11.3.08

E se Augusto Santos Silva voltasse à escola para reaprender o espírito democrático?


Enternecedor: o senhor ministro Santos Silva espumando raiva para os microfones de jornalistas amestrados. Estava zangado, muito zangado, o senhor ministro. Percebe-se: descontando o fenómeno que é a inexistência de oposição, o que sempre facilita a tarefa dos socialistas se repetirem no poder, as coisas não correm bem à estratégia de propaganda do governo. Talvez haja mais gente a ficar cansada do pedantismo totalitarista dos messiânicos governantes que nos calharam em sorte. Assim se entende que, do timoneiro aos serviçais, a desorientação comece a ser a espuma que se decanta no discurso estudado ao milímetro. As escorregadelas do discurso milimétrico sucedem-se.

E se Santos Silva estava irado! Já não bastava o incómodo de uma viagem até ao longínquo Trás-os-Montes numa gélida noite de sexta-feira. Em vez do recato familiar, mais um sacrifício que se exige aos homens da coisa pública. Outra reunião partidária, para que um dos fazedores de doutrina do partido doutrine os fiéis militantes. À entrada do conciliábulo partidário esperava-o uma ruidosa manifestação. Chamaram-lhe “fascista” – o que o irou tanto. Em vez de prosseguir com espírito olímpico, deixando o opróbrio aos manifestantes comunistas, habituados a chamar “fascista” a tudo o que se mexa, ao senhor ministro saltou a tampa e escorregou para o chinelo.

Parecia uma varina gritando desorientação, doendo-se com os apupos que entravam, estridentes, nos seus finos ouvidos. Alguém devia ensinar ao senhor ministro que as figuras públicas se prestam aos equívocos da dissidência. Quem governa não pode pretender o unanimismo. Mal desta terra se fôssemos uma turba obediente, acenando placidamente a excelência das decisões tomadas pelo governo. Desconhecer isto é desconhecer a democracia, atropelando princípios mínimos de convivência com os que têm o direito de afirmar a discordância. E tão depressa se resvala para a intolerância. Ao que pude saber, nem é surpreendente que assim aconteça com este ministro, atendendo às suas credenciais passadas de alguém que foi tributário de uma ditadura do proletariado.

Desde que Santos Silva começou a fazer figura no espaço público, logo me pareceu que era uma personagem perigosa. Havia ali uma retórica torcionária. Uma lógica totalitária, um raciocínio pérfido, alguém que fizera tirocínio político nas franjas de um partido da extrema-esquerda. O recondicionamento ao espaço democrático não chega para apagar os vestígios da doutrinação de antanho. Ficam as sementes de totalitarismo à mostra. Como entender que venha, ao frio de Chaves, dar lições de democracia por antinomia com nomes por ele recordados, na sua douta sabedoria adversários da democracia de que ele se fazia ali penhor? Há um dizer popular que sintetiza o que ali se passava, entre a complacência dos jornalistas amestrados: “fala o roto do nu”.

E jornalistas amestrados: naquela noite, como na noite seguinte, quando o senhor ministro mexeu os cordelinhos para ser entrevistado na televisão pública, no imperativo de maquilhar a imagem e ficar com a última palavra na polémica que ele semeou. Desdobrou-se em explicações labirínticas, pura arte de retórica esvaziada de substância. Daquele palavreado tonto sobrava, uma e outra vez, o argumento máximo: queixava-se o senhor ministro, como se tinha queixado aos jornalistas em Chaves, que os manifestantes condicionavam o direito de reunião do maravilhoso PS, ó suprema heresia. Insisto: jornalistas amestrados porque nenhum, no dia da polémica instalada por Santos Silva e no dia seguinte, na calma de um estúdio de televisão, nenhum lhe perguntou por que considerava que tinha havido “condicionamento do direito de reunião”. Santos Silva sentenciou-o, sem direito a réplica. O que leva a interrogar: estaria a jornalista que o entrevistou treinada para não fazer a pergunta incómoda? (Depois ficam na RTP muito aborrecidos quando alguém a acusa de ceder perante as pressões do governo. Como hoje estou para os adágios populares, lá se diz que “à mulher de César não basta ser séria, também tem que o parecer”.)

A cabeça do sociólogo Santos Silva deve ser uma tremenda confusão. Era o que mais faltava que um grupo de pessoas não se pudesse reunir no exterior do local onde o maravilhoso PS marca reuniões. E era o que mais faltava que o acampamento ruidoso fosse entendido como “condicionamento do direito de reunião”. Por este caminho, pouco faltará para se fazer legislação que impeça estes “condicionamentos”. Só não sei se, nessa altura, os magníficos socialistas darão conta do atropelo ao direito de manifestação. São eles que, depois, ostentam as maiores credenciais democráticas…

Não sei se Santos Silva devia marcar sessões de acompanhamento psiquiátrico, ou apenas regressar aos bancos da escola onde se ensinam às criancinhas os rudimentos da convivência democrática. Um psiquiatra, ou uma diligente professora, viria temperar a fúria avassaladora do intolerante ministro, ajudando-o a tirar as medidas ao episódio de Chaves. Haveria “condicionamento do direito de reunião partidária” se os comunistas irrompessem pelo edifício onde os excelsos socialistas estavam reunidos e boicotassem a sessão de doutrinação, ou usassem violência.

Há quem tenha achado lamentável o episódio. Eu, pelo contrário, fiquei contente ao perceber, outra vez, que ao estalar o verniz desta gente ficam à mostra as protuberâncias de intolerância que revelam a sua verdadeira têmpera.

Sem comentários: