por dentro.
Contudo, quando ensaiam gestos de condescendente revelação da pessoa que há em si apetece esquecer as críticas e pedir-lhes para voltarem a ser encenadas esfinges. Gestos, palavras, gostos pessoais, memórias, enfim, a face humana que se esconde detrás da imutabilidade da criatura política. Era melhor nem ter sabido que existe essa faceta. O esforço de humanização é um reviralho contra o encenador. A prova: a nostalgia do casal presidencial em visita a Moçambique. Em dois dias seguidos, tivemos direito a: um Cavaco desconhecido, saudosista dos dois anos que passou com a “sua mulher” enquanto prestou serviço militar à pátria; e uma primeira-dama com o habitual desbragamento verbal, a afiançar que a escola de Maputo onde deu aulas é “a sua escola”, com direito a discurso emocionado aos alunos e lições sobre a liberdade.
É surpreendente a abertura das portas da intimidade de antanho do casal. Não consta que seja uma parelha dada aos devaneios das revistas cor-de-rosa. Não escancaram a vida pessoal à comunicação social. Honra lhes seja feita por terem sabido preservar uma certa intimidade dos holofotes da política e do voyeurismo da comunicação social. É por isso que Cavaco não vende revistas cor-de-rosa, ao contrário de outros políticos que se dão a conhecer mais por esta faceta do que pela competência no desempenho.
Desta vez tivemos direito a uns fragmentos do “exílio” involuntário do então jovem casal por terras moçambicanas. Em solene discurso do senhor presidente, um discurso arrebatador porque carregado de literatura. Diria que não foi ele que o fez (ou algum dos seus conselheiros), pois ele não sai da cepa torta do “economês” e os seus conselheiros só alcançam verve de burocrata. Suspeito que houve dedo da presidenta naquele discurso, ela que é mulher mais dada às letras, aquele discurso repleto de carga emocional que encaixa na sua personalidade afectiva e não na impenetrável personalidade do consorte.
E assim fomos convidados a mergulhar no passado do casal Cavaco e Silva, de braço dado com a sua nostálgica deambulação pelas circunstâncias, lugares, felicidade daqueles dois anos de exílio involuntário. Por entre descrições repletas de imagens literárias, como os jacarandás perfumados da avenida onde residiam, ficámos a saber que a filha herdou o nome da toponímia onde o casal habitava (e, provavelmente, foi concebida). Num assomo de revelação da intimidade que se lhe não conhecia, o presidente confessou à pátria que o ouvia que aqueles dois anos foram de (e cito de cor) “intensa felicidade”.
Pela minha parte, dispensava esta cumplicidade com o agora casal presidencial. Há um certo recato que devia vingar. A quem interessa saber que aqueles dois anos moçambicanos foram de “intensa felicidade” para o jovem casal? O que se insinua nesta frase, para além da evitável revelação da libido do casal? Que grotescas imagens desfilam diante da mente dos súbditos de sua excelência quando ele escorrega para esta nostalgia? Há imagens que só de se imaginarem são dispensáveis. E há uma confusão de papéis: não digo que o casal presidencial não tenha direito a revisitar o seu passado de “intensa felicidade”. Que o tivessem feito a dois, resguardando a cumplicidade que só a eles pertence. Não o trazendo para a imprensa e para as televisões que os acompanham.
Esta inusitada ostentação de um “rosto humano” do casal presidencial é uma desastrada tentativa de romper com o passado tão cinzento que não atrai a parelha para os holofotes da coscuvilhice que faz escola. Talvez não intencionada a tentativa, atarantados com a enxurrada de emoções ao revisitarem lugares que tanto lhes dizem; mas evitável. Parece que está na moda: há duas semanas tivemos direito a uma vista de olhos pela intimidade estudada do timoneiro da nação e daquela personagem que acredita (talvez só ele – ou nem sequer ele) que lhe pode suceder no cargo. Não vi – nem queria ver – as reportagens televisivas sobre as funestas personagens. Li alguma coisa no restolho. E percebi que mesmo o esforço de apresentar um “rosto humano” dos políticos é inquinado pela pose estudada, pela palavra milimetricamente colocada, por um kitsch patético que afinal combina com a portugalidade reinante.
Pela amostra, eu cá preferia que esta gente continuasse dentro da sua concha impenetrável. Que não mostrasse os laivos humanos que neles habitam. As suposições que se entreabrem quando o casal presidencial confessa detalhes dos dois anos vividos em Moçambique alimentam o princípio do avestruz: enfiar a cabeça na areia, para fazer de conta que nada daquilo foi escutado.
Já sei: com tão proeminentes figuras não se brinca, tamanho o respeitinho que lhes é devido. Isso fica para o texto de amanhã.
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