23.2.09

Diz o fundamentalista do ambiente: deviam proibir o carnaval


É o restolho da folia carnavalesca. Pelo chão, um montão de serpentinas e confettis em estado cadavérico. À espera da decomposição que tarda, ou que venham os homens do lixo, em horas extraordinárias, recolher as sobras da folgança. Nem é a sujidade espalhada pelas ruas que aflige o exército de vigilantes do ambiente. É pensar nas resmas de papel gastas para produzir as serpentinas e confettis, é pensar nas árvores abatidas para a populaça engatilhar na galhofa carnavalesca.


É inquietante que a seita que zela pela protecção do meio ambiente ainda não tenha protestado contra o carnaval. Não acredito que sejam adoradores dos corsos de carnaval, que a estética por onde militam não costuma sorrir para a estética típica da folia carnavalesca. Será apenas distracção? Será, afinal, que os sacerdotes do meio ambiente não são tão infalíveis, como gostam de se apresentar, na batalha pela preservação do ambiente e deixaram escapar o carnaval como atentado gritante ao ambiente que eles sacralizam?


Neste tempo de proibições fáceis, este podia ser o mote ideal para mais uma. A turba devia inclinar-se perante os imperativos que perfumam os horizontes. O que está na moda, sabemo-lo tão bem, é o ambientalismo. Se o carnaval fosse denunciado como culpado de um crime ambiental hediondo – por decepar a vida de sabe-se lá quantas árvores, pelas tintas tóxicas que vão impregnar de cor os confettis e as serpentinas, pela abundância de lixo a esvoaçar pelas cidades no rescaldo dos corsos e da zoeira das crianças encafuadas nos disfarces de carnaval – a populaça haveria de ser convencida a deixar de festejar o carnaval. Nem que fosse pela força de uma proibição entoada por lei.


Podia haver quem protestasse contra a proibição. Atentado às tradições estabelecidas, diriam. Outros, menos sensíveis à problemática ambiental, gritariam contra o atropelo do que devia ser o constitucional direito do povo foliar. A luz acende-se: a militância do fundamentalismo ecológico faz-se muito à esquerda, mesmo à extrema-esquerda. Ora, destas franjas espera-se doutrina amigável do povo. O mesmo povo que por estes dias de crise tão funda anda carente de entretenimento, mais ainda do que em tempos de acalmia. Eis o dilema dos sacerdotes do ambiente: entre a causa ambientalista que os levaria a aconselhar a proibição do carnaval e outra militância sagrada, nem que seja por oportunismo, a aliança com o povo.


Tenho que admitir a admiração por estas esquerdas radicais. Como eles prescindem das preferências individuais, levados à resignação diante dos imperativos das causas que dizem defender. No conflito entre causas, sufocam a que gostariam de fazer vingar (o ambiente) porque a outra traduz o oportunista clamor que é a voz que se faz ouvir (não ofender os interesses do povo). Pela estética carnavalesca (ou, dir-se-ia melhor, pela sua anti-estética), a gente que frequenta a paisagem da extrema-esquerda teria mais um motivo para se atiçar contra o carnaval. Entre os dois imperativos que chocam de frente, à extrema-esquerda sobra o dever irrecusável de ser porta-voz dos interesses da populaça oprimida pelo grande capital. A populaça encontra nos desfiles de carnaval uma válvula de escape contra as opressões diárias da sociedade do consumo. Abra-se uma excepção que admite um atentado ao meio ambiente. O ambientalismo sabe ter um rosto humano.


Estas esquerdas chiques e menos chiques que se julgam activistas únicas do ambientalismo são acometidas por um mal esquizofrénico. Aos dias ímpares são mentoras do ambientalismo que ninguém (imperativo categórico tão típico delas) pode recusar. Aos dias pares esquecem-se da adoração ambiental para se investirem na condição de supremas defensoras dos interesses do povo. Mesmo que nessa condição tenham que fazer tábua rasa da veia ecológica, pois aos dias pares essa veia é estancada pelo garrote do oportunismo.


Os ingénuos que abram os olhos. Os sacerdotes do ambientalismo são um embuste. Não deviam estar na linha da frente contra a poluição e os atentados cometidos contra a natureza? Como explicam o seu comprometedor silêncio ao fazerem de conta que não existe carnaval? Não contam as muitas árvores abatidas para que as fábricas de celulose produzam a matéria-prima para os confettis e serpentinas que vão encharcar as ruas de poluição? Aquela gente, sempre tão senhora das suas certezas estéticas, não se pronuncia sobre a poluição visual que desfila a rodos nos corsos carnavalescos?

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