Para quem nunca tinha ido à Casa da Música, duas visitas em quinze dias é para tirar a barriga de misérias. Desta vez havia água na boca para o concerto de Lou Rhodes, a vocalista dos Lamb, agora em carreira a solo. Desconhecia a obra de Lou Rhodes, a não ser enquanto vocalista dos fantásticos Lamb. Informei-me: soube que apostou em sonoridades diferentes dos ritmos acelerados e electrónicos dos Lamb. A Rádio Radar sintetizou as sonoridades que me esperavam na Casa da Música: “folk gentil”.
(Há sempre uma admirável dimensão na intelectualidade jactante dos críticos de música. Sobretudo quando lhes cabe inventar rótulos onde se encaixam os sons, como se fosse necessário arquivar a música que criticam em categorias herméticas. “Folk gentil” – fez-me coçar a cabeça, meio perplexo: e haverá folk sem ser gentil? Se por “gentil” se entender “delicado”, descubram-me, por favor, exemplares de folk desabrido ou insultuoso. O folk é uma aproximação da música popular ao imaginário folclórico. E como pode o imaginário folclórico ser senão gentil? Tentei decifrar o rótulo: Lou Rhodes tem uma presença doce, uma voz ao mesmo tempo poderosa e melódica, uma fragilidade física que se mistura com um contacto envergonhado com o público. Será daqui que se exaltam os traços “gentis” do folk produzido pela artista? É que, afinal, gentil é Lou Rhodes – e não o folk que ela compõe.)
Foi a primeira vez que assisti a um concerto low cost. A artista, a sua voz e a guitarra dedilhada, com um singelo jogo de luzes a emprestar o cenário à sala cubicular que, ao que dizem, tem inigualáveis dotes de acústica. Um concerto acústico, na singeleza dos acordes de guitarra acompanhando a voz suave e adocicada de Lou Rhodes. Aos que ali iam à espera de revisitação dos temas dos Lamb, apenas um par de incursões em versões despidas da elaboração electrónica. De resto, as composições de Lou Rhodes arrastadas em mais de uma hora. A certa altura, o tempo parecia ter-se estendido para além da sua definição. Uma artista muito zen, apaixonada pelo amor que celebrava em composições acústicas e soporíferas.
Para quem estava habituado a vê-la como vocalista dos Lamb, esta nova vestimenta foi uma surpresa. Negativa. A introspecção, a sagração do amor, a pose de trovadora: eis o seu novo habitat. E das duas uma: ou a audiência estava à espera de mais agitação, não se entusiasmando com os devaneios líricos de Lou Rhodes, notando-se algum preconceito mental perante esta nova faceta; ou a artista encaixa-se mal no novo habitat. E por mais que a gentil e doce Lou Rhodes se esforçasse por desatar a empatia com o público – conseguiu-o a espaços, sobretudo na revisitação de “Gabriel”, um hit dos Lamb – a adesão descomprometida vinha de meia dúzia de espectadores. Os demais aplaudiam sem energia, quase maquinalmente, no fim de cada composição. Diria: quase por exigência de educação, em respeito ao estatuto da artista. Não é o melhor elogio. Sinal da etapa descendente?
Ao mesmo tempo, renovei a impressão da coragem de alguns artistas para se desnudarem perante o amor. Cantam o amor: celebram-no, ou choram-se quando o desamor se entroniza. Confessam a sua entrega nas mãos da pessoa amada, como se a entrega descomprometida a outrem fosse exibição ostensiva de amor. Há ali um desnudamento: a face visível de um amor, afinal partilhado com toda uma audiência. É nesta perda de intimidade do amor que reside o acto corajoso, como se houvesse mister de tirar as roupas e deixar a nu o amplexo de sentimentos que pertence à intimidade dos amantes.
O momento da noite, entre a monotonia que se instalou naquela sala fria e desconfortável da Casa da Música, estava guardado para o prefácio do concerto de Lou Rhodes. Antes da sua entrada em palco, por lá desfilou numa demorada meia hora um artista islandês desconhecido, também trovador do amor magoado. A meio da actuação, algumas palavras para descongelar um público adormecido ou desinteressado. O marketing habitual: uma cidade esplendorosa, um povo acolhedor, um prazer imenso estar no Porto, a lengalenga de sempre. E confessou-se desassombrado diante da arquitectura da Casa da Música. Eis a revelação do momento da noite: o edifício fazia-lhe lembrar uma nave espacial.
Na mouche! Tantos dias consecutivos a olhar para o mastodonte e nunca me tinha apercebido que ele se assemelha a uma extravagante nave espacial.
1 comentário:
Fiquei sem perceber se gostaste do concerto ou não.
Já sigo o percurso dela desde 1997, ainda nos Lamb, e na altura em que se lançou a solo, foi inteligente em não ter ido pelo mesmo caminho dos Lamb. Seria Lamb sem Andy Barlow em vez de ser Lou Rhodes.
O público era vergonhoso, tive vergonha de estar no meio dele. Não conheciam as canções, estavam ali para a ver cantar canções dos Lamb. Os Lam acabaram, mas ela não morreu. Quem não a quer ver, não vá. Tens razão, o público parecia aplaudir por educação. Mais valia terem ficado em casa.
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