Ainda a teimosia de nos levarmos muito a sério. De ficarmos indignados se alguém parodia o que somos, aquilo que representamos. Da idiossincrasia nacional faz mesmo parte a tristonha maneira de ser, carrancudos perante o sarcasmo alheio, ou só capazes de esboçar um sorriso quando o alvo é o outro. Lá se costuma ensinar: com coisas sérias não se brinca. O respeitinho, o malfadado respeitinho que nos aprisiona numa camisa-de-forças e sufoca a grandeza de espírito.
Há tempos trouxe aqui a ofensa dos escuteiros perante a campanha publicitária de uma cadeia de electrodomésticos. Não aprendemos nada – ou, pelo contrário, a estridência dos escuteiros serviu de pretexto para que todas as virgens pudicas ofendidas com o escárnio alheio ponham a boca no trombone do protesto público e exijam retratação. Em poucos dias, dois novos episódios. Cristiano Ronaldo faz a lide a um touro, ensaia umas fintas estrambólicas que trocam os olhos ao animal. E uma campanha de um banco promove “condições imbatíveis” do crédito para compra de automóvel, teatralizando os vendedores de automóveis.
As reacções indignadas não demoraram. Associações de defesa dos animais julgaram inadmissível o anúncio em que Ronaldo toureava um bicho com bola. Um desrespeito do bovino selvagem, ali amestrado pela prestidigitação futebolística do craque. Protestam: que estes craques são exemplos para tanta gente, e sobretudo para crianças. Logo deviam dar o exemplo e embarcar no cardápio politicamente correcto do dia, de que faz parte o respeito pelos direitos dos animais.
O que me anima contra a bestialidade das touradas já ficou aqui em letra de forma por mais que uma vez. Como também já dediquei palavras aos direitos dos animais, de que sou adepto (mas não militante). E, contudo, a manifestação de desagrado de algumas associações de defesa dos animais soa-me a um histerismo inútil, que apenas terá o condão de virar contra estas associações muitas pessoas que não se deixem cegar pelo fundamentalismo da causa. Contraproducente, portanto. Faz-me lembrar a metáfora do elefante em loja de porcelana. A cada passo, um desastre pelos cacos de porcelana que se estatelam no solo. Qual o mal de se retratar em publicidade uma inofensiva faena de um touro em que o toureiro usa uma também inofensiva bola de futebol, em vez das habituais armas pontiagudas que laceram a carne do animal? Serão aqueles defensores dos animais tão cegos ao ponto de não perceberem a teatralização do anúncio?
Também houve protestos inflamados das associações que representam os comerciantes de automóveis. Contra a imagem pouco simpática dos vendedores de automóveis vertida no anúncio do banco. Insinua-se o charlatão, ou o vendedor de banha da cobra, ou o vendedor que convence pelo cansaço, ou o enganador que leva sempre o incauto comprador no engodo. Vieram logo aquelas associações exigir a retirada do anúncio, pois a seriedade dos vendedores ficou beliscada. Lembram-se do precedente dos escuteiros: o burburinho levou a água ao moinho, pois o patético escuteiro desapareceu da publicidade da cadeia de electrodomésticos. Estarão estes à espera que o banco retire a campanha que anuncia o crédito para compra de automóveis?
A pergunta: as coisas sérias, não se podem parodiar? Onde está a fronteira entre o que admite encenação cómica e o que entra no limiar do intocável à sátira? Nem as instituições, ou até os interesses sectoriais beliscados pela mordacidade alheia? Que haja virgens ofendidas pela sátira de que são vítimas, pertence ao domínio do poder de encaixe, e da sua ausência. Lá está, é o problema de nos levarmos muito a sério e acharmos que aquilo que somos, ou representamos, não pode ser objecto de gozo. Ou cai o Carmo e a Trindade. E o que se dirá das “instituições” – a “pátria” e os seus símbolos, a igreja, a exaltação das novas causas que codificam o politicamente correcto (direitos dos homossexuais, de minorias étnicas, igualdade de sexos, e por aí fora)? Também são intocáveis, insusceptíveis de troça? Lembro-me, já há mais de vinte anos, o brado que deu uma reinterpretação do hino nacional pelo actor João Grosso. Valeu-lhe a demissão da televisão e, pior ainda, uma selvática agressão por covardes nacionalistas muito ofendidos por tamanha vaca sagrada ter sido escarnecida.
Enquanto assim andarmos não passamos da cepa torta, sorumbáticas criaturas alinhadas pela estreiteza de vistas. Muito susceptíveis, muito circunspectos, adormecidos pela aura intocável que vemos adejando acima de nós. A enormidade de uma pequenez que se reflecte na falta de rins para rir com a sátira em somos actores principais.
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