19.3.08

O acolhedor betão das cidades


Admiro o bucolismo do campo, as paisagens verdejantes, a sucessão de montanhas que faz perder o horizonte, o som de um regato escondido entre a vegetação frondosa, o ar fresco e puro que é penhor das terras isoladas. Admiro tudo isso no campo, mas de passagem, em visitação que não se demore. Quando estive algum tempo no campo, rodeado pela sufocante ausência de edifícios: claustrofobia. O peso esmagador do embriagante verde que cercava. O silêncio, estranhamente ensurdecedor, insinuando-se nos ouvidos, penetrando em forma de miragens auditivas que tomavam conta do cérebro então mergulhado em oníricos devaneios.

Será habituação às cidades, onde sempre vivi. Habituei-me a olhar para todos os lados e ver casas, prédios, betão armado decorado com as janelas que resguardam a intimidade dos lares. Ou edifícios de escritórios, anónimos, frondosas fachadas de uma arquitectura arrojada. Dizem os puristas que uma cidade é a adulteração da natureza. Uma cidade cresceu para os terrenos virgens, tomados de assalto pela edificação. Raciocínio simplista. Os homens são parte da natureza. E se as cidades nascem e crescem a um ritmo acelerado, é porque os homens sentem a necessidade de invadir os sítios onde só havia terra a descoberto. As cidades são a adaptação do homem à natureza – ou a transfiguração da natureza às necessidades humanas. Cidades são natureza.

Uma cidade não é um desfile impessoal de betão, uma argamassa indiferenciada que degenera a límpida natureza virgem. As cidades são a maravilhosa unção do dedo humano, um amontoado de casario e edifícios e praças e avenidas e arruamentos – umas vezes atraente, outras vezes implacavelmente feio, outras vezes caótico –, mas sempre a herança de gerações pacientes, que foram juntando todas as peças que são a cidade num determinado momento. As cidades repõem o amplexo de sentimentos, emoções, necessidades do momento, estéticas dominantes, pulsares instantâneos. Os sedimentos que o tempo, na sua densa espessura, acumulou.

Não, definitivamente: a cidade não é a negação da natureza. É a natureza humana no seu vibrante latejar. Será impessoal, cada vez mais na arquitectura de traço duvidoso, na caótica urbanização autorizada por autarcas corruptos, ou quando se embelezam ou afeiam as ruas com intervenções que reflectem modismos episódicos. É tudo isso, mas sempre o produto da acção humana. Nem que, para desgosto de activistas do ambientalismo, haja reconhecimento de que o homem é agente da natureza, não apenas o agressor do meio ambiente que os activistas gostariam que fosse imaculadamente puro.

As cidades encerram os seus paradoxos. Para quem ouse refugiar-se na solidão, a cidade é o seu antípoda. Nas cidades há pessoas por todo o lado, mesmo às horas em que quase todos se entregam ao sono. Nas cidades os rostos sucedem-se, quase sempre desconhecidos, mas rostos que impossibilitam a interiorização da solidão. O paradoxo é matéria viva se uma súbita pulsão arremete um exílio na distante província, onde então a solidão é encontrada, onde a ausência de gente se concilia com a sede de isolamento. Só que irrompe a fúria do silêncio, a esmagadora fobia da paisagem campestre, a aflitiva carência de casario. Os carros não passam, ou passam esporádicos; o cantar do vento é uma melodia que ensandece; e falta o silvo dos comboios que se cruzam na apressada demanda dos passageiros, assobiando a metálica fricção dos rodados nos carris em expressão da frenética vida citadina das gentes impessoais.

Claustrofóbicas não são as cidades. Asfixiante é o peso leve do ar campestre. A paisagem interminável onde se sucedem as suaves colinas que são leito para o verde dos pastos, aqui e ali pontuadas pelas cores esfusiantes das árvores floridas, aqui e ali interrompidas por promontórios que se erguem, abruptos e petrificados. Até para alguém dominado pelo pessimismo antropológico, as cidades são um santuário de preenchimento interior. Sem soçobrar diante do sufocante peso do betão que se arqueia sob a cabeça; sem capitular perante a floresta de pessoas que erram pelas ruas das cidades.

O silêncio, a ausência, o descampado: archotes que consomem a carne, dolorosas achas que incendeiam a sublime inexistência. A sensação desconfortável de saber rodeado por pouco mais que nada. Eis a sua claustrofobia. As cidades, os sítios enxameados de pessoas, os lugares de intermináveis edifícios. Actuam como protecções contra a ausência que o campo encerra. E, por incôngruo que seja, o lugar onde vagueia a reconfortante impressão de haver uma multidão protectora. Nem que seja para alimentar o pessimismo antropológico.

(Em Londres)

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