2.2.09

A evitável combustão


Sopra dos alísios gentios cauteloso conselho: não atices a fogueira com mais combustível. Que ela já arde, como notas pelo contínuo crepitar da lenha abraçada pelas labaredas. Podes pensar, dominada pela fremente emoção, que a fogueira vai ainda rasteira. Mas o que interessa apadrinhá-la com um combustível em torrente, se tudo o que conseguirás é afoguear todos os abcessos que a incendiaram outrora?


Esses minados terrenos em que teimas, que trazem eles? A eles se chega, talvez, sem dar conta. É só um insidioso palmilhar das léguas mais escusadas. E afugentas do horizonte as pinceladas que evocavam a nitidez; já nem o céu engalanado por aquele azul, dir-se-ia, purificado pela vítrea luz, sem vestígios de névoa a adejar sobre o horizonte. Teimaras em adornar o horizonte com as cinzas que esvoaçavam, numa desenfreada, desgovernada coreografia em súmula de um caos tão próximo. Aquela fogueira, de tão alto arder, continha os ingredientes que deixavam o peito sem ar, como a quem acontece quando está quase na dobra do precipício.


Sobra a dignidade, a intromissão da dignidade. Para temperar a presciência das palavras domadas pela circunspecção. De frente, e em choque, a dignidade e o imperativo de não apadrinhar o fogo que arde tão alto. Diante da encruzilhada, duas possibilidades que parecem armadilhadas. De um hemisfério encavalitam-se as palavras sensatas: o fogo é um ardil perigoso. Do mesmo fogo que poderá crestar o corpo, depois as cicatrizes inadiáveis que não deixarão esquecer a malévola intenção da fogueira que atiçaras com o teu combustível. Do outro hemisfério sussurram advertências ingratas às emoções que te deixam a medrar na dignidade que exige restauro. Porventura a honra, fátua como parece ser, o molde para os passos trocados.


Parece que a combustão é inadiável. Inebriada pela imponente fogueira que arde diante dos teus olhos, tomada pela irreprimível vontade de mergulhar para dentro da fogueira. Julgas-te numa redoma de imortalidade, segura que podes caminhar sobre as cinzas. Imune à dor, imune às feridas dos pés em carne viva. Talvez não alcances a vertigem da fogueira para onde entras com teu combustível: no seu restolho, haverá cinzas que são fragmentos de ti. A coragem inflamada pela aura da dignidade transida é tudo que te lega. Nessa altura, já não mais fogueiras para atear, já mais nada, sequer.


Ao que te leva soçobrar, declinar o feitiço da fogueira diante dos olhos, e assim amesquinhar a lesada dignidade. Outro tipo de cicatrizes, dirás então, das mais desleais. Das que não deixam marcas na pele. Em vez de atiçares uma combustão inútil, é como se te entregasses inteira numa vastidão dominada pelo gelo. A gélida imensidão para temperar os êxtases que segredam, a esbrasear as emoções, o apoucamento da honra. Oxalá o corpo se pudesse dividir nos dois hemisférios que se digladiam. Ao menos não terias a dor dos dilemas sem solução atilada.


Exige-se o contrapeso dos dois hemisférios. Sopesados, recusas ser combustível da fogueira que te apetece experimentar. Sobra um sabor agridoce. A roda-viva, a imparável roda-viva, reclama de ti os olhos postos noutras coisas, as que são penhoras da tua atenção. As coisas que, essas sim, te honram na existência. O resto, pedaços que o tempo se encarrega de curar. É que – sabes? – poucas vezes isto é como gostaríamos que fosse. Não é resignação. Nem covardia. Sentimentos espúrios, nota, que não merecem entronização no mais elevado altar de ti, desviar do que te consagra na plenitude de ti.


Ainda irás a tempo de dar conta que há fogueiras que nidificam na sua combustão e que água nenhuma consegue mitigar. O que se te pede não é que sejas bombeira de uma fogueira que ajudaste a atiçar. Só que não sejas pirómana do fogo que te haveria de consumir em cinzas sem remissão.


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